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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.24 Rio de Janeiro June 2012
RESENHA
Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários
Working with Lacan: in analysis, supervision, and seminars
Leandro Alves Rodrigues dos Santos*
Universidade de São Paulo - USP
Organizado por DIDIER-WEIL, Alain e SAFOUAN, Moustapha; tradução de Claudia Berliner; revisão técnica de Leila Longo. Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, 159 p.
Trabalhar com Lacan, em seu divã como analisando, na poltrona sendo por ele supervisionado ou na instituição, como um par, convenhamos, não é pouca coisa, especialmente quando levamos em consideração o peso e a importância desse personagem singular no cenário psicanalítico. Sendo assim, um livro que compile testemunhos de quem trabalhou com Lacan durante os efervescentes anos de desenvolvimento da psicanálise na França parece ser, no mínimo, interessante, para além de uma evidente importância histórica.
Jacques Lacan encarnou e sustentou por toda a vida uma prática ousada, extrapolou os limites de Paris, mobilizou pessoas, tornou-se cada vez mais comentado e também valorizado, não apenas por repor nos trilhos a psicanálise fiel aos pressupostos freudianos, inovando e subvertendo certos pressupostos teórico-técnicos, mas principalmente porque também ampliou e sofisticou os horizontes da criação freudiana, chamando-a de causa e, como disse certa vez, fazendo disso a missão de sua vida.
É razoável supor então que os efeitos da convivência com Lacan possam ser perceptíveis e, de alguma forma, transmitidos. Aliás, esse talvez seja o maior mérito desse livro, projeto bem cuidado pelos organizadores Alain Didier-Weill e Moustapha Safouan, que entrevistaram onze psicanalistas que puderam testemunhar sobre a experiência particular com Jacques Lacan. Naturalmente, devemos estar advertidos quanto ao risco de tomar essa amostra como uma representatividade genérica e totalizante de um mito e seu estilo, mas Jean-Pierre Winter, por exemplo, destaca que o que mais chama sua atenção "nesse burburinho em torno das tiradas de Lacan é o fato de envolver, com frequência, tiradas relatadas fora de contexto e apresentadas como se se bastassem a si próprias, independentemente da transferência daquele que relata as frases e, sobretudo, dos eventuais efeitos que elas poderiam ter tido no tratamento. Efeitos que faziam com que não fossem simplesmente ‘tiradas', mas interpretações! Como sabemos, para verificar em análise se uma interpretação é uma interpretação, precisa-se do material que a ela se segue e do testemunho dos efeitos subjetivamente ou não que ela pode ter favorecido". (p. 134)
Dessa forma, a caminhada fica um pouco mais segura, sem os riscos de uma passagem por demais hagiográfica das narrativas de cada um dos entrevistados, cada qual com "seu" Lacan particular, como se pudesse haver um Lacan "verdadeiro" ou original, até mesmo porque, especialmente após sua morte, começou a ocorrer uma consistente distorção em suas apostas, como, por exemplo, nos tópicos do corte da sessão e do manejo com o dinheiro numa análise, como se Lacan sempre fizesse sessões relâmpago e o trato com o dinheiro fosse sempre espetacular. Não é bem o que encontramos em alguns depoimentos, como é o caso de Colette Soler, quando declara que "não só não tinha previsto, como não entendia os fundamentos daquela prática. Seus motivos, suas razões, sua legitimidade me escapavam. No entanto, posso dar meu testemunho de que, nessa perplexidade, nada havia de reivindicação que tantas vezes ouvi sendo expressa por outros. E, de fato, posso dizer que, durante tantos anos de análise, nem uma única vez tive a sensação de ter me faltado nem tempo, nem a atenção especial que o analisando exige em geral. Questão de demanda, evidentemente!". (p. 114)
Ou mesmo no depoimento de Patrick Valas, comentando o resultado de algumas ausências de Lacan nas sessões, no começo de 1980:
"– Quanto lhe devo? – disse-lhe eu. – Porque, afinal, o senhor me deixou na mão durante um mês.
