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Revista Psicologia Política
Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.18 no.41 São Paulo Jan./Apr. 2018
ARTIGOS
Agroecologia e políticas públicas: reflexões sobre um cenário em constantes disputas
Agroecology and public policies: reflections on a scenario in constants disputes
Agroecología y políticas públicas: reflexiones sobre un escenario en constantes disputas
Agroécologie et politiques publiques: réflexions sur un scénario en conflits constants
Marcela Pereira RosaI; Bernardo Parodi SvartmanII
IDoutoranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). marcela.pereirar@gmail.com
IIProfessor Doutor em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. bernardo@usp.br
RESUMO
No atual contexto da agricultura a agroecologia vem se apresentando como uma importante alternativa ao modelo hegemônico do agronegócio. Uma das possibilidades de ampliação dessa perspectiva na agricultura brasileira vem sendo a implementação de políticas públicas com abertura para o enfoque agroecológico. No entanto, essa implementação ocorre em um cenário de inúmeras disputas e contradições. Nosso objetivo nesse artigo é discutir a inserção do enfoque agroecológico nas políticas públicas, tendo por foco o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), refletindo acerca das potencialidades e limitações da inserção da agroecologia nesses programas no modo como vem sendo realizada. Como expressão dos avanços e fragilidades que aí se fazem presentes, apresentamos o relato de agricultores agroecologistas do Estado do Paraná sobre suas experiências de trabalho e o acesso a esses programas através de uma associação. Verificamos que as disputas no contexto da agricultura brasileira reverberam na maneira como vem ocorrendo a inserção da agroecologia nas políticas públicas. Frente a esse cenário, compreendemos ser imprescindível para a consolidação de políticas públicas de base agroecológica a organização e mobilização dos movimentos sociais e sua incidência em todo o processo de construção dessas políticas.
Palavras-chave: Agroecologia; Políticas Públicas; PAA; PNAE; Movimentos Sociais
ABSTRACT
In the current agricultural context, the agroecology has been presenting itself as an important alternative to the hegemonic model of agribusiness. One of agroecology expansion opportunities in Brazilian agriculture has been the public policies implementation with opening for the agroecological approach. However this implementation happens in a full of disputes and contradictions scenario. Our aim in this paper is introduce a discussion about this, having as focus the Food Acquisition Program (PAA) and the National Program for School Food Supply (PNAE), thinking about potentialities and limits of agroecology insertion in these programs in the way how it has been done. As an expression of these advances and fragilities we introduce the report of an agroecologist about the peasant families access to these programs through an agroecologists farmers association in state of Paraná, Brazil. We founded that the disputes in the Brazilian agriculture context reverberate in the way as the agroecology inclusion in public policies is happening. Faced with this scenario, we understand to be essential for the consolidation of agroecological public policies, the organization and mobilization of social movements and their impact throughout the construction process of these policies.
Key words: Agroecology; Public Policies; PAA; PNAE; Social Movements
RESUMEN
En el contexto actual de la agricultura, la agroecología viene presentándose como una alternativa importante frente el modelo hegemónico de la agroindustria. Una de las oportunidades de expansión de agroecología en la agricultura brasileña ha sido la implementación de políticas públicas que se pueden apoyar un enfoque agroecológico. Sin embargo, esta implementación se lleva a cabo en un entorno de numerosos conflictos y contradicciones. Nuestro objetivo en este artículo es discutir la inserción del enfoque agroecológico en las políticas públicas, con el foco en el Programa de Adquisición de Alimentos (PAA) y el Programa Nacional de Alimentación Escolar (PNAE), lo que refleja las potencialidades y limitaciones de la inserción de la agroecología en estos programas en el camino que se ha llevado a cabo. Como expresión de los avances y debilidades que allí se hacen presentes, discutiremos la historia de agricultores agroecologistas del Estado de Paraná sobre el acceso a estos programas a través de una asociación. Se encontró que las diferencias en el contexto de la agricultura brasileña repercuten en la forma como se ha hecho la inclusión de la agroecología en las políticas públicas. Ante este escenario, entendemos que es esencial para la consolidación de la base de la política pública agroecológica, la organización y la movilización de los movimientos sociales y su impacto en todo el proceso de construcción de estas políticas.
Palabras clave: Agroecología; Políticas públicas; PAA; PNAE; Los movimientos sociales
RÉSUMÉ
Dans le contexte actuel de l'agriculture, l'agroécologie s'est présentée comme une alternative importante au modèle hégémonique de l'agro-industrie. L'une des possibilités d'élargir cette perspective dans l'agriculture brésilienne a été la mise en œuvre de politiques publiques ouvertes pour l'approche agroécologique. Cependant, cette mise en œuvre se produit dans un scénario de nombreux conflits et contradictions. Notre objectif dans cet article est de discuter de l'insertion de l'approche agroécologique dans les politiques publiques, en mettant l'accent sur le programme d'acquisition des aliments (AAP) et le Programme national d'alimentation scolaire (PNAE), une réflexion sur les potentialités et les limites de l'insertion de l'agroécologie dans ces programmes de la manière qu'il a été réalisée. Comme l'expression des avancées et des fragilités qui y son présentes, nous présentons un rapport des agricultrices agroécologistes dans l'État de Paraná sur leur expérience de travail et l'accès à ces programmes grâce à une combinaison. Nous avons constaté que les conflits dans le contexte de l'agriculture brésilienne réverberent dans la façon que l'agroécologie s'inclut dans les politiques publiques. Face à ce scénario, nous comprenons être essentiel pour la consolidation de la politique publique agroécologique l'organisation et la mobilisation des mouvements sociaux et leur impact tout au long du processus de construction de ces politiques.
Mots-clés: Agroécologie; Politiques publiques PAA; PNAE; Mouvements sociaux
Introdução
A representação social da agricultura brasileira frequentemente aparece atrelada aos grandes latifúndios monocultores, retrato do agronegócio e sua proposta de modernização. A associação desse modelo com as noções de modernidade científica, eficiência econômica, competitividade nos mercados e produtividade tem sido eficaz na tarefa de vincular o agronegócio a um sistema de referências ideológicas positivas para a população. Atrás desta ideia de modernidade científica camufla-se um modelo de desenvolvimento rural predatório, de elevado custo social e ambiental (Petersen, 2005).
Para Wanderley (2015) essa representação da agricultura atrelada ao agronegócio é fruto de uma "amnésia social", que nega as contribuições do campesinato para a sociedade brasileira. Nessa mesma linha, Guzmán (2015) nos fala de uma "ocultação moderna" que invisibiliza experiências divergentes da agricultura convencional, que democratizam o conhecimento e desmercantilizam os bens ecológicos comuns. A nosso ver essa negação/ocultação serve claramente aos interesses das elites agrárias, que têm na marginalização do campesinato uma das vias para reafirmar-se em seu projeto capitalista.
No contexto da agricultura brasileira a agroecologia, embora de maneira ainda incipiente, vem se apresentando como alternativa ao modelo hegemônico do agronegócio. Mais do que uma forma de organização do trabalho, defendemos a ideia de que a agroecologia engendra um modo de vida que articula e apoia formas de resistência do campesinato e, com isso, a insubordinação do camponês ao modelo dominante.
Acreditamos que uma das possibilidades de ampliação da agroecologia na agricultura brasileira vem sendo a implementação de políticas públicas no campo com abertura para o enfoque agroecológico. No entanto, essa implementação ocorre em um cenário de inúmeras disputas e contradições. Nosso objetivo neste artigo é apresentar uma discussão a respeito da inserção do enfoque agroecológico nas políticas públicas, tendo por foco a relação entre os camponeses e essas políticas públicas, mais especificamente a partir do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), refletindo acerca das potencialidades e limitações da inserção da agroecologia nesses programas no modo como vem sendo realizada.
Cabe frisar aqui nossa compreensão de que a definitiva ruptura com o modelo hegemônico do agronegócio e a consolidação de uma transformação estrutural no modelo de desenvolvimento do campo brasileiro estão intrinsecamente atreladas à superação do modo de produção capitalista e à construção de outra forma de sociabilidade. Sem perder de vista a necessidade desta superação, a discussão que aqui apresentamos aborda a questão nos limites atuais das determinações capitalistas, buscando refletir sobre as contradições das políticas agrícolas brasileiras e os caminhos possíveis para os avanços necessários no interior da sociabilidade capitalista.
Apresentamos inicialmente algumas considerações a respeito do campesinato, as mudanças sofridas no contexto rural a partir do processo da Revolução Verde e o surgimento da agroecologia como alternativa ao modelo convencional de agricultura resultante desse processo. No tópico seguinte buscamos contextualizar o cenário agrícola brasileiro em suas constantes disputas e contradições, evidenciando a coexistência de dois modelos distintos de desenvolvimento rural, um atrelado ao agronegócio e outro à agricultura camponesa. Na sequência, discutimos as reverberações dessas disputas na maneira como ocorre a inserção da agroecologia nas políticas públicas atualmente, trazendo como expoente de suas potencialidades e limitações o caso de agroecologistas no Estado do Paraná. Por fim, apontamos para a necessária organização e mobilização dos movimentos sociais e sua incidência no processo de construção de políticas públicas de enfoque agroecológico no intuito de consolidar políticas de caráter emancipador.
Cabe destacar que o relato sobre as famílias agroecologistas que utilizaremos para a discussão foi obtido a partir de nossa participação em uma roda de conversa com agricultores agroecologistas sobre sua experiência de trabalho na agricultura camponesa agroecológica. Essa atividade foi promovida no ano de 2016 por uma das universidades estaduais do Paraná e serviu como base de coleta inicial de dados para nossa pesquisa de mestrado, a qual teve por foco investigar os sentidos do trabalho camponês no processo de diversificação da produção de tabaco para a agroecologia. Mediante aceite de participação de todos os presentes na ocasião, a roda foi gravada e transcrita. Cabe ainda apontar que no momento em que este artigo foi escrito a pesquisa em questão estava em andamento, sendo que as reflexões aqui apresentadas foram feitas a partir de um recorte dos dados obtidos na roda de conversa.
Campesinato, Revolução Verde e Agroecologia
Partimos da compreensão da agricultura camponesa como um modo de vida que engendra determinadas formas de conceber a natureza, o trabalho e a economia. Mais do que uma simples forma de produzir, o campesinato engloba uma cultura, um modo de vida e de trabalho (Wanderley, 2015). O trabalho e a família são concebidos de forma interdependente, organizando um modo próprio de produção e de vida e a terra é vista como um patrimônio a ser transmitido, juntamente com o conhecimento e o saber, que fazem parte da herança familiar. Assim, esse patrimônio não visa apenas à reprodução material da família, mas representa um território, lugar de vida e trabalho. Destaca-se ainda a valorização do conhecimento tradicional e o forte vínculo comunitário, baseado em relações de reciprocidade.
A agricultura brasileira, que até o final da II Guerra Mundial era marcada pelo campesinato, vem passando por uma série de transformações, que exercem grande impacto sobre o modo de vida camponês. Nesse período teve início em vários países o processo de "modernização" da agricultura conhecido como Revolução Verde. Atrelado a um modelo de produção economicista, esse processo baseia-se na utilização de máquinas, insumos e técnicas de produção empregadas com o intuito de ampliar a produtividade do trabalho e da terra através do uso intensivo de venenos, insumos químicos e da monocultura (Nunes, 2007; Instituto Equipe de Educadores Populares [IEEP], 2010).
Como resultado desse modelo convencional de desenvolvimento e de agricultura os problemas socioambientais foram surgindo e se acumulando (Caporal e Costabeber, 2015). Para Caporal (2008), os monocultivos têm sido responsáveis por uma crise socioambiental sem precedentes na história da humanidade. Os impactos da Revolução Verde são inúmeros: a continuada destruição dos diferentes biomas, o aumento das áreas em processo de desertificação, o aumento da erosão dos solos, a perda da água, a contaminação dos aquíferos, dos rios, dos mares e também dos alimentos.
Como esclarece Guzmán (2015), foi em resposta às manifestações da crise ecológica e social no campo, gerada pela intensificação do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, que a agroecologia surgiu na América Latina em fins dos anos setenta do século passado, resultante de distintas formas de resistência praticadas por grupos camponeses e indígenas. A partir da aliança entre esses grupos e técnicos dissidentes do manejo industrializado, foram sendo construídas reflexões teóricas e avanços epistemológicos que culminaram na compreensão de uma necessária complementaridade entre o conhecimento científico e a epistemologia popular. Assim, para Guzmán (2015), a agroecologia é uma construção popular surgida da aliança entre setores camponeses e indígenas e técnicos de diferentes áreas (ecologistas, agrônomos, sociólogos, antropólogos, entre outros).
A partir das definições de Caporal e Costabeber (2015) temos que a agroecologia consiste em um enfoque científico destinado a apoiar a transição dos atuais modelos de desenvolvimento rural e de agricultura convencionais para modelos sustentáveis. Ela constitui um enfoque teórico e metodológico que lança mão de diversas disciplinas científicas no intuito de estudar a atividade agrária sob uma perspectiva ecológica. Assim, mais do que uma disciplina específica, a agroecologia apresenta-se como uma nova ciência em construção, um campo de conhecimento que reúne várias reflexões teóricas e avanços científicos, provenientes de distintas disciplinas. Nas palavras de Guzmán e Montiel, "la agroecología es, simultáneamente, un enfoque científico para el análisis y evaluación de los agroecosistemas y sistemas alimentarios y una propuesta para la praxis técnico-productiva y sociopolítica en torno al manejo ecológico de los recursos naturales" (2009, p.35).
A agroecologia nos coloca frente à possibilidade de reorientar o curso dos processos de uso e manejo dos recursos naturais, ampliando a inclusão social, reduzindo os danos ambientais e fortalecendo a segurança alimentar e nutricional a partir da oferta de alimentos saudáveis e de qualidade para todos os brasileiros (Caporal, 2008). Um dos pontos que merecem destaque é que a agroecologia não se restringe aos aspectos da produção, mas tem uma abrangência que envolve as relações sociais, mesclando ciência, conhecimento popular, preservação ambiental e inclusão social. Quando falamos em agroecologia estamos tratando "de uma orientação cujas contribuições vão muito além de aspectos meramente tecnológicos ou agronômicos da produção, incorporando dimensões mais amplas e complexas, que incluem tanto variáveis econômicas, sociais e ambientais, como variáveis culturais, políticas e éticas da sustentabilidade" (Caporal e Costabeber, 2015, p.268).
Durante a roda de conversa que serviu de base para nossa coleta inicial de dados, pudemos notar que os camponeses participantes enfatizaram esses aspectos ao justificar a decisão de abandonar o plantio do tabaco e migrar para a produção agroecológica. Em suas falas as motivações para o engajamento na agroecologia estavam ligadas à resistência a uma forma de exploração no trabalho do campo, à busca de uma vida comunitária e de uma forma de relação com a natureza que foi perdida com a chegada do plantio do fumo. A produção do tabaco implica a adoção de uma lógica de mercado e de submissão às grandes empresas que resulta na transformação de toda a vida social do grupo. O relato de Célia1, uma das participantes, expressa esses aspectos:
Vivia uma vida parece que tão bão, tinha fartura das coisa, daí já começou a aparecer o tal veneno, o trifluralina de passar na terra pra não carecer carpir. Daí a gente começou a pôr isso pra ir aumentando as lavoura, ter mais mantimento e mais as coisa e cada vez fomo se envolvendo mais e deixando morrer aquilo que era tão precioso. Nós passeava, nós tinha tempo de tanta coisa e daí quando começou isso nós fomos perdendo essas coisa maravilhosa que existia. Porque daí nós tacava mais e mais e mais veneno(...) (Célia).
Além da busca por formas comunitárias de experimentar o tempo e o trabalho, a luta contra o uso do veneno e de sementes geneticamente modificadas são dois aspectos reiterados nos depoimentos. Isso reflete um aspecto mais geral do projeto agroecológico: o cuidado e o respeito com a natureza, incluindo a própria saúde das pessoas, como enfatiza Toninha, outra agricultora participante:
Faz treze ano que a gente só produz alimento agroecológico. Hoje na minha propriedade não tem mais adubo químico, não tem veneno. (...) E a gente da agroecologia se cuida tudo: da mata, dos passarinho, das água do rio, das fonte de água...E é também um respeito com a natureza, com o tempo do alimento. Agora é tempo de plantar tal coisa... (Toninha)
Caporal e Petersen (2012) destacam como característica marcante da agroecologia no Brasil, o seu vínculo inextrincável com a defesa da agricultura familiar camponesa como base social de estilos sustentáveis de desenvolvimento rural. Assim, o movimento agroecológico brasileiro coloca-se em defesa de mudanças estruturais no campo, aliando-se aos históricos movimentos camponeses. Além disso, a agroecologia no Brasil distancia-se dos modelos convencionais orgânicos, pois, na medida em que defende o acesso a alimentos como direito universal, não está focada em atender a nichos de mercado e consumidores com maior poder de compra. Ao contrário, busca contribuir para a generalização de estilos de agriculturas mais sustentáveis.
A participação popular é outro aspecto relevante na agroecologia, já que seu desenvolvimento depende da troca de experiências entre agricultores, do repasse de conhecimento às gerações mais novas e do grau de organização dos agricultores para que possam manter-se frente ao modelo convencional de produção. Há um necessário resgate do agricultor como agente do processo de geração de conhecimento, o que para Balem e Silveira (2002) significa dar um sentido radical à agroecologia enquanto superação de um modelo de desenvolvimento. Por tudo isso se pode dizer que a agroecologia, além de expressar a resistência da agricultura camponesa, consiste em uma alternativa de agricultura socialmente justa, economicamente viável e ecologicamente sustentável (IEEP, 2010).
Políticas públicas para o campo e as constantes disputas no cenário político brasileiro
Almeida (2002) afirma que a proposta agroecológica ainda é minoritária e incipiente no contexto social da produção agrícola brasileira, embora em algumas regiões ela venha avançando consideravelmente na implementação de políticas públicas, como as políticas de assistência técnica e extensão rural, na pesquisa agrícola e nos recursos financeiros destinados especificamente para a produção agroecológica em determinados programas. No entanto, esse avanço da agroecologia no âmbito das políticas públicas se dá em um cenário de constantes disputas e contradições. Dentre elas destacamos aqui a coexistência de distintos modelos de desenvolvimento rural no Brasil, expressão das contradições que são intrínsecas ao próprio modo de sociabilidade capitalista.
A produção agrícola brasileira se dá em um cenário que congrega ampla diversidade de modelos de agricultura e de desenvolvimento rural. Longe de anular tal diversidade e/ou de cair em um discurso maniqueísta, para fins dessa discussão compreenderemos que há nesse cenário dois grandes modelos de desenvolvimento rural em disputa, um que corresponde à agricultura convencional (baseada nos padrões da Revolução Verde) e outro correspondente à agricultura camponesa, que dá base aos estilos sustentáveis de desenvolvimento rural. Cabe frisar que esses dois modelos não são homogêneos, pois congregam em seu interior estilos diversos de agricultura. A disputa entre esses modelos ocorre em uma desigual correlação de forças. Como destacam Caporal e Petersen (2012), os grupos do agronegócio mantêm sua iniciativa sobre as orientações do Estado, reafirmando sua hegemonia nos planos político, econômico e ideológico. Há assim um desequilíbrio do poder político, favorável aos interesses do capital financeiro, das grandes corporações transnacionais e da propriedade fundiária.
Nesse cenário o Estado/governo tem defendido a possibilidade de uma convivência equilibrada entre o agronegócio e a agricultura familiar (Caporal e Petersen, 2012). Uma das expressões máximas dessa política dual adotada pelo governo brasileiro é a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e sua coexistência com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Dentre as atribuições do MDA está a reforma agrária e a promoção do desenvolvimento sustentável da agricultura familiar (Brasil, 2010). Já o MAPA tem por sua responsabilidade a gestão das políticas públicas de estímulo à agropecuária, o fomento do agronegócio e a regulação e normatização de serviços vinculados ao setor (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2016).
A criação do MDA ocorreu durante o governo Fernando Henrique Cardoso, no ano 2000. A intensificação dessa política dual a partir da coexistência dos dois Ministérios foi mantida nos governos posteriores de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). O que vemos aí é a manutenção do favorecimento dos interesses de elite agrária brasileira travestida de uma tentativa de negociação, em que se busca atender, ao mesmo tempo, os interesses das classes dominantes e das classes dominadas, nesse caso, os interesses do agronegócio e da agricultura camponesa.
Vale frisar que no caso do PT estamos falando de um partido de esquerda que teve seu advento ao poder viabilizado e sustentado pelas alianças feitas com a direita, contradição que atravessa a implementação de políticas públicas nesse governo. Se por um lado, uma série de avanços em favor da classe trabalhadora foi alcançada nos treze anos do governo PT, por outro, muitas das expectativas dessa classe com um governo dos próprios trabalhadores foram frustradas, já que a efetivação de suas reivindicações deu espaço a iniciativas ditas de caráter mediador entre as pautas dos movimentos de esquerda e das elites dominantes, enquanto, na realidade, são iniciativas que acabam por favorecer os interesses dominantes e a manutenção do status quo. Tais apontamentos fazem-se relevantes na medida em que compreendemos que há uma intrínseca relação entre Estado, governo e políticas públicas.
Concordamos com Lahera (2006) ao afirmar que embora sejam entidades diferentes, há uma relação recíproca entre política e políticas públicas. Como esclarece o autor, ambas têm a ver com o poder social, mas enquanto a política consiste em um conceito amplo, relativo ao poder em geral, as políticas públicas correspondem a soluções específicas para o manejo de assuntos públicos. As políticas públicas são, portanto, um fator comum da política. Assim, a política pode ser também analisada como a busca por estabelecer, bloquear ou influenciar políticas públicas sobre determinados temas. Por sua vez, uma parte fundamental das tarefas do governo diz respeito ao desenho, gestão e avaliação de políticas públicas. Assim é que a discussão a respeito das políticas públicas deve ser realizada levando em conta o complexo cenário que compõe os jogos de poder e as disputas dele advindas no contexto de um governo. Não há como tratar de políticas públicas desconsiderando o contexto político em que elas são implementadas, dada a relação recíproca existente entre essas duas esferas.
