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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.29 São Paulo Apr. 2014

 

Junho político: massa e multidão nas ruas brasileiras

 

Political june: crowd and multitude on brazilian streets

 

Junio político: masa y multitud en las calles brasileñas

 

Juin politique: foule et multitude aux rues brésiliennes

 

 

Ernesto Pacheco RichterI; Fábio OrtolanoII; Adriana GiacominiIII

IPsicólogo pela Universidade Federal do Grande do Sul, especialista em Teoria Psicanalítica, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. eprichter@uol.com.br
IITurismólogo pela Universidade Federal de São Carlos, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política e pesquisador do Grupo de estudos e pesquisa em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. fabio_ortolano@hotmail.com
IIIPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora-colaboradora da Agência de Comunicação Entrelinhas. Vinculada à Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. adrianagiacomini@uol.com.br

 

 


RESUMO

As distintas características associadas às massas e multidões indicam uma questão retórica, visto que o antagonismo de suas concepções tende a respaldar as perspectivas utilizadas na análise de grandes aglomerações de indivíduos. O conceito de massas associa-se a um posicionamento conservador, ao passo que o de multidões está relacionado a uma concepção progressista. Assim, as massas têm sido concebidas como irracionais e seus integrantes estariam sujeitos à sugestão pelo contágio emocional, por outro lado, as multidões seriam compostas por singularidades plurais, flexíveis e unidas por seus embates e reivindicações compartilhados. Propomos, portanto, salientar como a jornada de manifestações de junho de 2013, ocorrida no Brasil, revela tanto a irracionalidade destrutiva das massas, quanto o embate de interesses e o exercício de poder das multidões, pois entendemos que ambas as concepções contribuem a esta análise psicopolítica.

Palavras-chave: Massa, Multidão, Movimentos Sociais, Mobilidade urbana, Psicologia Política.


ABSTRACT

The different features linked to crowds and multitudes indicate a rhetorical issue, since the antagonism of their conceptions tends to endorse the viewpoint taken in the analysis of large agglomerations of individuals. The concept of crowd is related to a conservative approach, while the multitude is associated with a progressive one. Hence, the masses have been thought up as irrational and their members would be exposed to a suggestion by emotional contagion, crowds, on the other hand, are composed of plural singularities, flexible, and united by their shared struggles and claims. We propose to emphasize how the journey of protests that took place in Brazil, in June 2013, reveals the destructive irrationality of the crowds as well as the dispute over benefits and the power of the multitudes, as we believe that both postulations contribute to this psychopolitical analysis.

Keywords: Crowd, Multitude, Social Movements, Urban Mobility, Political Psychology.


RESUMEN

Las distintas características vinculadas a las masas y las multitudes señalan una cuestión retórica, pues que el antagonismo de sus conceptos suele a respaldar las perspectivas empleadas en el análisis de grandes aglomeraciones de personas. El concepto de masa se relaciona a una posición conservadora, mientras que lo de la multitud se asocia a una visión progresista. Por lo tanto, las masas han sido concebidas como irracionales y sus integrantes estarían sometidos a la sugestión del contagio emocional, las multitudes, por su turno, se componen de singularidades plurales, flexibles y unidas por sus enfrentamientos y reivindicaciones compartidos. Proponemos, entonces, enfatizar como las manifestaciones de junio de 2013, ocurridas en Brasil, revelan tanto la irracionalidad destructiva de las masas, como el choque de intereses y el ejercicio del poder de las multitudes, una vez que los dos conceptos contribuyen a este análisis psicopolítico.

Palabras clave: Masa, Multitud, Movimientos Sociales, Movilidad Urbana, Psicología Política.


RÉSUMÉ

Les différentes caractéristiques liées aux foules et aux multitudes indiquent une question rhétorique, puisque l'antagonisme de leurs conceptions tend à ratifier le point de vue adopté sur l'analyse des grandes agglomérations d'individus. Le concept de foule se rattache à une position conservatrice, tandis que celui de la multitude s'associe à une vision progressiste. Par conséquent, les masses ont été conçues comme irraisonnables et ses intégrants seraient soumis à la suggestion de la contagion émotionnelle, les multitudes, au contraire, se composent des singularités plurielles, flexibles et unies par ses affrontements et revendications partagés. Nous proposons, donc, montrer comme la journée des manifestations de juin 2013, arrivé au Brésil, révèle l'irrationalité destructive des foules, autant que la lutte d'intérêts et la puissance des foules, car nous comprenons que les deux conceptions contribuent à cette analyse psycho-politique.

Mots clés: Foule, Multitude, Mouvements Sociaux, Mobilité Urbaine, Psychologie Politique.


 

 

Introdução

Como explicar que o homem, um animal tão predominantemente construtivo, seja tão apaixonadamente propenso à destruição? Talvez porque seja uma criatura volúvel, de reputação duvidosa. Ou talvez porque seu único propósito na vida seja perseguir um objetivo, algo que, afinal, ao ser atingido, não mais é vida, mas o princípio da morte.

Fiódor Dostoievski (1821-1881)

Aqueles que assistiram ou estiveram presentes aos eventos ocorridos no mês de junho de 2013 no Brasil ainda se questionam sobre o quê teria impulsionado uma sociedade aparentemente adormecida do ponto de vista político desde o movimento dos Caras Pintadas, ocorrido em 1992, para que saísse às ruas e protestasse veemente contra o aumento das tarifas do transporte público municipal na cidade de São Paulo.

O reajuste de 20 centavos de reais teria sido o estopim que levou milhares às ruas, incluindo as elites, que dificilmente utilizam o serviço público de transporte e para as quais o aumento é irrisório. Pouco a pouco, o movimento se engrandeceu e expandiu a outras cidades brasileiras, repercutindo tanto na mídia nacional quanto na internacional; descaracterizou-se e se resignificou durante o processo. Sua repercussão convocou a sociedade a se posicionar; um evento político de tal ordem não passa despercebido e demanda certo olhar até mesmo daqueles que se colocam alheios ou avessos à política.