Resposta:
– O senhor mesmo pode calcular.
Estimei que, no fundo, a ausência era responsabilidade sobretudo minha, bastava eu ter telefonado mais cedo. Calculei: um mês = tantas sessões + tantas supervisões = 5 mil francos.
– Não tenho essa quantia comigo, posso lhe deixar um cheque caução, amanhã trago em dinheiro?
– Isso mesmo.
Preenchi o cheque e lhe perguntei:
– Ponho em nome de quem?
Berros de Lacan:
– Glória, Glória! Ela irrompe imediatamente.
– Ensine Patrick a fazer um cheque.
Ele, batendo os pés sem sair do lugar, eu, voltando-me para ela:
– Em nome de quem?
Sem hesitar, ela disse:
– Em nome do Outro, com o O maiúsculo – e arrancou o cheque de mim nas barbas de Lacan." (p. 131)
Afinal, se Lacan ousava sair dos padrões oficializados pela IPA, tal postura que lhe custou caro, estava a serviço das análises ou supervisões, manejos sutis que ajudavam o sujeito a avançar na tarefa de se confrontar com o próprio inconsciente ou dos pacientes que o procuravam, como podemos depreender da fala de Adnan Houbballah, então um jovem analista, que ao procurá-lo para uma supervisão, nos conta que Lacan "perguntou o objetivo de minha visita e me explicou que começaríamos a supervisão da próxima vez. ‘No começo', disse ele, ‘serei pedagogo. Depois, será outra coisa'. Vinte minutos após o início dessa primeira entrevista, evoquei a questão do dinheiro. Expressei-lhe claramente minha situação: ‘Só posso pagar 100 francos'. Lacan concorda. Soube depois que Lacan avaliava o preço de uma sessão em função de seus efeitos no tratamento. Por exemplo, na minha volta do Líbano – de onde vim arruinado, em 1975 –, só podia pagar 50 francos por minha supervisão. Ele aceitou, com a condição de voltar à antiga tarifa quando a situação se normalizasse. A supervisão durou 12 anos." (p. 46)
Ou mesmo, em um contato supostamente informal, antes mesmo do que se convenciona chamar de entrevistas preliminares, como descreve a brasileira Marie-Christine Laznik, recém-chegada de um Brasil tomado pela ditadura militar, com o nome de Lacan no bolso, supondo que pudesse ajudá-la com alguma indicação, para o início de uma análise em solo francês. Lacan não fornece nenhum nome, mas ao contrário, interroga-a de outro lugar e perspectiva. Ouçamo-la:
"Ocorre-me agora que, na nossa primeira entrevista, Lacan me perguntou o que eu tinha feito no Brasil em termos profissionais. Depois de me escutar, decidiu que eu devia fazer uma tese sobre ‘os ritos de possessão no Brasil e sua eficácia'. Dito e feito, pegou o telefone e ligou para seu amigo Balandier. Sem ter pedido, vi-me catapultada ao encontro desse professor para fazer um mestrado sobre os ritos de possessão. E, às voltas com esse trabalho, volto a encontrar os ritos de possessão que estavam no princípio de minha relação com ele. Não fiz essa tese, mas, anos depois, incentivei outra pessoa a fazê-la. Acabo de entender as raízes do interesse de Lacan por essas questões." (p. 71)
Esse era Lacan, um psicanalista apaixonado que mantinha coerência entre o que dizia e o que fazia, mesmo em momentos nos quais os mecanismos da psicologia das massas predominam, quando o grupo sobrepõe o bom-senso que deveria imperar, como, por exemplo, nas instituições psicanalíticas fundadas por Lacan. Claude Dumezil pode explicar melhor:
"Suas palavras equivaliam, me parece, a dizer: ‘Sobretudo, não se tome por um grande Outro, você está simplesmente sendo aceito como AE da EFP'. Gostaria de dizer ainda uma palavra sobre o modo como Lacan tratava o analítico na instituição. É sobre a montagem dos títulos na Escola. Havia os analistas praticantes (AP), os analistas membros da Escola (AME) e os analistas da Escola (AE). Isso remetia à clássica diferenciação entre estagiário, associado e titular. Claro, não era nada disso. A estrita definição dessas diferentes categorias de membros subvertia completamente a ideia de gradus. Era feita para isso. Não havia ordem preestabelecida para se ter acesso a esses títulos. Ser AE não implicava, em absoluto, portar este ou aquele outro título. Declarar-se psicanalista era a razão do título de analista praticante; o de AME dependia de uma competência; o de AE dependia de uma performance. É fácil perceber que se, por algum descuido, esses três títulos tentassem aqueles que estivessem buscando honrarias, eles perderiam a viagem – de fato, bem decepcionados: como ser incauto em relação a um título que você mesmo se concedeu (AP), ou em relação a um título que só vale competência (AME), quando há os que voam nas altas esferas da performance (AE)? Quanto a estes, os AE, que se aventuraram nessa esquiva da análise didática, sua qualificação de analista da experiência da Escola não valia a habilitação de praticante. Cada sigla – AP, AME, AE – remetia o portador a ficcionalizar a própria noção de título. Tratava-se apenas de colocar em perspectiva as três categorias de membro, e cada um podia sentir, como analisando, o sentido ético da impossibilidade estrutural de uma habilitação totalizadora." (p. 41)
Lacan ousava, não hesitava em criar, inovar e subverter os padrões, aliás, decididamente não tomava as recomendações de Freud como um tabu. Certa vez, disse que discordava muito do psicanalista inglês Donald Winnicott, mas que respeitava sua flama de psicanalista. É disso que se trata, de uma flama que impulsiona o psicanalista, em intrínseca conexão com o desejo de analista, como nos mostra Alain Didier-Weill:
"Quero trazer alguns exemplos concretos que evidenciem de que modo Lacan podia não resistir. Podia, no caso, aceitar certas propostas que fui levado a lhe fazer de inovar em alguns pontos do tratamento: aceitou, por exemplo, o pedido que formulei num momento dado de fazer, dentre as nossas sessões, ao menos uma semanal, por escrito. Assim, durante dois anos, enviei pelo correio sessões escritas, junto com uma nota de 500 francos. Outro exemplo. Quando concluí minha análise com ele e me propôs prosseguirmos nosso trabalho com uma supervisão, fiz a seguinte contraproposta, que ele aceitou: será que poderíamos tomar ‘em supervisão' tanto o analista Lacan que me analisou durante dez anos quanto o analista que eu tinha me tornado naquele tratamento? No caso, será que seria possível, só depois, formular questões teóricas a partir do saber inconsciente revelado aos dois pela experiência compartilhada? Mais particularmente, questões às quais as teorias de Freud e de Lacan parecia não responder? Foi com esse procedimento, possibilitado por Lacan, que aprendi tudo o que sei do inconsciente. Por outro lado, aquela foi a oportunidade de compreender o que para ele era o passe, esse tempo mediante o qual um devido analista tinha não de inventar a psicanálise – isto já estava feito –, mas de fazer passar sua forma de reinventá-la." (p. 33)
À guisa de conclusão, ler este livro, deixando-se tocar pelas narrativas, fazendo comparações, estabelecendo analogias, refletindo cuidadosamente, pode ser um bom exercício de pensar o passado e vislumbrar um pedaço da história da psicanálise. Afinal, saber do passado nos faz reformular o presente, mas fundamentalmente, nos ajudar a inventar um futuro diferente. É disso que a psicanálise precisa para continuar existindo no mundo.
Endereço para correspondência
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
E-mail: leandroarsantos@uol.com.br
Notas
* Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano –Brasil. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.