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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.26 Rio de Janeiro June 2013
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
Uma escrita que brota à flor da pele
A piece of writing which blossoms upon the skin
Ingrid Figueiredo Ventura
RESUMO
Este trabalho discute a relação do fenômeno psicossomático com a escrita, seguindo a proposição lacaniana de que, nesses casos, o corpo se deixa escrever algo da ordem do número. Nesse sentido, o fenômeno psicossomático seria uma escrita no corpo que não se dá a-ler como um hieróglifo e não cede à interpretação. Diversamente do sintoma, o fenômeno psicossomático apresenta uma holófrase local entre o primeiro par de significantes S1 – S2, o que impede o deslizamento na cadeia. Embora a escrita seja um traço onde se lê um efeito de linguagem, para que ela passe a algo legível é preciso uma reinscrição em outra parte. Diante dessa clínica, nos indagamos se, deparados com este fenômeno, estaríamos diante da letra e qual seria a direção do tratamento com pacientes acometidos por estas afecções.
Palavras-chave: Fenômeno psicossomático, Escrita, Corpo, Interpretação, Tratamento.
ABSTRACT
This work discusses the relationship of psychosomatic phenomenon with writing, following the Lacanian proposition which holds that, in such cases, the body lets itself write something related to the number order. In this sense, the psychosomatic phenomenon would be a piece of writing on the body that does not set to be read as a hieroglyph and does not yield to interpretation. Differently from symptom, the psychosomatic phenomenon presents a local holophrase between the first pair of significant S1-S2, which prevents a slip in the chain. Although writing is a trace where one reads an effect of language, for that to pass on something legible, re-inscription on another part is needed. Faced with this clinic, we ask ourselves whether, having this phenomenon at hand, we would be in front of the letter and which direction of treatment with patients affected by these disorders would be chosen.
Keywords: Psychosomatic phenomenon, Writing, Body, Interpretation, Treatment.
Introdução
Este trabalho surgiu de interrogações provenientes de minha escuta nas entrevistas com pacientes portadores de afecções de pele, como psoríase e alopecia, no Instituto da Pele da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), instituição que compõe a Rede de Pesquisa em Sintoma e Corporeidade do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo, e da Universidade de São Paulo (USP). Em O lugar da psicanálise na medicina (1966), uma conferência endereçada a médicos, Lacan diz que nestas afecções, abordadas como fenômenos psicossomáticos, haveria uma falha de saber em um ponto específico da cadeia significante, à qual chamou falha epistemossomática.
Estando fora das construções do registro simbólico, esta falha manifesta-se no real do corpo, no ponto onde este não foi recoberto pela linguagem, diversamente do sintoma, como a conversão histérica, um sintoma no corpo, que se manifesta como uma formação do inconsciente, obedecendo aos mecanismos da metáfora e da metonímia, segundo Lacan (1957/1998). Esse acontecimento coloca um impasse para a condução da análise com esses pacientes, pois eles permanecem fortemente vinculados ao diagnóstico médico, o que dificulta a regra fundamental da associação livre e o manejo da transferência.
Portanto, a conversão histérica, manifestando-se como uma formação do inconsciente, conserva uma relação com o seu romance edípico. Dessa forma, o sintoma aparece como o retorno do recalcado, permitindo, parcialmente, uma satisfação pulsional. O fenômeno psicossomático, em contrapartida, não obedece a essas mesmas leis e aparece como um acontecimento de corpo, como uma tentativa de satisfação que não passa pelo encadeamento simbólico, estando, segundo Lacan (1964/2008), na mesma série da debilidade mental e da psicose.
Freud (1895/1996) deparou-se com afecções que se manifestavam no corpo do sujeito, as quais em muito se aproximavam do fenômeno psicossomático, chamando- as de "neuroses atuais"; ocorreu-lhe nomeá-las dessa maneira, porque fazem referência a uma atualidade, por não guardarem relação com a história do sujeito. Além disso, elas indicam que a satisfação pulsional, em vez de estar restrita às zonas erógenas, pode ser obtida por qualquer órgão, mostrando que esse corpo apresenta um ponto complacente para o seu adoecimento, fazendo referência a um masoquismo corporal, fato que o levaria a gozar do fenômeno, induzindo o paciente a pagar a dívida daquilo que não foi simbolizado.
