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Cadernos de Psicopedagogia

Print version ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. vol.5 no.9 São Paulo  2005

 

COMUNICAÇÃO

 

Internet e desenvolvimento humano

 

 

Pierre Levy

Universidade de Otawa, Canadá

 

Bloco 1 – A inteligência coletiva nova fonte de potência

Boa noite. Estou muito feliz de estar com vocês esta noite e gostaria de dizer que eu sempre tive uma relação muito especial com o Brasil e com os brasileiros.

Muitas vezes aproveitei minhas passagens pelo Brasil para lançar temas e começar a discutir idéias que nunca havia discutido em outro lugar. É o que ocorre hoje.

Há muito tempo reflito sobre inteligência coletiva e não sou o único a fazê-lo. Isso é tema de inúmeras pesquisas em muitos países do mundo, pesquisas particularmente relacionadas com a utilização da Internet, de novas tecnologias, de fóruns de discussão virtual etc. Eu diria que não apenas o número de pessoas interessadas no assunto cresce, mas também o objeto de reflexão, que há mais ou menos dez anos vem tendo um crescimento extraordinário, pois há cada vez mais pessoas que se organizam por intermédio da Internet visando à cooperação intelectual. Esse é um movimento que se iniciou no domínio científico, pois foi a comunidade científica que inventou a Internet e que se serviu primeiro dela para trocas de idéias, cooperações etc. Podemos dizer que ela é uma das mais antigas praticantes da inteligência coletiva com suas jornadas científicas, seminários, colóquios onde cada um comenta o que faz e tentam construir juntos um saber comum, ao mesmo tempo em que têm liberdade de propor teorias diferentes. Não é, pois, de se espantar que ela tenha inventado a Internet, o correio eletrônico, os fóruns de discussão e esse imenso hipertexto da web que, no fundo, reproduz a prática muito antiga da citação, da nota de rodapé, da bibliografia etc.

Não é só na comunidade científica que se pratica a inteligência coletiva, mas também – e cada vez mais – no mundo dos negócios, porque existe a necessidade de empregar pessoas capazes de tomar iniciativas, de coordenar, de inventar novas soluções, de resolver problemas e de fazer tudo isso coletivamente, de forma organizada. Evidentemente, essas novas ferramentas de comunicação são as mais adequadas para isso e há todo um movimento no “management” contemporâneo que visa a desenvolver práticas de inteligência coletiva.

Há, também, outros campos, por exemplo, o da política ou, para falar de uma maneira mais ampla, o da cidadania. Hoje, muitas comunidades locais, muitos governos de vários países estão tentando aprofundar os processos de consulta da população, os processos de democracia deliberativa através de fóruns de discussão sobre questões de política local, permitindo à população deliberar sobre assuntos que lhe concernem diretamente. Há, portanto, um campo geral da ciberdemocracia. Acabo de publicar um livro sobre o tema, onde faço muitas referências a “sites” que tratam do assunto.

Há mais de dez anos pesquisadores em ciências sociais vêm refletindo sobre o vínculo social, o capital social e percebemos que uma das condições mais importantes para o desenvolvimento humano são as relações, os vínculos de trocas, de serviços, de conhecimento, de sociabilidade. Isso pode ocorrer na economia, no lazer, no jogo, em trinta e cinco mil coisas diferentes. Sempre se soube disso, mas estamos percebendo hoje a importância da relação social organizada, inventiva e viva. Quando eu digo organizada não quero dizer por um centro, uma instância superior, mas auto-organizada, espontânea, de alguma forma.

Eu poderia, assim, listar os campos onde se descobre que a cooperação e, mais particularmente, a troca de idéias, a cooperação intelectual é algo importante para o desenvolvimento cultural e social. A Internet é uma das ferramentas para esse desenvolvimento e é por isso que ela tem, em todo o mundo, um tal sucesso. Vocês poderão argumentar que apenas 7% dos brasileiros estão conectados à Internet. Evidentemente, temos consciência disso. No entanto, é preciso lembrar que isso é um processo histórico, uma tendência que deve ser avaliada em sua dimensão correta. Muitas séculos se passaram desde a invenção do alfabeto até a construção de uma civilização da escrita. Quando se inventou o alfabeto, por volta do ano 1.000 a.C., não foi imediatamente que as pessoas aprenderam a ler e escrever. Há dez anos mais ou menos que a maioria da população mundial - eu digo a maioria e não a totalidade – sabe ler e escrever. Foram necessários, portanto, três mil anos para se chegar a essa situação. A web existe há menos de dez anos, portanto não podemos ser impacientes e nos escandalizarmos com o fato de que a maioria da população não está conectada. O que é preciso observar é a velocidade com que a curva de conexões aumenta, e isso já é notável.

Nós devemos, cada um a nosso modo, fazer com que o maior número de pessoas possível possam ter acesso a esse novo recurso fundamental da cultura que é a comunicação mundial interativa. Aqueles que podem ter acesso sabem até que ponto isso é um recurso para o desenvolvimento pessoal, para estreitar laços sociais, para aprender coisas, para aumentar seu grau de liberdade, pois temos muito mais liberdade de expressão do que podíamos ter na época em que havia somente os jornais, o rádio, a televisão etc.

Passando, então, à nossa apresentação, podemos ver na tela um certo número de idéias que ilustram essa noção de inteligência coletiva.

Inicialmente, podemos tomá-la no sentido simples de partilha das funções cognitivas, pois: o que é inteligência, finalmente? É a memória, o aprendizado, a percepção, as funções cognitivas. A partir do momento em que essas funções são aumentadas e transformadas por sistemas técnicos - algo de objetivo, externo ao organismo humano – elas poderão ser mais facilmente partilhadas. Melhor dizendo, se alguma coisa é escrita, ela já não faz parte da minha memória pessoal, mas faz parte da memória da comunidade à qual pertenço, e que mantém seus escritos. Hoje a escrita é alguma coisa que não está mais só no suporte papel, mas que está no suporte eletrônico e que, por isso, se torna mais acessível, flexível e, sobretudo, mais compartilhável. Estou falando da memória, mas eu poderia falar da percepção. Com a televisão eu posso ver à distância; com o telefone eu posso escutar à distância. Com a Internet não apenas essas coisas são possíveis, mas a um nível de precisão muito maior.

Por exemplo, com as “webcam” eu posso ver exatamente onde eu quero ver. Com os novos sistemas de informática de imagem digitalizada, que permitem transformar dados complexos em representações visuais facilmente compreensíveis, há uma nova abertura no campo da percepção que, na verdade, é a percepção de fenômenos complexos, que é tão cara a Edgar Morin.

Podemos, talvez, comparar a nossa época ao século XVII, época em que se inventou o microscópio e o telescópio, onde se descobriu todo um universo do “infinitamente pequeno” e todo um universo do “infinitamente grande”. Hoje estamos descobrindo o universo do “infinitamente complexo” porque temos um meio de representá-lo, de interagir com esse universo justamente por causa da tecnologia intelectual que é a informática. É preciso ver, portanto, que se trata de uma abertura do campo do conhecimento possível porque há também uma abertura do campo de percepção, do campo do raciocínio possível.

Entretanto, a inteligência coletiva não é um tema puramente cognitivo. Só pode existir desenvolvimento da inteligência coletiva se houver o que eu chamo de cooperação competitiva ou competição cooperativa. Retomando o exemplo da comunidade científica, podemos dizer que se trata de um jogo cooperativo, já que se acumula conhecimentos, há um progresso do saber etc Mas isso só é um processo cooperativo e plenamente cooperativo porque também é um processo competitivo. Se não houvesse a liberdade de propor teorias opostas àquelas que são admitidas, evidentemente o progresso nos conhecimentos seria muito menor. Portanto, é porque existe essa possibilidade de competição que existe a cooperação. Há, pois, dois aspectos: o aspecto da liberdade – que é o aspecto competição – e o aspecto do vínculo social, da amizade – que é o aspecto cooperação. É preciso acostumar-se a pensar nos dois ao mesmo tempo. É a partir do equilíbrio entre competição e cooperação que nasce a inteligência coletiva. Evidentemente não é a guerra de todos contra todos, nem tampouco uma cooperação obrigatória, regulada, que proibiria as diferenças de idéias, as lutas, os conflitos que são naturais e que, sobretudo, permitem ao novo se expressar.

Observemos o comportamento de uma multidão. Uma multidão é menos inteligente do que um indivíduo dessa multidão. O fato de diversos indivíduos estarem reunidos não ajuda muito. Se observarmos uma administração muito burocrática, centralizadora, com uma hierarquia rígida, vamos dizer que essa administração é provavelmente mais inteligente do que uma multidão porque ela pode fazer muitas operações e chegar a um certo resultado, mas ela não equivale à multiplicação de todas as inteligências das pessoas que participam dessa hierarquia burocrática. Provavelmente essa hierarquia burocrática é menos inteligente do que o grupo de dirigentes. O grupo de dirigentes toma decisões e as decisões são aplicadas de forma cada vez pior à medida que se desce na hierarquia. Não se permite, obviamente, que a base tome decisões.

Há muitas formas de organização e o desafio é inventarmos todos juntos formas de organização que não sejam nem anárquicas – onde não haveria nenhuma forma de cooperação – nem demasiadamente rígidas, mas sim as que permitam otimizar a capacidade de invenção das pessoas, suas competências, suas experiências, suas memórias.

Se eu defendo o desenvolvimento de uma ciência da inteligência coletiva é porque estou certo que este é o melhor caminho para se chegar a uma cultura da inteligência coletiva, ou seja, com a constituição de uma vasta rede de pesquisas a perspectiva é avançar em direção a uma transformação cultural que caminhe nesse sentido. Uma transformação e não uma revolução, que deve ser feita tranqüilamente, sem forçar nada, a partir da conscientização de cada um. Porque uma cultura não é definida por um pequeno grupo de dirigentes ou de pensadores, é algo que é partilhado pelo conjunto de uma população. Ela é produzida de forma espontânea por todas as pessoas que participam dessa cultura. É algo que vai levar tempo, necessariamente, mas que depende de cada um de nós. Não devemos nos aborrecer pelo fato de ainda não estarmos em uma situação perfeita de inteligência coletiva. Cada um deve se perguntar o que pode fazer para propagar novas formas de fazer. E a resposta é: dar o exemplo.

Gostaria, então, de esboçar uma perspectiva um pouco mais ampla, mais extensa, que é aquela do ecossistema de todos os conhecimentos, de todas as idéias, de todas as práticas humanas. Há séculos que se fala da humanidade em geral, mas falava-se de uma humanidade abstrata, concebida na sua universalidade. Hoje, no entanto, desde o desenvolvimento do ciberespaço, podemos observar ou mergulhar na inteligência coletiva da humanidade quando navegamos na web, quando participamos de um fórum de discussão em uma língua e depois de outro em outra língua etc. De repente, esse ecossistema das idéias humanas torna-se palpável e percebemos que participamos dele, que nós é que o tornamos vivo. Esse ecossistema emerge da atividade, do pensamento, da comunicação, da ação dos seres humanos e creio que não seria mal, de vez em quando, elevarmo-nos a esse nível de generalidade e considerarmos que todos nós fazemos viver o mundo das idéias, que ele não existiria sem nós. Não seríamos humanos vivendo em uma cultura se essas idéias científicas, religiosas, políticas, artísticas não existissem.

 

Bloco 2 – As três etapas da evolução

Eu gostaria de situar um pouco esse mundo das idéias na história da evolução. Podemos dizer que há um primeiro nível do “vivo” que é a vida orgânica, a vida dos corpos, dos micróbios, das plantas e esse primeiro nível da evolução da vida está baseado em um código digital, o primeiro código digital, que é o DNA. Há, portanto uma dialética entre as mutações que ocorrem no código digital, ou seja, nos genes e sua repercussão sobre os fenótipos, ou seja, sobre os corpos das plantas, dos micróbios etc. E há uma seleção natural não só dos corpos, mas dos genes que são responsáveis por esses corpos e assim por diante. E é assim que podemos explicar, grosseiramente, o ciclo da evolução.

Existe um segundo estágio da evolução do mundo vivo que está relacionado ao surgimento, no decorrer da evolução do estágio precedente, dos sistemas nervosos, ou seja, dos animais. Nos animais há uma interação entre as percepções e as ações e essa interação passa pelo sistema nervoso. É graças a ele que o mundo sensível aparece. Se não houvesse sistema nervoso não haveria som, não haveria imagem, formas, cor, não haveria cheiro nem sabor. O mundo sensível existe porque o sistema nervoso existe. Temos aqui, pois, o aparecimento de um código digital, que é o código de comunicação entre os neurônios: a corrente passa ou a corrente não passa. E é verdadeiramente um código digital porque ele é o mesmo, quer se trate de codificar emoções, imagens, sons etc. São sempre impulsos elétricos entre neurônios.

A um segundo universo de formas, não somente orgânicas, mas sensíveis, com animalidade e humanidade temos um terceiro universo de forma que, naturalmente, repousa sobre os dois precedentes, mas são formas que não existiam no mundo animal. Por exemplo, números, deuses, constituições políticas, peças de teatro. E tudo isso só se tornou possível porque um terceiro código apareceu, que é o da linguagem. Por que a linguagem tornou possível o mundo das idéias? Provavelmente porque, com uma grande simplicidade fonética (há trinta fonemas na maioria das línguas) podemos produzir seqüências diferentes, uma infinidade de seqüências que possuem uma capacidade de engendrar uma infinidade de significados diferentes. E nós, como espécie humana, inventamos uma forma de inteligência coletiva que não existia nos animais. Porque evidentemente a inteligência coletiva não começa com a espécie humana. Todo mundo sabe que o formigueiro é mais inteligente que a formiga e que a colméia é mais inteligente do que a abelha; até um grupo de zebras é mais inteligente do que a própria zebra. Por isso elas vivem em grupo. Mas nós, pela linguagem, abrimos um universo de comunicação completamente diferente. Uma das melhores ilustrações dessas diferenças é que com a humanidade começa um tipo de evolução que não existia antes, que é a evolução cultural. Os leões se comportam da mesma maneira desde que existem leões, enquanto que os seres humanos modificam seu comportamento. Houve uma evolução técnica, religiosa, moral e política. Há uma evolução dos conhecimentos, uma evolução científica etc. Portanto, é porque vivemos no universo da linguagem, que conseguimos formar uma inteligência coletiva de um tipo mais poderoso do que aquela das espécies animais, que somos o que somos.

Eu gostaria de tentar relacionar o que estou dizendo com as experiências fundamentais que todos nós temos. É porque falamos que todos nós praticamos uma forma de inteligência coletiva que é capaz de aperfeiçoamento constante. E o que quer dizer falar?

Sabemos que os animais se comunicam entre si. A diferença é que a linguagem nos permite fazer três coisas que os animais não podem fazer: primeiro, fazer perguntas. Os animais não fazem perguntas. Isso quer dizer que há alguma coisa que não sabemos. Nós encontramos nossa própria ignorância, um vazio no espírito, uma carência, um branco. E nesse momento nós fazemos perguntas. Não estou falando de perguntas retóricas, falo de verdadeiras perguntas. Fazemos uma pergunta e se não temos a resposta somos obrigados a buscá-la no ambiente ou buscá-la com outra pessoa. Essa é uma abertura fantástica: o fato de percebermos nosso próprio limite. O animal não sabe que é limitado, nós sabemos. É justamente porque sabemos que somos limitados que somos ilimitados.

A segunda particularidade da linguagem humana é o fato de contarmos histórias. Os animais não contam histórias e é porque contamos histórias que temos uma concepção do tempo. Organizamos nosso pensamento em antes, depois, antes, depois, antes, depois, causa, efeito, causa etc, atores que interagem entre si e que, ao fazerem isso, transformam uma situação. E nesse momento podemos inventar uma medida de tempo, podemos aprofundar a noção de causalidade e, sobretudo, vivemos na significação, porque, para nós, que as coisas tenham sentido equivale a contar uma história, fazer um relato. No início, os relatos mais importantes da humanidade eram as lendas, as fábulas. Hoje, continuamos a contar histórias. Dizemos que não são lendas; não importa. Não somos capazes de viver se não damos sentido àquilo que vivemos, ou seja, ser não contamos história. Evidentemente, não contamos sempre a mesma história, mas produzimos sentido a partir disso. E por que a inteligência coletiva? Porque as histórias são transmitidas. Contamos uma história a alguém e essa pessoa guarda o que lhe foi contado. Quando nos explicamos aos outros estamos contando a nossa história, a história das coisas que nos interessam. É uma forma de vínculo entre nós, extremamente importante. E, finalmente, já que eu falo de laços entre nós, temos o diálogo. Como eu dizia, os animais emitem sinais entre si. Quando a zebra vê, pelo canto do olho, o leão aproximar-se na savana, ela começa a tremer e foge, imediatamente. As outras zebras entendem e começam a fugir também. O sinal foi transmitido, mas isso é um diálogo? Não. No diálogo nós participamos da interioridade do outro. Nós nos apercebemos que existe um outro que não somos nós. E, evidentemente, isso cria um vínculo entre nós que é muito mais profundo que aquele que existe nos animais.

Quando fazemos perguntas uns aos outros inicia-se um diálogo e, freqüentemente, respondemos às perguntas com histórias. Isso é o motor da produção do universo da significação, que é a cultura. E é algo muito dinâmico, que nasce com as perguntas, com os diálogos, com as histórias que contamos etc. Fazendo tudo isso nós fabricamos ferramentas, inventamos instituições sociais e políticas, começamos a fazer música e a dançar, e todo o universo começa a se desenvolver.

 

Bloco 3 – O triângulo da significação

O mundo da significação, no qual se desenvolve a inteligência coletiva, é organizado em torno de três pólos, sem os quais não haveria significação. O que eu vou dizer aqui não fui eu que inventei. É algo que foi dito há muito tempo, por Aristóteles, por exemplo, e que foi repetido por todos os filósofos medievais, redito pelos lingüistas e semiólogos contemporâneos. Não é uma teoria de Pierre Levy, é algo já muito conhecido, mas sobre o qual não se reflete suficientemente. Onde nós, seres humanos, vivemos? Evidentemente, vivemos no mundo físico, mas as pedras também vivem nele. O que existe de original no nosso modo de existir é que vivemos na significação e as pedras não. E como se organiza essa significação? É uma tensão viva entre três pólos.

Em primeiro lugar, o pólo do signo. Se eu digo “computador”, é o som “computador” que é o signo. Há o referente, aquilo do qual estou falando, a “coisa”. E depois há o espírito, para quem o “computador” significa a “coisa”. Há, portanto, um espírito para colocar um signo em relação com aquilo que esse signo representa, porque se não houvesse espírito não haveria nem mesmo a noção de representação. Portanto, esse universo da significação é forçosamente organizado nesse triângulo. Uma idéia é um conjunto de signos que estão em relação uns com os outros. Uma idéia é como um ser vivo que é capaz de se reproduzir, passando de um espírito para outro. Cada vez que uma idéia é concebida, é pensada por um espírito, é como se a idéia se reproduzisse, de certa forma. Quando ela está escrita em algum lugar, ou quando ela está encarnada em uma estrutura material qualquer, podemos dizer que ela é virtual. A partir do momento em que ela na experiência de alguém ela é atualizada e é como se houvesse uma reprodução. Há idéias que se reproduzem bem, outras não tanto, e há espécies de idéias que morrem, simplesmente. De um modo geral, toda evolução cultural é a história da evolução das idéias e de sua relação com as populações humanas, que as nutrem. O ambiente no qual a idéia vive é triplo, o que corresponde aos três pólos do significado. A idéia tem relação com o ecossistema dos signos que, hoje, podemos talvez representar pela web, ou seja, pela Internet. A idéia é também uma ação sobre a natureza, sobre a realidade física ou biológica. Por exemplo, se eu digo alguma coisa que faz vocês rirem ou chorarem, algo está se transformando na matéria porque vocês receberam a idéia. Se eu tiver uma idéia científica ou técnica, ela pode ter conseqüências práticas físicas, naturais.

A espécie humana é aquela que mais transformou o ambiente real em comparação com as outras espécies de mamíferos que conhecemos. Possuímos tal poder de transformação porque temos idéias. Finalmente, há uma outra parte do ambiente onde a idéia intervém, que é a relação entre nós e a sociedade. Cada idéia é um movimento no jogo das relações políticas, afetivas, éticas, jurídicas, econômicas etc. Todas essas idéias vivem em sociedade. De uma certa maneira a inteligência coletiva é um ecossistema de todas essas idéias que nós fazemos viver, porque nós as nutrimos e as reproduzimos. Isso não quer dizer que não haja uma noção de responsabilidade. A responsabilidade existe; somos livres para reproduzir ou não uma idéia que circula em nosso ambiente.

 

Bloco 4 – Ecologia de idéias

Uma população humana vive em simbiose com um ecossistema de idéias. Se esse ecossistema é favorável à população que o abriga e nutre, essa população vai viver melhor do que aquelas que mantêm idéias desfavoráveis a ela. Se certas populações não ajudam as idéias a se reproduzirem, então essas idéias não serão favoráveis àquelas populações. Há, portanto, uma relação bidirecional, na qual não há nenhum elemento fundador ou fundamental. É um sistema de auto-referência, de auto-organização. O leme da evolução não está nas mãos das idéias nem tampouco nas mãos da população, mas, sim, na relação entre as duas.

Quero mais uma vez utilizar a abordagem de três pólos da significação para continuar a refletir sobre essa noção de inteligência coletiva. Podemos distinguir, no desenvolvimento cultural, três direções principais que correspondem aos três pólos de significação. Há uma inteligência técnica que, evidentemente, é própria da espécie humana porque fomos nós que desenvolvemos a maioria dos instrumentos e continuamos sempre a inventar ferramentas. Desenvolvemos armas, desenvolvemos a arquitetura, a agricultura, a indústria, a engenharia, a tecnologia etc., e portanto, há toda uma forma de pensamento coletivo que é técnico. Mas há também outra forma de pensamento, que é o abstrato, o pensamento conceitual, formal, que não trata da materialidade física mas incide sobre os signos. São as matemáticas, as artes, a literatura, a comunicação, a semiótica. É muito difícil separar esses dois tipos de pensamento porque as grandes civilizações técnicas são também civilizações que possuem uma escrita, que desenvolveram as artes, as ciências abstratas etc. Não podemos ter um sem outro.

Há, ainda, um terceiro pólo, que é um pólo relacional, aquele das relações entre os seres humanos, ou o pólo político, religioso, que concerne à regulação da agressividade entre as pessoas. É isso que eu chamo de inteligência emocional. Se nós devemos refletir sobre o que é inteligência coletiva é preciso conceber que ela se desenvolve quase que necessariamente nessas três dimensões, que não podem ser separadas, pois são as três dimensões da significação. Então vocês podem entender quando Edgar Morin diz que se pensamos uma coisa independentemente das outras, estamos condenados a não entender o que está em jogo.

