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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo May/Aug. 2019

 

ARTIGOS

 

A educação ocupada: um ensaio psicopolítico sobre as ocupações secundaristas de São Paulo

 

The occupied education: a psychopolitical essay on the occupations of secondary schools in São Paulo

 

La educación ocupada: un ensayo psicopolítico acerca de las ocupaciones de secundaria en el estado de São Paulo

 

L'éducation occupée: un essai psychopolitique sur les occupations des lycées à São Paulo

 

 

Nicole Nöthen de Oliveira

Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP); nicole.nothen@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente ensaio busca oferecer uma reflexão a respeito do movimento secundarista de ocupações das escolas estaduais de São Paulo, a partir da perspectiva da Psicologia Política. Considerando a característica fortemente interdisciplinar desse campo do conhecimento, serão trazidos para a discussão autores provindos de diversas áreas que possam contribuir para uma análise psicopolítica do movimento em questão, lançando luz sobre os temas que dali emergiram, tais como: as relações entre democracia e educação, entre poder e resistência e entre movimentos sociais e políticas públicas. A análise aponta, a nosso ver, para a importância da participação política e para a necessidade de um ambiente escolar aberto a processos democráticos, com o fomento da consciência política e do exercício da cidadania, com vistas à formação crítico-reflexiva dos estudantes quanto à sociedade em que vivem, tal como visto nas ocupações.

Palavras-chave: Democracia; Educação; Relações Poder - Resistência; Movimentos Sociais; Políticas Públicas.


ABSTRACT

This essay seeks to offer a reflection on the secondary school movement of occupations of state schools in São Paulo, from the perspective of Political Psychology. Considering the strongly interdisciplinary feature of this field of knowledge, we will bring to discussion authors of several areas that can contribute to a psycho-political analysis of the movement in question, shedding light on the issues that there have emerged, such as the relationship between democracy and education, between power and resistance and between social movements andpublic policies. The analysis points out, in our view, to the importance of reflection on the relationship between individual and state, political participation and the need for a school environment open to democratic processes, with the development of political consciousness and citizenship, with the aim of critical-reflexive education of students about the society in which they live in, as seen in occupations.

Key-words: Democracy; Education; Power-Resistence Relationships; Social Movements; Public Policies.


RESUMEN

Este ensayo pretende ofrecer una reflexión sobre el movimiento secundarista de ocupación de las escuelas del estado de Sao Paulo, desde la perspectiva de la Psicologia Política. Teniendo en cuenta la característica fuertemente interdisciplinar de este campo del conocimiento, recurriremos a autores de diversos campos, que pueden contribuir a un análisis psico-político del movimiento en cuestión, arrojando luz acerca de los problemas que han surgido, como la relación entre la democracia y la educación, entre el poder y la resistencia y entre los movimientos sociales y las políticas públicas. El análisis senala la importancia de la participación política y la necesidad de un entorno escolar abierto a los procesos democráticos, fomentando la conciencia política y la ciudadanía, con vistas a la formación crítico-reflexiva de los estudiantes a respecto de la sociedad en la que viven y sobre como se ven en las ocupaciones.

Palabras clave: Democracia; Educación; Relaciones Poder-Resistencia; Movimentos Sociales; Políticas Públicas.


RÉSUMÉ

Le présent essai a pourbut de proposer une réflexion sur le mouvement d'occupations des lycées publics de l 'état de São Paulo par les lycéens de cet état, à partir de la perspective de la psychologie politique. Compte tenu de la nature fortement interdisciplinaire de cette sphère de la connaissance, nous évoquer ons dans cette discussion de sauteur sissus de différents domaines pouvant apporter leur contribution à une analyse psychopolitique du mouvement en question, enfaisant la lumière sur les thèmes qui en ont émergé, tels que: la relation entre démocratie et éducation, entre pouvoir et résistance, et entre mouvement ssociaux et politiques publiques. Cette analyse signale, à notre avis, l'importance de la participation politique et la nécessité d'un environnement scolaire ouvert aux processus démocratiques, visant à la promotion de la conscience politique et l'exercice de la citoyenneté, en vue de la formation critique et réflexive de sélèves vis-à-vis de la société dans laquelle ils vivent, tel que nous avons pu voir lors des occupations.

Mots-clés: Démocratie; Education; Relations de pouvoir-résistance; Mouvement ssociaux; Politiques publiques.


 

 

O amor da democracia pela educação é um fato cediço. A explicação superficial é que um governo que se funda no sufrágio popular não pode ser eficiente se aqueles que o elegem e lhe obedecem não forem convenientemente educados. Uma vez que a sociedade democrática repudia o princípio da autoridade externa, deve dar-lhe como substitutos a aceitação e o interesse voluntários, e unicamente a educação pode criá-los. Mas há uma explicação mais profunda. Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada. (John Dewey, 1916/1979)

 

Introdução

Em outubro de 2015, uma proposta de reorganização na rede estadual de ensino foi anunciada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A proposta, no entanto, foi recebida com insatisfação por parte da comunidade escolar, por ser considerada uma decisão autoritária, sem real abertura por parte do governo às argumentações e contestações daqueles que seriam diretamente afetados pela execução da reorganização.1

O anúncio da reorganização foi feito em notícia veiculada no dia 26 de outubro de 2015 em jornais televisivos e no meio eletrônico, nos quais se informava que o processo afetaria 94 escolas (1,8% da rede estadual), sendo que algumas seriam disponibilizadas para uso educacional (escolas técnicas, creches ou escolas municipais), e outras teriam destino ainda desconhecido. A proposta previa uma reorganização por ciclos, ou seja, cada escola passaria a trabalhar com apenas um de três possíveis ciclos da educação, a saber:

1) Ensino fundamental I: do 1° ao 5° ano, que recebe alunos de 6 a 10 anos;

2) Ensino fundamental II: do 6° ao 9° ano, que recebe alunos de 11 a 14 anos;

Ou

3) Ensino médio: do 1° ao 3° ano, que recebe alunos de 15 a 17 anos.