Um estopim é um fio ou cordão embebido em substância combustível que comunica fogo a uma carga de explosivos. O que foi embebido? Utopias, ideias e possibilidades; sabemos o quanto elas podem ser inflamáveis, bastando serem conduzidas à carga explosiva apropriada: homens e mulheres cansados de serem submetidos a um transporte público ineficaz e de qualidade precária, cujas condições vemos expressas na canção Rodo cotidiano do grupo O Rappa: "espaço é curto quase um curral; na mochila amassada uma vidinha abafada; meu troco é pouco, é quase nada". Analogia apropriada: de fato cidadãs e cidadãos brasileiros são transportados cotidianamente como animais, levando consigo uma vida socioeconômica apertada sem o mínimo necessário para que possam desfrutar seus direitos à cidadania, expressos em nossa constituição; a saber: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. A explosão se deu e a ruas foram tomadas por estes e por aqueles cujos direitos não precisam ser conquistados.

É inegável o papel do Movimento Passe Livre - MPL - nas manifestações. Suas origens nos levam à cidade de Porto Alegre, onde em 2005 durante o Fórum Social Mundial foi oficialmente fundado. Entretanto, sua constituição está relacionada a movimentos anteriores, como a Revolta do Buzú (2003), em Salvador, e a Revolta da Catraca (2004), em Florianópolis. O movimento ganhou corpo; trançou-se o cordão embebido de ideias explosivas e o aumento proposto em 2013 desembocou inicialmente na mobilização de estudantes, os quais foram tratados com a truculência característica de nossos aparatos de defesa. Vimos imediatamente surgir um fenômeno nada original: a criminalização das massas. Baderneiros, vândalos e delinquentes foram alguns dos qualificativos associados aos participantes das manifestações. Representantes da mídia, dos governos constituídos e a elite burguesa frente aos enfrentamentos e ao caos que se instauraram colocaram em ação discursos em prol do restabelecimento da ordem. Afinal, tratava-se de um bando de delinquentes travestidos de estudantes que deixou um rastro de lixeiras incendiadas, lixo e estilhaços de vidro, pichações, patrimônios público e privado depredados e, sobretudo sangue derramado de ambas as partes: manifestantes e integrantes das forças policiais.

Esse complexo fenômeno que prendeu a atenção da sociedade brasileira e da comunidade internacional, visto ser o Brasil sede de dois importantes eventos esportivos mundiais que costumam atrair milhares de estrangeiros, provocou reflexões de distintas disciplinas: filosofia, sociologia, ciências políticas, entre outras. Parece-nos, por conseguinte, que estudos psicopolíticos sobre o tema sejam relevantes e possam contribuir com reflexões pertinentes. Temos clareza que nosso trabalho não se propõe a uma reflexão totalizante sobre o assunto; buscamos, sim, trazer aportes que entendemos significativos para o campo, uma vez que as manifestações - objeto deste estudo - tiveram um caráter eminentemente político e cujas características nos levam a pensadores significativos da Psicologia Política como Gustave Le Bon, cujos estudos sobre o fenômeno das massas que assolavam a Europa de então, acreditamos, podem colaborar com o tema. Afinal, as massas foram às ruas do Brasil.

Recorrer a um autor europeu cujas contribuições datam do final do Séc. XIX para refletirmos sobre os acontecimentos de Julho de 2013 no Brasil pode parecer anacrônico, entretanto, diante do que pôde ser observado nas manifestações populares, defendemos a atualidade de seu pensamento.

 

Distintas Massas, Mesma Psicologia

Os acontecimentos que estão na base das reflexões de pensadores do final do século XIX sobre as massas são bastante distintos daqueles que levaram parcela da sociedade brasileira a se manifestar publicamente em diversas cidades do país, porém apresentam um traço comum que nos obriga um breve retorno aos clássicos: o clamor por direitos.

Gustave Le Bon viveu uma Europa em período de revoluções sem precedentes na história; o século XIX foi marcado pela ascensão de uma nova classe no cenário político e econômico: o operariado. A classe operária pouco a pouco se fortaleceu e as vozes de trabalhadores oprimidos e expropriados se fizeram ouvir para além da Grã-Bretanha - berço da industrialização, propiciando a terceira e mais significativa onda revolucionária da primeira metade do século, segundo Eric Hobsbawm (1998). As ideias libertárias se espalharam pela Europa ocidental e homens e mulheres saíram às ruas um busca de direitos; como ondas suas vozes foram ouvidas e corpos se aglutinaram e entraram em ação; assim, quase "simultaneamente, a revolução explodiu e venceu (temporariamente) na França, em toda a Itália¸ nos Estados alemães, na maior parte do império dos Habsburgo e na Suíça" (Hobsbawm, 1998:112). Com menor intensidade, "a intranquilidade também afetou a Espanha, a Dinamarca e a Romênia; de forma esporádica, a Irlanda, a Grécia e a Grã-Bretanha. Nunca houve nada tão próximo da revolução mundial com que sonhavam os insurretos do que esta conflagração espontânea e geral" (Hobsbawm, 1998:112). Este cenário político, econômico e social fez surgir um fenômeno novo: as grandes aglomerações de pessoas, as massas.

Esse fenômeno social até então desconhecido ou irrelevante para se tornar objeto de estudo surge atrelado às revoluções, período situado entre 1789 e 1848 e denominado por Hobsbawm como a era da dupla revolução - a Francesa e a industrial. Ambas fundamentais, pois instituíram uma nova organização social. Enquanto a primeira ocorreu localmente, a segunda espalhou-se por solo europeu com repercussões mundiais. Com as revoluções as massas ganharam corpo, se engrandeceram e se transformaram. Em 1871, novamente em solo francês, eclode a Comuna de Paris - movimento revolucionário de cunho socialista com reivindicações por direitos trabalhistas; o movimento foi combatido violentamente e sangue correu pelas ruas parisienses.