 

Bloco 5 – Economia da reprodução

Talvez, um dos fatores mais importantes na evolução cultural é a forma como as idéias se reproduzem. No início da história da humanidade as idéias eram transmitidas oralmente e se reproduziam de geração em geração. As idéias também eram transmitidas pelos rituais conjuntos, pelas ferramentas, por tudo que podia constituir uma memória. O essencial da memória era concluído nas lendas, que eram transmitidas no seio de tribo de geração em geração. Com o aparecimento da escrita aparece também uma espécie de memória autônoma das idéias, que podem durar no tempo independentemente do sopro vivo de uma pessoa que está tentando transmitir essa idéia. Hoje, podemos ler Platão, mesmo que ele tenha escrito algo há dois mil e quinhentos anos. Os arqueólogos podem decifrar o que os egípcios haviam gravado em hieróglifos nos templos. A escrita não só cria um vínculo entre gerações maiores mas permite um acúmulo de conhecimentos no interior de uma sociedade que é também muito maior e permite, além disso, uma organização da sociedade muito mais complexa do que uma sociedade sem escrita. O Estado, por exemplo, como forma política, seria muito menos desenvolvido se não houvesse a escrita. A ciência seria impensável, as religiões como as conhecemos também. O que eu quero dizer é que os meios de comunicação amos condenados a não entender o que está em jogo. São como órgãos de reprodução ou como a memória das idéias. Quanto mais esses órgãos de comunicação se aperfeiçoam, mais essa memória se torna vasta e mais o ecossistema das idéias se transforma, a inteligência coletiva aumenta, se complexifica e evolui com rapidez.

Com a invenção da imprensa chega-se a uma situação ainda mais biológica, pois as formas culturais são quase capazes de reproduzirem-se por si mesmas. Podemos ir mais longe ainda se pensarmos no telefone, no cinema, nas mídias hertzsianas. E finalmente hoje nós temos um ecossistema de idéias no qual, quando uma representação se encontra em algum lugar do ciberespaço, ela está ao mesmo tempo em todo o lugar da rede. Portanto, é uma situação de ubiqüidade, o que, evidentemente, nunca aconteceu na história da humanidade. E nós só conhecemos essa situação há dez ou quinze anos. É algo muito novo e é muito difícil dizer a que civilização essa nova situação, esse novo ambiente ecossistêmico da cultura vai nos levar. Há essa noção de ubiqüidade e também a noção de interconexão, pelo menos de interconexão possível de todas as idéias, com os hipertextos da web, com o correio eletrônico e “links” no e-mail. Isso oferece a possibilidade de mostrar coisas em tempo real na escala planetária, o que é totalmente novo na história da cultura. Vocês podem imaginar o que isso representa para a inteligência coletiva. Finalmente, há essa capacidade autônoma de ação dos signos. Poderíamos falar de robôs, de inteligência artificial, de vida artificial etc., mas estou me referindo a algo mais comum, que todos nós conhecemos, que é o software. São fragmentos de escrita capazes de agir uns sobre os outros, ou de fazer agir os mecanismos que acionam robôs, por exemplo, e que vivem no ciberespaço. Creio que é muito importante considerar essa nova situação da vida cultural na qual muitas coisas surpreendentes podem acontecer e na qual creio que devemos apreender as possibilidades mais emancipadoras, porque não é garantido que as melhores coisas aconteçam. Isso depende de nós. É preciso entender que todas essas coisas são possíveis e que elas dependem não só de nossa ação individual, mas da forma como vamos nos organizar para que as melhores coisas aconteçam.

Para refletirmos um pouco mais sobre essa noção de idéia, podemos nos deter sobre o que muitas pessoas chamam de economia da informação, economia do conhecimento. Como podemos articular essa noção de economia do conhecimento com a perspectiva da inteligência coletiva? Eu vou adotar uma perspectiva que é clássica em economia, que consiste em distinguir o capital do trabalho. Vou definir antes o que é capital. Qual é o significado etmológico de capital? Etimologicamente, capital significa cabeças de gado. Capital vem de caput, cabeça em latim. Quando se dizia, na época bíblica, que Abraão tinha um capital, isso significava que ele possuía um rebanho. E a principal particularidade do capital é que ele é capaz de se reproduzir. O rebanho é capaz de se reproduzir, de produzir filhotes.