Para Lessa (2013) com a decisão da esquerda de apoiar o que compreendia como os "aspectos positivos" dos governos neoliberais, a potência crítica ao capitalismo de que esses setores da esquerda outrora foram portadores ficava, a partir de então, irremediavelmente comprometida. Disso emerge o caráter reformista das políticas públicas implementadas no governo de grupos desses setores. Por um lado, se avança, ao buscarem atender, em alguma medida, os interesses das maiorias populares e, por outro, contribui-se com a manutenção da dominação dessas maiorias pelas elites dominantes, ao atender os interesses dessas últimas.
No bojo dessas incoerências está aquela contradição inerente ao próprio capitalismo: devem-se permitir as condições necessárias à reprodução da classe trabalhadora para que ela possa ser expropriada e explorada. É nesse contexto que a questão das políticas públicas deve ser analisada. Para Lessa (2013), no modo de sociabilidade capitalista as políticas públicas sempre terão um caráter de classe, sendo determinadas pelos interesses do capital. Frequentemente a luta dos trabalhadores é respondida pelo capital com políticas públicas que aparentemente servem a eles, enquanto, na realidade, servem à ampliação da mais-valia deles expropriada. "É esta aparência que permite, ainda hoje, que o discurso reformista soe como verdadeiro. [...] o fundante desse processo é a reprodução do capital e não a vitória dos trabalhadores contra a burguesia" (p.212).
Nesse mesmo sentido, Carvalho (2014) explicita sua análise acerca da condição dos camponeses no contexto da implementação de políticas públicas que visam tanto à reprodução das empresas capitalistas, quanto dos camponeses:
Os camponeses se defrontam no seu viver pleno de contradições não apenas com os interesses de classe das empresas capitalistas do campo e da cidade como, também, com as concepções e práticas das políticas públicas dominantes exercidas pelas instituições dos governos e, amplo senso, pelo Estado, este como poder político da classe dominante. [...] Desejo, portanto, acentuar que as políticas públicas liberal-burguesas ao tentarem estimular - tratando como iguais os diferentes, a reprodução social das empresas capitalistas e dos camponeses (entre outros) nada mais fazem do que manter ou ampliar as desigualdades sociais no campo (Carvalho, 2014, p.2).
Como Caporal e Petersen (2012), compreendemos que a adoção de uma política dual de desenvolvimento rural reverbera também no quadro político, já que coloca o governo em posição favorável frente à agricultura familiar e ao agronegócio ao mesmo tempo:
Essa retórica da coexistência exerce grande influência no atual quadro político já que oculta das organizações da agricultura familiar a sua crescente subordinação ao agronegócio além de legitimar as políticas públicas perante a sociedade. Ao mesmo tempo, confirma aos grupos do agronegócio suas expectativas em torno ao papel preponderante que estão chamados a desempenhar nas políticas de desenvolvimento (Caporal e Petersen, 2012, p.64).
Longe de invalidar a luta dos trabalhadores pela implementação de políticas públicas que atendam seus interesses, queremos com essa discussão apontar para o caráter de classe que tais políticas carregam em última instância, o que, no entanto, não invalida os avanços conquistados nesse sentido no interior do próprio sistema capitalista. No contexto brasileiro atual, da maneira como são implementadas, as políticas públicas tornam-se expressão das contradições do próprio capital, da disputa de interesses entre as classes e das tentativas de mediação levadas a cabo pelo governo.
Uma das expressões dessas contradições nas políticas públicas para o campo se traduz na terminologia utilizada em referência ao público a que essas políticas se destinam, fator para o qual se faz imprescindível atentar. A exemplo de Silva (2012), consideramos que pensar a quem as políticas públicas se destinam, com que objetivos e com qual concepção de sujeito elas nascem e são implementadas não consiste em um mero detalhe, já que os aspectos subjetivos nelas implicados e o modo como historicamente eles foram tratados nos revelam posições ideológicas.
Há uma diversidade de categorias utilizadas nas políticas públicas para o campo, sendo que cada uma delas carrega um significado singular, política e historicamente determinado. O termo "camponês" aparece frequentemente associado ao movimento camponês, que durante a ditadura militar era considerado subversivo pelos governos militares, por isso é um termo que carrega um forte conteúdo político. Nesse período a busca por uma expressão que fosse considerada mais neutra levou à adoção oficial de termos como "pequenos produtores", "agricultores de subsistência" e "agricultores de baixa renda", que, por sua vez, tinham um caráter depreciativo (Wanderley, 2015).
Com a formulação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) nos anos 1990, o governo passou a adotar oficialmente o termo "agricultura familiar". Isso fez com que houvesse uma ressignificação do termo "campesinato" no sentido de negar a existência histórica da classe camponesa brasileira e de apontar para sua superação, diluindo o conteúdo histórico-político que essa categoria inspirava e esvaziando as reivindicações políticas e sociais do movimento camponês (Abramovay, 1998; Cunha, 2012; Wanderley, 2015). Via de regra, as políticas públicas destinadas à "agricultura familiar" vêm sendo implementadas no sentido de incentivar a modernização da agricultura, tendo como referência os padrões da Revolução Verde. Ao mesmo tempo em que buscam fortalecer uma modalidade de agricultura oposta ao agronegócio, o fazem de acordo com os padrões da modernização capitalista, impondo à família camponesa outro modo de produção e de vida. Localizamos aí o que Guzmán e Montiel (2009) compreendem ser um neocolonialismo interno, característico dos países industrializados, em que o meio urbano busca impor ao meio rural um modo industrial de produção e manejo dos recursos naturais que rompe com a identidade camponesa.
Assim, temos compreendido que a adoção do termo "agricultura familiar" caracteriza, de certa forma, uma violência do Estado em relação aos camponeses. Por isso, optamos por fazer uso das categorias campesinato, camponeses ou agricultura camponesa. Outras categorias são usadas nesse texto apenas quando referenciamos autores que fazem uso delas.
A inserção da agroecologia nas políticas públicas para o campo: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa de Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) como expressão de uma lógica fragmentária
Uma das principais consequências desse contexto de contradições e disputas em relação à agroecologia é a característica fragmentária que sua inserção nas políticas públicas assume. Isso porque, como lembram Caporal e Petersen (2012), até o momento o Brasil não foi palco de uma ação efetiva e ampla de políticas públicas indutoras de uma nova perspectiva paradigmática para o desenvolvimento rural. Para os autores, as iniciativas de políticas públicas que favorecem uma transição agroecológica têm caráter pontual e não vêm respondendo ao que pode ser compreendido como uma política pública, mas sim como fragmentos isolados de iniciativas incluídas em projetos e programas. É o que vemos acontecer no caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
O PAA foi instituído no ano de 2003 com duas finalidades principais: a promoção do acesso à alimentação e o incentivo à agricultura familiar. O programa compra alimentos produzidos pela agricultura familiar com dispensa de licitação para destiná-los às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede socioassistencial e pelos equipamentos públicos de alimentação e nutrição (Brasil, 2012a). Em relação à agroecologia, destacamos que uma das finalidades do PAA é promover e valorizar a biodiversidade e a produção orgânica e agroecológica de alimentos e incentivar hábitos alimentares saudáveis em nível local e regional. Além disso, fica estabelecido que o Grupo Gestor do PAA (GGPAA) deve estabelecer metodologia de definição de preço diferenciado para alimentos agroecológicos ou orgânicos, que poderão ter um acréscimo de até 30% em relação aos preços estabelecidos para produtos convencionais (Brasil, 2012b).
