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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro Oct. 2015

 

ENSAIOS: A ESCOLHA DO SEXO

 

A escolha do sexo não vai sem dizer1 O mistério do dois

 

The choice of sex does go not without saying: the mistery of the two

 

 

Françoise Josselin*

Analista Membro da Escola
Colegiado Clínico Psicanalítico de Paris
Centre d'Accueil Psychanalytique pour adolescents et jeunes adultes - CAPA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

"O que determina a escolha do sexo não é, sequer, um saber, é um dizer". Lacan acrescenta em seu Seminário Les non-dupes errent, que aquilo que decide não é nada além de um outro dizer, que se lança no furo da carência entre os dois sexos. O que fazer, então, para fazer suplência a esse "mistério do dois", senão inventar esse saber inconsciente em todo encontro primeiro com a relação sexual, autorizar-se a inventá-lo. Herculine Barbin, um caso de hermafroditismo no século XIX, de quem Michel Foucault descobriu as Memórias nos Anais médico-legais, permite verificar que não há essência do masculino e do feminino inscrita no inconsciente, que o falo é um semblante. Os sujeitos, inclusive os psicóticos, têm a escolha (forçada ou não) de fazer argumento à função fálica, a escolha de se colocar do lado todo ou não-todo da sexuação.

Palavras-chave: O dizer e o sexo, O falo e o semblante, A suplência na psicose, O enodamento pelo dizer.


ABSTRACT

"What determines the sex choice is not even a knowing, it is a saying". Lacan adds in his Seminar Les non-dupes errent that what decides is nothing more than another saying, that throws itself in the hole of what is missing between the two sexes. What to do, then, in order to fill up for this "mystery of the two", but invent this unconscious knowledge in every first encounter with the sexual intercourse, authorize and invent it. Herculine Barbin, a case of hermaphroditism in the XIX century, from whom Michel Foucault discovered the Memoirs in the legal-medical Annals, allows us to verify that there is no essence of both the masculine and feminine inscribed in the unconscious that the phallus is a countenance. The subjects, including psychotics, have the choice (whether forced or not) of posing an argument to the phallic function, the choice of being at an all side or non side of the sexuation.

Keywords: The saying and sex, Phallus and countenance, Substituting in psychosis, The enoding of the saying.


 

 

"O que determina a escolha do sexo não é, sequer, um saber, é um dizer" (LACAN, 1973-1974/inédito, p. 129).

Lacan acrescenta, em seu Seminário Les non-dupes errent, que "neste mundo, feito de qualquer jeito, nada permite, em um ou-ou insustentável logicamente, que tudo aquilo que não é homem seja mulher, e vice-versa, que aquilo que decide não é nada além do que esse dizer que se lança no furo da carência entre os dois sexos" (Ibid., p. 130).

O que fazer, então, para fazer suplência a esse "mistério do dois" (Ibid., p. 143), senão inventar mesmo esse saber inconsciente em todo encontro primeiro com a relação sexual, autorizar-se a inventá-lo. Se Lacan aproxima o ser sexuado e o psicanalista no "autorizar-se", é porque ele estabelece um elo entre o gozo fálico e a alíngua.

Já que a diferença sexual não está inscrita no inconsciente, que não há, portanto, essência do masculino e do feminino, que o falo é um semblante, os sujeitos têm a escolha de fazer argumento à função fálica, de se acomodar do lado todo ou não-todo da sexuação.

Mas todos eles têm escolha? Será que o drama de Adélaïde Herculine, dita Alexina – depois Camille, e por fim, Abel Barbin – é o de ter sido registrada no cartório e, ao mesmo tempo, ter sido educada como menina em um meio exclusivamente feminino e fortemente religioso até a idade de vinte e dois anos, e que a medicina e em seguida a justiça retificarão sua identidade sexual, ou o drama se deduz da lógica do não-todo?

Nascida em 1838, depois de uma infância e de uma adolescência protegidas, ele se suicida aos vinte e nove anos em um estado de grande miséria, deixando escrita uma autobiografia intitulada "Mes souvenirs" [Minhas memórias].

Esse testemunho faria muito barulho no século XIX e influenciaria o olhar, tanto médico quanto jurídico, sobre o problema bem antigo da identidade sexual e do hermafroditismo.

Em 1950, Robert Stoller introduziu o conceito de "gênero" diferente de sexo anatômico, conceito do qual se apropriaram as feministas antes que hermafroditas e transexuais fossem rebatizados como "intersexuais".

Lacan aconselha a leitura de Stoller, menos pelo "gênero", o seu achado que, diz ele, não é nada além do que os termos homem e mulher, e mais pela interessante coleta de informações de casos de transexualistas, mesmo que Stoller dela eluda a questão da psicose (LACAN, 1970-1971/2006, p. 31).

Escolhi, para falar dessa garota, filha de Hermes e Afrodite, o prenome de Camille, dado de forma intuitiva por Mme P., a diretora da escola em que, depois de uma infância e uma adolescência em um meio discreto, monossexuado, de diversos conventos, Camille exerceria uma função de diretora de estudos.

Michel Foucault descobre nos Annales médico-légales [Anais médico-legais] as Memórias conservadas em parte por um eminente médico-legal, o doutor Ambroise Tardieu.

Michel Foucault fica fascinado por esse testemunho, único em seu gênero, do estranho destino de uma mudança de identidade e suas consequências dramáticas. Ele faria o prefácio da publicação de Herculine Barbin, dite Alexina (FOUCAULT, 1978/2014), com um texto que pronunciaria no Collège de France, "O verdadeiro sexo", defesa de um mundo sem as amarras da identidade sexual.

As Memórias escritas por Camille descrevem longamente a imensa dor de um paraíso perdido, o do gineceu em que ela havia crescido na ignorância da diferença entre os sexos. "A calma deliciosa das casas religiosas... a pureza dos corações" lhe apareceriam posteriormente como "visões celestes" no horror de sua curta vida como homem.

A puberdade vai proporcionar um mau encontro. "Essa imensa dor que me tomou ao sair da infância, nessa idade em que tudo é belo... essa idade não existiu para mim. Desde essa idade eu tinha um distanciamento instintivo do mundo (do todo fálico) como se já tivesse podido compreender o que teria que viver ali como um estranho." Ela se descreve como tímida, sem graça, com ares "bruscos", isto é, masculinos, isolando-se em seus livros e tendo, contrariamente aos outros, pouco gosto pelos trabalhos com a agulha.

Mas curiosamente, ela suscitava tanto da parte de suas educadoras como de suas famílias adotivas muito amor, e até mesmo fascinação, talvez por sua inteligência, mas pode-se supor que também pela estranheza de sua diferença. Ela percebia justamente uma certa interrogação do entorno, mas fora a amenorreia e uma pilosidade normal, ninguém – nem ela mesma – parecia preocupar-se com isso.

Ela, por sua vez, repete uma série de amores apaixonados por algumas de suas colegas, sem contar uma adoração (sic) por uma ou outra religiosa ou por Mme P., a diretora da escola que a acolheu como se fosse uma de suas filhas. Muito rapidamente no pensionato onde residem a diretora, viúva, e suas três filhas, nasce um idílio apaixonado entre Camille e a mais jovem das meninas, Sara.

Em todo caso, em seus ditos, a diferença anatômica dos sexos não parece dividi-la, algo que um dos peritos médicos notará sobre o aparente desinteresse de Camille por seu corpo sexuado.

Para Camille, a báscula foi desencadeada pelo encontro de uma experiência de gozo em sua primeira relação sexual com Sara. "Finalmente", diz ela, "Sara me pertencia de agora em diante, ela era minha." Se em suas Memórias ela fala abundantemente de sua necessidade literalmente compulsiva de tocar, de beijar Sara assim que ela a visse, ela é tão alusiva quando evoca suas relações "de alegrias incompletas" na penumbra do dormitório, que podemos nos perguntar se não se trata de relações mais sáficas do que heterossexuais. Segue-se um ano de relações ocultas, em que os dois amantes sonham com o laço social do casamento e da família.