No que se refere a essa satisfação específica, Lacan (1975), na Conferência de Genebra sobre o sintoma, afirma que esses sujeitos comportam uma modalidade de gozo bastante particular, que os impede até mesmo de construir um saber sobre o mal que isso lhes causa. Este seria um gozo específico, um gozo Outro, atendo um significante isolado na sua carne. Esse gozo fixa uma corporificação da libido, como diz Assadi e Ramirez (2010). Tal fixidez de gozo acaba por desafiar o analista, impondo uma dificuldade à direção do tratamento, à medida que a demanda do paciente se apresenta como uma resposta ao sofrimento localizado em uma parte do seu corpo. O que se observa é uma dificuldade em incluir a queixa na esfera simbólica, pois a fala permanece circunscrita em torno da doença.
Além disso, o autor admite que essas afecções manifestam-se a partir da lógica do número, referente à contagem e não à decifração. Destarte, pode-se considerar que se trata de uma escrita no corpo que não se dá a-ler. Diferentemente do sintoma, o fenômeno psicossomático apresenta uma holófrase local entre o primeiro par de significantes S1 – S2, o que impede o deslizamento na cadeia. Na mesma conferência, Lacan refere-se ao fenômeno psicossomático como um hieróglifo que não cede à interpretação. Estar-se-ia, então, diante da letra? Se, como diz Lacan (1971/2003), a letra constituiria litoral entre saber e gozo, e, se for considerado que o litoral separa dois domínios que nada têm em comum, diversamente da fronteira que delimita, simbolicamente, dois territórios da mesma natureza, pode-se dizer que o fenômeno psicossomático separa dois domínios de naturezas distintas?
A partir destas formulações, é possível indagar acerca das relações entre o fenômeno psicossomático e a escrita. A escrita no corpo dessas doenças escapa à dimensão do significante, oferecendo uma inscrição ilegível. Estaria ele desenhando a borda do furo do saber e constituindo litoral entre saber e gozo?
Na enfermidade psicossomática não há distância entre o gozo e o corpo (LACAN, 1969/1970), e, por isso, não cede à interpretação. Estes pacientes apresentam um congelamento, o que não oferece a chance de o sujeito comparecer. Diante desta clínica, qual a possibilidade de manejo com uma escrita no real do corpo? O que e como se poderia ler algo que se mostra como ilegível?
Lacan (1971/2003) ressalta que, apesar de a escrita ser um traço onde se lê um efeito de linguagem, é necessário que haja uma reinscrição em outra parte. O autor consolida a distinção entre letra e significante, desconstruindo a noção de representação, levando a questionar qual o estatuto das noções de significante e de letra no fenômeno psicossomático e como, na análise, se daria a passagem de um a outro. Sendo assim, pode-se formular que a letra não é sem o significante, o que leva a pensar que o fenômeno psicossomático não é sem o sintoma, fato também observado na clínica, dado que estes pacientes não se queixam apenas de sua doença no corpo.
O analista deve estar atento ao que escuta, pois é aquilo que pode ler, a partir do seu desejo de analista, nas entrelinhas do dito do analisante. No entanto, trata-se de distinguir o que é do simbólico daquilo que é do real, este como aquilo que diz respeito ao escrito (NICOLAU e GUERRA, 2011). Nesse caso, a transferência não se estabelece por uma suposição de saber ao analista, mas através do endereçamento de uma fala desvinculada da dimensão subjetiva sobre uma marca cravada na carne. Nesse caso se está diante de uma escrita que deverá ser decifrada.
Para fazer esta articulação, será abordada a afecção a partir da concepção lacaniana sobre o fenômeno psicossomático; em seguida, se discutirá o conceito de escrita em Lacan. Por fim, tentar-se-á articular a afecção psicossomática e a escrita, na tentativa de compreender a possibilidade de manejo na direção do tratamento com estes pacientes.
