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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro June 2014

 

ENSAIOS

 

Mishima: entre o amor e o desejo

 

Mishima: in between love and desire

 

 

Maria Helena Martinho*

Universidade Veiga de Almeida

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As confissões feitas por Yukio Mishima em seu romance autobiográfico Confissões de uma máscara (1949) são tomadas neste artigo para ilustrar como esse sujeito passa – tal qual em uma banda de Moebius – do amor ao desejo em um movimento circulante. Em sua infância ele se divide entre o amor de sua avó e o desejo sexual por príncipes e soldados. Em sua juventude, ele se divide entre o amor espiritual por Sonoko e o desejo carnal, homossexual, por Omi. A clivagem que se desvela entre o amor e o desejo é subsumida pela clivagem da "carne e do espírito". De um lado a "carne", o desejo homossexual carnal, o desejo por aquilo que se imprime na masculinidade, força, ignorância, gestos rudes, fala descuidada; de outro, o espírito, tudo aquilo que é da ordem da intelectualidade. Mishima tentou constituir dois polos de pureza e perfeição, dois absolutos, desmentindo, assim, a castração do Outro. Ele perseguiu a solução da divisão do eu que se apresentava nas polaridades, mas o abismo que o dividia entre "o amor e o desejo" nunca se preencheu.

Palavras-chave: Perversão, Amor, Desejo.


ABSTRACT

The confessions made by Yukio Mishima in his autobiographical novel Confissões de uma máscara (1949), are included in this article to illustrate how this subject passes – just like in a Moebius band – the love to desire in a circulating motion. In his childhood he was divided between the love of his grandmother and sexual desire for princes and soldiers. In his youth, he was divided between the spiritual love for Sonoko and the carnal desire, homosexual, for Omi. The cleavage that unveils between love and desire is subsumed by the cleavage between "flesh and spirit". On one side the "flesh", the homosexual carnal desire, the desire for what is printed in masculinity, strength, ignorance, rude gestures, careless talk, on the other, the spirit, all that which is of the order of the intellectuality. Mishima tried to constitute two poles of purity and perfection, two absolute, belying the castration of the Other. He pursued the solution of division of the I which appeared in polarities, but the chasm that divided him between "love and desire" never filled. The confessions made by Yukio Mishima in his autobiographical novel "Confessions of a mask" (1949), are taken in this article to illustrate how this subject moves – just like in a Moebius band – from love to desire in a circling movement. In his childhood, he was divided between his grandmother's love and the sexual desire for princes and soldiers. In his youth, he was divided between his spiritual love for Sonoko and the carnal homosexual desire for Omi. The cleavage that is unveiled between love and desire is subsumed by the cleavage of "flesh and spirit". On one side, "flesh", the carnal homosexual desire, the desire for what is imprinted in masculinity, strength, ignorance, rude gestures, careless talk, on the other, spirit, all that which is related to intellectuality. Mishima tried to constitute two poles of purity and perfection, two absolutes, denying, thus, the castration of the Other. He pursued the solution of division of the self, which presented itself in polarities, but the chasm that divided him between "love and desire" was never filled out.

Keywords: Perversion, Love, Desire.


 

 

Yukio Mishima (1925-1970), o mais famoso dos autores nipônicos de sua época, declarou no catálogo da Exposição Yukio Mishima (Tóquio, 1970), aberta ao público dias antes de seu suicídio, que sua arte pode ser dividida em quatro grandes correntes, os rios: da Literatura, do Teatro, do Corpo e da Ação (KUSANO, 2006). Ao navegar nesses "rios", Mishima constituiu polos de pureza e perfeição, dois absolutos – "o amor e o desejo", "a carne e o espírito", "o corpo e as palavras", "a beleza e a feiura", "a arte literária e a arte marcial" – por uma separação que exclui a mistura deles. Em compensação, ele quis unir esses polos contrários fazendo que se juntassem nos extremos. O próprio Mishima se dá conta de que há no eu uma "polaridade".

Minha mente concebeu um sistema que instalando dentro do eu dois elementos que fluíam alternadamente em direções opostas tinha a aparência de produzir um hiato cada vez mais amplo na personalidade [...] A assunção de uma polaridade dentro do eu e a aceitação da contradição e do choque – essa era a minha combinação (MISHIMA, 1968a, p. 48).

Ao desvelar esse mistério, Mishima parece estar descrevendo o entrelaçamento de dois temas trabalhados por Freud: a "divisão do eu" e a noção de "desmentido" (Verleugnung), ilustrando o que Freud ressaltou sobre a conexão existente entre o "desmentido" e "o complexo de castração".