O que ela encontrou nessa primeira relação, que seria seguida de imediato em suas Memórias pela curva gramatical dos adjetivos que se referiam a ela, senão a hiância introduzida pela diferença sexual, pois o ponto de enigma vai ser sua brusca decisão unilateral de romper o segredo pondo fim a seu sonho, ao passo que, diz ela, aquilo que na ordem natural das coisas deveria uni-los, no mundo os separou.

Ponto de báscula, ponto sem volta: ele dá início aos procedimentos para fazer reconhecer sua nova identidade junto a dois abades que se fazem de surdos, um deles até mesmo aconselhando-o a guardar segredo e entrar no convento. Ele acaba consultando um bispo, reconhecido pela inteligência de seu humanismo, que lhe encaminhará a um médico para uma perícia. A perícia aprofundada nota que os elementos masculinos predominam sobre os femininos. Trata-se, na verdade, de uma hipospádia, de um pênis reduzido não fechado, associado a alguns órgãos femininos (vagina, uretra).

A perícia iniciaria o reconhecimento jurídico de seu novo estado civil. Ela passará a se chamar Abel Barbin.

E, de uma forma que pareceu incompreensível em suas hagiografias, ele deixa rapidamente a escola "sem arrependimentos" e, a despeito de sua paixão, lágrimas de Sara e da tristeza de sua mãe. Ele perdeu tudo: amor, família, carreira. "Ela", tão brilhante (recebida em primeiro lugar na Escola Normal); "ele" se vê como escriturário em uma administração em um posto temporário e depois desempregado, para acabar se suicidando, intoxicando-se com seu aquecedor a carvão.

Não se sabe qual foi sua vida de homem, a parte de suas Memórias relativas a esse curto período tendo sido perdida, mas o que se sabe por seus escritos é a devastação, pressentida desde a adolescência, de sua diferença.

A diferença sexual só existe por ser nomeada, diz Lacan.

O que faz drama? E sua busca dizia respeito à procura de uma verdade sobre seu sexo ou de um dizer? Não é para a revelação que ela apela com todo ensejo, ressentindo-se da fraqueza de seu entorno, aliada em manter o segredo: a diretora, o primeiro médico consultado em virtude da descida de um testículo, os abades a quem ela se confessa. Também não é a culpa pela transgressão nem a vergonha, mas o primeiro encontro com o gozo na copulação, "copulação que", diz Lacan, "é, sem dúvida, sexual em sua função, mas que encontra seu status de elemento particular de identidade" (LACAN, 1970-1971/2006, p. 32).

O encontro com sua identidade de gozo levou-a a apelar para um dizer de nominação, um dizer que ex-siste aos ditos da verdade, a nominação como ato.

O apelo aos pais, aos padres da Igreja ou mestres-peritos da medicina permaneceu letra morta por trás desse nome de hermafrodita.

É que, se nos colocarmos do lado do todo ou não-todo, diz Lacan, podemos ser ditos homem ou mulher, mas não o contrário. Mas é preciso se colocar de um lado ou de outro, aí não se tem a escolha da indiferença, sublinha Colette Soler. Para Camille, a única solução é o Outro da lei que deve acomodá-lo, pois ele mesmo se pergunta por que não conseguiu ter acesso a essa identidade de homem que não é nem cívica nem na imagem, mas deve ser significante, identidade de homem que lhe teria permitido entrar no laço social tão sonhado: "Se tivesse sabido como fazer, meu porvir teria sido mudado... eu poderia ter sido o genro de Madame P.".

A escolha não tem nada a ver com o biológico nem com o estado civil. O erro nele não foi tanto sobre a pequena diferença anatômica nem sobre seu físico que não o interessava, mas sobre o falo, sempre solidário do semblante (Ibid., p. 34), que lhe teria permitido "se fazer-homem" (Ibid., p. 32), semblante veiculado no discurso da parada sexual. Mais tarde, os semblantes que animam os casais lhe serão repugnantes.

Tirésias moderno, seu saber sobre o gozo feminino não faz, contudo, relação sexual, mas posição de exceção. "Por uma exceção da qual não me glorifico, foime dado com o título de homem o conhecimento íntimo, profundo, de todas as aptidões, todos os segredos da personalidade íntima da mulher... Essa ciência da mulher que nenhum homem jamais possuirá me coloca bem acima de certos críticos célebres", cita Dumas Filho. Mas, acrescenta ele, é melhor assim, esse conhecimento teria tido efeitos desastrosos, fazendo de mim um execrável marido.

Camille, como Schreber, não está foracluída do pênis, mas um pênis não elevado ao semblante fálico que somente permite a relação entre os sexos. A castração não tem a ver com seu sexo malformado, mas com a estrutura da linguagem.

O deslumbramento do empuxo ao amor, do lado do não-todo, é rompido, o fim de suas Memórias tem toques shakespearianos sobre o horror da castração materna. Suas imprecações visam "ao medonho acoplamento" dessas "mulheres aviltadas", "com chagas infectadas" com "homens degradados... desprezados por essas criaturas corrompidas" chafurdando na lama..., ele próprio tendo renunciado a qualquer sexualidade, sua "natureza imaterial e virginal participando da natureza dos anjos" (e, portanto, assexuada). Os homens não são seus irmãos, "a doce e íntima confraternidade com minhas irmãs bastava para minha vida". Assim como Antígona, os laços do casal e da família sendo-lhe recusados para fazer suplência à carência da relação sexual, ele "se enterra vivo em uma solidão eterna".

Suas Memórias, escritas pouco antes de seu suicídio programado, são um momento de enunciação, uma tentativa de um dizer endereçado ao mundo sobre seu lugar de exceção? Esse "proscrito", esse "ser sem nome", esse "infeliz exilado do mundo", que só encontra repouso na morte, este dia chegado, diz ele, os médicos se amontoarão sobre os meus despojos fora do comum para analisar seus "motivos extintos". "Ó príncipes da ciência, químicos esclarecidos cujos nomes ecoam pelo mundo!... então alguém dedicará um pensamento infeliz a quem se recusou até mesmo o direito de viver." Camille escolheu a morte real, não conseguindo, como Schreber, ressuscitar encarnando o significante mulher, não conseguindo inventar um saber identitário, construir seu sinthoma de suplência.

Se Camille tivesse vivido no século XXI, ele teria tido um destino melhor? Fora as normas dos discursos de seu tempo, esse abúlico sem laço teria conseguido escapar de uma lógica do não-todo sem a função fálica? Sim – estou me referindo ao curso de Colette Soler (SOLER, 2013-2014) –, com a condição de que ele tenha conseguido encontrar o ato de enunciação do dizer gerador da análise para ser re-nomeado. O pai, como princípio de humanização, é uma exceção lógica existencial sem normas que permite que o discurso analítico se aplique à psicose.

 

Referências

FOUCAULT, M. (1978). Herculine Barbin, dite Alexina. Paris: Gallimard, 2014.         [ Links ]

LACAN, J. (1973-1974). Le séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. Paris: Éditions de l'AFI.         [ Links ]

__________. (1970-1971). Le séminaire, livre 18: D'un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Seuil, 2006.         [ Links ]

SOLER, C. (2013-2014). Humanisation? (Cours 2013-2014). Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2014.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: francoisejosselin@free.fr

Recebido: 19/01/2015
Aprovado: 20/04/2015

 

 

Tradução: Cícero Oliveira
Revisão da tradução: Dominique Fingermann
* Psiquiatra hospitalar, psicanalista, AME, membro fundador da EPFCL, ensinante no Colegiado Clínico Psicanalítico de Paris, responsável pelo CAPA (Centre d'Accueil Psychanalytique pour adolescents et jeunes adultes).
1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014. Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris (França).

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