O fenômeno psicossomático a partir do referencial lacaniano
Em uma de suas primeiras formulações sobre a afecção psicossomática, no seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Lacan (1954-1955/1985) define-a como uma construção externa à cadeia de significantes, que não se encontra na ordem simbólica e que comporta um sofrimento do corpo.
No seminário As psicoses, ao citar a análise do caso Schreber, Lacan (1955/1956) destaca os sintomas hipocondríacos e faz uma aproximação entre a psicose e o fenômeno psicossomático. A semelhança entre ambos residiria no fato de se estruturarem sem uma intermediação simbólica e sem uma dialética. Assim, o corpo pode apresentar o que permanecer como falha ou como descontinuidade no discurso.
O fenômeno psicossomático aproxima-se de fenômenos elementares da psicose por causa de uma foraclusão local, articulada por Guir (1988/1990). No entanto, no primeiro caso, trata-se de uma foraclusão de um significante qualquer da cadeia, onde o desejo não estaria ausente, apenas suspenso, enquanto que na psicose se trata, invariavelmente, da foraclusão do significante nome-do-pai, que inaugura a entrada do sujeito na ordenação simbólica.
Posteriormente, no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964/2008) assinala que a psicossomática não é um significante, pois só é concebível à medida que, não havendo a afânise do sujeito, algo se passou a partir da indução significante. Percebe-se que menciona uma necessidade interessada na função do desejo no caso da enfermidade psicossomática. Se houve uma foraclusão local, isso significa que pode haver uma remontagem à cadeia.
Tal formulação remete a uma falha na operação de constituição da imagem corporal, pois não houve um bordejamento pulsional em torno desse corpo que desse conta de recobri-lo de linguagem: algo permanece fora, o que indica uma fixidez de gozo no órgão, fixidez de um gozo específico, que não se encontra apenas circunscrito às zonas erógenas do corpo, quando este é esvaziado de gozo. Ao abordar o fenômeno psicossomático, Miller (1999), apud Fonseca (2006), fala de um retorno de gozo no corpo pela impossibilidade de o sujeito alcançar a esfera simbólica. O gozo, que deveria estar circunscrito às zonas erógenas das bordas, permanece fixado naquilo que deveria ser o vazio do corpo.
Como na Conferência de Genebra Lacan (1975) ressalta que no fenômeno psicossomático o corpo se deixa escrever algo da ordem do número, tem-se, então, uma cifração de gozo escrita numericamente, sem possibilidade de haver uma série e sem submissão à significantização da letra. Por se inscrever dessa forma, aparece como frequência ou como uma escrita proveniente do real. Para tentar responder às questões formuladas acerca do manejo da transferência nesses casos, deve-se deter, ainda, a compreender as noções de letra e escrita a partir da concepção lacaniana.
Letra e escrita
Seguindo as formulações de Lacan (1971/2003) acerca da letra, esta seria o que bordeja o real e o simbólico, o gozo e o semblante, borda essa que não se constitui de maneira muito precisa. Lacan (1971/2003, p. 18) diz que: "a borda do furo no saber, não é isso que ela desenha?".
Nesse trabalho, o autor afirma que é a insistência significante que determina o sujeito. Esta insistência é da letra no inconsciente, apesar desta não fazer parte do inconsciente, ressaltando a materialidade da letra em relação à linguagem.
No seminário sobre A Carta Roubada (1955/1998), apesar da confusão aparente na conceituação de letra e significante, pode-se afirmar que o significante lettre1 remete à carta e aspira ao automatismo de repetição (ASSADI, 2011). Lacan (1955/1998, p. 18) faz referência à carta roubada como um significante puro, como algo que se desloca na cadeia e, segundo ele, "veremos que seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu trio esse significante puro que é a carta roubada. E é isso que, para nós, o confirmará como automatismo de repetição". O significante lettre diz respeito aos significantes letter e litter, respectivamente, carta/letra e lixo.
Esse seminário faz referência ao conto de Edgar Allan Poe sobre uma carta roubada, referente à reputação da rainha, pois continha conteúdo que a comprometia. A carta chega a se transformar em um material deteriorado, causa de intenso tumulto entre os policiais, que estavam em sua busca, pois acreditaram que aquela encontrada, aparentemente envelhecida, não era a referente à soberana. Esta carta, além de ter a função de levar uma mensagem ao seu destinatário, também tem o estatuto de resto, lixo, dejeto. Antes de ter chegado ao seu destino, a carta circula em diversas mãos como um lixo, como algo que pode ser rasgado e, por isso, passa despercebida. Desta forma, possui uma dupla função: a de transmitir uma mensagem, letter, carta, e a de ser manipulada e descartada, litter, lixo.
Fazendo referência à relação entre a carta, a letra e o significante, Nicolau e Guerra (2011, p. 8) ressaltam: "enquanto símbolo de uma ausência, o significante também seria marcado por essa duplicidade, determinando as funções da letra".
Lacan (1971/2003, p. 28) articula claramente: "a escritura, a letra, estão no real; o significante, no simbólico". Disso depreende-se que da letra como litoral faz-se literal. A letra não tem primazia sobre o significante, pois só pode estar em seus efeitos. Promove uma redução do sujeito à sua escrita. Conforme Nicolau e Guerra (2011, p. 9), "a letra escreve, assim, a radicalidade da diferença de consistências entre saber, elucubração em torno da verdade, e gozo, desfrute do que essa verdade tem de inacessível".
Então, retornando ao fenômeno psicossomático como escrita, pode-se tomá-lo na clínica como letra, como marca que precisa ser contornada com o simbólico. Na análise, esses fenômenos não permitem interpretação. É a partir desse impasse que se deve pensar essa clínica.
Fenômeno psicossomático: uma escrita que não se dá a-ler
Nessa clínica, depara-se com uma escritura que remete a um gozo da letra que diz respeito ao registro da linguagem, mas que, paradoxalmente, não lhe pertence. O trabalho do analista, nesses casos, consistirá em possibilitar que o enigma no corpo do paciente acometido pela afecção psicossomática seja decifrado, sendo necessário que o sujeito construa um sintoma analítico, dado que só se vale de uma resposta, que é a sua doença.
Nesse caso, o nó borromeano está sustentado em um ponto de cruzamento que tem uma falha, e o deciframento comparece como suplência. Essa falha no enlaçamento do nó acontece porque o discurso não encadeia a subjetivação do sujeito, sendo que aquilo que toca o corpo não é o significante encadeado e sim o significante absoluto, o traço unário. Szapiro (2008) afirma que a nominação, ou como se entende, o deciframento produz um ponto de reparação onde falhou a metáfora paterna, pondo em questão o nome-do-pai. Permite uma amarração do nó borromeano de quatro toros. A autora ressalta: "Se trata da passagem de uma escrita a outra. De um escrito, resíduo de gozo no corpo, a poder dizer, ao possibilitar no marco de uma análise, a operação de nominação" (SZAPIRO, 2008, p. 46, tradução nossa). Diante dessas formulações, se interroga: como ocorre o deciframento na afecção psicossomática?
Nesse caso, o que se objetiva não é o sentido, mas sim o sem sentido. Logo, não é possível uma interpretação, mas sim aquilo que Allouch (2007) nomeia de transliteração. A transliteração pode ser entendida como uma forma de passagem de uma escrita para outra, uma interpretação regulada pela letra. Transliterar significa lidar com aquilo que é impossível de dizer. Assadi (2011) assegura que, como na proposição lacaniana o fenômeno psicossomático é assemelhado a uma escrita hieroglífica ou como uma assinatura, é possível promover um manejo da transferência por meio da transliteração como uma via para a abertura do inconsciente à interpretação, visando ao sujeito.
Como dizem Nicolau e Guerra (2011, p. 14), "a partir da função do escrito, destaca-se a sombra do que não se lê, e se abre ao gozo como uma extração da letra, diferente do significante, no campo da linguagem". Ressaltam que escrever a clínica significa narrar, contar, implicando um manejo possível considerando a lógica da quantificação por meio da operação por uma escrita de gozo.
Referências
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Recebido: 31/01/2013
Aprovado: 25/02/2013
1 Diz respeito à carta/letra.