Ainda segundo a notícia, a Secretaria da Educação do Estado argumentou que o sistema de ciclos foi pensado considerando uma redução de demanda, ou seja, uma queda no número de alunos, que seria explicada pela diminuição da natalidade e pela absorção dos alunos por parte de escolas públicas municipais e escolas particulares. A principal justificativa para a reorganização, tal como foi apresentada, seria o aumento no rendimento escolar no ensino por ciclos, devido ao fato de a escola ter uma estrutura e uma equipe direcionadas especificamente para a faixa etária ali atendida.

A proposta se baseou em um estudo realizado pela Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação Educacional [CIMA] (2015),da própria Secretaria, intitulado Escolas estaduais com uma única etapa de atendimento e seus reflexos no desempenho dos alunos, tendo como referência o IDESP2 de 2014. O estudo trazia o dado de que escolas de ensino médio com os três ciclos apresentavam desempenho menor, quando comparado ao desempenho médio da rede estadual como um todo (7,8%), enquanto que as escolas com ciclo único apresentaram desempenho maior (18,4%).

O movimento secundarista, por sua vez, argumentou que isso afetaria, de um lado, a rotina das famílias em termos de logística (muitas famílias têm filhos de diferentes idades que vão à escola juntos, por exemplo); a rotina dos alunos, em termos de uma mudança repentina de ambiente escolar, e, por outro lado, causaria uma superlotação de salas, dado que o remanejamento de alguns alunos implicaria sua inclusão em salas já consideradas com um número elevado de alunos. Outra reclamação do movimento secundarista foi a falta de abertura do Governo Estadual para a discussão com a comunidade escolar, impondo a reorganização apesar das contestações desde que a mesma começou a ser formulada, ainda na metade do ano de 2015.

Em meio à queda de braço, e prestes a verem a reorganização ser levada a cabo a despeito de suas reivindicações, os alunos decidiram ocupar suas escolas, acampando em suas instalações e demandando do governo estadual que interrompesse o processo de reorganização até que a proposta fosse mais bem discutida e repensada em outros termos, desta vez considerando algumas reivindicações da comunidade escolar. A primeira escola ocupada foi a Escola Estadual Diadema (antigo Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério - CEFAM), no ABC paulista, na madrugada do dia 9 de novembro. Na manhã deste mesmo dia, outra escola foi ocupada, desta vez, na capital - a Escola Estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros (Zona Oeste de São Paulo).

Já por ocasião dessas duas primeiras escolas ocupadas, houve uma batalha jurídica em torno das ocupações, pois o Governo do Estado de São Paulo pediu a reintegração de posse. A reintegração foi permitida, mas revogada logo em seguida. Ao menos em 2015, o Governo foi derrotado em todos os seus pedidos de reconsideração.

Mesmo enfrentando um grande aparato policial que tentava evitar e desfazer as ocupações, e à medida que o Governo do Estado ia reafirmando a manutenção da reorganização, o movimento cresceu (o número de escolas ocupadas aumentava exponencialmente a cada dia), e foi diversificando as formas de protesto. Além das ocupações, os alunos também organizaram atos públicos, intervenções artísticas e shows com a participação de artistas locais e nacionais.

Nas redes sociais, os estudantes criaram páginas para a divulgação das ocupações e das ações do movimento, utilizando este espaço também como contraponto às informações veiculadas na chamada mídia tradicional, que tentava passar para a população a impressão de que os alunos estavam depredando as escolas ocupadas. As páginas criadas por eles serviam como meio para divulgação do cotidiano das ocupações. Além das páginas correspondentes a cada escola ocupada, duas páginas principais foram criadas: Não fechem minha escola e Comando das escolas ocupadas. Houve, assim, uma disputa pela opinião pública.

O movimento secundarista de São Paulo chegou, no seu auge, a contabilizar mais de 200 escolas ocupadas. Mobilizou alunos, professores, diretores, famílias, bairros ao redor das escolas e a opinião pública. Com as ocupações, os atos públicos, a disputa da informação, e a resistência (inclusive física, contra a força policial que apresentou diversos abusos em ocupações e nas manifestações), o movimento logrou suspender a reorganização, pelo menos naquele momento.3

 

A Psicologia Política

Em obra considerada uma das principais sobre Psicologia Política, e que carrega, inclusive, este nome, Gustave Le Bon afirma que tal disciplina se ocuparia de uma "ciência do governo", tratando, assim, dos "meios que permittem (sic) governar utilmente os povos" (Le Bon, 1911/1921, p. 3). De acordo com o autor, "a mais importante das regras do governo dos homens são relativas à acção (sic). Quando, como e em que limites se deve agir? A resposta a esta indagação corresponde inteiramente à arte da política" (Le Bon, 1911/1921, p. 4). O próprio autor aponta, nessa obra, que o primeiro "tratado" de Psicologia Política teria sido escrito no século anterior ao dele (em 1527), por Maquiavel, em sua obra O Príncipe, no qual podemos encontrar as recomendações para que um governante seja bem sucedido em governar seus súditos/cidadãos.

Mais tarde, é Michel Foucault (2006) que irá discutir o que chamou de "governamentalidade", tendo também como referência a obra de Maquiavel. O autor vai discorrer, nessa ocasião, sobre os fatos que fizeram surgir, entre a metade do século XVI e o final do século XVIII, não apenas os "Conselhos ao Príncipe", e nem o que conhecemos por "Ciência da Política", mas, sim, tratados sobre as "artes de governar". O problema do governo, diz Foucault, explode no século XVI através de discussões sobre outros problemas, tais como o de governar a si mesmo, governar almas e condutas, governar as crianças (problema da pedagogia), e, enfim, o problema do Governo dos Estados pelos Príncipes. Algumas questões são levantadas pelo autor: Como se governar? Como ser governado? Como governar os outros? Por quem devemos ser governados? Como ser o melhor governante possível?

Outro momento importante para a Psicologia Política foi o período da II Guerra Mundial. De acordo com Van Stralen e Cornelis (2008), os eventos relacionados à II Guerra dispararam reflexões e pesquisas a respeito da personalidade dos líderes políticos, do comportamento das massas e, também, temas atinentes à democracia, ao comportamento eleitoral, atitudes políticas, socialização política e políticas internacionais.

No que diz respeito à institucionalização do campo Psicologia Política, Rosa e Silva (2012) afirmam que os Estados Unidos devem ser considerados como o país que mais contribuiu para esse processo. De acordo com esses autores, "certamente, em suas fronteiras se concentra o maior número de centros de investigação no campo, bem como de atividades práticas no mundo do trabalho não-acadêmico" (Rosa e Silva, 2012, p. 16). Sobre as obras que configuram os fundamentos teóricos da Psicologia Política norte-americana, Rosa e Silva (2012, p. 16) apontam que

Autores como Carlos Barracho (2011) lembram que, no início do século XIX, os EUA já haviam estabelecido os fundamentos teóricos que sustentariam a abordagem americana da Psicologia Política nos séculos seguintes. Esses pilares teóricos são o pragmatismo de Willian James (1842-1910), John Dewey (18591952) e George Herbert Mead (1863-1931) e o comportamentalismo de John Watson (1878-1958). A esses importantes nomes, juntam-se trabalhos dos antropólogos Franz Boas (1858-1942), Bronislaw Malinowsky (1884-1942), Willian Issac Thomas (1863-1947), com seu livro Sexo e Sociedade e Florian Znaniecki (1882-1958), com a obra The Polish Peasent in Europe e America.

Já o movimento da Psicologia Social especificamente desenvolvida na América Latina se apropriou de um caráter mais crítico e de comprometimento social, constituindo-se e consolidando-se como uma Psicologia (Social) Comunitária. No artigo de Góis (2003, p. 282) a respeito da Psicologia Comunitária, encontramos que

uma corrente da Psicologia Social contrapôs aos modelos clássicos da área (universalização, a historicização, descontextualização e descompromisso com os problemas concretos da população) algumas questões relativas à concepção crítica da Psicologia Social, pautadas na história, nas diferenças culturais e nas relações de dominação das sociedades latino-americanas. Como representantes dessa corrente, temos Martín-Baró (espano-salvadorenho), Sílvia Lane (brasileira) e Maritza Montero (venezuelana). Suas obras estão voltadas para a construção de uma Psicologia Social crítica, preocupadas com a realidade dos povos da América Latina e com os caminhos de mudança dessa mesma realidade. Nessa perspectiva se evidencia a participação social e o desenvolvimento da consciência.

Em termos de institucionalização da Psicologia Política no Brasil, Van Stralen (2008) afirma que, antes dos anos de 1980, encontramos autores individuais que publicam trabalhos aos quais pode ser atribuído um caráter psicopolítico. É o caso da tese de Dante Moreira Leite, Caráter nacional brasileiro: descrição das características psicológicas do brasileiro através de ideologias e estereótipos (Leite, 1954), e do livro de José Honório Rodrigues, Aspirações nacionais. Interpretação histórico-política (Rodrigues, 1963).

Após esse período, inicia-se a criação de núcleos de pesquisa e Programas de Pós-graduação sobre Psicologia Política e os temas a ela relacionados. Destacam-se, neste contexto, três intelectuais: Sílvia Lane, Leôncio Camino e Salvador Sandoval. De acordo com Silva (2012, p. 417), "cada um a seu modo e desde lugares teóricos diferentes atuaram de modo a consolidar diferentes formas de pensar e fazer Psicologia Política, formando, de certa maneira, distintas 'escolas' de pensamento e prática psicopolítica".

Neste sentido, propomos aqui uma reflexão sobre o movimento das ocupações secundaristas a partir da perspectiva da Psicologia Política, campo interdisciplinar de conhecimento, que tem como principal interesse, de acordo com José Manuel Sabucedo (1996, p. 17), a "influência dos fatores psicológicos na conduta política e o efeito dos sistemas políticos nos processos psicológicos".Considerada por alguns como o resultado do encontro entre a Psicologia e a Ciência Política (Rosa e Silva, 2012) e, por outros, como um subcampo da Psicologia Social (Costa, 2008), essa abordagem se apoia em fundamentos provindos de diversas áreas, para além da Psicologia Social e da Ciência Política como a Filosofia e a Sociologia, por exemplo. Ainda há, também, o entendimento de que a Psicologia Política se dá na encruzilhada dessas áreas (Montero e Dorna, 1993), ou ainda, no interstício dessas disciplinas (Silva e Corrêa, 2015). Alguns temas que são objeto desse campo de conhecimento são: consciência política, exercício da cidadania, movimentos sociais, identidade coletiva, ação coletiva, relações de poder, valores democráticos e autoritarismo, participação social e políticas públicas, entre outros.

Cabe aqui lembrar que, mesmo o pai da psicanálise, comumente encarada como uma psicologia individual, admitiu a impossibilidade de compreender o indivíduo sem considerar o caráter social de sua existência e experiência psíquica. Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (1921/2011, p. 14), afirma que:

A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação para seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações deste particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário e portanto a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado mas inteiramente justificável.

A Psicologia Política, que tem relações intrínsecas com a Psicologia Social (como já mencionado), mas que tem também suas características peculiares, pretende se debruçar mais especificamente sobre as relações entre indivíduo e Estado, entre o sujeito e o grupo ao qual pertence, entre cidadão e sociedade. A respeito da obra de Victor de Britto (1908)4, a qual discute as figuras públicas de Gaspar Martins e Júlio de Castilhos, Silva (2012, p. 414) afirma que "ao dividir o livro em o meio social, o meio político, o meio sertanejo, o homem e a raça, o autor abre caminhos para uma discussão na qual não há como pensar a constituição do homem que não seja atravessada pela política, fazendo do agir humano um agir que podemos chamar psicopolítico".

Assim, podemos entender que a Psicologia Política está atenta a esta tensão que se apresenta no processo em que o Estado busca regular o agir humano, que é, em sua essência, um agir social/ político. O presente ensaio busca, então, olhar para o movimento das ocupações enquanto um movimento social que demonstrou o possível embate de poder entre o Estado e os cidadãos - no caso, estudantes secundaristas, colocando em questão as relações entre democracia e educação, entre poder e resistência e entre as políticas públicas e os movimentos sociais. Neste sentido, juntamente com Corrêa e Almeida (2015, p. 89), por sua vez baseados em Sabucedo (1996), entendemos que os movimentos sociais

(...) são caracterizados por elementos de ordem política - ações coletivas, estruturadas, não-institucionais, marcadas pelo conflito, com estratégias comuns, que buscam mudanças sociais etc. - e de ordem psicológica - conjunto de crenças coletivas, valores compartilhados, sentimento de injustiça etc. Esses elementos -que são, ao mesmo tempo, objetivos e subjetivos, materiais e imateriais, racionais e emocionais -, articulados conjuntamente, permitem que determinados agentes, subjugados em relações específicas de poder, constituam movimentos sociais, passando a intervir em conflitos, com vistas a modificar relações sociais estabelecidas.

Entre os paradigmas clássicos dos estudos dos movimentos sociais, quais sejam, a Teoria da Mobilização de Recursos (TMR), a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS), a Teoria do Processo Político (TPP), e, ainda, contemporaneamente, a Teoria do Confronto Político (TCP), não desconsiderando as tentativas de síntese dessas teorias, entendemos como mais adequada ao objeto em análise (as ocupações secundaristas), a concepção da TNMS, tal como descrita por Jürgen Habermas. De acordo com este autor (Habermas, 2008, p. 202 citado por Corrêa e Almeida, 2015, p. 103), esses novos movimentos seriam: "antinucleares, pacificistas, de ação cidadã, alternativos (gays e dificuldade de locomoção), de defesa do fundamentalismo religioso, contra impostos, de estudantes, de resistência a reformas, de mulheres", não implicando mais em mobilizações estritamente classistas, mas, sim, de acordo com o mesmo autor (Habermas, 2010, pp. 164-165 citado por Corrêa e Almeida, 2015, p. 103), em "lutas simbólicas, quando sujeitos de direito buscam autonomia e participação política".

 

O Contexto Psicopolítico Brasileiro

Aproximando-nos mais do tema que aqui queremos discutir, ou seja, o movimento das ocupações secundaristas, julgamos pertinente fazer uma breve retomada do cenário brasileiro no que diz respeito aos movimentos sociais e às políticas públicas. Essas duas questões são de grande importância para uma democracia que se pretenda saudável, dado que representam os dois principais vetores de força deste campo de poder chamado de democracia, através das quais: 1) o Estado exerce sua arte de governar, intervindo nas condições sociais da população (políticas públicas) e 2) a população, por sua vez, encontra os meios para se fazer ouvir pelo Estado em suas necessidades, desejos e contraposições (movimentos sociais).

Cabe ressaltar que o Brasil tem uma característica peculiar no que diz respeito à sequência natural descrita por T. H. Marshall (1967), ou seja, direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Aqui no Brasil, direitos sociais vieram antes de direitos civis e políticos, e isso tem consequências claras na apreensão, compreensão e exercício da cidadania, ou seja, no tipo de cidadão e, portanto, também no tipo de democracia (Carvalho, 2016; Costa e Silva, 2012). De acordo com Carvalho (2016, p. 219),

aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em momentos de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje, muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo.

