SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue27Review of the book From childhood fantasy to the childish in fantasy author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro Oct. 2013

 

RESENHA

 

Resenha do Livro Lacan, o inconsciente reinventado

 

Lacan, the unconscious reinvented

 

 

Marcia de Assis*

Internacional dos Fóruns - Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói - IF-EPFCL/Brasil
Fórum Informal do Campo Lacaniano - FICL-Niterói

Endereço para correspondência

 

 

Colette Soler propõe, neste livro, interrogar a trajetória de Lacan sobre o que fundamentava os constantes remanejamentos de suas elaborações, sobre a lógica de suas contribuições e as consequências destas na práxis analítica.

Privilegia, nessa trajetória, os passos que conduziram Lacan a colocar uma fórmula inaudita: "o inconsciente, sempre até então simbólico, é real" (SOLER, 2012, p. 13). A partir daí, do inconsciente Real, aponta-nos a análise orientada para o real que convoca uma clínica renovada.

Ao formalizar o nó borromeano, onde se enlaçam os três registros, Real, Simbólico e Imaginário, Lacan estava na via de um esquematismo mais englobante que permitisse pensar a um só tempo os fatos da neurose e aqueles da psicose, considera a autora, ressaltando o que está em questão, ou seja, os pedaços novos de Real que esta via permite abordar.

A partir da quarta rodela de barbante, nomeada sinthoma e acrescentada às outras três que representam as dimensões do Imaginário, do Simbólico e do Real, torna-se necessário repensar estas últimas.

O Simbólico que está escrito no nó borromeano não é mais cadeia linguageira. O inconsciente é condicionado pela linguagem, certamente, mas ele não é linguagem; é, antes língua (alíngua), multiplicidade inconsistente de elementos diferenciais que não fixam o sentido.

No entanto, tais formulações não abolem o simbólico-linguagem, embora nos leve a pensá-lo como um efeito de discurso.

"Quanto ao Real, resta a ele a ex-sistência" (Ibid., p. 25). Um Real fora do Simbólico, que está do lado do vivente, vivente este que não é imaginável e do qual o simbólico nada sabe.

Portanto, o Real se desdobra entre o Real próprio ao Simbólico e o Real fora do Simbólico, que só o nó borromeano permite inscrever. O Real próprio ao Simbólico se refere aos impossíveis, aos quais o Simbólico preside, tal qual a cicatriz real do sujeito, ineliminável de toda ordem linguageira.

Pela via do nó borromeano, Lacan busca abordar a clínica do sujeito real. Colette Soler insiste que este sujeito não faz somente furo na cadeia, que não é apenas mentalidade, pois tem substância de corpo, seja qual for a sua estrutura clínica.

O ser falante, aquele que fala, está sempre dividido entre o que ele é como sujeito suposto, sujeito feito de ausência, cujo ser está em outro lugar, e o que ele é como presença de indivíduo falante, presença libidinal ou gozosa, situado fora da cadeia significante. Presença, no entanto, que não está disjunta da fala, pois essa coisa fala, ela fala verdade, ainda que minta, sem poder dizer, todavia, o que ela é de real.

Porém, há junção da fala com o Real. Por meio da tagarelice, da associação livre, algo do real é atingido: fiapos do real. Por meio do dizer analítico, algo se escreve. Mas o que quer dizer "escrever-se" numa prática cujo instrumento é a fala? Soler coloca a questão, dando a resposta em seguida. A análise não explora apenas o "já-ali", mas opera aí, produzindo o inédito, que enfim se escreve. O dizer da análise deixa rastro de escrito. O que cessa de não se escrever são os rastros de impotência da verdade diante do impossível de escrever o dois do sexo, pois entre o gozo Um e o Outro gozo não há par. Não há relação sexual, eis o impossível, o que não cessa de não se escrever que faz as vezes de real, em psicanálise.

O inconsciente Real (ICSR), apenas verificável na análise, tem efeitos no nível do gozo, mas permanece insabido, saber inconquistável.

Esses efeitos são afetos. A satisfação não é gozo, ela responde ao gozo, ao saber gozado de alíngua, saber que supera tudo o que disso se sabe. O afeto enquanto enigmático adquire uma força de testemunha epistêmica, pois faz signo de que um saber insabido o causa.

O ICSR é experimentado na análise e em nenhum outro lugar. Porém, sem que seja possível comunicá-lo e sem que disso resulte a menor amizade. Estar no inconsciente não promete ao sujeito nenhum saber do inconsciente. Quando ali estamos, "sabe-se si" (on le sait on), mas isso não faz saber universal e transmissível.

Colette Soler busca em Lacan, no Prefácio ao Seminário XI, as balizas para o que chamou de modelo reduzido do passe pelo ICSR. Citando a primeira frase: "quando o esp de um laps, o espaço de um lapso, não tem mais nenhum impacto de sentido, só então temos certeza de estar no inconsciente", propõe ser este um modelo reduzido daquilo que chamamos destituição do sujeito suposto saber, ou seja, uma passagem ao inconsciente real (passe au réel).