Já o PNAE, foi criado em 1979, embora suas primeiras iniciativas datem da década de 1950, com a criação da Campanha Nacional da Merenda Escolar (Peixinho, 2013). O PNAE consiste na transferência de recursos financeiros para a aquisição de gêneros alimentícios destinados à merenda escolar, visando garantir aos estudantes da rede pública uma alimentação saudável e de qualidade. Uma das diretrizes do programa é o apoio ao desenvolvimento sustentável, incentivando a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares rurais, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas. Os recursos financeiros são repassados aos municípios e estados pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), sendo que 30% do total deve ser destinado à aquisição de produtos da agricultura familiar (Brasil, 2009). Conforme consta na Resolução nº 26, de 17 de junho de 2013 (Brasil, 2013a), do FNDE, a aquisição de gêneros alimentícios no âmbito do PNAE deve priorizar, sempre que possível, os alimentos orgânicos e agroecológicos. Além disso, tal como ocorre no PAA, estabelece que a entidade executora poderá acrescer aos preços desses produtos em até 30% em relação aos preços estabelecidos para produtos convencionais (Brasil, 2013a).
Tanto o PAA quanto o PNAE têm exercido ampla contribuição no fortalecimento da agricultura camponesa, ampliando o mercado e assegurando às famílias agricultoras a comercialização de seus produtos. Além disso, contribuem para elevar a qualidade da alimentação das pessoas que têm acesso a ela, colaborando com a segurança alimentar e nutricional da população. Silva, Bezerra e Furtado (2013) destacam dentre os ganhos proporcionados pelos programas, o fato de que a venda para o mercado institucional permite aos camponeses perceberem-se como sujeitos capazes de alterar o curso histórico de exclusão e de invisibilidade a que estão submetidos a partir do momento em que se enxergaram como fornecedores de alimentos, saberes e culturas.
A respeito da agroecologia e sua inserção no PAA, Coutinho e Hartmann (2012), afirmam que esse programa transformou-se em uma importante ferramenta de fortalecimento do processo de transição agroecológica das famílias envolvidas, contribuindo para o redesenho da unidade produtiva, a diversidade do cultivo, e a organização e dinamização da comercialização de produtos. Assim, o PAA tem contribuído para a promoção da alimentação adequada e saudável, para a valorização da agroecologia e para a inclusão produtiva de milhares de famílias no mercado formal (Porto, 2014).
Avanços como esses, proporcionados às famílias agroecologistas através do acesso a programas como o PAA e o PNAE, aparecem na fala de Abel, agricultor agroecologista que conta sobre a história de famílias camponesas ligadas a uma associação de agricultores agroecologistas no Estado do Paraná:
No nosso caso, no início do grupo, a maioria das famílias da associação era planta dor de fumo. Eu também era plantador de fumo. E num período, três, quatro ano depois, quase todas as famílias que trabalhavam com o fumo já tinham largado da fumicultura e tavam sobrevivendo da agroecologia, porque tinha o programa do PAA a todo vapor [...] tinha o PNAE, que depois apareceu também [...]. Então en tre o PAA e o PNAE e também algumas feiras que tinha, quase todas as famílias ligadas à associação sobreviviam exclusivo da agroecologia, entregando alimentos pros programas. Então tinha muitas famílias que já tavam bem até estruturalmente, financeiramente, já tinham até estruturado a propriedade, melhorado a horta, melhorado a propriedade pra sempre avançar, sempre crescer, sempre aumentar a produção (Abel).
O relato de Abel coloca em evidência o importante papel que o PAA e o PNAE exerceram no processo de transição agroecológica dessas famílias, viabilizando a elas tirarem seu sustento exclusivamente da agroecologia. A associação que havia iniciado com 15 famílias no ano de 2005 teve esse número ampliado para um total de 120 famílias em 2012, aumento favorecido pela segurança da comercialização através da inserção nos programas. No entanto, uma série de fatores levou à mudança desse cenário, fazendo com que o número de famílias diminuísse consideravelmente outra vez, conforme relata Abel:
Devido ao aumento desse programa [PAA], porque é um programa que começou pequenininho, com pouco recurso, com poucas famílias, com poucas cooperativas participando, mas ele cresceu consideravelmente a nível de Brasil. [...] E aí o que aconteceu? Aconteceu que o agronegócio, as grandes cooperativas, os grande agri cultores também ficaram de olho grande nesse recurso que tava saindo do agronegócio pra vim pra agricultura familiar através da CONAB, através do PAA. [...] Assim as cooperativas passaram a ser perseguida, passaram a ser investigada por vários setores, alguns grupos políticos também dos municípios, das regiões. E é um trabalho tentando fazer de tudo pra que esse programa que tava crescendo bas tante parasse de crescer. Tanto é que começaram a achar defeito nas maneira que as cooperativa tavam executando, acharam defeito, acharam problema em tudo que as cooperativa tavam fazendo, executando os projeto, para tentar barrar os programas, principalmente o PAA, que é via CONAB. [...] Se for ver o valor que tinha em 2013, hoje os projeto que tem a nível de Brasil caiu bem mais da metade. As coop erativa pararam de executar os programa, criaram mais burocracia. As cooperativa que tão não conseguem mais acessar. Então teve uma queda bastante grande. E as cooperativa também que tavam organizadas, elas se desmobilizaram também.[...] E a nossa associação que tava com cento e vinte agricultor, hoje ela tá com trinta ag ricultor. [...] E hoje se a gente for ver, das poucas famílias que tem, é poucas famílias que tão conseguindo sobreviver específico da agroecologia. Até porque não tem mais essa ponte aí dos programas institucional, que é o PAA, o PNAE. Até tem algumas cooperativas, mas a nossa associação hoje não conseguiu acessar, até por tá frágil também, né? (Abel)
A investigação a que o agricultor se refere foi parte de uma operação deflagrada pela Polícia Federal no ano de 2013, chamada "Operação Agro-Fantasma", executada em quinze municípios do Paraná, além de Bauru, no Estado de São Paulo e Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. O alvo da operação era a investigação de supostas irregularidades na execução do PAA. Para Abel, a operação serviu como estratégia de enfraquecimento dos Programas e, consequentemente, da agricultura familiar. Frente a esse cenário, as normas para execução do PAA passaram por uma série de mudanças, cuja finalidade foi a ampliação dos níveis de controle interno. Porto (2014) aponta que algumas mudanças já vinham sendo feitas desde 2011, sendo intensificadas após 2013.
O mesmo autor discute que esse tipo de ajuste no âmbito de uma política pública tende a burocratizar os procedimentos. Há dois caminhos possíveis para enfrentar a problemática do controle: um deles envolve a ampliação dos processos participativos, fortalecendo o controle social, e o outro consiste em seguir a "cultura da administração pública", que se pauta por decisões exclusivas dos agentes governamentais. Para Porto (2014) essa é uma escolha política e, no caso do PAA, ela se deu no sentido do segundo caminho, fazendo com que as mudanças implementadas levassem a um processo de burocratização.
Essa escolha política teve um impacto direto na realidade de muitas das famílias que acessavam o PAA e tinham nele a segurança da comercialização de sua produção. No caso da associação de agroecologistas da qual Abel fazia parte, o número de famílias foi drasticamente reduzido, tendo muitas delas retornado à fumicultura. A associação foi enfraquecida e as famílias que permaneceram nela não vinham conseguindo acessar os programas, tendo dificuldades em ter na produção agroecológica sua fonte de renda. Essa realidade vai de encontro às afirmações de Porto (2014), que aponta que todo esse processo de mudanças gerou desestímulo nas cooperativas e associações em continuar participando do PAA, em função do impacto negativo que as mudanças implementadas promoveram, já que com elas o nível de exigência documental e de gestão passaram a ser ainda mais complexos. Assim, as comunidades que tinham no PAA uma oportunidade real de inclusão produtiva acabam não conseguindo responder a esse novo formato e atender todas as exigências estabelecidas.
