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Revista Psicologia Política
Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo MayAug. 2018
ARTIGOS
Podem as travestis estudar? Regimes de verdade sobre corporalidades vibráteis na escola
Can transvestites study? Regimes of truth on vibrating bodies in schools
¿Pueden estudiaren travestis¿ Parresias de as corporalidades que vibran
Les travestis peuventils étudier? Régimes de vérité sur les corporalités vibratoires à l'école
Danielle Jardim BarretoI; Adriana Barbosa SalesII; Wiliam Siqueira PeresIII; Catarina DallapiculaIV
IUniversidade Paranaense. Possui Doutorado em Psicologia e Sociedade pela UNESP, Campus de Assis/SP. Atualmente é docente do Curso de Psicologia e do Curso de Medicina da Universidade Paranaense. danibarreto@prof.unipar.br
IITravesti, Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP, Campus de Assis/SP. Efetiva na secretaria de Estado de Educação do Estado Mato Grosso. Ativista social junto a Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, como secretária para assuntos e relações internacionais. adriana.salesunesp@gmail.com
IIIUniversidade Estadual Paulista - Unesp/Assis SP. Possui Doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005) e Pós Doutorado em Psicologia e Estudos de Gênero pela Universidade de Buenos Aires. pereswiliam@gmail.com
IVUniversidade do Estado de Minas Gerais UEMG. Professora Departamento de Psicologia da Educação e Metodologia da Pesquisa da FaE/UEMG. Mestra em Educação pelo PPGE/UFES. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto. catarina.dallapicula@uemg.br
RESUMO
Este artigo busca problematizar os saberes produzidos sobre as corporeidades travestis, sua permanência e pertencimento a espaços educacionais. Uniram-se a esse propósito pesquisadores das áreas de Educação e da Psicologia, engajadxs nas causas e na busca da manutenção dos seus direitos; as travestis terem livre e pleno acesso ao sistema educacional, de saúde e de prazeres, sem que a Psicologia as patologizem. O trajeto metodológico se baseia na revisão bibliográfica e na problematização das corporeidades não binárias, que através de resistências vividas em jogos de verdade sobre os gêneros e as sexualidades heteronormatizadas criam outras possibilidades discursivas para as intervenções psi e pedagógicas no campo educacional. A presença dos corpos vibráteis em travestilidades nos espaços escolares pode ampliar as possibilidades de vida às corporeidades e experiências desviantes nos discursos hegemônicos que determinam quais vidas podem ser vividas e quais não são enlutáveis.
Palavras-chaves: Travestilidades; jogos de verdade; espaços escolares; Psicologia.
ABSTRACT
This article aims at questioning the knowledge produced on transvestites' bodies, their permanency and belongingness within educational spaces. With this purpose, researchers from both psychology and educational fields got together based on their social engagement to the maintenance of the trans-vestites' rights to free and full access to the educational system, health care and pleasures, without suffering any kind of pathologization by the psychology. The methodological path is based on literature review and questioning non-binary bodies thinking possibilities, which create other discourse possibilities for both the psy and educational interventions in the educational field through the resistances lived within regimes of truth on heteronormative gender and sexualities. The presence of vibrating transvestites bodies within school spaces may broaden the life possibilities to the lives and experiences that deviate from the hegemonic discourses that determine which lives may be lived and which are not mourned.
Keywords: Transvestites; Regimes of truth; School Spaces; Psychology
RESUMEN
Este artículo busca problematizar los saberes producidos sobre las corporeidades travestis, su permanencia y pertenencia a espacios educativos. Se unieron a ese propósito investigadores de las áreas de Educación y de la Psicología, involucrados en las causas y en la búsqueda del mantenimiento de sus directos; las travestis tienen libre y pleno acceso al sistema educativo, de salud y de placeres, sin que la Psicología las patologice. El trayecto metodológico se basa en la revisión bibliográfica y en la problematización de las corporeidades no binarias, que a través de resistencias vividas en juegos de verdad sobre los géneros y las sexualidades heteronormatizadas crean otras posibilidades discursivas para las intervenciones psi y pedagógicas en el campo educativo. La presencia de los cuerpos vibrátiles en travestilidades en los espacios escolares puede ampliar las posibilidades de vida a las corporeidades y experiencias desviadas en los discursos hegemónicos que determinan qué vidas pueden ser vividas y cuáles no son enlutables.
Palabras claves: Travestis; juegos de verdad; espacios escolares; Psicología.
RÉSUMÉ
Cet article objective problématiser les connaissances produites sur les corporéités des travestis, leur permanence et leur appartenance dans des espaces éducatifs. Les chercheurs des domaines de l'éducation et de la psychologie, engagés dans les causes et dans la poursuite du maintien de leurs droits, étaient unis à cet égard; les travestis ont accès libre et complet au système éducatif, à la santé et aux plaisirs, sans que la pathologie les psychologologisent. Le parcours méthodologique est basé sur une revue bibliographique et sur la problématisation de corporéités non binaires qui, par des résistances dans des jeux réels sur les genres et les sexualités hétéronormatisés, créent d'autres possibilités discursives d'interventions psi et pédagogiques dans le domaine de l'éducation. La présence de corps vibrants dans les travestissements aux espaces scolaires peut étendre les possibilités de la vie aux expériences corporelles et déviantes dans les discours hégémoniques qui déterminent quelles vies peuvent être vécues et lesquelles ne sont pas mises en deuil.
Mots-clés: Travestilités; jeux de vérité; espaces scolaires; Psychologie.
Apresentação
Este texto busca problematizar as possibilidades e limites das existências de pessoas travestis nos espaços escolares. As relações forjadas nestes locais são atravessadas pelos jogos de poder/saber e prazer em resistências aos cenários de exclusão, discriminação, violências e desrespeito aos direitos básicos das pessoas na contemporaneidade.
