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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016
ATUALIDADE DO LAÇO SOCIAL
A essência fugaz do brilho da falta1
The fleeting essence of the shine of emptiness
Fabiano Chagas Rabêlo*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Universidade Federal do Piauí. Curso de Psicologia - Campus Parnaíba
RESUMO
Neste artigo, discutem-se as respostas possíveis do psicanalista em diante demandas de tratamento de sujeitos afetados pelos discursos do capitalista e da ciência. Para isso, toma-se como objeto de análise o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, como forma de interrogar as vias pelas quais o sofrimento e a divisão subjetiva se expressam na atualidade, tendo em vista os efeitos no sujeito de práticas que se propõem regular e suprimir o sofrimento ou franquear o acesso à felicidade por meio do acesso a objetos de gozo de consumo rápido. Prioriza-se o debate em torno das repetições significantes e dos paradoxos do gozo que permanecem e insistem como resíduos das tentativas de planificar as manifestações do sujeito. Salienta-se ao final que o desafio do psicanalista está em responder a essas manifestações, apostando numa torção no discurso possível no caso a caso.
Palavras-chave: Psicanálise, Sujeito, Memória, Capitalismo, Ciência.
ABSTRACT
This article discusses the analyst's possible responses when it comes to the demands of the treatment of subjects affected by the discourse of capitalism and science. In such a process, the movie Eternal Brightness of an Spotless Mind is taken as the object of analysis in order to question the ways through which suffering and the subjective division are expressed today, considering the effects on the subject of practices which propose to regulate and suppress suffering or to guarantee the access to happiness through the access to objects of jouissance and immediate consumerism. Priority is given to the debate about the significant repetitions and the paradoxes of jouissance that remain and persist as a residue of the attempts to plan the manifestations of the subject. At the end, it is highlighted that the analyst's challenge is to respond to these manifestations, betting on a twist of the discourse possible in each case.
Keywords: Psychoanalysis, Subject, Memory, Capitalism, Science.
Introdução
O filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, do roteirista Charlie Kaufman e do diretor Michel Gondry, nos apresenta uma intrincada trama que conjuga fórmulas e temáticas que usualmente não são encontradas associadas. Sua história oscila entre o cotidiano e a ficção científica, o drama e a comédia, o absurdo e o trivial, o sublime e o ridículo. Apesar de sua complexidade, o enredo consegue capturar o espectador e conduzi-lo pelos meandros do caminho construído a partir da errância da personagem principal.
No entanto, sua principal qualidade, que a nosso ver o torna tão atual hoje quanto em seu lançamento, em 2004, deriva dos questionamentos sobre a presença cada vez mais incisiva, mas ao mesmo tempo sorrateira e insuspeita, do discurso da ciência em nossas vidas.
Eis o cerne do dilema que o filme dramatiza: uma vez sendo possível gerenciar nossas próprias lembranças, mantendo as agradáveis e excluindo as penosas, por que então deveríamos padecer com experiências traumáticas? Diante da opção realizada pelo protagonista pela economia do sofrimento, o desenrolar dos acontecimentos nos leva a formular uma segunda questão: quais, então, seriam as consequências para uma pessoa do apagamento voluntário, deliberado e intencional de suas lembranças infelizes? O que isso acarretaria?
Partimos dessa história para indagar, com base nas contribuições de Freud e Lacan, os desafios que se colocam para o psicanalista na atualidade, tendo em vista a presença maciça de ofertas de tratamento mediadas pelo discurso capitalista. Desse modo, repercutimos aqui a pergunta formulada por Roudinesco (2000). No contexto de um mercado repleto de tecnologias que prometem a felicidade ao alcance das mãos e uma vida sem dor por meio de uma negação protética da castração, o que fazer então para sustentar a opção pela psicanálise, um tratamento longo, que não poupa o sujeito do desconforto da fala e da implicação no seu sintoma?
De acordo com a autora, a resposta a essa pergunta passa necessariamente pela aposta no tratamento pela fala a partir do discurso psicanalítico, que, por sua vez, deve estar à altura para intervir nas diferentes formas de manifestação do inconsciente de cada época. Por isso, durante nossa explanação buscamos situar no filme as modalidades de presentificação da divisão subjetiva, no simbólico e no real, como vias de retorno daquilo que é foracluído por essas práticas de regulação do mal-estar. Ao final, perguntamos o que compete ao psicanalista fazer em face das manifestações do sofrimento psíquico na atualidade que trazem consigo efeitos do discurso capitalista na cultura.
A essência da memória
O filme começa com Joel Barish acordando para uma rotina vazia. No caminho para o trabalho, percebe que aquele não é um dia como os outros. Pequenos acidentes, coincidências intrigantes e uma sensação ao mesmo tempo vaga e abrangente de desconforto o fazem sentir como se algo íntimo de extrema importância lhe estivesse escapando sem que pudesse nomear. A imersão nesse sentimento generalizado de estranhamento só é interrompida pelo surgimento de uma vontade compulsiva, arrebatadora e inexplicável de desenhar e escrever alguns pensamentos que lhe ocorrem.
