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Revista Psicologia Política
On-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.12 no.24 São Paulo Aug. 2012
ARTIGOS
Direito à vida sem tortura: direitos humanos para humanos direitos?
For the right to a life free from torture: human rights for the "right" humans?
Derecho a la vida sin tortura: ¿derechos humanos para los humanos derechos?
Daniela Cabral Gontijo*, I; Ondina Pena Pereira**, II
I Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
II Universidade Católica de Brasília no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Brasília, DF, Brasil
RESUMO
Em pleno século XXI, a tortura sobrevive no Brasil de forma ampla e sistemática. Não é mero resquício da ditadura, ou exceção num "pico de criminalidade" como incitado pela mídia; pelo contrário, tem sido regra, um dos símbolos da perpetuação do terrorismo de Estado contra as classes subalternas, que se inscreve tanto na seletividade dos corpos torturáveis, quanto na história, mediante o discurso excepcionalista. Nesse sentido, aproxima-se do crime perfeito, que, na perspectiva de Baudrillard, expressa o banimento do real e a instauração da ordem do simulacro. Ao tomar como exemplo pesquisa realizada no Distrito Federal em 2004, este artigo busca entender como a opinião pública sobre a tortura participa deste cenário criminoso, ou seja, a forma pela qual os sujeitos se inscrevem sutilmente nessa ordem dos simulacros na qual a razão cínica se estabelece. É dessa forma que se imbricam as dimensões política e psicológica desse cenário, no qual a maior ameaça é o discurso da inevitabilidade.
Palavras-chave: Tortura, Crime perfeito, Razão cínica, Classes subalternas, Direitos humanos.
ABSTRACT
In the 21st century, torture survives in Brazil in a wide and systematic manner. It is not a mere residue of the military dictation or exception in a "peak of criminality" as incited by the media. On the contrary, it has been a rule, one of the symbols of the perpetuation of State terrorism against the subaltern classes, which translates in the selectivity of the "torturable bodies" as well as in history, through an exceptionalist discourse. In this sense, torture renders the prefect crime, which, in Baudrillard's perspective, expresses the banishment of the real and the instauration of the order of simulacra. Taking research held in the Federal District of Brazil in 2004 as an example, this article intends to understand how public opinion on torture participates of this criminal scenario, in other words, by what means do subjects subtly inscribe themselves in the order of simulacra in which cynical reason is established. This is how political and psychological dimensions imbricate in a scenario in which the greatest threat is the discourse of inevitability.
Keywords: Torture, Perfect crime, Cynical reason, Subaltern classes, Human rights.
RESUMEN
En pleno siglo XXI, la tortura sobrevive en Brasil de forma amplia y sistemática. No se trata de un mero resquicio de la dictadura, o la excepción en la "cima de criminalidad" incitada por los medios; por el contrario, ha sido una regla, uno de los símbolos de la perpetuación del terrorismo de Estado contra las clases subalternas, que se inscribe tanto en la selectividad de los cuerpos torturables, como en la historia, mediante el discurso excepcionalista. En ese sentido, se aproxima al crimen perfecto, que, desde la perspectiva de Baudrillard, expresa el desvanecimiento de lo real y la instauración del orden del simulacro. Al tomar como ejemplo una investigación realizada en el Distrito Federal en 2004, este artículo busca entender cómo la opinión pública alrededor del tema de la tortura, participa de este escenario criminal, o sea, la forma por la cual los sujetos se inscriben sutilmente en ese orden de los simulacros en el cual se establece la razón cínica. Es de esa forma que se imbrican las dimensiones política y psicológica de ese escenario, en el cual la mayor amenaza resulta ser el discurso de la inevitabilidad.
Palabras clave: Tortura, Crimen perfecto, Razón cínica, Clases subalternas, Derechos humanos.
Introdução
Não é exagero dizer que, no Brasil, o crime de tortura1 é o crime perfeito. Os perpetradores? Agentes do estado, policiais e agentes penitenciários, abrigados sob a legitimidade estatal, investidos de fé pública, força de lei, poder de polícia. A cena do crime? O espaço perfeito, apartado da sociedade, segregado por paredes. As vítimas? As de sempre, as classes subalternas. Mais especificamente homens jovens, negros (pretos e pardos, conforme convenção do IBGE), pobres, analfabetos e semi-analfabetos, e suspeitos – se não suspeitos, feitos suspeitos, pelo Estado e pelo imaginário social – de um crime, na maioria das vezes, contra o patrimônio, conforme dados do Ministério da Justiça (2010). A intenção: extrair informação por "um bem maior": a solução de um crime. Ademais, a recompensa para a sociedade é valiosa: punir alguém pelo bem de que não cometa mais crimes. Os agentes do crime de tortura declaram-se inocentes. A sensação? Alívio. Os juízes: longe de imparciais. A lei que tipifica o crime: um curinga. Os casos de tortura são geralmente arquivados ou desclassificados para crimes mais leves como outros tratamentos degradantes e desumanos ou abuso de autoridade, que levam igualmente a sentenças mais leves (MNDH, 2002:29).