Sobre a participação da sociedade brasileira na construção das Políticas Públicas, Menz, Camargo e Kafrouni (2015) afirmam que tal participação não é algo novo, dado que vem acontecendo no campo da saúde, por exemplo, desde os anos de 1950 - através das conferências nacionais. As autoras ressaltam, entretanto, que uma participação comunitária real é mais recente e aparece mais fortemente nos anos de 1980, por ocasião da Promulgação da Constituição Federal de 1988, que contou com movimentos sociais e garantiu direitos amplos aos cidadãos - sendo considerada, inclusive por isso, como a Constituição Cidadã. O próprio campo da saúde sofreu transformações significativas em termos de estrutura de funcionamento, em grande parte - se não totalmente, em função da força exercida pelos movimentos sociais5. Neste sentido, Silva (2012, p. 216), em sua tese de Livre Docência intitulada Psicologia Política, Movimentos Sociais e Políticas Públicas, afirma que

Movimentos sociais não devem ser compreendidos como um mero resultado de crises vividas pela sociedade ou como um sintoma de uma sociedade agonizante. Como já dito, movimentos sociais denotam as várias complexidades da realidade social, as quais nos levam a compreendê-los como uma forma de antecipação da sociedade vindoura (Sztompka, 1998). Isto se dá porque os movimentos sociais -ao atuarem como críticos da estrutura social vigente, como atores coletivos que obrigam a sociedade a deixar a alienação própria da vida cotidiana, a assumir uma atitude reflexiva acerca de si mesma, a fugir permanentemente da repetição e da acomodação, a enfrentar a mesmice que lhe impede de ir mais além e a resolver os problemas que ela própria produz e se propõe a solucionar - atuam como agentes proféticos (Melucci, 2004), que garantem à sociedade a oportunidade política de gerar instrumentos para alcançar um modo de existência socialmente justo. Nesse quadro, a nosso ver, não há como não discuti-los associados ao universo das políticas públicas.

Trazendo a discussão para os tempos atuais, tivemos um momento histórico no mundo em relação aos movimentos sociais, por ocasião das manifestações que ocorreram em diversos países (de todos os continentes) no ano de 2011, e que ficaram conhecidas como os movimentos Occupy e Primaveras. Em artigo sobre o tema, Tavares, Silva e Capelini (2014) abordam algumas destas manifestações6: 1) a norte-americana Occupy Wall Street; 2) os protestos em Londres (Occupy London); 3) a Primavera Árabe; e 3) as Marchas da Liberdade no Brasil.

Posteriormente, em meados de 2013, houve no Brasil uma nova onda de manifestações, desta vez, disparadas pelo aumento da passagem de ônibus na Cidade de São Paulo e puxadas pelo Movimento Passe Livre (MPL). Apesar de o estopim ter sido um motivo bastante específico e local, essas manifestações se espalharam pelo Brasil, com números expressivos de participantes, devido a uma indignação pela ação policial violenta contra os manifestantes, e ficaram conhecidas como "manifestações de junho de 2013" ou, ainda, "jornadas de 2013". As pautas apresentadas eram gerais e não apontavam para nenhuma ação específica do governo. Os cartazes dos manifestantes pediam por melhorias nas áreas de educação, saúde, transporte etc. A mais famosa das reivindicações era queremos educação/ saúde/ transporte padrão FIFA - Federação Internacional de Futebol -, dada a proximidade da realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014.7

De acordo com os pesquisadores Solano e Ortellado (2016, p. 178)8, que estudaram e analisaram essas manifestações, o legado dos protestos de 2013 levou a um paradoxo político posteriormente, pois:

Na ausência de grupos progressistas desvinculados dos partidos políticos, para além do MPL, que fossem capazes de dar orientação e liderança para a indignação que foi despertada, os grupos liberais e conservadores se aproveitaram da oportunidade para moldar e explorar politicamente a insatisfação.

Essa insatisfação, cooptada por essas forças mencionadas pelos autores, veio ao encontro de insatisfações políticas geradas no frigir das eleições de 2014. A crise política e econômica do país, juntamente com uma investida midiática diária contra o governo de Dilma Rousseff (tendo como bojo principal a Operação Lava Jato), levou a um descontentamento ainda maior da população brasileira com a classe política (em especial com o Partido dos Trabalhadores) e, desde o início do segundo mandato de Dilma, várias manifestações ocorreram no país, tanto para defender o seu impeachment, quanto para protestar contra sua instalação.

 

As Ocupações Secundaristas

Enquanto no cenário nacional forças do espectro político se digladiavam em relação ao impeachment e o governo federal tentava, sem sucesso, resolver as crises que assolavam o país, escolas estaduais de São Paulo foram ocupadas por estudantes secundaristas, como forma de protesto contra a proposta de reorganização escolar vinda da Secretaria da Educação do Estado. A proposta foi apresentada não em forma estrita de uma política pública, mas como uma determinação do Estado.

Em prefácio para o livro Escolas de luta, de Campos, Medeiros e Ribeiro (2016), Pablo Ortellado (2016, p. 15) se referem às ocupações secundaristas de 2015 como "a primeira flor de junho", afirmando que elas seriam "o primeiro desdobramento pleno dos protestos de junho de 2013". Neste sentido, Ortellado aponta que algumas raízes das práticas dos secundaristas podem ser encontradas nessas manifestações. Em um artigo a esse respeito, Januário, Campos, Medeiros e Ribeiro (2016, p. 1) afirmam que

Em uma primeira abordagem, é possível indicar algumas comparações e continuidades entre este movimento das escolas ocupadas e Junho de 2013 (principalmente se tomarmos como referência a sua primeira fase, quando o Movimento Passe Livre ainda pautava fortemente os atos de rua): o caráter explosivo e inesperado; a centralidade da ação direta; uma nova forma de fazer política, de caráter horizontal e que não passa pelos partidos políticos; a importância das redes sociais; e um formato da luta social que pode ser entendido como "negativo". Com esta última afirmação queremos dizer que, em ambos os casos, não se tratava de uma negociação em moldes tradicionais por caminhos institucionalizados e nem de propor uma luta ofensiva (que reivindicasse imediatamente a "tarifa zero" ou a "educação pública de qualidade"), mas sim de barrar medidas governamentais e quebrar seus discursos tecnocráticos, que buscavam justificar a inevitabilidade e irreversibilidade das decisões tomadas: o projeto educacional do governo estadual no caso mais recente e o aumento das tarifas de ônibus, metrô e trem (de R$3,00 para 3,20) há três anos.

Entretanto, as manifestações de 2013 tiveram reverberações variadas que, em alguns casos, situaram-se em lados opostos do espectro social e político. Neste sentido, Ortellado (2016, p. 15) explica essa herança de 2013, e de que forma ela se expressa nas ocupações de 2015.

A luta dos secundaristas é herdeira de junho num outro sentido. As manifestações de 2013 tiveram basicamente dois tipos de reivindicações: uma crítica da representação, decorrente da crise de legitimidade do sistema político e a defesa dos direitos sociais, principalmente educação, saúde e transporte. Esse duplo legado foi dividido entre os campos políticos: de um lado, o próprio MPL, o movimento contra a Copa do Mundo de 2014, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e outras iniciativas semelhantes levaram adiante o legado social; de outro, as manifestações convocadas por grupos de direita como Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre levaram adiante o legado "antipolítico" de junho, explorado exclusivamente na chave de combate à corrupção. Os secundaristas conseguiram, pelo caráter social da sua reivindicação e pelo caráter radicalmente democrático da sua organização, reunir as duas metades de junho.

No caso das ocupações, seu objetivo era claro e específico: barrar a reorganização, para que ela fosse suficientemente discutida com a comunidade escolar, o que não estava acontecendo. Neste sentido, julgamos pertinente analisar mais de perto o referido movimento, para poder identificar os aspectos psicopolíticos ali presentes e lançar luz sobre os temas que ali surgiram. Faremos a análise entendendo a reorganização como correlata das políticas públicas, dado que se pretendia uma ferramenta de Estado para regular questões sociais (ainda que locais), no caso, no âmbito da educação. O Estado se utilizou de seu lugar de poder para definir ações na Educação, tendo como resposta uma ação coletiva em forma de movimento social, que se contrapôs à determinação.

Da perspectiva psicopolítica, podemos observar que o movimento das ocupações secundaristas evidenciou o cenário de relações de poder em que estamos todos inseridos. Como todo movimento social, este também se trata de contrapor uma força de resistência ao exercício de poder do Estado, o qual não raramente recorre ao abuso de suas forças, em especial por meio da polícia. A esse respeito, Corrêa e Almeida (2015, p. 94-95) afirmam que

As relações de dominação explicam, em grande medida, a razão de ser dos movimentos sociais, os quais buscam mobilizar agentes dominados para lutar, de maneira sustentada, contra agentes dominadores, visando modificar tais relações. Os movimentos sociais têm por objetivo constituir uma força social e, por meio do confronto político, consolidar um contrapoder, capaz de modificar as relações sociais em jogo entre "dominantes-subordinados".

Após a deflagração das ocupações, os estudantes desenvolveram uma forma de viver o cotidiano dentro da escola ocupada que se tornou um padrão. Apesar das peculiaridades de cada escola, e das situações específicas vividas por cada uma delas - em relação às investidas da polícia, da mídia, dos diretores e até de outros estudantes e da comunidade local e geral, algumas regras gerais foram reproduzidas em praticamente todas as ocupações.

Dessa forma, o dia a dia das ocupações era constituído por assembleias, em que era feita a distribuição de tarefas entre os secundaristas: limpeza da escola, realização das refeições coletivas, controle da entrada na escola etc. Tudo era decidido, organizado e administrado democraticamente pelos próprios alunos, com apoio e doações das comunidades ao redor das escolas. Também foram organizadas atividades culturais e aulas com temas escolhidos pelos secundaristas, que eram oferecidas por pessoas da comunidade e também intelectuais e artistas.9

Ao refletirmos sobre a forma que tomaram as ocupações, caracterizadas por assembleias, comunicação horizontal, organização comunitária, nos remetemos às postulações de John Dewey (1916/1979, 1925/1980, 1938/1971, 1939), filósofo e psicólogo norte-americano, que defende que a democracia deve ser encarada como um modo de vida, e não apenas como forma de governo. Dewey busca demonstrar a importância da vivência da democracia ainda no ambiente escolar, de tal forma que a escola possa ser vivida como uma "sociedade em miniatura", como podemos ver nas palavras do próprio autor (Dewey, 1916/1979, p. 394) a seguir,

Em primeiro lugar, a vida na escola deve ser como em uma sociedade, com tudo o que isto subentende. (...) Em vez de uma escola localizada separadamente da vida, como lugar para se estudarem lições, teremos uma sociedade em miniatura, na qual o estudo e o desenvolvimento sejam os incidentes de uma experiência comum.

Dewey (1939, p. 139) afirma que a democracia é, na verdade, um modo de vida. De acordo com o autor,

A democracia é um modo de vida pessoal conduzido não apenas pela fé na natureza humana em geral, mas pela fé na capacidade dos seres humanos de julgamento e ação inteligentes, caso condições apropriadas sejam dadas. (...) Pois o que é a fé na democracia no papel de consulta, de conferência, de persuasão, de discussão, na formação da opinião pública, a qual a longo prazo é autocorretiva, senão a fé na capacidade da inteligência do homem comum de responder com bom senso ao livre curso dos fatos e ideias que são asseguradas por garantias efetivas de livre investigação, livre reunião e livre comunicação?

Como é possível verificar por meio dessas palavras do autor, a democracia está fundamentada na crença em capacidades tais como a de julgamento e inteligência do homem, orientadas para um entendimento comum em prol de melhores decisões para a coletividade. Entretanto, essas capacidades precisam ser fomentadas ao longo da constituição do sujeito, para que ele aprenda (e apreenda) formas de participação efetiva na comunidade (participação social e política), ou seja, na vida comunal. A este respeito, Pogrebinschi (2005, p. 139) aponta que, para Dewey,

as crianças devem ser tratadas desde sempre como membros da comunidade em sua acepção mais ampla, não se restringindo a educação para a cidadania no conhecimento das leis e do sistema político, mas abrangendo todo o conjunto de relações sociais das quais as crianças devem participar e aprender a manter. A ideia de cidadania a ser promovida pelas escolas é, portanto, integral: os indivíduos, na própria escola, não devem aprender apenas a se portar diante das leis e das urnas, devem aprender também a ser membro da sua família, membro de um bairro em particular, enfim, membro da comunidade em todos os seus aspectos e desdobramentos.

A permanência dos alunos na escola durante as ocupações permitiu também que os alunos descobrissem materiais didáticos, esportivos e musicais guardados em dispensas, muitas vezes em processo de degradação. Alguns atos públicos foram organizados para expor e denunciar alguns desses casos.

Um momento decisivo foi o vazamento do áudio de uma reunião, ocorrida em 29 de novembro, com membros da Secretaria de Educação, no qual é possível observar uma intenção de adoção de ações de guerra (em especial uma guerra da informação) que resultariam na desmobilização do movimento. A divulgação deste áudio acabou tendo o efeito contrário, levando a opinião pública, que já estava pendente para o lado do movimento, a se firmar definitivamente contra a reorganização - da forma como estava sendo feita.

Considerando o acirramento do conflito entre o movimento e o Governo, o Ministério Público e a Defensoria Pública do estado de São Paulo entraram com uma ação civil pública na Justiça pedindo a suspensão da reorganização escolar, no dia 3 de dezembro. Um dia depois, o Instituto de Pesquisa Datafolha (2015) divulgou uma pesquisa em que se observa uma queda da aprovação do Governador Geraldo Alckmin. Com esses dois fatos, o mesmo anunciou, no dia 4 de dezembro, a suspensão da reorganização.

No entanto, os estudantes continuaram ocupando as escolas, apesar de o número de ocupações começar a diminuir. Eles pediam documentos comprobatórios do compromisso do Governo Estadual e das Diretorias de Ensino com o cancelamento da reorganização, no sentido de uma revogação, e não apenas a suspensão. Este pedido esbarrava no fato de que não houve nenhum decreto oficial instaurando a reorganização, o que impedia qualquer ação legal que a tornasse invalidada.

Posteriormente, no dia 17 de dezembro, uma decisão da Justiça determinou a suspensão da reorganização. A decisão foi tomada em resposta à liminar pedida no dia 3 de dezembro, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública.

Em nota disponibilizada no site do Governo do Estado de São Paulo, após esta determinação da justiça e o fim das ocupações, a Secretaria da Educação informa que adiou a reorganização, para abrir espaço para a discussão com a comunidade escolar. A nota resume a proposta e sua fundamentação e reforça seus argumentos em defesa da proposta.10

A respeito da identificação de adversários no âmbito de um movimento social, Silva (2007) traz o pensamento de Salvador Sandoval (1989, 1994, 1997, 2015) e o seu modelo de estudo da consciência política. Silva (2007, p. 108) ressalta a categoria analítica "Interesses Antagônicos e Identificação de Adversários", na qual estes interesses comporiam a dimensão que abriga "sentimentos do indivíduo em relação aos seus interesses simbólicos e materiais, em oposição aos interesses de outros grupos". Dessa forma, Silva (2007, p. 108) afirma que

Para Sandoval (2001), a identificação desses interesses antagônicos e de adversários ocupa um importante lugar no estudo da consciência política apoiada na ação coletiva. Sem a noção de um adversário visível é impossível mobilizar os indivíduos a agir e a coordenar ações contra um objetivo específico, seja este um indivíduo, um grupo ou uma instituição. Nessa linha de raciocínio, identificamos a influência de Henri Tajfel (1982, 1983) sobre o pensamento de Salvador Sandoval (1994, 2001), que propõe como requisito à mobilização do grupo: a identificação dos interesses comuns ao próprio grupo; de interesses contrários à manutenção desse grupo e a identificação de outros grupos que tenham por interesses questões que se antagonizam aos interesses do grupo em questão. Dessa maneira, é definida a relação meu grupo de pertença e grupo dos outros.

Identificando seus adversários e antagonistas como aqueles que declararam a guerra da informação (e por meio da força policial também), o movimento secundarista chegou a contabilizar mais de 200 escolas ocupadas. Mobilizou alunos, professores, diretores, famílias, bairros ao redor das escolas e a opinião pública. Com as ocupações, os atos públicos, a guerra da informação e a resistência (inclusive contra a força policial que apresentou diversos abusos em ocupações e nas manifestações) logroram suspender a reorganização, pelo menos até que houvesse um processo mais democrático de decisão a respeito da questão. Podemos observar, assim, o quanto a organização do movimento secundarista apresentou estas características, o que pode ser entendido como um movimento na direção do desenvolvimento da democracia como modo de vida, do exercício da cidadania, da consciência política e, portanto, na direção da autonomia.

 

Considerações Finais

Considerando, então, o exposto até aqui, a hipótese a ser defendida seria a de que o movimento secundarista, que se insurgiu contra uma imposição autoritária do governo, mostra que há possibilidades de surgimento de pontos de recusa e de resistência, operando dentro e com consciência das relações de poder, tal como postuladas por Michel Foucault (1976/1998, 2006), e, ao mesmo tempo, com um funcionamento que nos remete às postulações de John Dewey sobre a democracia como modo de vida. Isto aponta para a importância do fomento da cidadania e da consciência política no âmbito escolar, dado que este é o local onde o indivíduo está sendo preparado para a transição do âmbito privado, o do núcleo familiar, para o âmbito público, aquele da vida social e política.

Juntamente com Sandoval (2015), Silva (2012), Silva e Corrêa (2015) e todos os autores que trabalham na perspectiva da Psicologia Política, ressaltamos a relevância das relações entre movimentos sociais e políticas públicas, visto que estas são as principais vias pelas quais se dá a relação indivíduo/grupo e Estado. As políticas públicas, enquanto meio pelo qual os governos exercem seu poder de regular o agir humano, de conduzir condutas e de oferecer benefícios a uma população, não podem se furtar a ouvir esta mesma população, em suas reais necessidades, desejos e contraposições. O preço a pagar pela não escuta ou pela ação descuidada, é o surgimento de forças sociais organizadas em ações coletivas e movimentos sociais e políticos. Tais movimentos, dependendo de sua força de mobilização, podem não só reagir a políticas públicas insatisfatórias formuladas pelos governos, mas também impulsionar e concretizar a proposição de políticas públicas mais próximas da realidade da população.

 

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Recebido em: 08 de abril de 2017
Aprovado em: 18 de outubro de 2017

 

 

1 As reflexões presentes neste artigo são baseadas em pesquisa de doutorado da autora, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob orientação da Professora Maria Luisa Sandoval Schmidt, e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2 Segundo a descrição da CIMA, o IDESP é um "indicador que combina os resultados do SARESP - Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo - com informações sobre a taxa média de aprovação em cada etapa da escolarização" (Estado de São Paulo, 2015, p. 3).
3 Estudos recentes dão conta que a reorganização ocorreu de forma velada, no ano seguinte. De acordo com nota técnica elaborada pela Rede Escola Pública e Universidade, em junho de 2016 (Crochik, Stoco, Di Pierro, Corti, & Cássio, 2016): "O resultado obtido indica que das 165 escolas que não abriram turmas de início de ciclo em 2016, 53 constavam em uma das duas listas divulgadas no programa de reorganização escolar, o que perfaz 32% do total. Isso pode indicar a existência de um processo gradativo de reorganização escolar, uma vez que, nestas 53 escolas, a não abertura de turmas de ingresso coincidiu em sua imensa maioria com o ciclo que seria fechado na unidade, caso a reorganização tivesse sido implantada conforme proposto pelo Estado" (p. 12).
4 Victor de Britto é considerado um pioneiro no campo da Psicologia Política no Brasil por ter utilizado pela primeira vez o termo "Psychologia Política".
5 Ao período de efervescência dos movimentos sociais por ocasião da elaboração da Constituição de 88, segue-se um período de menor tolerância com movimentos sociais (e até criminalização). Nos 90, os movimentos se transmutaram em formas mais institucionalizadas, como em ONGs, perdendo força e influência, e dando espaço para que uma agenda neoliberal se instalasse. No início dos anos 2000, com a mudança no governo federal, muitas das determinações presentes na Constituição de 88 começam a ser de fato regulamentadas e implantadas em forma de planos nacionais e programas sociais. Retoma-se, assim, a ampliação da oferta dos serviços públicos. Os movimentos sociais passam por um período de adormecimento novamente. Para maiores informações a respeito desse período, conferir Abers, Serafim, e Tatagiba (2014).
6 A este respeito, conferir também: (Harvey et al., 2012). Esta obra reúne textos de Edson Teles, Emir Sader, Giovanni Alves, Henrique Soares Carneiro, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Mike Davis, Slavoj Zizek, Tariq Ali e Vladimir Safatle, além de David Harvey, especialmente escritos sobre os acontecimentos de 2011, ou reelaborados e atualizados com o enfoque daquele momento.
7 Conforme o tempo foi passando, grupos mais radicais, chamados black blocks, foram tomando espaço nas manifestações. A mídia tradicional, então, explorou a imagem negativa que o grupo passava para a população, devido à utilização de métodos mais violentos (como a depredação de bancos, por exemplo, e o confronto físico direto com a polícia), contribuindo para o esvaziamento das manifestações, que já diminuíam pelo desgaste natural das sucessivas mobilizações.
8 Conferir também: Judensnaider, Lima e Ortellado (2013) e Solano, Manso e Novaes (2014).
9 Uma notícia veiculada no site da UBES - União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, fala sobre este cotidiano na ocupação da Escola Caetano de Campos, a primeira escola da região central de São Paulo a ser ocupada. Para saber mais, acessar: http://ubes.org.br/2015/a-ocupacao-esta-bem-mais-legal-do-que-a-escola-no-dia-a-dia/.
10 Nota disponível em: http://www.educacao.sp.gov.br/reorganizacao/.

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