Podemos inferir que essa estreita relação entre revolução e massa foi determinante na maneira como a massa foi percebida por aqueles que se propuseram a refletir sobre ela, levando-os a enxergá-la invariavelmente como disruptiva da ordem social e, por isso, uma ameaça que deveria ser repelida e controlada. Ou seja, às massas coube o estigma de sua criminalização a priori, independente da legitimidade de suas reivindicações. Não obstante a relação que estabelecemos, convém salientar que as aglomerações de pessoas haviam anteriormente sido objeto de preocupação dos poderes instituídos.

Em 1714, por exemplo, o parlamento britânico aprovou uma das primeiras leis que visava o controle e punição da reunião de súditos da coroa: conhecido como Riot Act, que estipulava que se um grupo de doze ou mais indivíduos fosse considerado responsável por tumultuar a ordem social deveria dispersar-se no prazo de uma hora, quando solicitado por qualquer autoridade instituída pelo rei; caso contrário, estaria cometendo um crime, cuja sentença poderia ser a pena de morte. Outras formas de controle foram elaboradas no sentido de prevenir a organização de pessoas: Combination Act (1799) que proibia os trabalhadores de reivindicar alterações e melhorias nas condições laborais. Um ano após ter sido revogada e diante das crescentes manifestações proletárias o parlamento do Reino Unido aprovou nova lei que praticamente reeditava a anterior, acrescentando a abolição do direito à greve: Combinations of Workmen Act (1825). A evolução desses mecanismos de controle demonstra o quanto os agrupamentos de indivíduos preocupavam os governantes, pois eram instrumentos desestabilizadores da sociedade e por isso necessitavam ser criminalizados.

Se a congregação de doze pessoas era perigosa e passível de punição, as massas deveriam ser assustadoras, irascíveis, coléricas; assim, foram qualificadas tanto por Scipio Sighele como Gustave Le Bon, que as apresentaram como algo a ser evitado e controlado. A aproximação de Sighele ao fenômeno das massas vem na esteira de trabalhos de criminologistas italianos como Cesare Lombroso e Enrico Ferri; sua questão era saber como criminalizar alguém que tivesse cometido um delito coletivo. Ou seja, quem seria responsabilizado por um crime perpetrado por múltiplas mãos? Esta foi a indagação que o conduziu em A multidão criminosa (1901). Gustave Le Bon, por sua vez, procurou elencar questões mais abrangentes. Parece-nos, pois, que havia um verdadeiro e ambicioso projeto de constituição de um novo campo de pesquisa.

Em Psicologia das multidões (1895), ele descreve as características gerais das massas salientando a importância de considerarmos os afetos, as emoções, a moralidade, as ideias e a imagética que são visivelmente observáveis. Aporta ainda outros aspectos relevantes, como as tradições, os fatores históricos e longínquos, bem como o papel dos condutores das massas e suas características. Finaliza, propondo uma classificação das mesmas. Há um τέλος conservador que indica um ideal utópico de civilização, na qual os conflitos seriam abolidos, como fica evidente em suas palavras:

A massa tornou-se um povo e esse povo vai poder sair da barbárie. No entanto, só a abandonará completamente quando, após longos esforços, lutas incessantemente repetidas e inumeráveis recomeços, tiver adquirido um ideal. Pouco importa a natureza desse ideal. Quer seja o culto de Roma, o poder de Atenas ou o triunfo de Alá, ele bastará para dotar todos os indivíduos da raça em via de formação de uma perfeita unidade de sentimentos e de pensamentos.

É então que pode nascer uma nova civilização, com as suas instituições, as suas crenças e a sua arte. Conduzida por seu sonho, a raça adquirirá sucessivamente tudo o que proporciona de brilho, força e grandeza. Sem dúvida ainda será multidão em certos momentos, mas, detrás das características móveis e mutáveis das massas, estará o sólido substrato, a alma da raça, que limita rigorosamente as oscilações de um povo e regula o acaso. (Le Bon, 2008:190-191)1

Le Bon explicita seu conservadorismo logo na introdução declarando que o "conhecimento da psicologia das massas constitui o expediente do homem de Estado que quer não governá-las - coisa que hoje se tornou difícil -, mas ao menos não ser completamente governado por elas" (Le Bon, 2008:24); após quinze anos, ele concluiria o projeto que inferíramos: uma psicologia política.

Em 1910 foi lançado A Psicologia Política e a defesa social; o título da obra evidencia que manteve seu ponto de vista positivista e conservador ao enfatizar a defesa da ordem social e ressaltar que a "psicologia política, ou ciência de governar, é, todavia, tão necessária que os estadistas não a poderiam dispensar. Eles não a dispensam de fato; porém na ausência de leis formuladas, os impulsos do momento e algumas regras tradicionais são seus únicos guias" (Le Bon, 1910:5). A teoria leboniana constitui-se como um verdadeiro manual de administração das massas, que deveria ser e foi utilizado por detentores do poder.

Seu conservadorismo fixou-se à sua obra especialmente na metade do século XX; o florescimento do totalitarismo tanto a leste quanto a oeste reforçou ainda mais a estreita relação entre a energia visceral das massas e a dominação burocrática (Mazzarella, 2010). Assim, às massas fixaram-se ainda mais ideias de dominação e homogeneidade, impedindo que as singularidades pudessem emergir e fossem percebidas. Sociedade de massa, cultura de massa, massa de manobra, massificação são expressões que denotam esse caráter homogêneo e, sobretudo sua suscetibilidade.

Não obstante o distinto ponto de partida de ambos os autores, as massas foram tomadas como fenômeno social potencialmente abalador do status quo. Esta perspectiva remonta ao pensamento de Gabriel Tarde e podemos percebê-la também em William McDougall. Elas são ameaçadoras, pois aqueles que a elas se juntam tendem a agir de maneira primitiva, movidos por emoções e imagens que os circundam; subsumidos perdem suas singularidades compondo uma massa homogênea e agem de maneira que não fariam caso estivessem isolados. As massas passam a ser patologizadas, além de criminalizadas e, portanto, devem ser objeto de controle.

É caso cediço que a era das revoluções não pode ser equiparada aos eventos ocorridos no Brasil. O breve percorrido histórico deixa claro que estamos diante de contextos sócio-históricos distintos e, assim, as massas são também distintas: suas magnitudes, composições, mecanismos de controle e contra-controle e os direitos reivindicados são incomparáveis. Entretanto, à medida que deixamos a superficialidade do fenômeno, as diferenças se tornam menores. Observamos a criminalização, os mecanismos de controle e a sugestão em ação; o que indica que a psicologia que subjaz nesses eventos é similar, apesar da aparente diferença.

 

Massa ou Multidão? Eis a questão

As expressões massa(s) e multidão(ões) aparecem de forma indistinta, o que levanta questões acerca de tradução, especialmente se considerarmos que foule tanto na edição portuguesa como na espanhola é traduzido por massa, diferentemente da brasileira que optou por multidão. Traduttore - Traditore! Ora, não se trata única e exclusivamente de uma questão de traição dos tradutores ao original; há uma questão epistemológica, que coloca ambas em uma posição antitética. Se por um lado as massas seriam concebidas como homogêneas e manipuláveis, por outro as multidões não obliterariam as singularidades de seus integrantes, o que propiciaria o desenvolvimento de suas potencialidades.

O pensamento de Michael Hardt e Antonio Negri (2004) reflete essa polarização: de um lado uma posição conservadora associada ao controle da massa e de outro uma progressista ligada à multidão; os autores contrapõem multiplicidade de singularidades à unidade massificada. Eles escrevem:

[...] As singularidades plurais da multidão assim estão em contraste à unidade indiferenciada do povo. A multidão, entretanto, apesar de permanecer múltipla, não é fragmentada, anárquica ou incoerente. O conceito de multidão deveria também ser contrastado a uma série de conceitos que designam coletividades plurais, como a massa e a horda, visto que os diferentes indivíduos ou grupos de indivíduos que compõem a massa são incoerentes e não reconhecem elementos comuns compartilhados; sua coletividade de diferenças permanece inerte e podem facilmente surgir como um agregado indistinto. Os componentes das massas, não são singularidades - isto é óbvio pelo fato de suas diferenças sucumbirem à indiferença do todo. (Hardt & Negri, 2004:99-100)

Notadamente há uma glorificação das multidões em oposição a uma demonização das massas, nesta passagem de Multidão: guerra e democracia na Era do Império. Essa contraposição coloca em xeque a obra de Gustave Le Bon e muitas vezes faz com que seja abandonada por ser considerada datada e fundamentalmente conservadora, desconsiderando o contexto sócio-histórico na qual foi concebida. Ironicamente a produção leboniana acerca das massas foi relegada assim como O príncipe de Maquiavel, texto considerado por Le Bon como um verdadeiro tratado de psicologia política. Ele afirma que uma obra é de "seu tempo e não de outro. Foi por ter olvidado essa condição que o livro, tão admirado primeiramente, foi atacado mais tarde, quando, tendo evoluído as ideias e os costumes, cessou de traduzir as necessidades dos novos tempos. Só então Maquiavel se tornou maquiavélico" (Le Bon,1910:5). É importante, portanto, não tomarmos os textos maquiavelicamente, pois corremos o risco de perder a capacidade reflexiva, uma vez que nossa leitura estaria enviesada, o que poderia decorrer em leituras superficiais, deixando de lado suas riquezas - aquilo que está em suas entrelinhas.

O antropólogo William Mazzarella (2010) aborda esta questão na revista Critical Inquiry; o título do artigo - The myth of multitude, or, who's afraid of the crowd? - parece deixar claro sua posição critica a oposição entre ambas, ao caracterizar a teoria da multidão como mito e questionar o temor associado à massa. O autor afirma que na atualidade fala-se em multidões ao invés de massas, visto que a segunda representaria uma perspectiva regressiva, enquanto a primeira sugeriria que os potenciais imanentes de uma coletividade seriam politicamente progressistas. Assim, ele elenca questões significativas sobre a perspectiva sublime das multidões que envolve a concepção de um conjunto descentralizado, flexível e autoorganizável surgida a partir da consolidação da internet e suas redes sociais.

Refletindo sobre o motivo de permanecermos tão temerosos às massas no momento em que nossas atenções se voltam aos potenciais imanentes dos grupos, Mazzarella enfatiza a radical oposição entre teóricos sociais na maneira como as energias imanentes dos grupos são concebidas. Se por um lado a teoria da massa indica como essas energias imanentes ameaçam o sujeito liberal autônomo, por outro a "teoria da multidão oferece uma alternativa pós-liberal; ela toma a coletividade em lugar do indivíduo como o foco de liberdade, porém somente se as energias emergentes da multidão permanecem puras, descompromissadas com as instituições sociais existentes" (Mazzarella, 2010:698). Decorre disto uma relação de negação intrínseca entre ambas as teorias, que poderia obscurecer as reflexões sobre os grupos: suas potencialidades e seus aspectos regressivos, não tivéssemos nós uma posição a defender.

O autor sugere que esse impasse "poderia ser utilmente repensado como a base afirmativa de uma maneira de refletir sobre o potencial social das energias dos grupos que não seja baseada nem na fortaleza do sujeito liberal autônomo (teoria da massa), nem no apego moral, porém criticamente incapacitante, à potencialidade imanente e imediata (teoria da multidão)" (Mazzarella, 2010:698).