As confissões feitas por Yukio Mishima, em seu romance autobiográfico Confissões de uma máscara (1949), serão tomadas neste artigo para ilustrar como ele passa do amor ao desejo em um movimento circulante – tal qual em uma banda de Moebius – "como uma daquelas argolas feitas com um único giro numa folha de papel e cujas pontas são coladas depois. O que parecia ser o interior era o exterior, e o que parecia o exterior era o interior" (MISHIMA, 1949, p. 127).

Nesse romance, Mishima confessa que em sua infância ele se divide entre o amor de sua avó e o desejo sexual por príncipes e soldados. Em sua juventude, ele se divide entre o amor espiritual por Sonoko – uma jovem de dezoito anos de idade, irmã de seu melhor amigo – e o desejo carnal, homossexual, por um colega de escola, chamado Omi. A clivagem que se desvela entre o amor e o desejo é subsumida pela clivagem da "carne e do espírito". De um lado a "carne", o desejo homossexual carnal, o desejo por aquilo que se imprime na masculinidade, força, ignorância, gestos rudes, fala descuidada; de outro, o espírito, tudo aquilo que é da ordem da intelectualidade, como o amor "espiritual", a própria encarnação por coisas do espírito, por coisas eternas.

O protagonista do romance descreve algumas impressões que em sua juventude Omi lhe causou: "O que realmente obtive dele foi uma definição precisa da perfeição da vida e da masculinidade, personificadas em suas sobrancelhas, testa, olhos, nariz, nuca, pescoço, a cor de sua pele, sua força" (MISHIMA, 1949, p. 48).

Por causa de Omi ele nunca pôde amar uma pessoa intelectual, jamais se sentiu atraído por uma pessoa que usasse óculos. Por causa de Omi ele começou a amar a força, a ignorância, os gestos rudes, a fala descuidada. A carne não podia, de modo algum, ser maculada pelo intelecto. O desejo sexual se encontra marcado pela condição carnal, onde o intelecto não comparece, há uma cisão entre a carne e o espírito, há uma exigência que carne e espírito mantenham distância um do outro. "Assim que começava a compartilhar minha compreensão intelectual com uma pessoa que me atraísse, meu desejo por essa pessoa logo arrefecia. Não tinha a mais tênue ideia de que havia uma conexão entre amor e desejo sexual" (Ibid., p. 84).

A "sensação carnal" que ele sentia por Omi não era causada apenas pela proeza de sua força, mas pela abundância de pelos nas axilas, estas se constituíram em um fetiche para ele. "Sem dúvida, foi a vista de pelos sob os braços de Omi que fez da axila um fetiche para mim" (Ibid., p. 61).

Ele desejava se tornar "uma réplica de Omi" (Ibid., p. 64). Começou a procurar em seu corpo franzino o reflexo da suntuosa virilidade de Omi. Um dia descobriu à beira-mar, ao ver as próprias axilas, que os pelos exuberantes de Omi, objeto de sua cobiça, começaram a crescer em seu corpo. Um misterioso desejo sexual logo o invadiu e, tomando os pelos de suas axilas por objeto, sozinho pela primeira vez ao ar livre, se masturbou, como costumava dizer, se entregou ao seu "mau hábito".

Seu coração nunca fora tocado pela beleza de uma mulher. Sonoko parecia "o reflexo de uma alma imaculada e simples" (Ibid., p. 105). O amor por Sonoko tornou-se uma obrigação moral para ele, e de repente ele foi invadido pela ideia de que estava apaixonado pela moça. Contudo, uma voz interior zombou dele bombardeando-o de perguntas:

É amor o que você sente por ela? Mas você sente desejo por mulheres? Já teve alguma vez o mais leve desejo de ver uma mulher nua? Já imaginou Sonoko nua? Durante o dia, você anda pela rua e não vê ninguém além de marinheiros e soldados. Quantos desses jovens você não despiu mentalmente ontem? (Ibid., p. 125).

Pois foi justamente entre o desejo homossexual por Omi e o amor por Sonoko que se instaurou, segundo o próprio Mishima, um movimento circulante, uma banda de Moebius. O que ele sentia por Sonoko não tinha nada a ver com desejo. Contudo, o seu desejo sexual pelos rapazes o consumia. Para suportá-lo ele tinha que recorrer ao seu "mau hábito" até cinco vezes num dia.

A excitação por um efebo limitava-se a mero desejo sexual. Minha alma ainda pertencia a Sonoko. Havia uma luta, uma ruptura entre carne e espírito. Para mim Sonoko aparecia como a encarnação do meu amor pela própria normalidade, meu amor por coisas do espírito, meu amor por coisas eternas (Ibid., p. 172).

Dessa forma Mishima se dividia entre "a carne e o espírito". Sonoko representava a encarnação do amor, coisas do espírito. Enquanto Omi, a encarnação do desejo, coisas da carne.