Estas ideias surgem no decorrer dos processos de produções científicas, acadêmicas e de vivências das pessoas que estão propondo esses e outros possíveis diálogos. Utilizando releituras de autoras e autores que se debruçam sobre os estudos das corporalidades, neste texto, potencializam, na soma destas mãos, as armadilhas e estratégias das travestis e seus corpos, nas sobrevivências e manutenção pela vida. Atravessadas pelas pesquisas e práticas em andamento, realizadas por cada componente desta tríade, as problematizações elaboradas coadunam com prerrogativas complementares às demandas que estão sendo apresentadas por pessoas travestis nos cotidianos e pelos movimentos sociais.
Pautas coletivas e singulares irradiam-se e marcam necessidades em avançar nas discussões já contempladas sobre práticas educacionais, docentes, psis,1 dentre outras, para que haja garantia de direitos em saúde mental e integral, e nas políticas públicas diversas para todas as pessoas. Em se tratando, especificamente, dos espaços educacionais, desde os anos iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Superior, têm demonstrado fragilidades ao receberem corpos que representam novas configurações de vidas, sexualidades e gêneros, especialmente se dissidentes dos padrões binários universais que sempre estiveram no topo das cadeias de (con)vivência e poder e dos sistemas discursivos que definem o dentro e o fora.
Essas novas nuances de vida borram (partes d)os marcadores de estigmas e de enquadramentos de vidas possíveis (Butler, 2015), que são marcados em corpos cujas possibilidades estéticas, éticas, políticas, sociais e sexuais não correspondem aos padrões esperados pelas normas dominantes heterossexuais, brancas, burguesas, fundamentalistas religiosas e classistas. Neste sentido, ao apresentar as travestis como aquelas que borram os enquadramentos de vidas possíveis nos discursos hegemônicos, agenciam-se as vozes de pessoas que sempre foram marginalizadas (em todos os sentidos) pela garantia de direitos na sociedade brasileira, agregando a estas, problematizações e alguns atravessamentos das ecologias e meio social nas potências das corporalidades.
Potencializamos então, outras possibilidades analíticas do contemporâneo para as questões desses corpos, seus gêneros, suas sexualidades, seus prazeres e práticas sexuais em interfaces com as instituições que desenham as relações humanas como família, religião e escola. Retomamos perspectivas de políticas públicas que ainda não dão conta, efetivamente, de contribuir para o enfrentamento das marginalizações e estigmas, que segregam pessoas e as colocam aquém de estruturas que garantam direitos básicos.
Nesse cenário de potencialização, almejamos territórios que proporcionem os prazeres, desejos e viabilidades de garantias aos corpos que tornem as pessoas travestis felizes, ou ao menos, a emergência de corpos como uma das menores das ecologias, como nos diz Ana Godoy (2008).
Essas questões apresentadas têm intenção de ressaltar novas e variadas indagações para extrapolar as possibilidades já teorizadas sobre o que é ser travesti no Brasil, abrindo outras nuances para as discussões propostas sobre esses corpos e suas corporalidades e produções de sentido ao comporem novos enquadramentos de vida na sociedade.
Utilizamos como conceitos iniciais os diálogos e leituras dos estudos sobre os corpos do antropólogo e sociólogo francês David Le Breton, dialogando com Michel Foucault, Suely Rolnik, entre outras, bem como leituras eleitas por se aproximarem das afirmações que pretendemos problematizar na contemporaneidade.
O contemporâneo, a partir de Giorgio Agamben (2009), define-se como um conceito sócio-temporal, ou seja, "[...] uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo [...]" (2009, p. 59).
Somam-se também a essa escrita as leituras de algumas produções acerca, especificamente, das discussões sobre corpos trans, como em Lohanna Berkins, Josefina Fernándes, Guacira Lopes Louro, Wiliam Peres, Larissa Pelúcio, Adriana Sales, entre outras, enviesadas pelos processos de subjetivação nos momentos e encontros com as vozes travestis dos movimentos sociais organizados deste coletivo.
Essas escolhas estão relacionadas com os posicionamentos políticos, éticos e estéticos adotados ao problematizarmos os regimes de verdades vigentes nas trocas e mediações de poderes nos corpos, nas ciências e áreas dos conhecimentos que segregam e marcam algumas pessoas como não válidas, as deslocando para uma infelicidade mental e corporal excludente, fazendo experimentar no meio acadêmico e social, o que Foucault define como parresiastas.
Esses apontamentos iniciais dão o tom das premissas políticas e estéticas sobre as corporalidades travestis que queremos trazer à tona, ao contrapor tais regimes excludentes, revisitando as produções acerca das sociologias dos corpos e outros textos que disparam definições que vão se aproximando do que defendemos como corporalidades.
Transpondo as binaridades via jogos de verdade
Os processos de normalização pressupõem que, para se fazer o certo, há anteriormente o modo errado. Pelo modo errado de proceder dentro as relações de saber e poder - disciplinarizadas há que se criarem normas de conduta, correção, aprendizagem e cura, para que tenhamos os resultados esperados, e evitemos as anomalias, que por serem, por vezes, imperceptíveis desencadeiam efeitos na produção das verdades ditas científicas. Canguilhem (1990), assim trata a questão:
Em resumo, nem toda anomalia é patológica, mas só a existência de anomalias patológicas é que criou uma ciência especial das anomalias que tende normalmente - pelo fato de ser ciência - a banir, da definição da anomalia, qualquer implicação normativa. Quando se fala em anomalias, não se pensa nas simples variedades que são apenas desvios estatísticos; mas nas deformidades nocivas, ou mesmo incom patíveis com a vida, ao nos referirmos à forma viva ou ao comportamento do ser vivo, não como a um fato estatístico, mas como a um tipo normativo de vida (Canguilhem, 1990, p. 106).
A ontologia binária dessas sanções normalizadoras, mais uma vez fortalece a vida em OU, qual seja, ou somos bons ou maus, ou somos homens ou mulheres, ou somos inteligentes ou inaptos, e assim infinitamente ou somos isso ou aquilo. Fortalecendo a produção de saberes binários que validam e transformam as sanções em leis, o que era uma das possibilidades de transitar nos espaços relacionais disciplinares, do campo do viver, passa a se tornar as leis do COMO se deve viver nos espaços sociais e privados a partir do estabelecimento de uma possibilidade como norma e do que desvia como anormal. No âmbito escolar foram produzidas diversas tecnologias para impor correções aos corpos desviantes, entendendo que
O que define o indivíduo a ser corrigido, portanto, é que ele é incorrigível. (...). De modo que vocês vêem desenhar-se em torno desse indivíduo a ser corrigido a espécie de jogo entre a incorrigibilidade e a corrigibilidade, em que vamos entrar mais tarde, no século XIX, o indivíduo anormal, precisamente. O eixo da corrigibilidade incorrigível vai servir de suporte a todas as instituições específicas para anormais que vão se desenvolver no século XIX. (Foucault, 2002, p. 72-73)
Essas intervenções, validadas pelos jogos de verdade estabelecidos nos saberes psi e pedagógicos, que interferem nos cotidianos escolares, definem que corpos podem transitar nesses espaços e como. Nos parece pouco explorada a ideia de infectar as problematizações acerca desses corpos por meio do uso dos instrumentos de mensuração e de investigação como os testes psicológicos, as entrevistas - anamneses, o sentido confessional do trabalho clínico tradicional psi na escola e com corpos travestis. Pensamos como possível uma nova atuação e produção de conhecimentos nas nossas academias, pensada a partir da pedagogia dos monstros, e seus efeitos nos territórios de subjetivação.
Deste prisma, a formação profissional daqueles e daquelas que atuam no espaço escolar em contato com vidas trans, estaria voltada para a atenção, problematização e implicação política nas estratégias de empoderamento e valoração das diferenças. Por meio de intervenções voltadas a territórios de singularização, os objetivos tradicionais da Psicologia enquanto ciência e profissão (apreender, mensurar e adequar - resumindo - normalizar as vidas) seriam ressignificados em diálogo com estratégias pedagógicas.
Ao problematizar a pedagogia dos monstros, Tomás Tadeu (2000) explicita a complexidade da manutenção das teorias universalizantes e que unificam as formas de entendimento e atuação da produção de subjetividades e sua normatização por meio da produção de um único tipo de sujeito normalizado.
Podemos problematizar, dessa forma, que nesse sistema de produção da norma, a produção da dita ciência psicológica é justamente a concepção de que a base nascente das intervenções e instrumentos da Psicologia tradicional é pautada nas hierarquias, nas sanções normalizadoras e nos exames mensuradores, permitindo a ela nomear-se neutra, e manter conexões com doutrinas dogmáticas incoerentes com os preceitos éticos que regem a profissão e as estéticas das vidas possíveis, agenciando-se numa Psicologia apolítica.
Sendo assim, interessam-nos, os saberes psi que se agenciam enquanto resistência, enquanto coragem, enquanto estética e estilística de viver e fazer viver. As narrativas de vida dos autores desse artigo partem de um ponto em comum de visibilidade de vidas abjetas através de nossas práticas psi e educacionais, e estas dão necessariamente ênfase aos marcadores psicossociais que além de sofrimento também contornam vidas alegres, vidas potentes.
As nossas experiências profissionais se misturam a nossos próprios modos de vida e de viver, caracterizando o viés político de atuações psi e educacionais, e isso no campo das Psicologias e da Educação da tradição nos parece claramente resistência dentro da ciência.
Fazemos de nosso trabalho de pesquisadores e intelectuais a manifestação de nossas próprias vidas, seus jardins, suas heterotopias, dentro dos mausoléus da velha e cansada Psicologia e Pedagogia de manual. Não falamos apenas de autores que nos representam, falamos de nossas próprias ações militantes, de vida; Gilles Deleuze em conversa com Foucault (1979), assim analisa essas resistências:
Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja por um partido ou um sindicato que arrogaria o direito de ser consciência deles. Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe mais representação, só existe ação: ação da teoria, ação de prática em relações de revezamento ou em rede (Deleuze, 1979, p. 70).
Para a produção de saberes psi e pedagógicos, para além da sujeição, diagnóstico e controle, teríamos que dar vozes aos objetos do poder, quais sejam aqueles e aquelas de vidas infames, de vidas cínicas, estilistas de vidas outras, de vidas trans, e corajosxs em proferir outras verdades dentro do sagrado saber de uma Psicologia e da Pedagogia.
Pensando nossas experiências cotidianas na busca de outros possíveis para os corpos e vidas destinados a lugares de destaque nos manuais das psicopatologias e fora dos espaços escolares, e necessariamente vidas em sofrimento psicológico estrutural, a parresia como estratégia nas academias, pareceu-nos um interessante dispositivo para a criação de heterotopias que rompam com os jogos de verdades estabelecidos e consolidados, pois:
É a atitude parresiástica [...] que perpetuamente e sempre traz, a propósito da questão do poder, a da sua relação com a verdade e com o saber, por um lado, e com a diferenciação ética, por outro; é, enfim, a que, a propósito do sujeito moral, traz sem cessar a questão do discurso verdadeiro em que esse sujeito moral se constitui e das relações de poder em que esse sujeito se forma. São esses o discurso e a atitude parresiástica em filosofia: é o discurso ao mesmo tempo da irredutibilidade da verdade, do poder e do éthos, e ao mesmo tempo o discurso da sua necessária rela ção, da impossibilidade onde estamos de pensar a verdade (alétheia), o poder (politeía) e o éthos sem relação essencial, fundamental uns com os outros (Foucault, 2011, p. 61).
Dizer outras verdades dentro do jogo já enrijecido nos espaços escolares e na Psicologia nos parece tanto uma possibilidade de desestabilização dos saberes instituídos e identificadores bastante interessantes, quanto perigosa, pois o jogo de saber e poder continua a emaranhar outras redes de fazeres da Psicologia que podem cair na falácia de se tornarem uma verdade tão imperativa, tão massacrante e tão estável quanto as que nós combatemos.
Para que haja parresia, é preciso assumir o lugar do incorrigível em seus campos de produção de saberes, submetendo-se às intervenções consolidadas e a intervenções a serem criadas com o objetivo de conformar também as produções que compõem os jogos de verdade sobre os corpos incorrigíveis e mantém o status quo das hierarquias estabelecidas no regime de verdade do território da Universidade/academia. A partir de modos de operar biopolíticos, os jogos de verdade possíveis nesse território são estabelecidos, criar outros possíveis é uma forma de resistir.
Intervenções tradicionais de correção que visam colocar as produções monstruosas e anormais dentro das normas ou invisibilizá-las (impedindo as parresias de novos modos de fazer ciência/psi/pedagogia) são facilmente identificadas quando nossos projetos são reprovados nas comissões e colegiados superiores, quando nossos artigos são recusados em nosso país por revistas com os tais Qualis A por tratarem de temas não reconhecidos pelos pares como relevantes para a ciência psi, quando só nos ouvem em congressos temáticos, quando ao defendermos nossas teses, somos esquecidxs nas prateleiras das bibliotecas, quando só falamos a alunxs que nos escolhem em disciplinas optativas e poucas vagas em estágios. Se não houver parresia, não haverá resistências e nem existências potentes, o que, por sua vez, limita a Psicologia e a escola a esses lugares da normatização e adequação dos corpos para a produção capitalista.
Ao nos colocarmos neste lugar político, corremos o risco de arranharmos nossa relação com a Psicologia e com a Educação. Quem nos ler há que ter coragem também em aceitar como verdade que corpos dados como abjetos são potentes, são agenciadores de vidas e que a Psicologia corajosa e uma Pedagogia Mostruosa garantem a esses corpos e vidas acesso ao direito à singularidade, aos prazeres e ao direito a ter direitos.
Consideramos que para exercer direitos de acesso à educação normatizadora é preciso ocupar lugares sociais pré-estabelecidos, ou seja, "escolher entre as possibilidades de vida à nós oferecidas - alternativas circunscritas pelo o que se considera o possível numa sociedade, num espaço-tempo histórico." (Godoy, 2008, p. 77). Partindo dessa premissa, ampliar os discursos possíveis pela parresia de novos modos de fazer pesquisa, do fazer psi e do fazer pedagógico (singularizados intencionalmente) é também ampliar as possibilidades de existência e vidas cerceadas pelas intervenções consolidadas nesses campos.
Sobre corpos e vidas travestis e sua circulação na escola
Os contornos biopolíticos rompidos pelas corporalidades travestis possibilitam corpos que vibram nos mais variados nomadismos, em diferentes processos de subjetivação, que exigem novas maneiras de se fazer ciência e produzir conhecimentos. As dissidências das corporalidades, bem como de gêneros e sexuais dessas e nessas pessoas (não reducionistas) comportam múltiplas significações, modos ousados de agregar as necessidades e demandas singulares na sua íntegra. Os conceitos sobre estes corpos vão somando-se, em uma busca por ferramentas suficientes para ampliarmos os códigos de inteligibilidades sobre tais, porque "a história do corpo no interior do mundo ocidental escreve-se desde o Renascimento como um empreendimento sempre crescente no espelho tecnocientífico que o distinguiu do homem/mulher2 e o reduziu a uma versão insólita do mecanismo." (Le Breton, 2013, p. 351).
Conceitos, aqui sendo ferramentas, sistemas de pensamentos que podem definir os posicionamentos através dos discursos produzidos em dados jogos de verdades, enquanto dispositivos de manutenção, de captura dos processos desejantes e fugas das marcações que nos marginalizam também (e principalmente) são pensados como conceitos em defesa da vida. Então, os fascismos e microfascismos, que estão nos discursos (re)produzidos cotidianamente, são implodidos diante da urgência para novos saberes conectados às realidades dos corpos vibráteis que desejam e necessitam viver. A Psicologia se soma para dinamizar os engendramentos das corporalidades possíveis e que cabem de acordo com as singularidades e a pedagogia para criar novo campos possíveis nos saberes e espaços educacionais tanto para os discursos, quanto para os corpos travestis.
Estas corporalidades estão aqui pensadas sempre em relações com as outras corporalidades, contrastadas "de forma irrestrita a influência dos pertencimentos culturais e sociais na elaboração da relação com o corpo", mas não desconhecendo as possíveis adaptabilidades que são flutuantes, escapando das capturas e dos modelos estruturantes, "ao contrário, o corpo é objeto de uma construção social e cultural." (Le Breton, 2006, p. 65). Entretanto, os marcadores etapistas, em perspectivas desenvolvimentistas da Psicologia prescritiva, buscam sempre marcar uma lógica nos corpos, que marginaliza e limita as possibilidades e configurações, os reduzindo em binarismos biologizantes heterossexuais. Todo diagnóstico é violento, porque automaticamente destitui a produção das novas possibilidades de existir das variadas corporalidades e suas potências nas relações, recusando suas singulares ecologias.
Os dispositivos das masculinidades, que se perpetuaram na história das humanidades, até a contemporaneidade, perdem a validade perante a configuração da sociedade ocidental e brasileira, dando vazão aos corpos que escapam, transbordam destas perpetuações e demandam significações mais democráticas para estas produções conceituais, ou seja, estão em constante vibração.
São corporalidades vibráteis por serem constituídas pelo invisível e seus desejos marcados pelos afetos dos encontros. São muitos processos de subjetivação que atravessam essas constituições corporais e estéticas travestis que estão, para além dos territórios domináveis das materialidades, no plano dos desejos, mas irradiando novas nuances, ou mais democráticas nuances das variantes das estilísticas das existências. Para Suely Rolnik, "o corpo vibrátil não é sensível a tal dado. O que importa é que esteja sendo possível fazer passar os afetos." (Rolnik, 2014, p. 47).
São novas estéticas e engendramentos nas corporalidades que surgem e vão ganhando espaços diante de seus processos de mutação e adequação de acordo com seus desejos, contrapondo os sofrimentos que podem atravessar tais corporalidades. Os enquadramentos de vidas possíveis delimitados pelos jogos de verdade dos campos psi e pedagógicos que atuam sobre os campos educacionais irão implicar as possibilidades de existência desses corpos nesses espaços, considerando os limites afirmados por intervenções biopolíticas que cerceiam as possibilidades de vida na escola: quem pode estudar e o que sofre quem não pode e tenta romper com esse sistema.
As problemáticas estabelecidas nos efeitos das relações de poder/resistência são negociadas socialmente, enquanto as novas corporalidades, ou outras corporalidades, marginais, únicas, contestam a rigidez de figuração humana que não opera mais. Tudo é poder. Tudo é política. Por isso a biopolítica opera em prol da manutenção do status quo elitista, branco, heterossexual, burguês mantendo links que compõem e desenham a vida versus os desejos.
Desejos, aqui, significados em premissas "Deleuzianas", cujas defesas se dão pela refuta aos planos de procriação, aos elementos e limites da terra, os corpos como objetos e enquanto falta interior. Prefere-se, deste modo, marcar as articulações destes dispositivos todos, ampliando-se para garantia de intensificar todas as substâncias que compõem as linhas humanas, pois o desejo "se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que virá torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo." (Deleuze; Guatarri, 2010, p.15).
Desta maneira, as corporalidades travestis são exemplos de resistências cotidianas no espaço escolar, de desejos internos extrapolados em montagens corporais externas, porque essas pessoas fazem das suas corporalidades, de seus afetos e necessidades, adequando esses sentimentos todos aos projetos de vida que querem, de maneira muito firme, com paixão, tesão.
Nos cotidianos escolares, esses corpos travestis precisam enfrentar todo o tempo situações estabelecidas pelo biopoder que se materializa em formulários com campos de sexo/gênero e/ou sem campos para o nome social, divisão binária dos espaços, dos tempos escolares, e demais macro e micro violências que estabelecem uma
(...) relação de forças definindo as redes onde [seus corpos] se inscrevem e [que] delimitam as circunstâncias de que podem aproveitar-se. [...] Trata-se de combates ou de jogos entre o forte e o fraco, e das "ações" que o fraco pode empreender. (Certeau, 2011, p. 91)
Os elementos que escapam nas corporalidades travestis, apontam muitas crises de paradigmas das Psicologias e das ciências pedagógicas na contemporaneidade, estabelecendo novos olhares possíveis para contribuir com as vidas das pessoas, oferecendo posturas que não individualizam as humanidades, em sentidos cristalizados, fixos, que devem ressignificar as pactuações, para além das patologias e prescrições. Essa emergência de novas produções possíveis também depende de uma briga de forças e de como nós, profissionais dos campos psi e pedagógico escolhemos atuar: se criando novos instrumentos de cerceamento ou ampliando as possibilidades de vida para permitir o acesso e permanência de quem historicamente foi produzido como não pertencente ao contexto escolar.
Dessa feita, significar as corporalidades como produções sociais pode ser uma saída possível para marcar os corpos trans como inteligíveis, viáveis e passíveis de potências de vidas, pois "o corpo funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar, em relação aos outros, a soberania das pessoas, ou mesmo, em nossos acréscimos, na garantia da manutenção e sobrevivência das travestis na sociedade." (Le Breton, 2006, p. 30).
Estas emergências das estilísticas das existências, que vibram aos acontecimentos dos corpos nos cotidianos, dos desejos e dos afetos (as resistências), são nuances que atravessam as muitas linhas que subjetivam as pessoas e podem potencializar ou reduzir algumas estratégias de luta pela vida.
Nos jogos de verdade constituídos em seus corpos, compõem, em perspectivas dos elementos femininos, sua estética e posicionamentos sociais, somando práticas dissidentes de sexualidades, que transitam nos mais variados territórios, entre o que se significa para os gêneros masculinos e femininos, podem ter êxitos ou podem sofrer por estas escolhas.
Em muitas situações, em negociação com os padrões heterossexistas hegemônicos, pode-se desejar repetir as estéticas femininas e suas formas padronizadas, nas mais intensas proporções do que se deseja, marcando os gêneros nômades, "aspira a ser bello y deberá, por tanto, ser arrancado del reino de la naturaleza y conducido al de la cultura; proceso que en la vida travesti va acompanãdo de un gran sufrimiento físico." (Fernándes, 2004, p. 173).
São corpos ininteligíveis nos discursos hegemônicos psi e pedagógicos, pois somente têm legitimidade para quem os têm, quem os produz e quem os deseja. São práticas e posicionamentos nas resistências parresiastas, por estas escolhas vibráteis, que refutam os esquemas aprisionadores reducionistas, barram as naturalizações das corporalidades prontas, acabadas, que têm possibilidades de resistências ao poder hegemônico, porém que rejeitam, na contemporaneidade, os processos de segregação das variadas possibilidades de manifestar, construir, moldar e se reconfigurar em todo instante.
Os deslocamentos, os novos encontros, o caos, são questões sine qua non para que essas novas configurações de pessoas possam circular pela vida e se relacionar com outras potencias de feminilidades e de masculinidades num mesmo corpo, num mesmo gênero, sempre em contínuos processos, atravessados pelos eventos políticos, sociais, culturais e cotidianos de maneira a garantirem resultados significativos e agregadores desses encontros.
Os olhares das outras pessoas sobre essas corporalidades travestis também acabam por vibrar, pois são atravessadas pelo que poderia ser inteligível (discursivamente produzido como única verdade possível) para retomarem, seja na repulsa, seja na curiosidade, seus posicionamentos diante ao que escapa das amarras dos corpos formais, que sempre foram reproduzidos constantemente pelas instituições que detiveram o poder nas relações sociais, porque "os corpos são datados, ganham um valor que é sempre transitório e circunstancial." (Louro, 2004, p. 89).