Ou seja, é mister que não nos deixemos influenciar e possamos observar os fenômenos de massa em seus aspectos progressivos e regressivos, distanciando-nos tanto da visão patológica das massas como da exaltação das multidões. A distinção entre massa e multidão reforça o antagonismo entre ambas, mas que em realidade evidencia os aspectos regressivos e progressistas observados invariavelmente nos fenômenos coletivos.

 

Manifestações de Junho: massa e multidão nas ruas

Era quinta-feira, 06 de junho, final da tarde, milhões de cidadãos e cidadãs paulistanos preparavam-se para retornar a seus lares após mais um dia de labuta. Enquanto uns se dirigiam a seus carros, a grande maioria utilizava o transporte público. Ambas as parcelas de trabalhadores estavam cientes do quê enfrentariam: longos congestionamentos e horas perdidas no trânsito. Ainda que seja injusto comparar condições tão distintas, não podemos negar que tanto os que desfrutam do conforto de seus carros quanto aqueles que se espremem nos ônibus e em vagões de metrô e trens sofrem as consequências de políticas públicas que têm privilegiado o transporte privado em detrimento do público.

Simultaneamente os degraus à frente do Teatro Municipal foram tomados por manifestantes do MPL que lá se concentraram para reivindicar a revogação do aumento decretado, cujo percentual era inferior à inflação medida desde o último reajuste, segundo planilha apresentada pelo poder executivo. Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar!, este era o lema. O trânsito paulistano conhecido por seus intermináveis congestionamentos tornou-se ainda mais caótico com a interrupção da circulação de veículos em uma das principais vias expressas que dá acesso à região sul da cidade. Barricadas foram feitas com pneus e pedaços de madeira e, em seguida, foram queimadas impedindo a passagem tanto do transporte público como do privado. Tinha início o que viria a ser uma série de manifestações que culminariam na revogação do aumento em 19 de junho.

O MPL - ator principal dos eventos - é um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público gratuito e de qualidade para o conjunto da população. Como todo e qualquer movimento social diz respeito a um projeto ou ideal de futuro, utópico ou não, quando o presente não responde aos anseios e necessidades do coletivo ou do indivíduo. Os movimentos sociais e suas práticas exemplificam a microfísica do poder que Foucault (1979) nos fala. O poder está em todos os sujeitos, relações e espaços; da mesma forma que o Estado exerce sua força sobre os manifestantes, estes também abalam o sistema. O cenário desdobra-se em múltiplas cenas e dentre os diversos atores; embora cada um conte uma história e reaja a ela de forma singular.

Os movimentos, como o nome já sugere, não são estáticos e não se limitam às manifestações. "Um movimento social é sempre expressão de uma ação coletiva e decorre de uma ação coletiva e de uma luta sociopolítica, econômica ou cultural" (Gohn, 2012:14). O eco e a produção discursiva gerados pelos movimentos sociais empoderam pessoas e transformam a realidade, propiciando mudanças subjetivas e, consequentemente, modificações na tessitura social, o que pode ser excitante ou assustador, dependendo da perspectiva e da expectativa que se tenha. Assim, esses aglomerados de brasileiros foram às ruas; inicialmente, foram tomados como um fenômeno de massa e, num segundo momento, como multidão, evidenciando tanto os aspectos regressivos como os progressistas da jornada de manifestações.

A massa tende a ser impulsiva, instável e irritável. Ela é como "o selvagem, não admite obstáculo entre seu desejo e a realização desse desejo, ainda mais que o número lhe proporciona uma sensação de poder irresistível. Para o indivíduo na massa, a noção de impossibilidade desaparece" (Le Bon, 2008:41). O indivíduo ao participar da massa "toma consciência do poder que o número lhe confere e, diante da primeira sugestão de assassinato e pilhagem, cederá imediatamente" (Le Bon, 2008:41).

Se por um lado a quantidade traz o empoderamento do homem-massa, por outro sua sugestionabilidade o impele a cometer atos que dificilmente cometeria caso estivesse isolado, sem a influência hipnotizadora das massas. A sugestão "se impõe imediatamente por contágio a todos os cérebros e logo estabelece a orientação. Nos seres sugestionáveis, a ideia fixa tende a se transformar em ato" (Le Bon, 2008:43). Daí decorre a crueldade associada às massas, pois a irracionalidade aflora independentemente de posição social, raça ou sexo de seus integrantes; a "faculdade de observação e o espírito crítico que cada um deles possui desaparecem" (Le Bon, 2008:46). Agem com a selvageria dos animais. Nesse sentido, Mazzarella salienta que a característica mais repelente das massas seria a heteronomia, a incapacidade do uso da ratio. A heteronomia das massas, segundo o autor, representa a queda do indivíduo moral, sob o ponto de vista liberal, e, numa perspectiva pós-liberal, a subsunção da singularidade. O contágio mimético das massas seria, então, o principal responsável pelo temor a elas, juntamente com a perda de controle e a subversão à ordem que delas derivam.

Essa visão assustadora das massas proliferou nas diversas mídias brasileiras e foi expressa por autoridades de distintas tendências políticas em decorrência dos eventos de junho de 2013. O posicionamento dos principais jornais paulistas, bem como do prefeito e do governador, refletiram essa colagem que impede a reflexão sobre os fatos.

O jornal O Estado de S. Paulo publicou em 08 de junho Puro vandalismo. Nesse editorial vimos o temor provocado pelos manifestantes e o clamor pela restituição da ordem; transcrevemo-lo, a seguir, quase integralmente, pois o consideramos emblemático. Ele expressa tanto os qualitativos depreciativos como o clamor por controle e rigidez no trato com os protestos, os quais circularam também na cobertura feita pelo jornal Folha de S. Paulo e pelas mídias televisivas, bem como nas declarações de autoridades2.

Esse é mais um dia que vai entrar para a já longa lista daqueles em que a maior cidade do País ficou refém de bandos de irresponsáveis, travestidos de manifestantes. [...], desta vez a população teve motivos para se assustar, por causa de sua fúria destrutiva. Encapuzados, os integrantes dos grupos mais violentos puseram fogo em sacos de lixo no meio dessas vias, para interromper o trânsito e aterrorizar os passantes. O Movimento Passe Livre não parou inteiramente a cidade, como prometera, mas conseguiu perturbar a vida de boa parte dela e assustar a população. A PM, recebida a pedradas, tentou conter a baderna, ainda no Anhangabaú, com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha. Mas não conseguiu. [...]. Um dia de fúria, que deixou saldo de 50 pessoas feridas e 15 presas. Para tentar entender esse protesto, é preciso levar em conta as muitas coisas que estão por trás dele. Uma delas é o fato de o Movimento Passe Livre ser pura e simplesmente contra qualquer tarifa, ou, se se preferir, a favor de uma tarifa zero. Ele não se opõe ao aumento da tarifa de R$ 3,00 para R$ 3,20, mas a ela própria. Ou seja, não há acordo possível e, como seus militantes são radicais, qualquer manifestação que promovam só pode acabar em violência. As autoridades da área de segurança pública, já sabendo disso, deveriam ter determinado à polícia que agisse, desde o início do protesto, com maior rigor. Deve-se levar em conta ainda que a capital paulista está pagando o preço da falta de firmeza das autoridades - ao longo das últimas décadas - diante de manifestações selvagens como a de quinta-feira. Para não ficar mal com os chamados movimentos sociais, por razões políticas, as autoridades têm tolerado os seus desmandos. Agora mesmo, o prefeito Fernando Haddad, em vez de condenar o vandalismo promovido pelo Movimento Passe Livre, se apressou a informar que está aberto ao diálogo. Vai discutir com esse bando de vândalos a tarifa zero? (Editorial, 2013)

Em diversos momentos do recorte apresentado está expresso o temor que as manifestações despertaram, visto terem sido tomadas como massa, como um grupo homogêneo indistinto e especialmente irracional. Os manifestantes foram descritos de forma indiscriminada como bando de irresponsáveis, violentos, incendiários, radicais e vândalos, que assustaram, aterrorizaram e, por conseguinte, deveriam ter sido tratados com mais rigor pelas forças policiais; afinal estavam perturbando a ordem. Visão demasiada leboniana de um movimento social legítimo que mobilizou politicamente significativa parcela da sociedade brasileira.

Ao salientarmos o conservadorismo não queremos e nem poderíamos negar a violência que se instaurou resultando em 50 feridos apenas na primeira manifestação. Lembremo-nos que uma das características principais observada nos fenômenos de massa é o rebaixamento da capacidade reflexiva de seus integrantes que possibilita o surgimento de atos violentos e bárbaros. Le Bon havia salientado que a violência dos sentimentos tende a aumentar especialmente quando as massas são heterogêneas. Entretanto, ainda que a violência não se justifique, ela invariavelmente aflora quando a massa se constitui, se engrandece e se fortalece, pois toda massa "pensa por imagens, e a imagem evocada, por sua vez, evoca uma série de outras sem qualquer ligação lógica com a primeira" (Le Bon, 2008:44), o que evidencia o eclipse da razão.

Estando ausentes os princípios morais e culturais não deveríamos estranhar que ela tenha emergido durante as manifestações, ainda que a condenemos. Le Bon (2008), McDougall (1927) e Freud (1996) já haviam enfatizado que uma das características das massas é sua suscetibilidade a atos violentos. Le Bon ao abordar os sentimentos das massas - impulsividade, instabilidade e irritabilidade - além de relacioná-las ao universo feminino, em clara alusão aos estudos sobre a histeria que se desenvolviam em solo francês, faz uma ressalva que nos concerne. Ele afirma que as massas "são femininas, mas as mais femininas de todas são as massas latinas" (Le Bon, 2008:42). Nossa latinidade explicaria, segundo o autor, a intensidade da fúria destrutiva das massas paulistanas, tal qual a dos revolucionários franceses de sua época.

Para além da latinidade, Jurandir Freire Costa (2000), ao tratar da noção de violência e abuso de poder no horizonte ético da cultura, fala das elites brasileiras e seu destino sócioindividual. Uma vez que detêm a maior parte das riquezas e o comando dos instrumentos que consagram normas e comportamentos - a exemplo das mídias e redes sociais - servem, com seu capital cultural e intelectual, ao mercado e ao sistema capitalista. Assim, o autor considera duas ideias: o alheamento em relação ao outro e a irresponsabilidade sobre si.

Esse alheamento pode gerar o desconhecimento do outro como semelhante, desqualificando-o como ser moral. A indiferença anula quase totalmente o outro em sua humanidade, ignora-o enquanto sujeito dotado de direitos e desejos. Assim, os saqueadores, pichadores e os baderneiros não são dignos de compreensão, nada mais são do que uma escória social que deve ser banida. A ação da Polícia Militar se justifica neste caso, uma vez que sua força foi altamente reivindicada para esses ditos marginais. Não os enxergamos como parte de nós, produto de uma relação assimétrica de direitos, num país com tamanha desigualdade social.

Nessa forma de subjetivação e individualização das elites brasileiras, segundo Costa, os pobres e miseráveis são cada vez menos reconhecidos como pessoas morais. As elites não se preocupam em legitimar seus valores, já os têm como dado, como um consenso imaginário. E esta convicção de certa forma é autêntica, pois compreende suas práticas e ações cotidianas. Elas são personagens cárceres de um mundo fantasma. Fechadas em suas bolhas, dentro de shoppings, condomínios e, inclusive, em universidades, não conseguem enxergar o outro que destoa de seus valores. Gera-se aí a irresponsabilidade sobre si, pois "o ideal da 'boa vida' burguesa paralisa os indivíduos num estado de ansiedade permanente, responsável, em grande parte pela incapacidade em olhar para outra coisa que não a si mesmos". (Costa, 2000:86). O que pode ser bastante cômodo ou terrivelmente solitário e angustiante. Esse olhar narcísico transforma a diferença em desigualdade, naturalizando-a e desqualificando tudo que difere de si. Assim, a violência se traduz em preconceito de classe, raça, sexo, orientação sexual e tantas outras diferenças que nos tornam singulares. Daí decorre a criminalização daqueles que reivindicam seus espaços na sociedade, seus direitos.

