SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 issue30Psychological evaluation-intervention and the appropriation of knowledge: a discussion with the presuppositions of Vygotsky'school author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.30 São Paulo Aug. 2014

 

RESENHA

 

Panorama da psicologia política contemporânea: correntes, tendências, áreas de atuação e contribuições

 

Overview of contemporary political psychology: ways, trends, working areas and contributions

 

Panorama de la psicología política contemporánea: corrientes, tendencias, áreas de acción y contribuciones

 

Panorama de psychologie politique contemporaine: les courants, les tendances, les domaines d'expertise et de contributions

 

 

Semiramis Chicareli

Especialista em Psicologia Política, Movimentos Sociais e Políticas Publicas, mestranda no Programa de Mudança Social e Participação Política e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. psico.schica@gmail.com

 

 

Obra: Psicologia Política: temas atuais de investigação.
Autores: Salvador Antonio Mireles Sandoval, Domenico Uhng Hur, Bruna Suruagy do Amaral Dantas
Campinas: Alínea, 2014.
267 páginas.
ISBN: 978-85-7516-717-5

O livro recentemente lançado no VIII Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, ocorrido em outubro de 2014 na Universidade Federal de Goiás, foi organizado por Salvador Sandoval, Domenico Hur e Bruna Dantas, e reúne doze artigos de diferentes autores que nos mostram um panorama do desenvolvimento da Psicologia Política.

Leitores e leitoras que não estão familiarizados/as com o termo "Psicologia Política" podem imaginar de imediato que se trata de uma novidade da Psicologia e sentir um estranhamento, se relacionarem a palavra "psicologia" apenas às práticas clínicas. De fato a Psicologia Política é ainda pouco conhecida, está em processo de construção e desenvolve-se em diversas tendências de estudos. Porém, há controvérsias entre pesquisadores em relação aos responsáveis pela inauguração dos estudos, ou em relação à esta ser um campo independente ou um ramo da Psicologia Social, além de estudos apontarem que cientistas políticos demonstram mais interesse pelos temas próprios de Psicologia Política do que os/as psicólogos/as (Rosa & Silva, 2012).

E são essas tendências de estudos e posicionamentos teóricos que Domenico Hur e Bruna Dantas abordam na apresentação do livro, contextualizando o cenário das "psicologias políticas". Os autores fazem uma importante diferenciação das possíveis combinações que o par das palavras "psicologia" e "política" podem promover e que norteiam as tendências de estudos no campo: "uma psicologia politizada; a psicologia da política; as políticas da psicologia e; a constituição de um novo campo acadêmico - a Psicologia Política" (p. 5). Outra importante nota introdutória é em relação à diversidade teórica presente no campo em processo de construção que, longe de ser um "ecletismo teórico", privilegia o fenômeno em si e no qual "as teorias são ferramentas de análises dos processos psicopolíticos" (p. 10), em contraposição às tendências de dogmatismo teórico no qual o fenômeno é acessório de uma verdade absoluta.

No primeiro capítulo, Salvador Sandoval, Bruna Dantas e Soraia Ansara nos contam como foi o processo histórico de desenvolvimento da Psicologia Política. Partem dos debates iniciados no final do século XIX com Gustave Le Bon e Émile Durkheim, passando pelas contribuições da psicanálise de Sigmund Freud no início do século XX e apontando a Escola de Frankfurt como o primeiro lugar de sistematização dos estudos acerca do comportamento político, bem como a intensificação de produções após a Segunda Guerra Mundial, até chegar no desenvolvimento da Psicologia Política Latino-americana na década de 1970.

Embora alguns autores apontem o francês Gustave Le Bon como o "pai da Psicologia Política" (p. 13) tradicional, por sua obra La Psychologie Politique et la Défense Sociale, publicada em 1910, ser a mais conhecida na academia, e ainda que o autor tenha publicado a obra La Psychologie des Foules em 1897, estudos mais recentes apontam como a obra mais antiga A Multidão Criminosa: Ensaio de Psicologia Coletiva, originalmente publicada em 1892 pelo italiano Scipio Sighele. Além disso, Le Bon é acusado de não referenciar Sighele em sua teoria das associações coletivas e do contágio psicológico das massas (Silva, 2012).

Controvérsias à parte sobre a inauguração dos estudos, o que mais se destaca neste capítulo é a importante sistematização dos processos históricos de institucionalização da Psicologia Política no Brasil a partir de 1978, com estudos em Psicologia Social Comunitária no interior de programas de pós-graduação em Psicologia Social, tendo como precursores Salvador Sandoval na PUC-SP, Leôncio Camino na Universidade Federal da Paraíba, Elizabeth Melo Bonfim e Maria Helena Freitas de Campos da Universidade Federal de Minas Gerais. Os autores também descrevem os processos e os impactos da criação da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP), da Revista de Psicologia Política (RPP) e dos eventos acadêmicos, bem como as relações entre pesquisadores de grupos de pesquisas brasileiros e de outros países da América Latina que deram início a Associação Ibero-Latinoamericana de Psicologia Política, para o desenvolvimento, fortalecimento e legitimação de um campo multidisciplinar nos espaços institucionalizados, e altamente disciplinarizados, de produção de conhecimento e de fomento à pesquisa.