E, ao transitarem entre si, sejam corpos capturados pelos essencialismos, sejam corporalidades vibráteis travestis, que escapam dos aspectos universais, as afetações acontecem e são recíprocas, pois as novas estéticas e suas materialidades garantem suas legitimidades, rompendo às regulações que são impostas por certas normas que precisam, a todo tempo, serem refeitas, repensadas e retomadas, porque "essas normas, como quaisquer outras, são invenções sociais" (Louro, 2004, p. 89). Ou, ainda, entre as corporalidades que afetam e são afetadas, viceversa, ao visitar as leituras sobre Spino-za em Gilles Deleuze,
Entre a subordinada e a principal se evidencia uma falha imensa, um intervalo, pois os afectos contrários à nossa natureza nos impedem antes de tudo de formar noções comuns, já que eles dependem de corpos que desconvêm com o nosso; ao contrário, cada vez que um corpo convém com o nosso, e aumenta nossa potência (alegria), uma noção comum aos dois corpos pode ser formada, de onde decorrerão uma ordem e um encadeamento ativos das afecções (Deleuze, 1997, p. 169).
As emancipações políticas e posicionamentos pelas resistências às corporalidades estanques articulam diálogos entre as pessoas que vão se reconhecendo enquanto pares, ou possíveis coletivos, que vão apontando demandas conjuntas, que se cruzam na garantia por suas vidas, mesmo cada corpo em sua singularidade. A formação de novas coletividades promove, nos territórios educacionais, dentre outros espaços, a emergência de discursos dissidentes que abarcam possibilidades de vidas e existência outras, criando acesso para corpos antes excluídos.
São discursos que vão sendo produzidos em contraponto aos posicionamentos científicos sobre os estudos das corporalidades, que contrariam as radicalidades que tentaram dominar os corpos, como as perspectivas médicas, biológicas e essencialistas. É reafirmar corpos que se posicionam, se arquitetam e se materializam nas transitoriedades e que vão contrapondo os discursos que "censuram o corpo por sua falta de domínio sobre o mundo e por sua vulnerabilidade, pela disparidade clara demais com uma vontade de dominação o tempo todo desmentida pela condição eminentemente precá-ria do homem/mulher." (Le Breton, 2013, p. 16).
As singularidades biologizantes iniciais, vigiadas, marcadas pelos discursos de biopoder, são ampliadas, no sentido de viabilizar os projetos de vidas que escapam a estes padrões binários, que estabelecem verdades absolutas, que não agregam outras possibilidades de se apresentar enquanto feminilidades e masculinidades em pessoas que se apresentam num gênero social feminino.
Pensar em novos modos de fazer pedagógico, psi e de fazer pesquisa, como, por exemplo, cartografar as corporalidades das pessoas que vivem as travestilidades é, antes de tudo, pensar em corpos que transbordam, transitam, vibram, afetam e são afetados. Corpos em processo que vão, inclusive, em aspectos biológicos e físicos, sendo montados, adequando-se em processualidades que não preconizam um fim ou uma estilística fechada e fixa. É a partir de um corpo inicial que se podem disparar apropriações de muitos desejos e necessidades nessas vivências transgressoras, precárias, subalternas e resistentes, ou seja, ter um corpo é ter um mundo, ou mesmo, estar num corpo é estar num mundo e viceversa. O mundo está em nós travestis também.
As negociações que vão atravessando essas ampliações das existências, para garantir os direitos básicos dessas pessoas, muitas vezes alocadas em grupos reconhecidos como marginais, têm aspectos políticos e de resistências. Essas novas corporalidades determinam de onde se fala qual a proporção de poder que se tem para a manutenção, avanços e ampliações sobre as produções científicas comprometidas com estas prerrogativas.
Estas novas geometrias, com seus processos singulares de subjetivação, vão sendo atravessadas pelas imagéticas de elementos masculinos e femininos, marcadas pelos discursos que necessitam de uma nudez filosófica, no sentido canônico dos conhecimentos, que tomam as vibrações sensitivas dos corpos para impressões sobre essas novas produções de corporalidades. São intenções de especular, jogando com os conceitos que podem apresentar (garantir) as pessoas em níveis sociais, políticos e culturais, sabendo que nunca darão conta de todos os graus e intensidades das potências das vidas e dos desejos dessas humanidades subversivas.
Ao nos posicionarmos por corporalidades vibráteis, recusamos restrições produzidas para as estéticas femininas ou masculinas, ampliando-as para femininas e masculinas, na tentativa de garantir esses novos desenhos, pois os poderes discursivos históricos da humanidade falocentrica, perdem sua totalizante verdade diante das pessoas que não se contemplam ou se reconhecem nas limitações destas restrições. As ecologias estanques, universais, tornam-se fracas "quando só pode[m] ser pensada[s] na relação entre conservação e estado terminal do mundo" (Godoy, 2008, p. 273), e as travestis, ao ousarem se apresentar com corporalidades que transitam entre estes elementos, são exemplos mais que plausíveis para a ampliação, inclusive em níveis de produção dos conhecimentos. Logo,
(...) problematizar la materia de los cuerpos puede implicar una pérdida inicial de certeza epistemológica, pero una pérdida de certeza no es lo mismo que el nihilismo político. Por el contrario, esa pérdida bien puede indicar un cambio significativo y prometedor en el pensamiento político. Esta deslocalización de la materia pue de entenderse como una ma\nera de abrir nuevas posibilidades, de hacer que los cuerpos importen de otro modo (Butler, 2008, p. 57)
Estes deslocamentos de legitimidades das produções de conhecimentos, sobre os corpos travestis, disparam que os processos, nessas negociações políticas, podem não acontecer de maneira tran-quila (ou quase dolorosa), e que podem, também, ser experiências exitosas, se houver disponibilidade de ressignificações dos posicionamentos das ciências, dos equipamentos educacionais e de quem os produz, no desejo de despir os modelos binários das existências, indicando novas conceituações do que é ser, tornar-se e estar com corporalidades transitórias, que ampliam e reconfiguram as múltiplas maneiras de se apresentar esteticamente, com premissas femininas, mas com pênis, pelos e quaisquer outros atributos que, a priori, fazem parte do universo masculino.
Esses novos corpos, em trânsito, ampliados das potencias femininas e masculinas, delineiam contradições que se tornam prazerosas e políticas, por provocarem em pessoas com corpos e com órgãos marcados em premissas binárias, circuitos que, inicialmente, buscam apresentar essas figurações marcadas pelas violências, dores, angústias, porém, via parresias e ampliações das estratégias de lutas pela vida, marcam e dão holofotes às experimentações felizes de vidas pelas travestis, que configuram a sociedade com seus corpos da maneira como querem e se sentem felizes, de maneira performática.
Performances de gêneros, para Preciado (2009), atravessadas por inscrições poéticas e políticas múltiplas contestatórias, são desdobramentos das condições de resistências dos aprisionamentos das expressões de vida. São performáticos os gêneros, porque são resistentes e se posicionam politicamente frente aos poderes que não permitem os trânsitos e a fluidez, pois,
Más allá de la resignificación o de la resistencia a la normalización, las políticas performativas van a convertirse en un campo de experimentación, en el lugar de producción de nuevas subjetividades y por lo tanto, en una verdadera alternativa a las formas tradicionales de hacer política (Preciado, 2014, p. 13).
Estes novos circuitos, que marcam as contemporaneidades e provocam novos conhecimentos sobre as corporalidades e as identidades políticas (coletivas), disparam novas simetrias e estratégias discursivas ecléticas, que fogem das perspectivas feministas ortodoxas, não as desqualificando, mas utilizando-as para problematizar e garantir, com qualidade de vida, essas travestilidades, com seus corpos, e conhecimentos produzidos sobre e, para além. São processos de ressonância das vozes dessas pessoas, sobre as variadas formas de formação processual contínua, sobre novas configurações estéticas, éticas e políticas de nossos fazeres nas intervenções tradicionais sobre os corpos e vidas via abordagens psi e pedagógicas.
Neste sentido, estas expressões subjetivas, recusam politicamente os domínios sobre as corporalidades alheias, porque, "refém de seu corpo aparelhado, o indivíduo é privado de qualquer decisão sobre sua existência, ninguém sabe como nomeá-lo e sua própria morte torna-se objeto de debates infinitos." (Le Breton, 2006, p. 59).
Por fim, os engendramentos positivos dos discursos e as negociações que atravessam as constituições dialógicas nas produções das verdades, sobre as sociedades que se pautam pela democracia, pela manutenção de um país de fato republicano, podem ser instrumentos que operam as inteligibilidades dos corpos, visto que, "el travestismo es subversivo por cuanto se refleja em la estrutura imitativa mediante la cual se produce el género hegemónico y por cuanto desafia la pretensión a la naturalidade y originalidade de la heterosexualidad" (Butler, 2008, p. 185).
Considerações Finais
Os novos componentes, que vão enredando as corporalidades travestis, jogam (brincam) com conceitos que dialogam de acordo com cada possibilidade das existências conjecturando, de modo muito ampliado, a refuta dos reducionismos de gêneros e abarcando lutas pelas sexualidades que não estão disponíveis aos modelos universais, porque permitem hibridismos e nomadismos nos corpos e sexualidades enquanto desejos de vidas válidas.
Não há como se pensar nas produções contemporâneas nas psicologias educacionais, comprometidas com todas as nuances e estilísticas das existências, sem ter os estudos sobre os corpos como referência importante para as questões que se quer problematizar, suas inscrições e experimentações singulares; e as negociações que tecem os engendramentos dos grupos nas relações que incluem ou excluem certos modos de vida e de corporalidades. Tais referências e multiplicidades, nos discursos, atravessam-nas, em variados escopos e múltiplas possibilidades, mas que não atingem graus que possam de fato ofertar todas as variantes dos processos de subjetivações das travestis, pois,
O corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força não são mais as variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos. O homem/mulher de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser uma coragem ou uma honra (Foucault, 2011, p. 158).
São discursos produzidos e validados em jogos de verdade que controlam e são controlados em práticas de biopoder sobre as corporalidades e, desta feita, ao romperem com certos posicionamentos nestes discursos que as marginalizam e estigmatizam, as travestis fazem problematizar as expressões de gêneros, os desejos, e ampliam o que Foucault já explorou sobre os sistemas de exclusão destes discursos.
Os discursos hegemônicos naturalizados operam no campo educacional como ruídos que antecedem as escutas, olhares e sensações capturados, limitando as pessoas nas muitas produções de subjetividades. São linhas discursivas que, carregadas de existencialismos, não autorizam dizer sobre essas pessoas, as travestis, porém fomentam, pelas resistências, contradiscursos que abalam as estruturas das coisas ditas até então sobre essas vibráteis corporalidades.
Resistências que desnivelam, nos deslocamentos discursivos, as formações humanas e as transformam em novas formatações culturais que ampliam o leque de possibilidades, mesmo significando esses deslocamentos como não estáveis, nem constantes, nem absolutos. Ao invés disso, são outras possibilidades que não são verdades únicas, mas discursos que agreguem e não somente excluam o que foi dito sobre o que é apresentar corporalidades travestis e quais são os limites para serem reconhecidas como tais.
E, é já no próprio discurso, que nomeia essas pessoas, nomes que não mais, geralmente, são os que foram registrados, marcados, pelas suas famílias já após o parto, ou mesmo antes dele, que são reduzidos nos disciplinamentos das linguagens e das produções dos conhecimentos. E, para Foucault, "no interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber." (Foucault, 1979, p. 33).
São saberes registrados pelos atos discursivos monitorados, cotidianamente, nas histórias das relações. São quase policiados, vigiados, para Foucault, nos limites das regras estabelecidas pelos contratos sócio-culturais e políticos na contemporaneidade. Dessa maneira, novas corporalidades e novas configurações dos gêneros, das práticas sexuais e das estéticas corporais que borram os binarismos, ou mesmo, as nuances apenas masculinas ou femininas não cabem nas práticas interventoras tradicionais, logo, não cabem na escola que não se pense para corpos e vidas externos a esses discursos, que não se pense para as travestis.
Aos discursos que escapam destes determinismos desqualificados, sobram os estigmas que ferem os contratos das proibições. As instituições poderosas nestas sociedades, como a escola (academia), por exemplo, utilizam-se destas estigmatizações discursivas para marcarem seus espaços e instrumentalizam certas apropriações políticas dos discursos para manutenção canônica dos corpos biologizados universais. Para Foucault, "todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, como os saberes e os poderes que eles trazem consigo." (Foucault, 1984, p. 44).
Os processos desejantes de fluidez das travestilidades batalham, cotidianamente, para sobreviver às tentativas de higienização dos corpos e das sexualidades. E, ao disparar novas estéticas de gêneros políticos, sociais e culturais, clamam novos diálogos e produções de conhecimentos que contemplem essas pessoas, pois não há mais como escapar destas discussões e novos discursos são necessários. Novos discursos irão irradiar modelos de sociedade que agreguem estas pessoas de maneira positivada e sempre inquietarão outras emergências para garantia das equidades de direitos para vida.
Os discursos imperativos, de ordem disciplinar, mesmo nos processos de formação escolar, nos atrevemos afirmar que, com fortes poderes de policiamentos, deslocam-se nas relações de resistências, capturam as emergentes corporalidades, usando-se de procedimentos verbais para que os discursos sejam bem recebidos, reconhecidos, como padrões para estas sociedades. E, corroborando com Foucault,
De sorte que o tênue deslocamento que se propõe praticar na história das idéias e que consiste em tratar, não das representações que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como séries regulares e distintas de acontecimentos, este tênue deslocamento, temo reconhecer nele como que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade (Foucault, 2015, p. 59).
Neste sentido, as produções dos conhecimentos escolares, tomando as atualidades brasileiras, são atravessadas pelos discursos dominadores que negam as processualidades fluídas dos corpos, dos sexos, dos gêneros e alocam as travestilidades sempre vigiadas pelas normas aceitáveis. Se os discursos produzidos por certas travestis estão de acordo com feminilidades universais, elas até podem circular em determinados espaços, tempos e linguagens, desde que se coloquem em seus devidos lugares. Quando se apresentam rompendo com esses discursos não mais são aceitas como inteligíveis e suas corporalidades, colocadas enquanto marginais, são as parresiastas em risco de morrer.
Os enquadramentos de vidas possíveis no campo educacional, servem então para determinar o que é vida, quais vidas são vivíveis, quais são dignas de serem enlutadas e, por consequência, as vidas que podem ser descartadas por não serem vidas. A produção de corpos que não se enquadram nos discursos do reconhecível como vida vivível no ambiente educacional, as corporalidades travestis, institui instrumentos de correção e exclusão dos incorrigíveis, como argumentamos, o que se materializa em possibilidade e ausência de possíveis nos campos psi e pedagógico para garantir acesso e permanência a pessoas travestis.
A regulação dos corpos, a interdição de certas expressões de gêneros e práticas sexuais estereotipadas são dominações sutis que atravessam as relações humanas, institucionais e nas produções dos conhecimentos que se fundam nas vigílias dos padrões dominantes dos modos certos de pensar, de agir, de produzir corporalidades e estéticas de vida. São ecologias que demandam refutar debates sobre quem veio antes ou depois nesta contemporaneidade, mas condições em ecologias que potencializem os corpos, que redimensionam, que tornam-se, que ressignificam, que são resilientes, enquanto "ecologias menores." (Godoy, 2008, p. 302).
Os discursos institucionais podem interditar algumas pessoas, alguns grupos e algumas estilísticas das existências, porque são ferramentas que articulam e desarticulam certas sujeitas, como as travestis, tirando delas validades políticas e éticas para as corporalidades e são brutalmente excluídas de toda relação discursiva. Exemplo de discursos imprudentes de algumas instituições, as escolas, ao trazer para os cenários das produções dos conhecimentos sobre expressões de gêneros, apresentam higienizações binárias e biologizantes que sempre reproduzem corpos doentes, genitálias sujas e configurações estéticas marginalizadas.
Neste sentido, os discursos imperativos negam qualquer possibilidade de desejos que escapam das amarradas interditas e todxs que experienciam sexualidades emergentes podem sofrer, angustiar-se, eliminarem-se, mesmo antes de serem banidas das relações respeitosas da vida. As práticas discursivas são potentes armas que buscam a domesticação destas sujeitas, que transbordam aos essencialismos, mas que apresentarão, cada vez, em maior escala, resistências a estes controles e engendram armadilhas, artimanhas, estratégias e táticas para se fazerem circular de maneira significativa nos novos modelos psicossociais das vidas.
Os sistemas discursivos de exclusão tendem a perder forças quando deparados às experimentações exitosas dos novos modelos e modos de pensar e produzir conhecimentos e alargam-se em outros sistemas, nem melhor nem pior, mas com outros elementos que instituem lógicas não mais marginalizantes, desviantes, pecaminosas e patologizantes.
Expressões humanas que não coincidem mais com os gêneros heteronormativos, machistas, sexistas, xenófobas e racistas podem ser reconhecidas com equidade e redesenhar os poderes dos saberes e da razão nas novas ordens dos discursos. Outras vontades de verdades são expressas e as travestilidades produzem discursos válidos que ecoam vozes até então excluídas, violentadas, mas que a cada dia tomam corpo, nos corpos, nas negociações das relações humanas e precisam ocupar espaços nos discursos psi e pedagógicos, especialmente nos campos de pesquisa, para garantir também espaços para seus corpos nas escolas.
Referências
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Submetido em: 30/05/2017
Aceito em: 02/09/2018
1 Termo comumente utilizado para referir-se aos profissionais e práticas das Psicologias.