O espaço de um lapso é o espaço do trabalho transferencial que supõe um sujeito ao lapso e tenta alcançar sua verdade. Quando esse espaço de hystorização não tem mais nenhum impacto de sentido, saímos dessa transferência e entramos no ICSR.

O que resta de um laps? Significante sozinho, que não busca um S2, significante desconectado, fora da cadeia, real, portanto. Fora de sentido, mas não fora de gozo. Letra do sintoma, o que restou desse, disjunto da verdade subjetiva, reduzido a seu núcleo neológico.

Fim da questão trazida na entrada – o que sou? –, porém não é a conclusão. O que decide o termo não é nem o ICSR, nem a verdade, mas o terceiro comparsa, que não é da ordem linguageira e se situa do lado do afeto.

A queda do sujeito suposto saber assegura o inconsciente real, mas não basta para assegurar o fim da análise. Este se dá pela via do afeto gerado na sequência.

A autora enfatiza que Lacan propôs uma passagem ao Real pela queda de sentido, em 1973; e em 1976, ele acrescenta uma mudança na resposta de satisfação do sujeito. A satisfação de fim, que põe termo à miragem da verdade, posto que esta nunca atingirá o oásis de completude, cessando, assim, os amores com a verdade, pondo um fim à outra satisfação, aquela da tagarelice que retarda o momento de concluir.

Para além do ponto onde não há suposto saber, o quantum de satisfação, incalculável e não programável. Embora isto não queira dizer que o analista possa lavar as mãos, e sim que a responsabilidade está em suas mãos, mesmo que não possa antecipar o que o próprio sujeito vai aí responder. Mas uma resposta do ser ao efeito didático da análise nos deixa longe da ideia de que toda análise levada a seu ponto de finitude produza um analista. Tal variável não-lógica torna o analista apenas possível, para além daquilo que prudentemente chamamos o clínico, pondera Soler.

Porém, qual é a responsabilidade do analista no movimento rumo à destituição da verdade?

A autora aponta-nos a sessão curta lacaniana que tem por alvo o Real. O corte da sessão é "dedo apontado na direção do gozo que lastreia a hystorização do sujeito na análise" (Ibid., p. 96). E conclui que o que conta numa sessão, seja ela de duração variável ou curta, é seu fim, como para a análise, ressaltando os fins de sessão denominados suspensivos, já que não concluem nem questionam, mas cortam a cadeia da fala e atormentam o sentido. Elas têm afinidades com a interpretação lacaniana apofântica que nem revela nem esconde, mas faz signo daquilo que ex-siste à hystorização do sujeito.

O sintoma é a maneira como cada um goza de seu inconsciente, disse Lacan em 1975. E há diversas versões de sintoma conforme o gozo esteja ou não enodado às outras duas dimensões, conforme inclua ou não a verdade da fantasia.

Soler apresenta de um lado, os sintomas autistas, efeito direto de alíngua sobre o gozo, que excluem o laço social. E de outro, os sintomas socializantes, onde o gozo se aloja num laço, "por muito pouco que ligue", enodando-se ao Imaginário e ao Simbólico do parceiro. Estes são chamados de sintomas borromeanos.

Não há relação sexual, mas há para cada um o sintoma fundamental que supre, afirma a autora, voltando a citar o Seminário RSI, na página 148: "Para um homem, o que é uma mulher? É um sintoma". Um corpo de gozo, mas não qualquer um.

O ICSR que faz o núcleo do sintoma adiciona um elemento de linguagem e gozo, entre Simbólico e Real, portanto, mas ele não se enoda de modo necessariamente borromeano ao Imaginário para fazer laço social.

A consequência na clínica é a divisão entre os sujeitos, cujos sintomas são tudo no inconsciente real (os esquizofrênicos puros, caso exista puro, ressalta Soler, onde o Imaginário está desatado); e os sujeitos, cujos sintomas não são tudo no inconsciente real, pois há para eles o que Lacan nomeou sinthoma, condição de enodamento desse Real ao inconsciente-fantasia, entre Imaginário e Simbólico.

Mas há o caso Joyce. Vemos neste caso que o ICSR está preso num laço social, uma vez que seu ego de artista supriu a carência paterna. Porém, esse sintoma fundamental constituinte de laço não diz respeito a seu laço com a mulher, isto é, ele não supre a não relação sexual, apenas o fora-de-discurso produzido pela carência paterna. No entanto, é aí que Joyce irá ilustrar a verdadeira função do pai como condição e "modelo" do sintoma fundamental sexuado, pela via de sua negativa.

Lacan propôs um quarto elemento, representado pela quarta rodela de barbante, denominado sinthoma, cuja função é condição de enodamento. E Soler reitera: o pai, não seu significante, mas seu dizer de nomeação, faz sinthoma, condição de enodamento borromeano.