A impunidade dos agentes estatais construiu não somente a memória pública, mas também uma pedagogia de insensibilidades, contribuindo poderosamente para os níveis endêmicos de tortura no Brasil, onde os criminosos da tortura não são condenados. Desde a colonização, são as classes subalternas o foco da tortura estatal. Não há como entender a situação de tortura no país sem lhe aferir a devida historicidade que evidenciam a seletividade racial, perspectiva basilar na criminologia crítica latino-americana. O terrorismo de estado2 ou o que Agamben (2004) chamou de estado de exceção permanente foi iniciado com os genocídios das nações indígenas perpetradas pelos colonizadores e, desde então, não feneceu (Segato, 2007). A ilustração intentada aqui deve ser lida através da mirada da criminologia crítica antropológica, considerando a distinta estrutura de formação do controle social no capitalismo periférico (Duarte, 2006) e seu viés ideológico, expresso não no panóptico de Bentham, mas na premissa de inferioridade biológica de Cesare Lombroso, como assinala Zaffaroni (1991:77).
Relatórios de organismos internacionais apontam para a tortura ampla e sistemática no país; o Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil (2010) também, trazendo uma seleção de estudos que corroboram o quadro aqui apresentado. O Brasil – não diferente dos demais países do mundo – comete o crime de tortura; contudo, por ser signatário de tratados que o condenam, "lava as mãos", numa encenação e política de "faz o que pode" para a implementação desses tratados.
O crime perfeito ocorre diuturnamente – e há séculos – em território brasileiro. Beneficiase com o discurso excepcionalista – este que remete a tortura ao regime ditatorial de 1964 a 1985, como se fosse um crime datado ou em extinção. Contudo, a tortura no Brasil não é tributária dos estados de exceção "oficiais" (1930-45, 1964-1985) ou mero ranço desses, pelo contrário, tem sido a regra (Gontijo, 2004). O discurso excepcionalista, como contundentemente demonstrado por Passos, "organiza a memória pública" e consolida uma pedagogia que "forja sensibilidades e um horizonte ético-político refratário ao discurso crítico dos direitos humanos" (2008:184), ao pretender "inibir, apagar e anular a consciência de que há, no curso da história do Brasil, um continuum classista e racista de terrorismo de Estado perpetrado pelas polícias em face das classes subalternas" (2008:8).
Assim, o crime de tortura é perfeito porque é justificável, é um "mal necessário" dentro de uma gramática excepcionalista, com partícipes que desenvolvem papel essencial e quase fecham o círculo num infindável crime. A despeito de sua inscrição na legislação, no Brasil, a vítima de tortura é não-merecedora de respeito aos seus direitos humanos – são os humanos não-direitos. Essa noção remete à de abjeção de Giorgio Agamben (2002), homo sacer: pessoas vítimas deste julgamento excepcionalista, as vidas nuas, a vida matável, eliminada não exclusivamente nos morros do Rio, mas em qualquer periferia dos centros urbanos – e avançando aos espaços antes rurais. A polícia do Rio de Janeiro matou 1.114 civis em 2005 e 1.069 em 2006, confirma o Relatório da Sociedade Civil para o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais (2007:8). Segundo o relatório de 2004 da Anistia Internacional, a polícia matou, em 2003, 2.039 pessoas somente no Rio e em São Paulo (Passos, 2008:15). Dados oficiais do Rio de Janeiro apontam que 4.370 pessoas foram mortas, entre 2007 e 2010, em confronto com policiais, sendo 1.330 somente no ano de 2007 – o que, segundo pesquisadores, torna a polícia fluminense a mais letal do planeta (Junqueira, 2011).
A Sociedade, a Opinião Pública
Pode-se facilmente apontar os agentes torturadores estatais como os únicos responsáveis pela tortura. É preciso, contudo, complexificar um pouco a questão, sem pretender minimizar o ethos corporativista da instituição policial, mas compreendê-la como peça fundamental da política estatal, como poder disciplinar no sentido foucaultiano, constituindo-se como uma malha difusa de controle social.
Os policiais, todavia, estão menos para sádicos e mais para marionetes e ventríloquos de um Estado que agencia as classes subalternas por meio da justiça penal, como nos apontam autores como Wacquant. No entanto, tal atuação criminosa de agentes estatais é legitimada pela pressão social por um policiamento cada vez mais ostensivo. Teresa Caldeira traz, entre uma série de discursos que sistematiza em Cidade dos Muros, uma entrevista do Secretário de Segurança Pública Manoel Pimentel à época ao jornal Folha de São Paulo, em 02 de junho de 1983, sobre a Rota – a polícia que mata do famoso livro Rota 66, de Caco Barcellos:"Quando a gente permite que a Polícia Militar mate, há reação violenta dos que acham os Direitos Humanos desrespeitados e chega, a rezar missa pela alma dos marginais. Por outro lado, a população reclama segurança e quer a Rota na rua para matar marginal. (...) Não é irônico?" (Caldeira, 2003:170). Caldeira traz, ainda, algumas pesquisas de opinião pública. Uma revela que 85,1% dos entrevistados eram contra a extinção da Rota (2003:170)
Em consonância com o que vem sendo chamado aqui de crime perfeito, é possível perceber que os agentes da tortura contam, ainda, com o "perfeito álibi": as classes subalternas. Ironicamente, aqueles que as classes mais favorecidas associam a perigo também estão controlados pelo medo, capturados pelo discurso de "guerra aos bandidos" (aos criminosos comuns e não aos grandes bandidos corruptos que desviam milhões), naturalmente difundido pela mídia. As classes subalternas somam à pressão/lógica repressiva, pulverizando o medo: "Quem tem que ser torturado é o ladrão, o estuprador", disse uma mulher entrevistada, empregada doméstica, 36 anos. Outra, camareira, 24 anos, comentou: "A gente tá morrendo de fome. Vive condição muito ruim. Se dá condição na prisão, vai todo mundo querer ir morar lá." (Gontijo, 2004).