No segundo capítulo, Fernando Lacerda Jr faz uma importante diferenciação entre as tendências da Psicologia Política, assim como diferencia abordagens marxistas das marxianas, demonstrando que somente uma tendência da Psicologia Política pode se articular com o pensamento original de Marx. O autor entende que o surgimento da Psicologia Política latinoamericana crítica deve ser considerada no momento de sua institucionalização, a partir de 1970, quando surge um conflito entre as psicologias quanto ao papel político de psicólogos/as diante dos problemas sociopolíticos que assolam os países latino-americanos. Após destacar os estreitos laços entre o marxismo e a Psicologia Social Crítica em seu surgimento, apresenta as semelhanças encontradas nas obras de Ignácio Martín-Baró e Klaus Holzkamp como contribuições para o desenvolvimento dessa corrente comprometida com a conscientização política, com a emancipação das maiorias populares e com a mudança social.

No capítulo seguinte, Regina Fiedler e Luciana Guimarães trazem Reflexões psicopolíticas que auxiliam no desenvolvimento de práticas comunitárias na implementação de políticas públicas no Brasil. As autoras apresentam a área da Psicologia Social Comunitária e suas relações com as políticas públicas, para depois abordarem os respaldos teóricos que a Psicologia Política fornece para a área e para as práticas de psicólogos/as envolvidos/as no trabalho de fortalecimento, potencialização e emancipação junto a comunidades e grupos populares. Por fim, apresentam a proposta de autogestão como uma ideia revolucionária de mobilização, e enquanto estrutura e organização política, para o desenvolvimento éticopolítico de comunidades.

No quarto capitulo, Soraia Ansara apresenta um estudo realizado em seu mestrado sobre a memória coletiva por meio de entrevistas com gerações posteriores à "Luta dos Queixadas", um movimento grevista de operários da Fábrica de Cimento Perus Portland, localizada na periferia de São Paulo, que se destaca por resistir durante sete anos no período da Ditadura Militar. A autora compreende a memória coletiva conduzida pela noção de direitos, ou seja, como uma questão de cidadania e como direito ao passado, e isso lança seus estudos na Psicologia Política como campo de investigação das relações de poder, políticas de esquecimento e políticas de memória. É importante ressaltar que, mais tarde, em seu doutorado, e como continuidade desse estudo, Ansara (2008) faz uma importante contribuição ao campo da Psicologia Política no Brasil, desenvolvendo o conceito de memória política.

O quinto capítulo trata de um importante tema na atualidade de um mundo globalizado: as migrações. Ignacio Dobles, Gabriela Vargas e Massiel Arroyo apresentam um estudo realizado na Costa Rica, no qual fazem uma análise crítica de discursos sobre a migração de colombianos e nicaraguenses. Os autores abordam as questões da migração no contexto de globalização neoliberal, as políticas e leis migratórias do país e as condições dos estrangeiros migrantes que podem ser compreendidas por meio de discursos de superioridade, de discriminação social e exclusão, ou por discursos de uma identidade com a humanidade comum.

No sexto capítulo, Helena Scarpo e Aline Hernandez fazem uma interessante articulação entre a arte, mais especificamente o Teatro Social, e a Psicologia Política, por meio do exame dos discursos políticos presentes na obra Deus lhe pague (1932) do dramaturgo Joracy Camargo. Como em um roteiro de uma peça, as autoras abordam a representação da experiência política que transcende o tempo e o espaço, apresentando os atos do processo de construção de subjetividades e de relações político-sociais.

No sétimo capítulo, Bruna Dantas trata de um dos temas mais presentes nos debates públicos acerca da disputa político-partidária no Brasil: a presença de uma bancada religiosa em um Estado laico. A autora apresenta um estudo sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, no qual analisa a ideologia político-religiosa da maior representante neopentecostal do Brasil, para a compreensão de seus interesses e projeto de poder, sua inserção nas instâncias políticas, os grupos beneficiados por essa atuação, o comportamento sociopolítico de seus fiéis e as consequências sociais desse poder político.

No oitavo capítulo, Enock Pessoa traz um debate mundialmente urgente e necessário: a manutenção da vida no Planeta Terra. O autor apresenta um estudo realizado com movimentos sociais amazônicos e com os povos puyanawa e ashaninka, como exemplos de guardiões da natureza na Amazônia Sul-ocidental. O autor aborda os conceitos de identidade social e consciência socioambiental para discutir o meio ambiente, o desenvolvimento tecnológico e econômico que favoreça a conservação ambiental e o direito à manutenção da vida no planeta, apontando a alternativa de um extrativismo vegetal consciente e ecologicamente sustentável.

No nono capítulo, Maria Salete Joaquim analisa o processo de construção da identidade da mulher negra no Brasil desde uma perspectiva psicanalítica da Psicologia Política. A autora aborda os aspectos psicossociais da formação do Ego e da busca de identidade no interior da experiência de violência subjetiva da imposição e da encarnação do ideal de Ego da mulher branca. Aborda também seus aspectos socioculturais contextualizados no processo histórico de formação da sociedade brasileira, nos quais a violência contra o grupo étnico negro, sobretudo contra a mulher negra, sempre foi central e estruturante nos séculos de escravagismo e que se perpetuam na sociedade atual, camuflada pelo mito da democracia racial. Por fim, propõe a transformação de uma resistência cultural em uma cultura para a resistência como um projeto político de construção da identidade afro-brasileira e de luta contra o racismo.

Já no décimo capítulo, Betânia Gonçalves e Carolina Coelho nos traz contribuições da Psicologia Política para a análise dos movimentos feministas, entendendo-os como os mais importantes do século XX para a produção de mudanças sociais concretas e subjetivas. A autora apresenta o desenvolvimento das produções teóricas de estudos de mulheres, como uma categoria homogênea e biológica, aos estudos de gênero, como categoria social e com foco na diferença, apontando a importância de cada onda do feminismo no processo gradual de luta e conquista de visibilidade política. Logo depois, discute o feminismo no Brasil e sua inserção em movimentos sociais e em instituições políticas, e apresenta as perspectivas teóricas dos estudos de gênero e as questões políticas que são discutidas na atualidade.

No penúltimo capítulo, Emilia Takahashi traz contribuições da Psicologia Política para a reflexão acerca da democratização e da desnaturalização dos papéis de gênero, apresentando uma temática ainda pouco pesquisada no Brasil: o universo militar, e mais especificamente a entrada das mulheres nas Forças Armadas. A autora parte de algumas reflexões sobre a guerra e sobre o cenário político mundial contemporâneo, para a análise institucional das Forças Armadas e para a análise do processo de formação e fortalecimento da identidade militar em detrimento das diferenças de gênero.

Por fim, Domenico Hur e Salvador Sandoval reafirmam a escassez de estudos sobre a instituição militar no Brasil, no último capítulo, e apresentam contribuições da Psicologia Política para a reflexão da relação conflituosa e violenta entre polícia e sociedade e para a sua superação. Os autores caracterizam a instituição a partir de seu histórico de constituição híbrida, possuindo uma função civil e, ao mesmo tempo, um funcionamento militar em uma lógica bélica. Em seguida, apresentam algumas áreas de estudos sobre a polícia com as quais a Psicologia Política pode contribuir, e apresentam uma pesquisa exploratória com jovens e policiais de uma região considerada mais violenta de São Paulo, analisando as representações que cada grupo tem em relação ao outro e como isso afeta suas defesas e hostilidades.

Como podemos observar, este livro se constitui como uma importante e necessária contribuição para a literatura, primeiro, por apresentar o campo pouco conhecido da Psicologia Política brasileira e sua contextualização no interior da corrente da Psicologia Política Latino-americana, mostrando sua diversidade de posicionamentos teóricos e práticos, de tendências de estudos e dos temas emergentes na atualidade. Em segundo lugar, por fornecer uma fonte material de pesquisa, visto a escassez de livros publicados na era do produtivismo acadêmico em que se privilegia a produção de artigos. Em terceiro lugar, por propor estratégias de atuação para quem pretende contribuir e se engajar no processo de mudança social, seja na militância ou na produção de conhecimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ansara, Soraia. (2008). Memória Política, Repressão e Ditadura no Brasil. Curitiba: Juruá         [ Links ].

Le Bon, Gusteve. (1921). La Psychologie Politique et la Défense Sociale. Paris: Ernest Flammarion Éditeur (Original publicado em 1910).         [ Links ]

Le Bon, Gusteve. (1922). Psychologia das Multidões. Paris: Imp. Paul Dupont (OI.) (Original publicado em 1895).         [ Links ]

Rosa, Leandro., & Silva, Alessandro S. (2012). A Psicologia Política: Um breve olhar sobre as Américas. Em Marco A. B. Almeida., Alessandro S. Silva., & Felipe Corrêa. (Orgs.), Psicologia Política: Debates e Embates de um campo interdisciplinar. São Paulo: Escola de Artes, Ciências e Humanidades - EACH/USP.         [ Links ]

Sighele, Scópio. (1954). A Multidão Criminosa: Ensaio de Psicologia Coletiva. (Adolfo Lima, trad.). Rio de Janeiro: Organização Simões (Original publicado em 1892).         [ Links ]

Silva, Alessandro Soares. (2012). Psicologia Política, Movimentos Sociais e Políticas Públicas. Tese de Livre Docência, São Paulo: Universidade de São Paulo.         [ Links ]

 

 

Recebido em 01/06/2014.
Aceito em 27/07/2014.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License