Se tomarmos as manifestações de junho por uma catarse social, como experiência - ou suposta sensação - de libertação da opressão, e se os movimentos são a explosão de diversas queixas, tanto dos oprimidos por um sistema excludente, quanto daqueles que gozam de privilégios, poderíamos inferir que elas abriram uma brecha para o início de um processo de criação de uma sociedade distinta, na qual as pequenas diferenças sejam respeitadas. As manifestações demonstraram a possibilidade dessa convivência entre diferentes, ainda que tenha havido por parte da mídia formal, das instituições representantes do poder vigente e das autoridades públicas a tentativa de homogeneização das diferenças. Assim todos se tornaram vândalos indistintamente, numa forma de indiferenciação das diferenças, massificando-os.

Talvez o que se designa como massa não seja mais do que o repúdio pelo mote das manifestações e quando se diz multidão há alguma afinidade com as reivindicações. Assim, em relação ao acontecido no Brasil em junho de 2013, não podemos reduzir os atos políticos a um problema pontual. Parece-nos que os manifestantes da jornada quiseram se sentir protagonistas de seu país e de suas vidas, enxergando a classe política e as instituições tradicionais como parte do problema e expressando suas singularidades numa sociedade totalizante e opressora.

Distanciando-nos da questão da violência, do temor e do controle das massas podemos ver emergir sinais da multidão nas manifestações, a qual "é composta de um conjunto de singularidades - e por singularidade queremos dizer, aqui, um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que permanece diferente" (Hardt & Negri, 2004:99). Isto é, a multidão não é incoerente, pois não se constitui como uma unidade indistinta prestes a ser guiada por meio da sugestão. Ela "designa um objeto social ativo que age sobre a base do que as singularidades têm em comum. A multidão é um objeto social internamente diferente e múltiplo, cuja constituição e ação não estão baseadas na identidade ou unidade (ou, muito menos, na indiferença), mas naquilo que há em comum" (Hardt & Negri, 2004:100).

Considerando as proposições dos autores, os protestos de junho evidenciaram a outra faceta das massas: a multidão com suas múltiplas singularidades, as quais foram expressas à medida que os protestos se engrandeceram. Aos manifestantes que inicialmente reivindicavam a revogação do aumento das tarifas do transporte público se somaram muitos outros. Suas singularidades foram expressas na multiplicidade de cartazes que surgiram com as mais distintas reivindicações. Saúde, educação, transporte, corrupção, sexualidade, gênero, moradia, segurança e gastos com a construção dos estádios da Copa de 2014 foram algumas das bandeiras levantadas pelos manifestantes.

Podemos inferir, nesse sentido, que as manifestações que se estenderam por diversas cidades brasileiras e levaram idosos, adultos, jovens e crianças de distintas classes sociais às ruas constituíram-se como multidão; ou seja, "uma multiplicidade irredutível; as particulares diferenças sociais que constituem a multidão devem ser sempre expressas e jamais podem ser niveladas à igualdade, unidade, identidade ou indiferença" (Hardt & Negri, 2004:105).

Tal multiplicidade que colocou lado a lado cartazes com demandas tão diversas sugere que os manifestantes não devam ser tomados apenas como uma massa homogênea, mas como sujeitos singulares expressando de forma conjunta suas singularidades. Por outro lado, tamanha heterogeneidade poderia indicar a perda de foco nas ações dos manifestantes, o que contribuiu para a desmobilização do grupo. Não obstante as reivindicações terem se ramificado para além dos 20 centavos de reais, os protestos se avolumaram, mostraram sua força e, sobretudo nos permitiram vislumbrar a possibilidade de uma sociedade na qual as diferenças "não determinem hierarquias de poder, um mundo no qual as diferenças se expressem livremente, este é o desejo da multidão" (Hardt & Negri, 2004:101). Para que tal desejo possa ser concretizado, seguem os autores, é necessário transformar radicalmente o mundo, fazendo das diferenças de gênero, de raça, de sexualidade e tantas outras, nossa força e afastando-nos do caráter destrutivo, negativo e limitante associado às mesmas.

Não podemos negar que a diferença caminhou ombro a ombro nos protestos de junho. Representantes do MPL, estudantes, desempregados, representantes da comunidade LGBT, famílias com seus filhos, idosos, negros, trabalhadores, em suma, singularidades que agiam em conjunto e compartilhavam algo em comum: a contestação às instituições políticas. O câmbio no slogan entoado, que passou a ser "não são só 20 centavos", evidencia o descontentamento com as políticas públicas nas mais diversas áreas que afetam cidadãos e cidadãs indistintamente e que tendem a perpetuar o status quo.

Indubitavelmente a série de protestos não transformou radicalmente a sociedade brasileira, porém os manifestantes em determinados momentos conseguiram colocar suas diferenças à parte e demonstraram sua potência, constituindo-se e agindo como multidão. A partir da perspectiva da multidão vimos emergir distintas demandas legítimas e democráticas durante os protestos de junho, as quais foram negadas e menosprezadas pelas mídias, representantes governamentais e todos aqueles que tiveram seus privilégios contestados. Se, por um lado, não houve uma mudança significativa no Brasil, por outro, são notórias as demandas progressistas e legítimas no âmbito dos transportes, da saúde, dos projetos de emenda constitucionais, da educação, dos gastos com a Copa do Mundo e tantas outras que indicam a necessidade de uma reforma política nacional.