Antes mesmo de termos rebanhos, a primeira coisa que consideramos capital foram as mulheres. Mas se vocês estudarem o sistema elementar de parentesco de Lévi-Strauss, vocês verão que as mulheres nas sociedades arcaicas são consideradas como a riqueza principal e a razão disso, provavelmente, é que são as mulheres que fazem as crianças, que as reproduzem, pelo menos numa primeira visão ingênua. Portanto, o trabalho, naquela época, consistia na caça e na colheita para manter a fonte da reprodução. Isso corresponde, aliás, à época da oralidade. Na época da revolução neolítica, no momento em que se sistematiza a agricultura, a criação de animais etc., a fonte principal da reprodução são os grãos e os rebanhos e o trabalho principal será a criação de gado e a agricultura.

Com o alfabeto, podemos dizer que a nova fonte de reprodução, que é capaz de ter filhotes, é o dinheiro. Vocês podem perceber que vai ocorrendo um grau de abstração suplementar, e é através do comércio que somos capazes de fazer com que o dinheiro se reproduza e se multiplique. Temos, então, um novo tipo de trabalho que se generaliza, o do artesão e o do comerciante.

Na época da imprensa, as instalações industriais e as máquinas tornam-se a fonte de reprodução. A fábrica reproduz mercadorias, como se fosse uma grande matriz. E notem bem, a primeira máquina industrial que reproduziu mercadorias em série foi a imprensa, ou seja, a primeira coisa que nós reproduzimos em série, de forma industrial, foram as idéias. E depois fabricamos roupas, produtos mecânicos etc.

Se observarmos o desenvolvimento do rádio, da televisão, do disco veremos até que ponto essa reprodução automática incide, ainda hoje, sobre mercadorias informacionais, imateriais. Antes o trabalho importante era o do operário, o do engenheiro que constrói e mantém as máquinas. E hoje? Hoje, é claro, as etapas anteriores não desapareceram. Por exemplo, a agricultura vai existir, provavelmente, por muito tempo ainda. Mas é menos pessoas trabalhando na agricultura, porque temos meios industriais para fazê-la de forma mais eficaz. Hoje, então, a fonte de riqueza, aquilo que é capaz de reproduzir-se, o rebanho que dá o leite, a carne, a lã, são as idéias. Quem são as pessoas mais ricas do mundo hoje? São as pessoas que têm a sua fortuna baseada na propriedade intelectual: pessoas que trabalham com software, certos artistas, pessoas que vivem da própria imagem, porque a imagem é uma idéia. Não apenas idéias científicas, filosóficas, mas todo o tipo de idéias. Pode ser música, um jogo de futebol, por exemplo.

 

Bloco 6 – Capital de inteligência coletiva

Gostaria, para encerrar, de analisar essa inteligência coletiva com conceitos econômicos, e sempre com aqueles três pólos de significação. Começando pelo pólo físico, natural, temos o que se pode chamar de capital técnico. Como exemplo, pensemos nesse nosso encontro. Para que ele acontecesse precisamos de um prédio – isso ajuda muito – e também de um microfone, um computador, uma tela. Há um ambiente físico que favorece nosso trabalho. Um ambiente físico que é constituído, por exemplo, por estradas e veículos, que evidente que há cada vez permitem que as pessoas se encontrem, que as idéias circulem. O capital técnico não é apenas o ambiente físico. É também a mídia, os jornais, o radio, a televisão, os livros e, finalmente, os computadores e a Internet que são, hoje, a ponta mais avançada, mais eficaz, mais rápida na facilitação da inteligência coletiva.

No pólo do signo temos o que se pode chamar de capital cultural, ou seja, a memória gravada da cultura. Por exemplo, as bibliotecas. Não estou falando aqui dos prédios, dos livros, mas sim do conteúdo, da organização da estrutura abstrata das idéias, que são visualizadas, são representadas por signos. Há, então, as enciclopédias, os manuais de aprendizagem escolar e há hoje a web que, de certa forma, representa o conjunto dos conhecimentos que são – ainda não completamente, o conjunto todo – potencialmente, assintaticamente, os conhecimentos produzidos pela humanidade. As novas idéias só poderão crescer em um solo que absorveu, que contém toda a memória da humanidade e quanto mais memória esse solo tiver mais idéias novas poderá fazer crescer.

Eu sou a favor da cibercultura mas não acho que devemos fazer tábula rasa do passado, esquecer a antiga cultura. Ela é um tesouro inestimável que devemos conservar preciosamente, manter viva o mais tempo possível, pois é sobre ela que podemos construir o novo. Portanto, o capital cultural é, de certa maneira, a memória gravada da evolução cultural, que nos oferece uma enorme quantidade de idéias, de inspiração até hoje.

Finalmente, o terceiro pólo é o que se denomina capital social, que são os vínculos entre os seres humanos e, particularmente, não apenas a quantidade como a qualidade desses vínculos. Por exemplo: será que confiamos uns nos outros? Ou somos honestos e sinceros ou então passamos nosso tempo a imaginar estratagemas maquiavélicos para nos apunhalarmos uns aos outros pelas costas. Se nos encontramos no primeiro caso, podemos imaginar que a cooperação intelectual irá funcionar um pouco melhor. Se praticamos o amor ao próximo será muito mais fácil cooperar, ter idéias juntos e melhorar nossa situação comum. Mas se nós passamos nosso tempo a nos mentir, a trairmos nossa confiança, é provável que a cooperação intelectual não funcione muito bem. Existe, pois, o clima que reina numa população e esse clima, diria eu, é uma questão de cultura, depende do regime político, das leis etc. Podemos dizer que, provavelmente, uma situação democrática é melhor que uma situação de ditadura, porque há menos violência social, há mais liberdade de expressão, as idéias podem circular mais livremente.

Portanto, há toda essa noção de capital social e há o que poderemos chamar de capital intelectual, ou seja, as idéias originais que foram produzidas pela população em questão. Se tratam de idéias concretas, podem ser traduzidas como propriedade intelectual mas, se forem idéias abstratas são de propriedade comum, pois não pode haver propriedade com relação às idéias abstratas. Mesmo as idéias concretas depois de um certo tempo passam de propriedade intelectual privada para o domínio público.

Além das idéias que são produzidas pela população existe também as competências que dizem respeito a essas idéias que a população produz, o ecossistema que ela nutre. Esses dois aspectos, as idéias originais e as competências reais e vivas formam o capital intelectual, que é alimentado pelo capital social, pelo cultural e pelo técnico que, por sua vez são alimentados por ele.

Tentei representar as relações entre essas quatro dimensões da inteligência coletiva. Na base está tudo o que é concreto, físico, material e que constitui as condições de possibilidade do resto, porque se não temos as cidades, as ruas, os veículos, os meios de comunicação, provavelmente a inteligência coletiva rapidamente encontrará limites. É preciso que muitas pessoas estejam em relação intensa umas com as outras para que cheguemos ao grau de cultura e civilização em que estamos, por mais limitado que esse grau seja, pois existem piores. Esse capital técnico é a condição do capital social. A Internet, por exemplo, nos permite estabelecer relações uns com os outros, trocar e-mails, participar de fóruns de discussão que, eventualmente, terminam em encontros reais. Esses novos meios de comunicação oferecem condições ao desenvolvimento do capital social. Oferecem condições, também, ao desenvolvimento do capital cultural, já que nunca houve tanta informação ou conhecimento que foi publicado “on line”. Além disso, essas informações e conhecimentos têm “links”, hipertextos entre si. O capital técnico oferece, pois, as condições de um aprimoramento do capital cultural.

Quando as pessoas mantêm boas relações, relações freqüentes, relações de confiança e dispõem de uma memória informacional, numerosa e bem organizada, podemos afirmar que elas estão em boas condições de inventar coisas novas e desenvolver sua competência pessoal. E essa inventividade (que não é a relação das pessoas entre si, nem dos signos entre si) é a relação das pessoas com as idéias. Nós oferecemos nossa energia, nossa atenção, nossas emoções e em troca as idéias nos dão mais capital social, mais capital cultural e mais capital técnico.

Existe um ciclo. Estou convicto de que há meios de compreender cada vez melhor como funciona esse ciclo. Nós estamos apenas no início, a nova situação criada pelo desenvolvimento do ciberespaço de repente nos abre um novo campo de pesquisa e compreensão que, na verdade, é o campo de pesquisas sobre a inteligência coletiva humana, sobre aquilo que é cooperação intelectual, sobre aquilo que é construir juntos idéias e selecioná-las para o melhor bem de todos. Mas estamos ainda no começo, é como se estivéssemos no início do período neolítico: pegamos os grãos que encontramos no campo, os selecionamos e vamos inventar o trigo. Então, ao invés das idéias crescerem desse jeito, vamos tentar sistematizar o modo de fazer e vamos inventar “raças” de idéias, como inventou-se o milho, o trigo, o arroz, como se inventou o cachorro, o cavalo, a galinha, o pato. Como faz o pato, que barulho ele faz? Quando ensinamos às crianças como o pato faz, nós as introduzimos em uma etapa muito importante no desenvolvimento da humanidade. É a etapa do neolítico, quando inventou-se a escrita, a criação de animais, a agricultura etc. Podemos imaginar que daqui a alguns anos, talvez daqui a alguns séculos, teremos passado uma nova etapa comparável àquela do neolítico, na qual teremos aprendido a criar e cultivar as idéias. Quando eu digo que sou favorável a uma ciência da inteligência coletiva, é dessa ciência que estou falando, e espero que nós sejamos, cada vez mais numerosos para nos engajarmos nessa empreitada. Muito obrigado.

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