É notório que esse conjunto de mudanças implementadas no âmbito do PAA tem prejudicado o acesso de agricultores agroecologistas ao programa. A participação dessas famílias, que já não era elevada, tem encontrado ainda mais dificuldades em sua efetivação. Porto (2014), ao analisar os dados de execução financeira do PAA referentes à participação formal dos produtos orgânicos e agroecológicos, afirma que ela nunca chegou a 5% da participação total do volume de recursos executados por ano no programa. Para o autor, a baixa participação das organizações que trabalham com esse tipo de produção, pode ser explicada, dentre outros fatores, pelo fato de que elas estão articuladas com outros canais de comercialização que permitem comercializar volumes superiores aos do PAA, já que o limite financeiro anual nesse programa consiste em um valor relativamente baixo. Nesse sentido, o PNAE tenderia a ser mais atrativo para as organizações que trabalham com a produção orgânica e agroecológica no mercado institucional, já que os preços pagos pelos produtos, em geral, são superiores se comparados ao PAA e as exigências documentais são simplificadas (Porto, 2014).
Para Sambuichi e cols. (2014) as baixas porcentagens de compras de produtos agroecológicos e orgânicos no âmbito do PAA podem ser explicadas pela pouca abrangência desse tipo de produção entre os agricultores, pelos altos custos de certificação e pelas dificuldades para a obtenção de comprovação de conformidade. Conforme dados do último Censo Agropecuário, apenas 1,7% dos agricultores familiares brasileiros declarou praticar agricultura orgânica e apenas 0,08% tinha a produção certificada. Como destacam os autores, o processo de certificação tem um custo elevado para o produtor, constituindo-se ainda como um entrave para o acesso ao mercado.
Ao contrário da análise de Porto (2014), que afirma que o PNAE tende a ser mais atrativo devido à maior simplicidade das exigências documentais, Sambuichi e cols. (2014) enfatizam que as exigências nesse Programa são mais elevadas em relação ao PAA, o que tende a restringir os fornecedores às cooperativas e associações mais organizadas. Por ser menos exigente quanto à forma e regularidade do fornecimento dos produtos, o PAA teria mais potencial para atingir os agricultores familiares menos capitalizados e com menor organização e inserção no mercado. Autores como Schirmann, Rosar e Pereira (2007) e Ribeiro, Ceratti e Boch (2013), também apontam que os agricultores vêm tendo dificuldades em acessar o PNAE. Dentre as principais barreiras estão os entraves burocráticos, os requisitos para o enquadramento nos processos licitatórios, as exigências fiscais e inspeções municipais e estaduais aos produtos.
Para Camargo, Baccarin e Silva (2013), o acesso tanto ao PAA quanto ao PNAE ainda está restrito a um pequeno número de produtores. Como verificamos pelos dados apontados anteriormente, esse acesso é ainda menor quando se trata da agricultura orgânica e agroecológica. Diante das baixas cifras de índices de acesso da produção agroecológica nesses programas, é possível perceber que, embora eles possibilitem uma série de avanços à agricultura camponesa agroecológica, as transformações geradas a partir disso são ainda incipientes e não geram mudanças estruturais em relação ao modelo de desenvolvimento rural brasileiro, já que o modelo convencional de produção agrícola ainda predomina. O potencial de transformação dessas políticas permanece aquém do esperado, justamente porque a inserção de modelos rurais de base sustentável ocorre nelas de forma fragmentada e pontual.
Em um cenário de constantes embates com o agronegócio, as iniciativas ligadas aos chamados estilos sustentáveis de agricultura no âmbito das políticas públicas apresentam um caráter pontual, que não lhe conferem a força necessária para suplantar o padrão convencional de produção agrícola. Engendradas num modelo político que, como apontamos, favorece a coexistência de dois modelos distintos de desenvolvimento rural, essas iniciativas tornam-se frágeis, como vimos ocorrer com a política do PAA, em que os últimos esforços no âmbito de sua gestão se deram no sentido da burocratização, acarretando na dificuldade do acesso de famílias agroecologistas a esse programa.
Claro fica que as decisões tomadas no âmbito das políticas públicas incidem diretamente sobre a vida dos sujeitos que fazem uso dela. No caso relatado por Abel, é possível perceber que muitas famílias viram suas possibilidades de saída do cultivo do tabaco e transição para a produção de base agroecológica ampliadas pelo acesso ao PAA e ao PNAE. Insere-se aí uma importante dimensão psicossocial da implementação dessas políticas, a saber, o processo de recuperação e reafirmação da identidade camponesa, dado que a agroecologia, como destacam Guzmán e Montiel (2009), ao propor um desenvolvimento rural sustentável, propõe recuperar os elementos culturais e ecológicos positivos do campesinato. Acreditamos que esse processo incide também na dimensão psicossocial da vida dos sujeitos, ao contribuir com o processo de reapropriação da identidade e cultura camponesa, que mobilizam outras relações, outros modos de vida e de subjetivação. Assim, tal processo parece estar ligado de alguma forma à possibilidade de reenraizamento dos trabalhadores, na medida em que envolve uma reapropriação e elaboração do passado, a abertura de espaços de participação política no presente e a construção de projetos de futuro (Weil, 1996).
Da mesma maneira, a dificuldade de muitas das famílias em acessar o PAA e o PNAE acarretou na inviabilidade de sua permanência na produção agroecológica, sendo necessário o retorno ao cultivo do tabaco e a ruptura com esse processo de recampesinização. A mudança nesse caso é radical, pois ela engendra transformações no modo de vida dessas famílias, que ao retornarem à fumicultura estão retornando ao modelo convencional de produção. As famílias são levadas a abrir mão de melhores condições de saúde, de trabalho e de vida, das quais podiam desfrutar no cultivo agroecológico. Na disputa de interesses prevalecem os das classes dominantes e os ganhos, em última instância, são novamente das grandes indústrias ligadas ao agronegócio.
Na forma como vêm sendo implementadas, há uma contradição que permanece sempre em voga no interior das políticas públicas que visam à promoção da agroecologia. Por um lado, elas de fato colaboram para o avanço dessa perspectiva, contribuindo para a implementação da transição agroecológica e permitindo que as famílias consigam ter na agroecologia sua fonte de renda. Por outro, o fato de consistirem em iniciativas pontuais e não estarem atreladas a uma perspectiva de mudança estrutural no modelo de desenvolvimento rural acaba por contribuir para que a hegemonia do agronegócio seja mantida. Estariam, então, essas políticas fadadas ao insucesso, no que diz respeito à consolidação dos interesses e necessidades dos camponeses? Nesse cenário, que possibilidades podemos vislumbrar?
A organização social e as novas possibilidades para as políticas públicas
Na esteira das disputas e contradições no contexto do campo brasileiro, temos nos deparado também com um crescente processo de subversão da perspectiva crítica e transformadora que a agroecologia engendra, seja pela apropriação de suas técnicas pelo modelo convencional de produção agrícola ou pela sua mercantilização. Isso exige que os movimentos que se colocam em defesa de um projeto popular de agroecologia estejam cada vez mais atentos às articulações e iniciativas que vêm ocorrendo no cenário nacional e internacional em torno do tema.
No ano de 2014 a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), organizou em Roma o Simpósio Internacional sobre Agroecologia para a Segurança Alimentar e Nutricional, reconhecendo no crescimento contínuo da Agroecologia sua potencialidade no combate à crise alimentar e promovendo o debate sobre a internalização da perspectiva agroecológica nas políticas agrícolas e agrárias (Petersen e Londres, 2015). Embora tal iniciativa represente um grande passo em direção ao fortalecimento da agroecologia, os movimentos ligados à Via Campesina2 localizam nela um risco ao qual devem estar atentos, já que a proposta da FAO busca consolidar uma agroecologia comercial. Na contramão dessa perspectiva os movimentos sociais defendem uma agroecologia transformadora, de resistência e de luta popular (Pacheco, 2015).
Para Peter Rosset, membro da Via Campesina Internacional, a mobilização que muitos países vêm efetivando no intento de gerar políticas públicas agroecológicas é uma grande oportunidade, ao mesmo tempo em que pode ser uma ameaça, já que há uma disputa entre duas visões da agroecologia e essas iniciativas podem vir a apoiar a perspectiva da comercialização, caso os movimentos não se organizem (Pacheco, 2015). Com isso é possível perceber as controvérsias que passam a existir no interior da própria agroecologia, no momento em que há uma apropriação dessa proposta por parte do capital, que visa seu uso técnico em favor de interesses mercadológicos.
Nesse sentido, é preciso que as organizações e movimentos sociais se mobilizem para incidir sobre as novas políticas de enfoque agroecológico, a fim de que elas se tornem um respaldo para a agroecologia popular camponesa (Pacheco, 2015) e não uma apropriação dessa perspectiva para fins mercadológicos. Assim, a organização e mobilização social surgem como elemento imprescindível na consolidação de uma perspectiva agroecológica transformadora no âmbito das políticas públicas. A necessidade da participação popular aparece também na fala de Abel:
O que a gente precisa, nós agricultores que fazemos parte de associação, que produzimos, a gente ainda precisa de mais incentivo, mais apoio, mais políticas públicas. Até tem, mas precisa fazer elas funcionar e pra funcionar tem que ter pressão, tem que ter público, tem que ter gente pra pressionar pra que as políticas públicas pra agricultura familiar ou pra agroecologia, elas se concretizem na prática. Pra que o apoio, o recurso, o incentivo chegue lá nas famílias (Abel).
Fortalecer a organização social e pressionar o poder público para a efetiva implementação de políticas públicas nos parece ser, não só uma possibilidade para avançar em relação aos limites existentes, mas uma necessidade. É preciso também avançar no sentido da criação de espaços participativos na construção dessas políticas. Para Caporal e Petersen (2012) nos espaços de disputa em que as estratégias de desenvolvimento rural são estabelecidas não há uma força política da sociedade civil com capacidade de fazer valer seus interesses.
Almeida, em uma publicação que data de 2002, destaca que a consolidação de um movimento social é condição sinequa non para a afirmação da proposta agroecológica, o que em sua opinião ainda não havia se concretizado:
A agroecologia [...] não constituiu ainda no que se poderia chamar de um movimento social stricto senso, ou seja, uma ação social organizada contra o poder de adversários que têm as rédeas do modo de desenvolvimento agrícola. A luta agroe cológica poderá provocar uma autêntica e profunda transformação no campo político [...] desde que saiba "costurar" as alianças capazes de provocar uma ampliação de seu poder de luta. Essas lutas deverão se encaminhar na direção da convergência (e da complementaridade) com outras formas de combate e movimentos sociais, a fim de fazer desta ação a precursora por excelência de um movimento social mais amplo e dirigido contra a tecnocracia que dita as necessidades de uma população a qual domina. Por enquanto, a agroecologia é a expressão de iniciativas de grupos ou agentes sociais mais ou menos isolados, com resultados técnicos e sociais em diferentes amplitudes, agentes estes que poderão vir a integrar um movimento social, mas que atualmente não constituem e não representam um movimento social (Almeida, 2002, p.36, grifos da autora).
No mesmo ano constituía-se no cenário brasileiro a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Definida como um espaço de articulação e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira que se engajam em experiências concretas de promoção da Agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural, a ANA articula atualmente vinte e três redes estaduais e regionais, as quais reúnem centenas de grupos, associações e organizações, além de quinze movimentos sociais de abrangência nacional (ANA, 2015).
A atuação da ANA ocorre através de três frentes:
A primeira delas consiste em articular iniciativas realizadas pelas organizações que fazem parte da ANA em seus programas de desenvolvimento local/territorial, promovendo o intercâmbio entre elas e fomentando a reflexão coletiva sobre as lições delas extraídas. Dessas lições, são retirados subsídios para a segunda frente de ação: o trabalho de incidência sobre as políticas públicas. Através da prática da troca de experiências e de debates, são identificados gargalos e desafios para o desenvolvimento da agroecologia e elaboradas propostas para a criação e o aprimoramento de políticas públicas que promovam o aumento de escala da agroecologia nos territórios. Esse esforço tem fortalecido a ANA como ator político repre sentante do campo agroecológico, legitimado para propor e negociar o aprimoramento de políticas junto ao governo. A terceira frente de ação da ANA se refere à comunicação com a sociedade, que busca dar visibilidade à realidade da agricultura familiar e às propostas defendidas pelo campo agroecológico e, assim, estimular uma atitude proativa em defesa dessas propostas (ANA, 2015, s/p).
Através dessas frentes de ação, a ANA surge no cenário nacional como importante ator político em defesa da agroecologia. Ao articular os movimentos existentes e assumir a responsabilidade de incidir sobre as políticas públicas, a ANA pode contribuir com as transformações necessárias no campo político do enfrentamento ao agronegócio.
Outro importante ator no campo agroecológico brasileiro é a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia), criada em 2004 no II Congresso Brasileiro de Agroecologia. A Associação reúne profissionais, acadêmicos, técnicos e agricultores e tem como objetivo principal incentivar e contribuir para a produção de conhecimento científico no campo da agroecologia. Dentre suas iniciativas também está a de analisar e propor políticas públicas, defendendo a proteção da biodiversidade como condição indispensável para o alcance de agroecossistemas sustentáveis (Associação Brasileira de Agroecologia, 2016).
Essas iniciativas da ANA e ABA em relação às políticas públicas são de fundamental importância e grande potencialidade no avanço da agroecologia no Brasil. Defendemos aqui, a ideia de que a incidência dos movimentos sociais no campo das políticas públicas é indispensável para que elas sejam implementadas no sentido de atender as reais necessidades das maiorias populares. Em relação às políticas agrícolas e agrárias, essa incidência permite constituir um espaço de resistência aos interesses das elites dominantes do agronegócio no interior das disputas travadas nesse cenário, transformando as políticas públicas para o campo em políticas públicas do campo.
Importantes avanços no campo da agroecologia brasileira já foram alcançados a partir da organização e mobilização social, como a instituição da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Pnapo, em 2012, através do Decreto nº 7.794 de 20 de agosto de 2012 (Brasil, 2012c). Construída com a participação de vários movimentos, no campo da agroecologia os debates foram conduzidos pela ANA, ABA-Agroecologia e Articulação Semiárido (ASA). No campo da produção orgânica o diálogo ocorreu por meio da rede de Comissões da Produção Orgânica das Unidades da Federação (CPOrgs) e pela Câmara Temática de Agricultura Orgânica (CTAO) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Movimentos sociais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), a Via Campesina e a Marcha das Margaridas também exerceram papel fundamental na construção da Pnapo (Brasil, 2013b).
Com a instituição dessa Política surgiu a necessidade de construir um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Planapo. As metas, estratégias e iniciativas desse Plano vêm sendo reconhecidas como um esforço do Estado, que partiu de intensa mobilização da sociedade civil organizada, provocadora e impulsionadora de avanços (Brasil, 2013b).
Certamente todo esse processo não se deu isento de contradições, o que pode ser notado já de início pelo envolvimento do MAPA nas discussões, Ministério que, como vimos, está ligado aos interesses do agronegócio. Ainda que a Pnapo e o Planapo possam ser considerados um marco no reconhecimento institucional e na formulação de políticas públicas que incorporam os princípios da agroecologia, constatamos que não são grandes os avanços efetivos no âmbito das políticas públicas nesse sentido.
Agroecologistas de todo o país, reunidos na 14ª Jornada de Agroecologia, realizada no município de Irati, Estado do Paraná, em 2015, enfatizaram na Carta Final do evento que, apesar da instituição da Política e do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o governo brasileiro segue "a lógica fragmentada de editais públicos com disponibilidade de recursos limitados e absolutamente insuficientes frente às demandas da agricultura camponesa agroecológica", ao invés de constituir um plano estruturante para a agroecologia. Afirmaram ainda, que o Planapo é reconhecidamente uma conquista efetiva para o avanço da agroecologia, mas exige medidas sem as quais não irá alcançar sua efetividade. Frente a isso, os agroecologistas reivindicam a melhoria, ampliação e qualificação do Planapo, efetivando-o como um programa estruturante da agroecologia (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2015).
No contexto em que impera a hegemonia do agronegócio, a consolidação de políticas públicas de base agroecológica exige a incidência dos movimentos sociais em todo seu processo de construção, desde a formulação até a implementação, monitoramento e avaliação - o que, por certo, é imprescindível, não apenas em relação à agroecologia, mas em qualquer política pública. Como é possível constatar, a constituição de uma Política e de um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica não foi suficiente para que as mudanças almejadas pelos movimentos populares fossem alcançadas. Por isso é necessário que os movimentos sociais em luta pela agroecologia se fortaleçam e se organizem no sentido de pressionar o governo para que as iniciativas cabíveis, não só sejam implementadas, mas que sejam implementadas com a ampla participação desses mesmos movimentos.
Concordamos com Silva (2012), que, ao reconhecer os movimentos sociais como atores políticos estratégicos na construção da agenda pública e das políticas dela derivadas, destaca seu importante papel durante todo o processo de produção das políticas públicas. Compreende-se que as contribuições dos movimentos sociais podem favorecer a construção de políticas públicas que estejam em maior conformidade com a realidade das pessoas que delas necessitam. Além disso, "a pressão que exercem os movimentos sociais (assim como as redes que estes formam) contribui para o desenvolvimento democrático e para uma maior transparência do espaço público, condizente com o fazer ético que se espera dos atores públicos e do próprio público" (Silva, 2012, p.224, grifos do autor).
Concluímos, assim, que um adensamento das forças sociais que se colocam em defesa de um projeto popular de agroecologia faz-se imperativo no processo de constituição de políticas públicas afinadas com essa proposta. Para isso esses atores sociais deverão impreterivelmente afirmar-se contra os interesses das elites agrárias e opor-se às políticas reformistas e conciliatórias que o Estado, a serviço dessas classes, tenta lhes impor. Como coloca Petersen (2005),
Esperar que mudanças estruturais se efetivem em aliança com o sistema de poder que faz perpetuar o status quo é um engano estarrecedor. É preciso ter claro desde já que essas transformações não se efetuarão sem que interesses sejam contrariados. [...] é preciso que [a sociedade] formule sua própria agenda de desenvolvimento. No que concerne ao movimento agroecológico, isso significa imprimir sinergia às forças sociais transformadoras emergentes em todas as regiões do país e canalizá-las em prol da concepção e defesa de um projeto político orientado para promoção de estilos democráticos e sustentáveis de desenvolvimento rural (p.38).
Do contrário, torna-se pouco provável que as iniciativas no campo agroecológico ultrapassem as barreiras da fragmentação dentro das quais são implementadas atualmente. O contexto de permanentes disputas no cenário agrícola e agrário brasileiro exige a consolidação de um movimento organizado e mobilizado de resistência e luta para que seja possível avançar de maneira significativa na implementação de políticas públicas de base agroecológica que estejam atreladas a um projeto maior de consolidação do paradigma de desenvolvimento rural sustentável.
Considerações finais
A aquisição de gêneros alimentícios produzidos pela agricultura local, no âmbito de políticas e programas públicos, vem se apresentando como uma importante ferramenta na promoção do desenvolvimento da agricultura agroecológica. No entanto, apesar dos avanços representados pela abertura à produção agroecológica, presente em propostas como o PAA e PNAE, a inserção da agroecologia nesses programas ainda ocorre de maneira pontual e fragmentada. Assim, há um longo caminho a ser percorrido e uma série de transformações a serem implementadas para que este tipo de dispositivo possa contribuir com os desdobramentos esperados para a geração de mudanças no campo.
Como já enfatizamos, ao apontarmos as limitações e contradições da inserção atual da agroecologia nas políticas públicas, não tivemos a intenção de invalidar os avanços por elas proporcionados. Faz-se notório que essas iniciativas têm contribuído para que muitas famílias consigam efetivar a transição agroecológica, deixar o modelo convencional de produção e resgatarem, junto com o saber tradicional, sua identidade camponesa. No entanto, é necessário atentar para as fragilidades desse cenário no intuito de consolidar estratégias que contribuam com a tarefa de superar o modelo convencional e avançar no fortalecimento da agroecologia.
Frente a um contexto rural permeado por uma série de disputas e contradições, é necessário um amplo esforço dos movimentos sociais para contribuir com a tarefa da transformação estrutural no modelo de produção agrícola brasileiro. No limites da sociabilidade capitalista vigente, esse esforço deve caminhar no sentido de uma integração das políticas públicas existentes. Nesse sentido, destacamos que o investimento restrito em programas como o PAA e PNAE, não será suficiente para gerar as mudanças necessárias. Ao contrário, restringir iniciativas voltadas ao fortalecimento da agroecologia ao âmbito da comercialização contribui para sua mercantilização, viés que permanece em consonância com o atual modelo hegemônico de agricultura capitalista. No cenário atual, consideramos que um importante foco das ações públicas no fortalecimento da agroecologia é priorizá-la no âmbito das políticas de Assistência Técnica e Extensão Rural.
As políticas públicas de enfoque agroecológico, assim como todas as outras, devem ser políticas de fortalecimento da autonomia das famílias agricultoras, que, ao contrário de torná-las dependentes do Estado, possam contribuir com sua emancipação. Para isso, essas políticas deverão ter capilaridade suficiente para penetrar nos territórios levando em conta a singularidade de cada contexto social, histórico, econômico e cultural.
A implementação de um modelo de desenvolvimento rural de base agroecológica em todo o país implica na ruptura com a atual perspectiva de conciliação entre o agronegócio e a agricultura camponesa, arquitetada e posta em curso pela classe dominante e pelo Estado. Nisso há um longo caminho a ser percorrido, no qual impera o necessário fortalecimento e organização dos movimentos sociais, para que se consolidem como espaço de luta contra o agronegócio e os mandos das elites agrárias e em prol de uma agroecologia popular verdadeiramente transformadora.
Referências
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Recebido em: 16/03/2017
Aprovado em: 17/07/2018
1 Os nomes dos participantes da roda de conversa são fictícios.
2 A Via Campesina é uma articulação internacional de movimentos camponeses criada em 1992, por diversas organizações da Ásia, África, América e Europa, constituindo-se atualmente como um dos principais atores nas lutas contra a hegemonia do modelo neoliberal de agricultura.