A descoberta, na juventude, de seus gostos pederastas representa o momento constituído na cena com Omi. Ele começou a procurar em seu corpo franzino o reflexo da suntuosa virilidade de Omi; doravante gosta nos rapazes de um outro ele mesmo. Com Sonoko, a mulher idealizada, encarnação do seu amor por coisas eternas, Mishima reproduz o envolvimento de um amor embalsamado; identificado à avó, ele gosta em Sonoko "de sua alma imaculada e simples" (Ibid., p. 105), ele gosta de um outro ele mesmo, do neto que ele foi para sua avó.

A divisão vivida por Mishima se assemelha àquela vivida por André Gide. Em sua infância, Gide se divide entre Juliette – a mãe do amor –, e tia Mathilde – a mãe do desejo. Em sua juventude essa divisão também se evidencia em dois polos: de um lado, Madeleine – sua prima, sua esposa, o objeto do amor, a mulher ideal, o anjo dessexualizado –, e do outro, o objeto do desejo, os pivetes, os menininhos de pele morena, sexualizados.

Quando criança, o invólucro mortal que Gide havia conhecido no amor materno muda com a sedução salvadora da bela tia Mathilde, sedução esta que foi narcisicamente fundadora para Gide, lhe despertou o desejo. Mas, entre os dois lugares constituintes da cena originária, a subjetividade de Gide rejeitou aquela que fazia dele o objeto do desejo feminino para identificar-se com a sedutora. A descoberta, aos vinte e quatro anos, de seus gostos pederastas representa o momento constituído pela cena com a tia. Gide assume o desejo do qual ele foi objeto e que não pôde suportar, ficando para sempre e eternamente apaixonado pelo mesmo menino que fora por um instante nos braços da tia.

Identificado à mãe do amor e do dever, ele doravante gosta em Madeleine de um outro ele mesmo, do filho que ele foi para sua mãe, frágil, objeto do amor que necessita de proteção contra o mal e contra a vida. Madeleine passa a ser a mulher idealizada, a ponto de se tornar a única; ele dedica-lhe um amor puro, infinito e imóvel. Vive com ela durante vinte anos, um casamento que nunca foi consumado. Madeleine não podia ser nem o objeto nem o agente de uma sedução que lhe dava horror. Gide se coloca numa dependência mortal em relação a Madeleine, o que o faz exclamar: "Você não tem como saber o que é o amor de um uranista. É qualquer coisa como um amor embalsamado" (GIDE apud LACAN, 1957-1958/1999, p. 271).

Da mesma forma que Gide ficou submetido ao amor embalsamado de Madeleine, Mishima também ficou submetido a um amor embalsamado, o de sua avó. Estar entregue a essa avó era estar fadado à morte, condenado a permanecer prisioneiro desse amor. "Na idade de doze anos, eu tinha uma namorada sincera e apaixonada, de sessenta anos" (MISHIMA, 1949, p. 31).

A perversão de Mishima não se deve ao fato de ele só poder desejar os meninos, mas ao fato de que ele constrói a mulher ideal, não castrada. Mishima tenta fazer A Mulher existir. Sua avó é "toda para ele" e Sonoko é a única do amor.

Mishima tentou constituir dois polos de pureza e perfeição, dois absolutos. Ele perseguiu a solução da divisão do eu que se apresentava nas polaridades, mas o abismo que o dividia entre "o amor e o desejo" nunca se preencheu.

Em um verdadeiro tratado sobre o corpo, uma obra-prima, intitulada Sol e aço (1968a), Mishima confessa: "Sou um que sempre só esteve interessado nos extremos do corpo e do espírito [...] Opostos conduzidos a seus extremos tendem a se assemelhar; e coisas separadas ao máximo, aumentando a distância entre elas, acabam por se aproximar" (Ibid., p. 89). Essa é uma verdadeira definição do desmentido. Mishima tentou aproximar a carne e espírito ao longo de toda a sua vida, mas

[...] corpo e espírito nunca deram boa combinação. Eles nunca foram parecidos. Nunca experimentei na ação física nada que se assemelhasse à satisfação arrepiante e aterradora proporcionada pela aventura intelectual. Nem senti nunca na aventura intelectual o calor impessoal, a cálida escuridão da ação física [...] Em algum lugar deve haver um princípio maior onde os dois se encontrem e façam as pazes. Esse princípio maior, eu pensei, era a morte (Ibid., p. 90).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Helena Martinho
Rua Gildásio Amado 55, sala 909 – Barra da Tijuca.
22631-020. Rio de Janeiro/RJ.
Tel.: 21 2494 8505/ 999253636.
E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br

Recebido: 11/02/2014
Aprovado: 15/03/2014

 

 

* Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Professora dos Cursos de Doutorado e de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicanálise da UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC – Rio. Coordenadora e Supervisora Clínica do SPA/UVA. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Psicanalista Membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro.