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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.31 Rio de Janeiro Oct. 2015
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS: LAÇO SOCIAL
Sublimação sintomática e identidade em (um caso de) melancolia
Sinthomatic sublimation and identity in (a case of) melancholia
Esther Faye*
Australian Centre for Psychoanalysis (ACP)
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
RESUMO
Com aquele tipo bastante particular de experiência de perda de objeto na melancolia, onde o objeto "suicidado", o objeto como a Coisa, expõe-se na sua realidade e cai como uma sombra no ego do sujeito – o ego corpóreo agora sendo identificado como a Coisa imortal – o sujeito melancólico é atirado para fora do tempo. Mas para a agitação ansiosa e o desespero que acompanham o retorno desse gozo real pode emergir como um tipo particular de solução – o artifício da arte como sublimação – que pode restaurar algo da relação social que se partiu. Sintomaticamente religando o ego corpóreo que se desconectou do Real e do Simbólico, a sublimação pode prover ao sujeito a estrutura narcísica, uma escada, um "escabeau", como diria Lacan, a qual prende o Real, o Simbólico e o Imaginário, e insere o sujeito de volta na conexão social.
Palavras-chave: Sublimação sintomática, Identidade, Melancolia, Escabeau.
ABSTRACT
With that very particular type of object loss experienced in melancholia, where the 'suicided' object, the object as the Thing, is exposed in its realness and falls as a shadow onto the subject's ego – the bodily ego now becoming identified with this immortal Thing – the melancholic subject is thrown out of time. But to the anxious agitation and despair that accompany the return of this real jouissance may come a particular kind of solution – the artifice of art as sublimation – that can restore something of the social bond that had been broken. Sinthomatically re-linking the bodily ego that has been unlinked from the Real and the Symbolic, sublimation can provide the subject with a compensatory narcissistic structure, a stepladder, escabeau, as Lacan calls it, which knots the Real, the Symbolic and the Imaginary, and inserts the subject back into the social bond.
Keywords: Sinthomatic sublimation, Identity, Melancholia, Escabeau.
Parte I: O trabalho criativo de um sujeito melancólico
Uma jovem se deu ao trabalho de entender como alcançar um certo efeito em um trabalho de arte. Na época, ela acreditava que tinha fracassado. Mas anos depois, e durante o curso de sua análise, ela revisitou o trabalho e viu nele algo que não tinha visto antes. Ela havia tentado encontrar uma maneira de derreter um pedaço de alumínio e capturar em filme o momento que ele se despedaça, em que ele se quebra. Dessa vez ela viu o que ela não tinha visto antes: não só os fragmentos da folha de alumínio em pedaços voando no ar, mas agora outra coisa também – um fragmento caindo no chão, mas suspenso pela extremidade da mesa – parecia pele – isso é o que ela capturou com sua a câmera.
Começo meu ensaio com o trabalho artístico de minha analisanda, sobre a qual falarei um pouco mais adiante, para abrir o tópico de sublimação, principalmente em termos de sua função como escabeau. Escabeau [escabelo] é a palavra francesa para "escada", um termo usado por Lacan na sua palestra "Joyce o sintoma II" (LACAN, 1975/2003, p. 561), e que quero usar aqui em sua função de sinthoma (sintoma), que concede ao sujeito, principalmente ao sujeito que poderíamos chamar de melancólico, uma identidade como indivíduo. Sinthoma, a última formulação de Lacan sobre a questão do sintoma, é, nas palavras de uma colega analista, Rithée Cevasco, o escabeau singular de cada sujeito (CEVASCO, 2008, p. 43-53). Por meio da amarração de três consistências independentes – a Real, a Simbólica e a Imaginária – o escabeau, como sinthoma, é o que permite o sujeito viver sem cair no buraco do Real, para dentro do vazio da Coisa, das Ding, que é o ponto central de cada sujeito, melancólico em sua estrutura ou não.
O que é um escabeau? E por que ligá-lo ao conceito de sinthoma? O escabeau, para Lacan, é o que o parlêtre, o ser falante, usa para se erguer para fazer-se parecer "beau" [bonito], ou, ao contrário, como esses equívocos destacam – "est-ce cas beau? [esse caso é bonito?]; est-ce cabot? [é um vira-lata?]." Mas o escabeau não é meramente o envelope narcisista, a superfície da imagem do corpo como a referência a esse objeto banal pode inicialmente sugerir. O escabeau trata, como afirma Colette Soler, de um "sujeito real", não só o sujeito que vai sumindo debaixo do significante que ele representa para um outro significante, mas o sujeito que afirma a si mesmo no seu desejo (simbólico) e no seu ser (real) de gozo (SOLER, 2014, p. 63-64). O escabeau como sinthoma é o que dá ao sujeito sua verdadeira identidade, a sua identidade singular "como um indivíduo ligado a outros" (SOLER, 2004, p. 112) – A volta de Lacan à palavra "indivíduo", que ele havia subvertido em um trabalho anterior. O escabeau como sinthoma, podemos dizer, é a identidade do sujeito, uma identidade que também inclui o nome próprio do sujeito, como a continuação do jogo de palavras revelados na moterialité das letras na palavra escabeau: S. K. … beau (LACAN, 1975/2003, p. 561).
O escabeau é o pedestal do sujeito, um pedestal que pode permitir ao sujeito erguer-se à dignidade da Coisa (MILLER, 2015, p.127). Com essa formulação sabemos que com o escabeau estamos precisamente no campo da sublimação, no campo da pulsão, pois ele evoca a conhecida fórmula da sublimação que Lacan apresentou no seu estudo sobre a ética da psicanálise, sua primeira elaboração planejada e extensa sobre o real na psicanálise. "Sublimação", Lacan disse, "eleva um objeto (…) à dignidade da Coisa." (LACAN, 1959-60/2008, p.137). Se o escabeau pode ser considerado como a tradução de uma noção freudiana de sublimação, "mas na sua intersecção com o narcisismo", como Miller alega ser, beleza como a última defesa contra o horror do real, assim é possível também pensar em sublimação, em escabeau, como executando essa função de maneira sintomática. Isto é, o escabeau como uma maneira de manter junto, de amarrar os três registros – o Imaginário, o Simbólico e o Real – e desse ponto em diante a constituição do indivíduo vivente.
Parte II: Sublimação no campo das Ding
A questão na próxima seção de meu ensaio é sobre o tipo de objeto que está envolvido na sublimação. Esse objeto, que Lacan chamou, no Seminário 7, de das Ding, usando o termo de Freud para isso, é o nome para a Coisa que resta do Outro pré-histórico, absoluto e inesquecível, aquele Outro em relação ao qual as formas primárias e arcaicas de libido foram despertadas no sujeito. A Coisa é, dessa maneira, um remanescente do qual fala Lacan, como sendo além do sistema de Vorstellungsrepräsentanzen, os elementos significantes da psique, em outras palavras, além do inconsciente como simbólico. Em uma formulação que prenunciava sua definição do real, Lacan aqui estabelece a significância crítica do objeto para o ser falante: "essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é o do sujeito quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, diremos, padece do significante" (Ibid., p. 144). Êxtimo – o estado de algo que está tanto dentro como fora do sujeito – é o neologismo de Lacan para esse remanescente do real primordial que virá a constituir o buraco do real, o vazio do real na sua essência de ser falante, o vazio em relação ao que cada ser falante tem de encontrar sua noção de realidade.
Esse vazio em relação ao qual "o primeiro assento da orientação subjetiva acontece" (p. 54) está, no entanto, ao mesmo tempo, paradoxalmente cheio. Voltando à questão da Coisa no Seminário 16, De um Outro ao outro (1968-69), Lacan falará da "iminência intolerável do gozo" (LACAN, 1968-69/2008, p. 219) que habita no vacúolo no centro do sujeito. E dará, como um exemplo poderoso disso, o grito silencioso da pintura de Edvard Munch – O grito – o grito que representa das Ding no silêncio absoluto que ejacula de uma boca torta de uma mulher na pintura. Ainda assim, se essa Coisa está fora da cadeia significante, Lacan pergunta, "como é que a relação do homem com o significante... pode colocá-lo em relação com o objeto que representa a Coisa?" Para essa pergunta Lacan dá a seguinte resposta: "um objeto pode preencher essa função que lhe permite não evitar a Coisa como significante, mas representá-la na medida em que esse objeto é criado" (LACAN, 1959-60/2008, p. 146). Desse modo, sua definição de sublimação no Seminário 7: elevando um objeto à dignidade da Coisa, leva esse objeto ao valor imensurável de perda primordial, o Outro arcaico e absoluto, o do buraco vazio que é a coisa mais interna e externa do ser falante. É esse vazio que é determinante, disse Lacan, em toda forma de sublimação: "uma vez que, de uma certa maneira, em uma obra de arte, trata-se sempre de cingir a Coisa" (Ibid., p. 171), "para presentificar e para ausentificar" (Ibid., p. 172).
Ainda assim, como sabemos, a própria atividade de cingir, de dar voltas, caracteriza a pulsão em si. Como a arte então satisfaz a pulsão sem satisfazer sexualmente, sem, em outras palavras, produzir gozo sexual? A relação de sublimação ao gozo só pode ser explicada, diz Lacan no Seminário 16, pela anatomia do vacúolo. Lacan, que nessa época já havia inventado o objeto que ele chama de objeto a, ele coloca o objeto a no centro do vazio de das Ding, e diz: "O objeto a desempenha esse papel em relação ao vacúolo. Em outras palavras, é o que faz cócegas por dentro em das Ding. Pronto. É isso que constitui o mérito essencial de tudo o que chamamos de obra de arte" (LACAN, 1968-69/2008, p. 227). Uma obra de arte, desse modo, recebe seu valor pela sua função de fazer cócegas [ce qui chatouille] no real do gozo, a forma reflexiva da palavra, [se chatouiller] nos alertando para o gozo que é o alvo da função de fazer cócegas. Qual é o real do gozo? Em um nível podemos dizer que é o real do gozo evacuado do campo do Outro, o Outro como simbólico, o gozo que então vem a ser representado ao sujeito em várias formas de objeto a – oral, anal, olhar e voz – o objeto a como o local de captura de um pouco do mais real do gozo (Ibid., p. 252)
Parte III: Da ansiedade e insônia à sublimação como sinthoma
O objeto a, diz Lacan por volta do fim de seu Seminário 8, A transferência, a que ele se referirá aqui como o objeto mascarado por trás do véu dos semblantes que constituem a realidade de seres falantes. Esse objeto só começa a ficar sério na melancolia, onde a sua dita perda é experienciada como o "suicídio" do objeto (LACAN, 1960-61/1992, p. 380). Essa palavra "suicídio" dá um significado especial à referência evocativa de Freud às sombras do objeto que caem sobre o ego – somente a sombra do objeto que cometeu suicídio permanece; é só um fantasma do seu antigo eu. O objeto é foracluído, Lacan dirá no Seminário 10, Angústia. Por não ter sido subtraído do campo do Outro, o tempo, uma função de corte deste objeto que o ativa, o objeto, para funcionar como causa de desejo, o tempo é deslocado.1 Então, quando o ego se encontra sob peso do objeto como real, o vazio que o objeto deveria representar é exposto, e o sujeito tem de encontrar outra maneira de encobrir sua relação com a Coisa. Nos casos mais extremos, o sujeito melancólico é mandado de volta aos efeitos devastadores da castração primária, aos efeitos mortificantes do significante, sem a ajuda da solução sintomática para a dor de existir e o problema do gozo que a entrada na linguagem traz à tona (SOLER, 2009, aula de 1 de abril). Nos casos mais extremos o sujeito tentará se reencontrar com esse objeto com o qual está agora identificado, em um ato de suicídio, na tentativa de reestabelecer a ligação com a parte mais vivente de si, o seu gozo perdido de estar além do véu.
Minha analisanda, com cuja obra de arte comecei meu ensaio, pode ou não ser melancólica, no sentido da estrutura – esta não é a apresentação do caso e seu tratamento –, mas da maneira como ela tem falado de sua obra de arte, e como as outras características significativas do material que ela tem trazido para sua análise, levam-me a considerá-la sob o prisma do que Lacan afirmou em seu seminário De um Outro ao outro (p. 353). Nele, ele diz que a sublimação é a característica daqueles que sabem como contornar [faire le tour], contornar o ponto irredutível do sujeito suposto saber. Qualquer criação artística, ele continua dizendo, é situada nesse contornar o irredutível gozo remanescente no saber. Isso é porque o neurótico, ele também diz, é incapaz de sublimar. Por quê? Porque o neurótico confunde saber com gozo; ele não só acredita que saber é gozo do Outro, o Outro simbólico, mas ele também acredita que esse Outro tem a resposta para a questão do seu próprio gozo. Nessa confusão ele acredita na possibilidade do objeto real se juntar a esses semblantes, os semblantes que vêm desse Outro. Em contraste, aquele que sabe como sublimar, aquele que sabe como contornar o irredutível ponto no saber, é aquele que, não sendo absorvido pelos semblantes do Outro, não confunde saber com o ponto irredutível do objeto a que virá a representar, na melhor das circunstâncias.2
No Seminário 11, Lacan fala da obra de arte como uma armadilha do olhar, o olhar como uma das quatro modalidades do objeto a. Tendo "surgido (...) de alguma automutilação induzida pela aproximação mesma do real" (LACAN, 1964/1988, p. 83), o olhar, como objeto a, faz cócegas no das Ding, por dentro. E isso é o que mostra a obra de arte de minha analisanda sobre a qual falei no início desse ensaio: um pedaço de papel laminado representando um corpo que não consegue manter sua consistência face à imensa força do real do lança chamas. Um corpo, cuja representação como folha de papel alumínio partindo em pedaços e se desintegrando demonstra o efeito do suicídio do objeto no ego – exceto por esse remanescente: um único fragmento de pele mutilada suspensa na sua queda e pendurada na extremidade da mesa. A obra de arte de minha analisanda, em geral, reflete essa fascinação por corpos em estado de fluxo, uma vez que seu objetivo foi capturar de alguma forma o momento em câmera lenta em que algo estava caindo, mas ainda não havia caído. O trabalho dela, em outras palavras, brinca com o tempo – com o tempo da Coisa, e com a morte, em outras palavras. Quando Lacan fala no Seminário 11 sobre as pinceladas de Cézanne, das quais as cores "chovem do pincel do pintor" (LACAN, 1964/1988, p. 107), para colocar sua opinião sobre o gesto artístico que captura o olhar, um gesto semelhante é evidente no filme de minha analisanda.
É evidente também na maneira como ela traça as linhas, linhas que os outros instantaneamente reconhecem como só dela, que a identificam, linhas que ela fazia várias e várias vezes, traçando e apagando, procurando pelo tom certo. Até que o efeito fosse, como ela disse certa vez, como de uma nuvem delicada desaparecendo. O modo como ela fala sobre sua arte condiz com as afirmações que Lacan faz sobre a obra de arte em relação ao objeto a, com a sua função de fazer cócegas no das Ding. Mas isso também me faz pensar em uma tentativa dela de fazer um corpo sintomático para si mesma, um corpo que pode representá-la para si mesma e para outros, agora e em um futuro inimaginável. E apenas isso.
Ao fazer isso ela evoca uma problemática central na melancolia – a relação do melancólico com o tempo e o espaço, em particular, com o tempo do objeto. Em certos momentos da vida de minha analisanda, momentos significativos quando ela foi confrontada por seu próprio gozo (tanto assassino quanto sexual), ela se deu conta de uma mudança dentro dela: "algo quebrou em mim", ela disse, algo que pareceu quebrar sua segurança em relação ao mundo. "Meu corpo estava doente, agora está quebrado." Diferentemente de suas amigas que conseguiam falar de seus futuros, como esposas e mães, e que poderiam de fato imaginar seus corpos como grávidas, desde os 11 anos minha paciente não conseguia se visualizar mais velha do que uma certa idade, nem de ser capaz de carregar uma criança em seu corpo – "Eu não sei por que não posso ir além dessa época; é o sentimento mais assustador". Em vez disso, ela fala sobre três formas de ser que representam desespero para ela: a inércia de não se mover, rodopiar fora de controle ou viver uma vida pela metade, uma que envolve ver a si mesma vagueando pelo mundo, aparentemente contente. A imagem da menina que ela já foi e perdeu, e que procura nos seus devaneios e em outras representações de si, é profundamente evocada em várias ocasiões durante as análises – o devaneio sobre um tipo específico de menina que, ela diz rindo, não ser ela. Mas essa menina tem uma certa qualidade – ela é distante, misteriosa, romântica – a qualidade que desperta um certo sentimento nela, e ela ri de si mesma quando fala dessa menina – "indo a algum lugar para encontrar alguém que está a caminho de outro lugar". Em outra ocasião, falando do tempo em que, ao contar aos amigos dela uma história sobre si mesma aos 7 anos de idade, ela riu tanto que entrou em um colapso de soluço, fazendo um barulho que não era tão comum em um choro, ela disse: "Eu me senti tão triste pensando naquela menina: me senti apegada àquela menina boba; me reconheci nela e foi catártico".
Foi uma mudança da paisagem espacial/temporal dela que, ao revisitar a perda dos semblantes que a fariam reconhecer a si mesma, ver a si mesma como um corpo em um espaço e tempo que desencadeou a ansiedade que a trouxe a análise. Ela tinha assistido um filme que, de algum modo, a relembrou de um ambiente específico que era tão bonito quanto perturbante3, teve o efeito de mudar algo dentro dela que parecia uma mudança no vento e o ambiente muda as pessoas de maneira monumental sem que elas percebam, ela explicou – "o mundo muda; tudo começa a desmoronar". Depois desse filme ela viveu uma semana de noites sem dormir, aterrorizada diante da morte iminente de seus pais, medo de eles a deixarem sozinha em um mundo que a engoliria – "Eu cairei em um buraco negro e me perderei". Ela fala do terror de ver a si mesma vagando por aí sozinha no espaço vazio e infinito para sempre; ela com tanto medo de ser arrastada para o espaço negro nos entremeios dos momentos em que está acordada e dormindo. "A pior coisa", ela disse, "é ver a mim mesma fazendo aquilo". E ela fala do silêncio interior que ela mesma associa com o O grito de Munch e que ameaça abocanhá-la, um silêncio que ela só pode tratar falando de seus pensamentos em voz alta e comentando sobre si mesma na terceira pessoa – "agora ela está respirando". "Eu não sei como respirar sem pensar a respeito", ela disse. Isso é o sinal de um corpo que ela tem que manter sob vigilância para que ele exista. O que Carmen Gallano diz sobre a angústia na melancolia é pertinente aqui: "Angústia marca a fronteira entre estar à beira da ruína e estar definitivamente arruinado" (GALLANO, 2003). O nome para essa ruína é das Ding, a Coisa.
Produzir arte outra vez, desde que começou sua análise, e decorar as paredes de seu apartamento com seus desenhos, parece ter reduzido a angústia e a insônia que a trouxeram para a análise, esses sinais de perturbação em seu corpo diminuíram à medida que ela retomou, por minha sugestão, o que tinha abandonado – seu trabalho criativo. Preencher seu espaço de convívio com seu trabalho tornou o espaço menos ameaçador, menos opressor para ela, disse – "ele não é tão escuro como antes de eu começar a análise". Embora minha paciente ainda diga que tem medo de cair, ela não tem tanto medo quanto tinha antes da análise, e isso está atrelado ao fato de ela ser capaz de ver a si mesma no mundo com mais confiança como "uma artista criativa". Sua arte, e a identidade viabilizada por ela, funciona, creio eu, como um escabeau, com o qual ela se ergue. Assim como gosta de arrumar fragmentos de tecidos para criar formas, ver a si mesma como uma artista lhe dá uma forma, um escabeau que pode identificá-la como um indivíduo. Ela certamente não é um James Joyce, mas, de certo modo, sua identidade como "artista criativa", que ela reencontrou durante sua análise, a fez ver que ela pode existir sem ser engolida pelo mundo. "Estou a meio caminho de estar em meu corpo", ela disse. O que estar no corpo significa para ela é: "Sentir-se completa quando você é singular, quando você está plena estando sozinha".
"Não tenho uma noção clara de meu corpo, de minha fisicalidade como sendo minha, mas não é que seja de outra pessoa". Um recente sonho de transferência confirma, creio eu, esse reencontro da noção de uma "identidade" com a qual ela pode viver mais confortavelmente. Falar do sonho em sua análise permitiu-lhe ter "noites de sono maravilhosas durante a semana" – "Consegui relaxar e respirar" – e soltou um suspiro que foi "como deixar algo antigo sair". No sonho, uma mulher que ela costumava idolatrar, e que na vida real era bem tranquila e reservada, encontra-a na rua e, segurando o rosto de minha analisanda com as mãos, diz: "Obrigada por ser uma pessoa tão linda". "O fato de ela ter-me visto, de ver alguma coisa em mim – [est-ce cas beau?]", minha paciente disse, "tem mais peso do que se isso tivesse sido dito por um amigo".
Como sua analista, ouço nisso que a mulher vê nela o sujeito real que ela é, o escabeau possibilitando a ela como sujeito do desejo ser enodada ao ser de gozo que ela já representou no primeiro sonho que trouxe para a análise como um sapo que ficava sempre escapulindo de suas mãos.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: esther.faye1@gmail.com
Recebido: 04/06/2015
Aprovado: 10/08/2015
Tradução: Juliana Silva
Revisão da tradução: Romilson Nascimento
* Psicanalista. Analista praticante registrada no Australian Centre for Psychoanalysis (ACP) e membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. É professora do Program of Theoretical and Clinical Studies in Psychoanalysis do ACP. Participou por alguns anos do comitê editorial do periódico Analysis, e regularmente apresenta e publica suas pesquisas na Austrália e internacionalmente.
1 O comentário de Lacan no Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54) é pertinente nesse quesito. Ao referir-se à noção de Hegel, Lacan afirma: "o conceito é o tempo da coisa. Certo, o conceito não é a coisa no que ela é, pela simples razão de que o conceito está sempre onde a coisa não está, ele chega para substituir a coisa (…) o conceito é que faz com que a coisa esteja aí, não estando" (ênfase acrescentada, pp. 275-276).
2 Lacan está aqui, creio eu, retrabalhando a afirmação de Freud em "Sobre Narcisismo": "na neurose (...) encontramos as maiores diferenças de potencial entre o desenvolvimento de seus eus ideais [a agência responsável pela repressão] e a quantidade de sublimação de seus instintos libidinosos primitivos." Sublimação, uma vicissitude da pulsão, está nas palavras de Freud: um escape, uma maneira pela qual aquelas demandas [do ego] podem ser correspondidas sem envolver repressão" (SE 14, p. 95).
3 Lacan fala da beleza da última defesa contra o real na Ética da Psicanálise.