Tampouco é exagero afirmar que, nesse crime perfeito, a sociedade é testemunha de defesa. O seu depoimento é o silêncio, a tácita conivência. O crime perfeito é, ao mesmo tempo, o crime invisível. Não se vê coisa alguma, não se ouve sequer um pio. Estamos trancafiados(as) em nossas casas, acuados(as) pelo medo da violência urbana – ou a sensação de violência fomentada pela mídia que mostra progressivamente mais violência, um discurso de "guerra ao crime", no sentido que lhe dá Martha Huggins. Nós, a sociedade, somos o bystander3 crucial do crime de tortura. Diz-se: "o cara foi torturado", e o discurso imediatamente ricocheteia: "mas o que foi que ele fez"? A tortura justifica-se perfeitamente, em o que se poderia bem chamar de legítima defesa social. Justifica-se para que nós, a sociedade, possamos "dormir tranquilas(os)". Isso significa que, em relação ao crime da tortura, jogamos o mesmo papel crucial que os "cidadãos comuns" jogaram na realização do projeto eugênico nacional-socialista: nossa falsa ingenuidade esconde nossa aceitação da existência das prisões como lugar onde devem ser trancafiados os delinquentes, que, por sua vez, justificam a existência da polícia (Foucault, 2006). Essa funcionalidade do crime constitui também um problema nas reflexões de Hannah Arendt (1983) sobre o julgamento de Eichmann, as responsabilidades desse cidadão para com o projeto do nacional-socialismo. Contra a imagem de um Eichmann sádico, Hannah Arendt não vê senão uma terrificante "superficialidade", o que lhe faz constatar, surpresa, a facilidade com que um povo, na sua grande maioria, cedeu ao apelo do carrasco.
No caso da tortura, Estado e classes favorecidas agenciam uma tribuna moral, julgam e criminalizam as classes subalternas e, concomitantemente, asseguram os seus interesses: a manutenção das benesses de uma ordem social desigual (Caldeira, 1991). "No meu ponto de vista, o que a população quer é que a polícia chegue junto", diz, em entrevista, o ex- Secretário de Segurança Pública Fleury (Caldeira, 1991:172).
Será que não somos nós quem usufruímos – ou que nos convencemos deste usufruto – das benesses do terrorismo de Estado? A tortura é um crime de Estado, perpetrado por seus agentes contra as classes subalternas, que permanece impune e silenciado, em face de uma intricada rede estatal corporativa, parcial, seletiva, atravessada pela atualização cotidiana da estrutura colonial (Segato, 2007). Isto não acontece, contudo, sem a conivência – ou conveniência? – da opinião pública, que justifica o crime da tortura com uma lógica moral: direitos humanos são para humanos direitos. Com este mesmo slogan elegemos políticos como o Ubiratan Guimarães (PP)4, comandante do Massacre do Carandiru e um dos deputados estaduais mais votados em SP, em outubro de 2002. A mídia corporativa é cúmplice nesta trivialização do terrorismo estatal, promovendo formas mais sutis de conivência, como a constante promoção da analogia bandidos-bárbaros, no sentido que lhe atribuiu Segato: "como parte de la díada civilización-Barbárie" (2007:158)5. Para adjetivar bandidos que desviam milhões, "colarinhos brancos", agentes estatais criminosos da tortura, a palavra bárbaro, ironicamente, perde sentido. Não importa se fomos capturados pelo discurso excepcionalista ou se nos deixamos capturar; somos parte desta teia legitimadora da violência policial e da tortura, pelo medo, pela garantia das benesses de uma ordem social desigual, pela assunção de que a violência justifica-se por contrapor a balança com a criminalidade.
A sociedade, a opinião pública, é convencida dentro de um projeto social excepcionalista e se convence também, diuturnamente, de que é plausível, justificável, e/ou defensável o projeto de justiça estatal, nacional. Primeiramente, a gramática já está formulada. Selaram-se, numa definição criminosa e territorializada, as classes subalternas, as favelas, as periferias.
Depois, a polícia e a própria delinquência são partes vitais do projeto social, conforme apontado por Foucault, em uma de suas críticas ao utilitarismo da criminologia: "A delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinquência. Sem delinquência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinquente? [...] Ou se não houvesse, todos os dias, nos jornais, artigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinquentes?" (2006:137-138).
Mas se, por um lado, o medo – e o discurso que o fomenta – sustenta o cenário de tortura no país, por outro, é igualmente pilar a confiança de que este permanente estado de exceção (Agamben, 2004) atingirá apenas os excepcionais – neste caso os não-normais, não-cidadãos: os humanos não-direitos (Gontijo, 2004).
As percepções e o discurso da sociedade – conivente com a tortura, pelo silêncio, pela moralidade, pelo medo, pela razão cínica, ilustra o que Segato chamou de discurso da inevitabilidade (2006:16), que formam, nas palavras da autora, uma intricada teia moral e discursiva (2003), que termina por legitimar o crime perfeito.
Parece que se pode afirmar, sem exagero, que a população está ciente do cenário apresentado e permanece indiferente, fomentando um ciclo de tortura, repressão policial e impunidade no país. Quando se pergunta sobre o crime de tortura a alguém das classes mais favorecidas, isto é, que não o vivencia na pele, a resposta muitas vezes é: "isto é coisa da época da ditadura" (Gontijo, 2004). O que parece contraditório a princípio pode explicar como a conivência com a tortura está sutilmente, mas fundamentalmente estabelecida na sociedade brasileira.
Em suma, sugere-se que a percepção da sociedade legitima o cenário, por um lado, mediante o clamor para o endurecimento da repressão, por outro, por meio do silêncio quanto às violações. Parece que a maioria, inclusive membros das classes subalternas, sustenta a lógica de "combate aos bandidos" e a repressão torna-se uma desculpa, uma justificativa para toda sorte de abusos e crimes em massa por policiais e agentes penitenciários. Nesse contexto, ganha importância o estudo da opinião pública.
O cenário, tal qual apresentado, foi o que instigou uma das autoras a pesquisar as intricadas impressões e discursos de uma parcela da opinião pública, culminando na dissertação Freedom from torture in Brazil: a human right for the right human? A study on the societal perception of the practice of torture in the Federal District (Gontijo, 2004)6.
A pesquisa, realizada em maio de 20047, entrevistou, via questionário semi-estruturado, 200 pessoas em 5 Regiões Administrativas do Distrito Federal (Brasília, Taguatinga, Candangolândia, Ceilândia e Paranoá)8, produzindo dados quanti-qualitativos, com a intenção de compreender percepções, tais como: O que é a tortura? Quem é torturado(a)? Quem é o agente torturador? Por que e por quem é usada a tortura? Há diferenças entre a percepção das classes privilegiadas e das subalternas? Quais as contradições? É possível perceber julgamentos morais por trás das justificativas para tortura? Como essas percepções legitimam a violência policial? (Gontijo, 2004)
Se a primeira pergunta revelou uma definição – tortura é alguma forma de violência – expôs também um problema. A tipificação do crime não está nítida para as pessoas. Apesar da Constituição Federal de 1988 proibir a tortura, somente em 1997 adveio a Lei Federal nº. 9.455, tipificando o crime. Contudo, a própria lei não faz distinção entre tortura institucional e outras formas de tortura. Na Lei Federal, entende-se a tortura institucional apenas como um agravante: "§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I – se o crime é cometido por agente público".
Quando perguntadas sobre a existência da lei contra a tortura, 116 das 200 pessoas entrevistadas desconheciam a lei. Destas, todas as que não sabiam ler. Inesperadamente, apenas 52,9% das entrevistadas com ensino superior completo conheciam a lei. Quando perguntadas "se existisse uma lei, o que diria?": 79,5% disseram que proibiriam a tortura; 15,5% que proibiriam certos tipos; e 5% que permitiriam a tortura. A falta de uma definição dificulta o enfrentamento à tortura. Esta ausência, patente na lei que tipifica a tortura no país, aponta o desinteresse estatal em coibir esse crime ou em enfrentar os níveis amplos e sistemáticos da tortura no país (Gontijo, 2004).
Desse modo, a tortura institucional carece de um tipo penal específico capaz de classificar penalmente a tortura sistemática e histórica contra as classes subalternas. Num sentido, põe em risco sua caracterização; se um tipo penal carece de inteligibilidade, pode ser tudo e qualquer coisa. É particularmente mais preocupante quando se sabe que a tortura é um crime invisível, o crime perfeito como ilustrado acima. Enfrentar algo indefinido na percepção social beira a impossibilidade.
A indefinição quanto ao tipo penal relaciona-se também à vítima de tortura. Na sequência das perguntas, quando solicitadas a responder sobre quem seriam as grandes vítimas, os criminosos foram apontados como as pessoas mais torturadas, com 54,5%; um índice pequeno se comparado com os dados reais. No mais, apontaram-se mulheres, crianças, pessoas idosas, numa evidente indefinição do termo tortura, fazendo alusão à violência doméstica9. Em seguida, as entrevistadas exemplificavam as respostas acima com exemplos pessoais, incluindo-se como vítimas também dessa violência genérica que definiram como tortura. O que pareceu um contrassenso quando se viram como vítima, mas não quando apontaram quem seriam as grandes vítimas.
Quando se perguntou: "quem você pensa que tortura?", a maioria entrevistada disse: criminosos e policiais militares. Esta divisão revela que, quando se pensa em agentes do crime, o imaginário social não invoca os criminosos da tortura, dos tratamentos desumanos ou degradantes. Por outro lado, divergem de dados em relação ao crime de tortura no Brasil: perpetrado majoritariamente por policiais civis e agentes penitenciários, segundo dados do SOS Tortura (MNDH, 2003)10. Uma entrevistada, que elegeu os agentes penitenciários, disse: "bem, eles tão lá dentro, não podemos ver". Antagonicamente, a maioria alegou o mesmo para justamente não eleger agentes penitenciários (por estarem lá dentro, não poderiam dizer). Apenas 9% (18) apontaram agentes penitenciários como os maiores torturadores. O expresidente nacional da OAB Rubens Approbato disse, à época, em uma entrevista: "ninguém vê o agente penitenciário torturando o preso. A sociedade não vê o policial torturando o suspeito para obter uma confissão. E a sociedade não se choca, porque, no fundo, aceita essa prática" (Campbell, 2003).