Continuando, a autora se dedica às considerações sobre o objeto a causa de desejo, aquele que não tem nome nem imagem, sendo justamente por isso causa de angústia, por ser anônimo e desconhecido, tal como se encontra no seminário A angústia, em que Lacan discorre sobre a angústia do sujeito confrontado com o desejo enigmático do Outro e com a iminência de sua redução ao objeto não eletivo.

Porém, Soler chama a atenção para a última aula desse seminário, quando Lacan recorre ao pai como princípio de superação da angústia por seu objeto, não só finito, como também nomeado.

Com esta função de nomeação, o a anônimo passa para a história, transferindo a causa desconhecida do desejo para o objeto nomeável.

Dizer que o pai nomeia já é dizer que sua função não é função de metáfora. Ela não é propriamente falando uma função significante, embora seja privilégio do falasser. A função de nomeação é função de dizer, e o dizer é acontecimento, igual ao ato. Isso implica a contingência, o que cessa de não se dizer.

O dizer de um pai nomeia seus objetos, sua mulher sintoma e os filhos advindos, enodando o gozo que o constitui ao Simbólico e ao Imaginário, o Real aos semblantes.

Os nomes que respondem ao impredicável são Nomes-do-Pai e podem não ter nada a ver com qualquer pai que seja. Nada a ver com a família, que mesmo em suas configurações mais conformes, está bem longe de obstar à foraclusão.

Quando se fala de desejo do pai, ou do dizer do pai, não se trata apenas de um significante como Lacan primeiramente colocou, mas de uma presença libidinal. A única presença exigível do pai, a única que obsta à psicose é a do dizer que nomeia. A nomeação pode passar sem os pais e se acomodar com nomes sinthomas quaisquer outros. Prova extrema por Joyce.

Sobre o amor, sempre existiu a interrogação se a psicanálise pode prometer um novo amor para além dos sintomas da vida amorosa. A esta, Soler acrescenta a seguinte questão: a análise orientada para o real traz nova luz à questão antiga?

Considera que a análise talvez possa prometer uma mudança a partir do que se inscreve da fala analisante, porém o bom encontro, sempre contingente, não pode prometer, embora possa criar as condições de possibilidade.

Sendo possível perceber que o amor é reconhecimento de inconsciente a inconsciente, que ele tem um porquê, os afetos de inconsciente, eis um passo suplementar dado por Lacan, porém não passa ao saber, não reduzindo, portanto, a contingência do encontro.

Mas Soler afirma que uma análise não é sem efeito sobre o amor, relembrando o termo empregado por Lacan para qualificar essa mudança, em "Nota aos italianos": um amor mais digno. Aquele que nem acredita no parceiro, nem dá crédito a ele, que percebeu seu núcleo real, fora de sentido, que se tornou sintoma, no qual não se acredita mais. Um amor ateu, não transferencial e menos tagarela, acrescenta a autora.

No entanto, a psicanálise tampouco o prescreve, posto ser este apenas mais uma das formas de sintomas socializantes.

Na última parte do livro, intitulada Perspectivas Políticas, Colette Soler aborda o tema capitalismo e psicanálise, afirmando que cada discurso constrói um tipo de laço social, mas faz uma ressalva: não há nada igual no discurso capitalista cientificizado. Este constrói apenas um único laço, bem pouco social, entre os indivíduos e os produtos, deixando os primeiros mais expostos à precariedade e à solidão.

Considera a psicanálise como um discurso de urgência na civilização, discurso que valoriza um outro Real que o da ciência, trabalhando para enodá-lo ao Eros de um possível laço vivível. No entanto, enfatiza: "eu disse a psicanálise, definida pelo ato constituinte de seu discurso, não os psicanalistas" (Ibid., p. 205).

Ao abordar o mal-estar na psicanálise, afirma tratar-se de eufemismo quando diz mal-estar, pois é toda lógica institucional que objeta à subversão analítica. Daí Lacan ter formulado a necessidade de uma Escola de psicanálise.

O termo Escola parece indicar que se trata essencialmente do saber, porém aquilo que cada um aprendeu de sua análise pessoal será submetido à prova de uma transmissão, por se tratar de uma experiência sempre singular. A Escola não é um abrigo, mas lugar de questionamento da experiência do inconsciente e do que os analistas fazem com isso.

O dispositivo do passe é consubstancial à Escola, pondo o analista a dar seu testemunho, caso queira. E a autora ressalta: "É uma prova, a dela não duvidar" (Ibid., p. 222).

Por certo há uma visada de transmissão epistêmica na Escola, no entanto, secundária, visto que, por trás do que se elabora de doutrina, um dizer se afirma e um desejo se transmite.

 

Referências

SOLER, C. Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2012, 234p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: marcia.assis@gmail.com

 

 

* Psicanalista, membro da IF-EPFCL/Brasil. Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói. Atual coordenadora do FICL-Niterói