Assim, na multiplicidade da jornada de protestos de junho encontramos a potência efetiva do trabalho da multidão, não apenas como resistência, mas especialmente como projeto democrático. Contudo, se nos focarmos apenas em sua fúria incontrolável e avassaladora, que resultou em feridos e prejuízos financeiros à sociedade, veremos surgir a potência destrutiva do trabalho das massas.

 

Considerações Finais

Como observamos há uma nítida oposição entre os teóricos das massas e das multidões. As massas foram tachadas de desordeiras, irascíveis, volúveis e homogêneas, sendo estigmatizadas, por seu turno, as multidões seriam eminentemente progressistas, permitindo a expressão de múltiplas singularidades. Esse câmbio teórico teria sido influenciado pelas novas tecnologias de informação. Não podemos negar a rapidez com que as informações circulam na contemporaneidade. Entretanto, o papel das novas tecnologias de informação e comunicação no desenrolar das manifestações deve ser mais bem pesquisado, sobretudo se considerarmos que seu impacto como instrumento de politização e democratização pode ser questionado, como advertem Cristina Fominaya e Roberto Garvía.

Se, idealmente, as novas tecnologias de informação e comunicação podem favorecer a participação política, o fato é que podem ter um impacto negativo. Tanto mais, quanto mais cegamente as organizações políticas confiem em suas virtudes potenciais, cuja realização depende, em último caso, do uso que seus usuários façam delas. (Fominaya & Garvía, 2008:239)

Os autores enfatizam, ainda, que devido à alta carga emocional com que as mensagens eletrônicas são interpretadas e à dificuldade de se estabelecer compromissos e limites à participação em um espaço dito aberto, o uso dessas ferramentas com propósito de conscientização política deve passar por um processo de aprendizagem, no qual estão envolvidos aspectos cognitivos e emocionais.

Sabemos dos impactos que as novas tecnologias trouxeram à organização social e aos sujeitos. Entretanto, não devemos sobredimensionar seu papel, pois poderíamos cair na falácia de confiar cegamente em suas virtudes potenciais, fortalecendo o antagonismo teórico. A posição que temos a defender é justamente o contrário: sua superação.

A proposta de Marco Aurélio Máximo Prado (2002; 2005), em nosso juízo, possibilita o rompimento com essa visão dicotômica. Suas reflexões sobre as ações coletivas, a partir de categorias psicossociais como identidade, compartilhamento de crenças grupais, representações sociais, agências e formas de ação social, salientam que as mesmas devem ser entendidas como um processo de constituição de identidades políticas. O processo de transformação social é "fruto obrigatório da constituição da identidade política e não da identidade social" (Prado, 2002:60). O autor enfatiza, ainda, que a questão da identidade política é fundamental à compreensão dos processos de mobilização/desmobilização sociais, sendo indispensável considerarmos o processo de identificação coletiva, o processo de conscientização de relações de opressão e a consequente delimitação de fronteiras políticas que separa grupos sociais: o nós e o eles.

A inserção de categorias psicossociais permite um enfoque distinto às ações coletivas que tomaram as ruas brasileiras em 2013. Analisá-las a partir do processo de constituição de identidades políticas permite-nos uma nova perspectiva, na qual os manifestantes deixariam de ser tomados como um grupo coeso com identidade preestabelecida, predeterminada, como um bloco homogêneo que deve ser oprimido, no caso das massas. Possibilita, também, que não sejam compreendidos como um conjunto de individualidades que busca mudanças sociais, no caso das multidões.

Abordar as manifestações como um fenômeno psicopolítico possibilita o distanciamento dessa visão limitante que tende a abordar o antagonismo de forças inerente à política a partir de categorias macrossociais: o Estado opressor de um lado e do outro, movimentos sociais. Visão característica dos estudos sociológicos que renegam os aspectos psicológicos envolvidos nas ações coletivas (Sandoval, 1989).

As ações coletivas como os eventos que presenciamos em diversas cidades brasileiras devem ser analisadas considerando os antagonismos presentes no próprio processo de constituição de mobilização social. Caso contrário, os aspectos psicossociais estariam sendo desconsiderados, propiciando uma concepção restrita das ações coletivas como um grupo coeso e isento de antagonismos intragrupais, não abrangendo a complexidade de tais fenômenos e nem os concebendo como um processo, no qual as lógicas da equivalência e a da diferença desempenham papel fundamental, pois permitem a conscientização das relações de opressão.

Ainda que nosso ponto de partida tenha sido as manifestações de junho, nosso objetivo é uma reflexão teórica sobre as ações coletivas, sejam as revolucionárias massas francesas, sejam as multidões contemporâneas. Entendemos que são fenômenos essencialmente psicopolíticos e, por conseguinte, não podemos desconsiderar os aspectos psicológicos. E defendemos a proposta de Prado (2002; 2005), pois acreditamos permitir a superação da dicotomia apresentada pelos teóricos das massas e pelos das multidões. O estudo das ações coletivas que tomaram as ruas brasileiras, a partir do processo de constituição de identidades política, contribuiria sobremaneira aos estudos psicopolíticos brasileiros e se coaduna ao pensamento de Mazzarella (2010) de não idealizar a teoria das multidões e tampouco menosprezar a das massas.

 

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Recebido em 17/01/2014
Revisado em 09/02/2014
Aceito em 23/04/2014

 

 

1 Ainda que tenhamos utilizado uma edição brasileira da obra de Gustave Le Bon que traduziu foule por multidão, optamos seguir a tradução da edição portuguesa que utiliza massa, pois reflete mais apropriadamente nossas reflexões. Assim, nas citações da obra de Le Bon substituímos multidão(ões) por massa(s).
2 O livro de Judensnaider e colaboradores Vinte centavos: a luta contra o aumento (2013) apresenta uma coletânea de relatos da cobertura sobre os eventos de junho de 2013. Ainda que apresente um viés militante, ele contribui para demonstrar o posicionamento das mídias instituídas e dos representantes governamentais. Outra fonte é o documentário Junho - o mês que abalou o Brasil (2014), dirigido por João Wainer.

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