Quando perguntadas se qualquer pessoa seria capaz de praticar a tortura, 50% responderam que sim, 47% que não, 3% não souberam responder. Por outro lado, perguntadas se seriam capazes de praticar a tortura, 26% disseram que sim, 62% que não, 8,5% que talvez e 3,5% que não sabiam. Ao cruzar os dados, é interessante notar que das 50% (100 pessoas) que disseram que "todos são capazes de torturar", 37% negaram que seriam capazes de tal feito, 13% disseram que talvez fossem capazes e 6% que não saberiam (Gontijo, 2004). Assim, mais da metade afirma genericamente que todas as pessoas seriam capazes de praticar a tortura, excluindo a si mesmas desse grupo11. Certo é que as pessoas, em geral, têm dificuldade em atribuir-se características negativas. No entanto, quando questionadas, muitas sustentavam a afirmação, abrindo mão da mínima coerência exigida de um juízo. Ao fazê-lo, sugerem uma forma típica de operação da razão cínica: se "todas as pessoas humanas são capazes de torturar" e quem faz essa afirmação pertence à categoria de humanidade, logo, é necessário algum grau de consciência cínica, no sentido que lhe atribuiu Sloterdijk, capaz de se abster de tirar coerentemente todas as consequências lógicas a que levam a premissa de onde o(a) entrevistado(a) partiu.
Crime Perfeito e Razão Cínica: notas conclusivas
Mas o crime seria, de fato, perfeito? O que é o crime perfeito? Na perspectiva de Baudrillard (1996, 1976, 1990), é a capacidade de fazer desaparecer o real, não deixando deste qualquer traço. É assim que o autor vê, por exemplo, a entrada do mundo contemporâneo, em todos os seus níveis, na era do simulacro. A realidade e sua representação – que supõe a distância crítica entre a realidade e os modelos – é substituída pela mera precessão dos modelos, que prescindem da realidade. De que forma a tortura pode ser vista como o crime perfeito, nessa perspectiva? Exatamente na medida em que a sua realidade, sob a pressão da cumplicidade entre agentes estatais e opinião pública amedrontada, deixa de ser representada criticamente, é banalizada, perde sua densidade, transformando-se em mero nome dado a uma necessária técnica de fazer falar a verdade.
Felizmente, numa perspectiva baudrillardiana, o crime não é perfeito, pois há resquícios de realidade por toda parte. A tortura, enquanto acontecimento, resiste à rede de simulações, apontando o cinismo da razão.
Assim, se por um lado, o discurso excepcionalista promove e tem promovido ao longo da história uma amnésia seletiva – "um processo de banimento que expulsa, da memória pública, a história da violência estatal dirigida contra o, assim chamado, criminoso comum" (Passos, 2008:184), por outro lado, no entanto, é possível percebermos, cotidianamente, as fissuras desse projeto. Isto é, até o senso comum constata que a Justiça não é para todas as pessoas, que o direito, de uma forma geral, salvaguarda os interesses das classes burguesas etc. As pessoas entrevistadas pareciam cientes do projeto excepcionalista: "A Lei deveria ser para todos. Porque que o rico não é torturado?", perguntou um entrevistado, de 33 anos, assistente de cozinha. Outro entrevistado, trabalhador no comércio, de 22 anos, como tantos outros, também adensou esta indagação: "Deveria ser igual, se uma pessoa pobre apanha pra falar alguma coisa, porque os filhinhos de papai não?".
Assim, talvez, a restituição da densidade ao real, através do justo reconhecimento desse estado de coisas como um estado de emergência, no sentido que lhe atribuiu Walter Benjamim, suponha o esforço de compreensão do que seja a cultura do simulacro (Baudrillard, 1976) e a razão cínica que nasce aí. Esta, na expressão proposta por Sloterdijk (2000), inverte a formulação marxista da ideologia: "eles não sabem o que fazem, mas fazem" para "eles sabem o que fazem, mas fazem" (Zizek, 1996:312).
Percebe-se uma razão cínica generalizada e que pode servir para levantar questões sobre a perpetuação do crime de tortura no Brasil. Se uma "consciência ingênua" (que se confunde com o próprio conceito de ideologia) pode ser submetida a um processo crítico-ideológico que mostre suas fissuras, e que faça reconhecer uma "realidade social que ela distorce, e mediante esse ato mesmo, dissolver-se", a consciência cínica, ao contrário, por viver em uma era pósideológica, é refratária a uma análise crítica (Zizek, 1996:312).
São muitos os exemplos de razão cínica. É esta que absorve a tão moderna lógica da dissociação. Podemos assistir a um documentário sobre os carregadores de baterias dos celulares da Nokia, produzidas numa fábrica chinesa onde a situação dos operários aproximase ao trabalho escravo, comovermo-nos com tal desumanidade e continuarmos a consumir seus aparelhos. Ou sabermos do desmatamento e da poluição que provocam a pecuária no país, e, da mesma forma, continuar a comer carne. Sabermos, de forma mais genérica, que nem todas as pessoas podem exercer a cidadania no país, que a Justiça não é para todas elas, que não há representatividade das elites e classes burguesas nas prisões e, não obstante, continuarmos invocando as leis, o Estado e as noções de igualdade constitucionais.
Quem acredita, de fato, que o Judiciário pune a todas as pessoas, sem distinção de classe, raça? Quem acredita que estão nas favelas do Rio os grandes traficantes? Talvez esteja na repressão às drogas a maior expressão da consciência cínica. Há imensa demanda por consumo de drogas ilícitas pelas classes favorecidas, que não estão dispostas a protestar por sua descriminalização, mas preferem consumi-las ilegalmente, certas de que sobre elas não recairá qualquer lei. "A razão cínica já não é ingênua, mas é o paradoxo de uma falsa consciência esclarecida: sabe-se muito bem da falsidade, tem-se plena ciência de um determinado interesse oculto por trás da universalidade ideológica, mas, ainda assim, não se renuncia a ela", aponta Zizek, ao discutir a tese de Sloterdijk (1996:313).
Assim, se, por um lado, o crime de tortura não é inteiramente perfeito, por não se deixar capturar nas redes de simulação de sentido, por outro, a própria razão cínica procura reconstituí-lo na perfeição que ele é para si mesmo. Para a razão cínica, paradoxalmente, as verdades, esses resquícios de realidade, não interessam. O irônico é que o crime da tortura foi historicamente entendido como um crime para revelar-se a verdade, seria uma ferramenta para que a verdade viesse à tona. O seu uso moderno (quando já se sabia que, sob tortura, a pessoa confessaria qualquer coisa, ou seja, que nada ali se revelaria) é análogo à própria razão cínica. A verdade, para os próprios agentes torturadores, é o que menos interessa. Da mesma forma, na denúncia do crime de tortura não basta demonstrar como se sustenta, fomenta e é fomentado por um projeto estatal excepcionalista. Já o sabemos. Parece que dizer o real produz apenas alívio, mas não desfaz qualquer ilusão ideológica, porque esta já não existe. Este alívio é justamente o que possibilita que as coisas permaneçam como estão, que recapturem um sentido de normalidade, levando ao paradoxo a ironia em si. Zizek, em palestra dada em Nova Iorque, recorre ao exemplo da guerra do Iraque: quando Blair anunciou seu apoio, a população foi às ruas em protesto. O curioso, segundo ele, é que a população parece ter ficado satisfeita – afinal, "fez sua parte". Também Blair parece ter ficado satisfeito, embora tenha continuado apoiando a guerra. O próprio Bush, em um cinismo mais tosco, e por isso mais verdadeiro (pois se permite revelar), teria dito: "é por isso que vou ao Iraque, para que as pessoas, um dia, possam ir às ruas protestar por algo".
Temos, na expressão de Bush, um atentado à noção histórica que se desenvolveu no Ocidente sobre a força reveladora da palavra e seu poder de tradução racional, inteligível, da verdade. A descrença no poder iluminador do conceito, na sua capacidade de expressão inteligível do real, já sofre vários abalos desde os fins do século XIX, quando uma consciência trágica da existência começa a tomar forma, mostrando a nítida separação das pessoas humanas com o mundo e das humanas entre si, e despertando a suspeita sobre a capacidade das palavras em traduzir a incomensurabilidade do mundo, da realidade.
Antecipa-se aqui um momento histórico em que as palavras se revelariam cada vez mais impotentes para traduzir qualquer forma de relação dos humanos com o ser. Há uma espécie de decadência da cultura, que se concentra em produzir uma linguagem utilitária, deixando um vazio enorme em nossa capacidade de comunicação simbólica. Esses espaços vazios, insuportáveis para a cultura ocidental que pretende tudo erigir em evidências, começarão a ser preenchidos com sinais abstratos ou meramente funcionais. Nesse processo, as palavras vão sendo esvaziadas do seu conteúdo. Por exemplo, termos como liberdade, pessoa, democracia, são empregados de maneira cada vez mais massificada e se tornam slogans, perdendo a densidade de sua significação.
Esse tipo de uso da linguagem se alimenta da ilusão de que as palavras estão, como as coisas, à nossa disposição. Fazemos delas um uso continuado, irrefletido, à medida que vamos manipulando os objetos em função de nossas conveniências e necessidades, recobrindo de inautenticidade a experiência que temos do real, aprisionando as significações à necessidade de tudo traduzir em signos funcionais, permutáveis de pessoa para pessoa, de interesse para interesse.
Poderíamos relacionar esse processo de banalização do sentido com a produção da ordem do simulacro (Baudrillard, 1976). Nesta, o sentido vai perdendo cada vez mais o lastro na nossa experiência com o real e se faz através de pura simulação. O simulacro precede e prescinde da realidade e da experiência e articula-se perfeitamente com a razão cínica.
Na perspectiva de Baudrillard, a cultura do simulacro dá origem a uma nova ordem, sutil, e não é mais a nossa conhecida ordem da dominação. A ordem da dominação é fácil de caracterizar. Seu modelo pode ser o da relação entre homem e mulher, entre mestre e escravo, entre patrão e empregado etc. São relações entre pares de opostos, onde um tem predominância hierárquica sobre o outro. Nessas relações – mesmo sendo relações onde há alienação – é possível pensar em termos de contradição, de relações de força, que podem culminar em uma revolução, por exemplo. Mas a ordem da hegemonia, essa nova ordem sutil, é mais complicada de se definir, porque é onde a "verdade" é produzida. Seria a produção generalizada da máscara, com o emprego desmedido de todos os signos, o escárnio em relação aos seus próprios valores, o cinismo. Como nada tem lastro na realidade, os valores, então, podem ser trocados um por outro de acordo com nosso interesse.
Em outras palavras, a dominação clássica, histórica, funcionava pela introdução autoritária de um sistema de valores, que eram ostentados e defendidos. Na hegemonia contemporânea, ao contrário, há uma espécie de liquidação simbólica de todos os valores, já que são simulados. Assim, todo o trabalho do negativo, todo o trabalho do pensamento crítico, por exemplo, com relação à opressão, qualquer que seja ela, ou com relação à alienação, não tem mais a força que teria no sistema de dominação. Simplesmente porque essa nova configuração hegemônica absorve a crítica, absorve o negativo. Eis a forma de funcionamento, o trabalho essencial da razão cínica: transformar toda crítica, todo movimento contrário, em uma justificativa para o sistema, um alimento para ele, fazendo do poder uma configuração virtual que metaboliza em seu próprio proveito qualquer elemento. Tal é possível na medida em que se perde a noção de totalidade do sistema, na medida em que o mundo, as culturas, são fragmentadas, transformadas em um amontoado de peças avulsas não mais coerentes entre si.
Nesse sentido, Rita Segato escreveu recentemente em Da inaudibilidade do grito à inevitabilidade da luta armada, sobre o massacre do povo palestino exibido pela mídia, e de como os apelos e narrativas esbarram numa impossibilidade, que é a própria impossibilidade da representação. Em suas palavras: "O incrível fenômeno da inaudibilidade do grito indica que mergulhamos sem percebê-lo na incomunicabilidade própria de toda atmosfera totalitária, com seu cerco midiático, com sua língua eufemística, com o encapsulamento dos sujeitos" (2009).
A ideia de uma impossibilidade da representação está presente nas análises de Baudrillard (2002) sobre o mundo contemporâneo, no qual triunfa uma cultura antidialética, cega às contradições. Ora, a característica da representação é exatamente a da assunção da ausência, da contradição, da crítica. Na era pós-representação, são os códigos que se antecipam à realidade, modelizando-a e simulando, assim, a transparência do mundo, que é, na verdade, a transparência dos próprios códigos. Não havendo, pois, representação da realidade, mas antecipação desta, ficamos à deriva dos modelos, perdendo a capacidade crítica.
Parece que se trata de uma era pós-ideológica, que nos exige um constante esvaziamento de sentido e coerência. Mesmo os textos acadêmicos esvaziam-se constantemente de significação. Estamos numa era em que nomear algo tem o mero valor da palavra, nada além disso. Não é que a verdade não se possa revelar, mas revelá-la não produz qualquer efeito. Pelo contrário, faz até parte da sustentação de um quadro de inevitabilidades.
O próprio discurso de direitos humanos corrobora para exaurir de efetividade a implementação dos tantos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como a alcunha de "Cidadã" de nossa Constituição. Primeiramente, direitos humanos exigem o que se poderia chamar de "adesão de consciência". A eficácia simbólica do direito, do qual falava Villegas (1998), serve apenas num plano teórico esvaziado. A realidade é um estado de exceção permanente, nas palavras de Agamben (2004), uma seletividade racial, uma continuidade histórica de pilhagem e terrorismo contra as classes subalternas. Para que os direitos humanos "funcionassem", precisaríamos nos convencer, por adesão. Mas estamos num tempo em que não precisamos mais nos convencer de nada. Uma consciência cínica pode aderir sem aderir. Pode indignar-se e continuar sustentando discursos excepcionalistas. Mesmo um artigo como este pode denunciar o crime perfeito da tortura, e ser parte dele. Os discursos acadêmicos são perfeitamente dissociáveis das práticas.
Mas será que vivemos, de fato, em uma era pós-ideológica, ou é a razão cínica parte integrante das ideologias racistas e classistas cada vez mais sutis e dissimuladas? Assim sendo, como é possível denunciar o discurso excepcionalista que em nome da manutenção de privilégios, alija de cidadania parte considerável da sociedade, de feição negra e pobre, sem escorregar numa denúncia vazia, num mero dizer de palavras?
Se a era fosse pós-ideológica, a perfeição do crime se consumaria. A perfeição residiria justamente na recaptura da denúncia por um esvaziamento de sentido generalizado para que o modus operandi permanecesse vigente e prolífico. A repetição ratificada. Como nos apontou Baudrillard, no crime perfeito, a própria perfeição é o crime, perfeição esta punida pela reprodução (1996:20).
Para Baudrillard, há uma radicalidade essencial na reiteração e perpetuação de um crime: "Se as consequências do crime são perpétuas, é porque não há nem assassínio [sic] nem vítima. Se houvesse um ou outra, o segredo do crime alguma vez seria desfeito e o processo criminal seria resolvido. O segredo consiste afinal em um e outro estarem confundidos (...)" (1996:21). Com isso, o pensador não nos diz que ambos são iguais ou que não há opressão/dominação, mas chama a atenção para o fato de que um sistema só se eterniza quando opressor e oprimido se confundem, quando um é speculum do outro e nutre este reflexo. Talvez nos quisesse dizer que o capitalismo se perpetue porque o retroalimentamos; que a sociedade de consumo vigora e grassa porque mesmo quem não consome parece ávido por fazê-lo; que há uma lógica espectral na continuidade de situações opressivas, como na perpetuação da tortura.
Será que, do mesmo modo, ao transferirmos a nossa crítica ao Estado – indubitavelmente o agente maior da tortura – também não pulverizamos a agência que nos caberia na dissolução deste? O sociólogo escandinavo Niels Christie (1981) arrisca uma possibilidade: quanto menos estado melhor. Ele, como a antropóloga argentina Rita Segato, são entusiastas do que poderíamos chamar de um retorno às comunidades. Já para Coimbra e Nascimento (2009:56), na esteira de Wacquant, o que tem se minimizado é o Estado social, enquanto o Estado do controle se maximiza, dando à miséria um tratamento penal, com o encarceramento dos pobres.
Por fim, se o presente cenário é, sobretudo, paradoxal (um Estado criminoso, porém inimputável, que esvazia a noção de justiça, e uma sociedade onde se generaliza a razão cínica, mas que segue ratificando o bastão estatal), é, ao mesmo tempo, desafiador: na tentativa de significar o grito inaudível, como não resvalar no lodo da inevitabilidade?
Paradoxo confirmado pelas palavras de Coimbra e Nascimento ao afirmarem que:
A era dos direitos, da participação e da liberdade emaranha-se, mistura-se com o atual Estado penal e a Tolerância Zero. Ao mesmo tempo em que se produzem cantos de sereias, seduções, cooptações e capturas, também se forjam práticas punitivas, repressoras, terroristas, em que a tortura e o extermínio são justificados como um mal menor, como necessários no sentido de garantir a segurança de alguns. (2009:56)
No entanto, as autoras parecem contornar o problema da inevitabilidade, apostando na potência das microrrebeliões, nesses micromovimentos libertários que, longe de se pautarem pela conquista de um Estado Democrático de Direito, afirmam a multiplicidade e a provisoriedade das áreas emancipadas, com o quê buscam escapar ao esmagamento do poder do Estado, o que significa afirmar, com Nietzsche, a potência da vida contra a perfeição do crime e contra a razão cínica.
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Endereço para correspondência
Daniela Cabral Gontijo
E-mail: danielacgontijo@yahoo.com.br
Ondina Pena Pereira
E-mail: ondinapena@gmail.com
Recebido em: 12/01/2012
Revisado em: 29/04/2012
Aceito em: 18/06/2012
* Mestre em Direito pela Universidade de Utrecht, Países Baixos e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.
** Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília, Brasil. Professora da Universidade Católica de Brasília no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Brasília, DF, Brasil.
1 Compreenda-se tortura como tortura institucional, perpetrada por agentes estatais (policiais, agentes penitenciários) com o fim de punir ou obter uma confissão.
2 Para crítica contundente ao terrorismo estatal vide Passos (2008) e Matos (2009).
3 O conceito, usado por autores como Ervin Staub (1989), para designar o papel crucial de "cidadãos comuns" supostamente inofensivos no Holocausto. Hitler mesmo acelerou "a solução final", surpreendido pela grande aceitação social das leis que restringiam os direitos de pessoas com ascendência judaica.
4 Morreu recentemente. Também foram eleitos Lopes (PP), com 207.006 votos e Jazadji (PFL), com 157.602. Juntos, foram os três mais votados. Guimarães recebeu 56.155 votos, de acordo com a reportagem Discurso antidireitos elege campeões de voto em SP, de 13 de outubro de 2003, do Diário de São Paulo.
5 Para discussão mais aprofundada, vide Aníbal Quijano (2000), Santiago Castro-Gómez (2001), Rita Segato (2007) etc.
6 O interesse aqui não é o de nos determos nos meandros da pesquisa, tampouco esgotar os dados aí levantados, mas refletir sobre um sentido geral para o qual ela aponta, qual seja, a relação entre o cenário de tortura, a noção de "crime perfeito", no sentido baudrillardiano, e a razão cínica. Para uma análise exaustiva de dados, vide dissertação mencionada.
7 Sob supervisão local da Dra. Paola Biasoli (UCB), formou-se uma equipe de quatro pesquisadorascolaboradoras da UCB.
8 A pesquisa, realizada entre 26 e 28 de maio de 2004, foi estratificada por sexo (50% cada), idade (pessoas entre 18 e 60), e renda familiar, selecionando, por sorteio, uma região administrativa de cada grupo (dentre cinco grupos), seguindo a estratificação oficial por renda e a subdivisão em grupos realizada pelo Governo do Distrito Federal (Relatório da Secretaria de Ação Social (PISEF/DF; CODEPLAN/GDF, 2002:10-12). Foram realizadas 40 entrevistas em cada região. Para mais informações, vide referida dissertação (Gontijo, 2004).
9 É interessante notar que 37% dos casos registrados pelo SOS Tortura, incluíam-se na categoria violência familiar, sendo quase metade de violência doméstica contra mulheres (MNDH, 2003:46-47).
10 Apesar de o relatório apontar que apenas 14% das denúncias são contra agentes penitenciários, também aponta como certa sua sub-notificação.
11 Para um estudo sobre obediência, autoridade, responsabilidade por atos e contradições sobre a percepção de si e o que uma pessoa é capaz, vide experimento de Milgram (1974) e Zimbardo, autor do renomado"experimento do cárcere modelo" de Stanford, 1971. Sobretudo, "The Luciffer Effect" (2007), onde aprimora a tese de como "pessoas comuns" e supostamente boas, são capazes de atos atrozes.