Constata nesse momento que algumas folhas de seu caderno foram arrancadas. Tais folhas ausentes, como veremos, constitui uma metáfora de sua condição de exilado das próprias lembranças. Temos então, de um lado, algo de um registro subjetivo que se encontra excluído ou desconectado; de outro, um intenso trabalho que busca religar as pontas soltas do seu discurso cotidiano.
Enquanto aguarda o trem, lembra-se que aquele é o Dia dos Namorados, Valentine's Day. Pensa em monólogo: "uma data criada para fazer as pessoas se sentirem culpadas e comprarem cartões". De súbito, resolve faltar ao trabalho e, sem saber o porquê, deixa-se levar pela ideia de retornar a Montauk, uma praia próxima de Nova York onde estivera anos antes com alguns amigos. "Eu não costumo ser impulsivo. Por que estou agindo desse modo? Por que esse lugar e não outro?" Indaga-se, afetado pelos significantes que emergem: Valentine's Day, impulsivo, Montauk.
Da perspectiva da psicanálise, é possível identificar esses acontecimentos como um acting-out, uma atuação (agieren), conforme Freud (1914/1997) exprime no texto Recordar, Repetir, Elaborar. De acordo com Lacan (1958/1998), trata-se de um modo pelo qual o sujeito atualiza em uma cena a sua posição em relação ao Outro na fantasia, dando a ver nessa encenação aquilo que lhe concerne como verdade recalcada. Constitui o equivalente a uma análise sem analista, na medida em que uma disposição à transferência está mobilizada. Quando o sujeito em questão encontra-se em análise, o acting-out é indicativo de uma insuficiência de interpretação da parte do analista. Logo, da perspectiva do analisando, ele pode ser considerado uma abertura psíquica para um trabalho de elaboração simbólica. Assim, por meio do acting-out, um quantum de afeto livre, não metabolizado, na falta de outras alternativas, escoa pela via da ação, furtando-se a uma elaboração. O desafio do analista está em criar as condições para que essa elaboração ocorra.
No caso do filme, podemos tomar as atuações de Joel como uma insistência do inconsciente, que presentifica o seu lugar de sujeito tocado pela falta. Isso quer dizer, como um apelo à significação diante do Outro a partir de um encontro siderante com o objeto que lhe causa o desejo.
Já em Montauk, Joel se depara com uma mulher que lhe chama a atenção. Tal fato o desconcerta, fazendo-lhe repudiar a atração que sente. Pouco depois, torna a encontrá-la na cafeteria. A moça parece simpática. Surpreendido pelo interesse correspondido, acrescenta mais uma pergunta ao seu monólogo interior, dessa vez em tom de autorrecriminação: "por que eu sempre me apaixono por toda mulher que me dá um pouco de atenção?". Temos então notícias de uma discrepância entre um desejo que insiste e um ideal que seu Eu busca preservar e que supõe ameaçado.
No trem, ao regressar, torna a reencontrá-la. Seria coincidência? Por que os caminhos dos dois se cruzam reiteradamente? Desta vez, eles conversam. Ela então toma iniciativa, puxa assunto e lhe diz o nome: Clementine Kruckzinsk. Enquanto a escuta, Joel faz um inventário mental das características da moça que mais lhe desagradam: é atirada, fala demais. Sua presença, todavia, lhe causa um misto de fascínio e inibição. A sensação de já a conhecer paira no ar.
Na conversa, durante o trajeto, surge outro significante enigmático: "Dom Pixote" (Huckleberry Hound), referência a um desenho animado da Hanna Barbera que Clementine associa imediatamente ao seu prenome em função da música cantarolada pela personagem principal. Estranho, comenta Clementine, todo mundo conhece esse desenho, menos você. Ela então o convida para ir à sua casa, e na despedida, solicita que Joel telefone para lhe desejar feliz Dia dos Namorados.
Esses são os primeiros acontecimentos do filme. Em seguida, um corte faz a narrativa retroagir no tempo para mostrar um Joel desconsolado, aos prantos, dirigindo seu carro até colidi-lo contra um poste. Doravante, o fio condutor da história, que até então seguia uma progressão cronológica e linear, vai cedendo espaço a um estilo mais intimista, no qual as lembranças de Joel, que progressivamente descobrimos repletas de hiatos, passam a funcionar como diapasão. A história ganha um aspecto cíclico e labiríntico pelo entrelaçamento entre passado e presente, o que em Freud atende pelo nome de Nachträglichkeit, termo que designa o movimento de significação retroativa inerente à atualização das lembranças inconscientes no trabalho de elaboração onírica (FREUD, 1900/1997).
A partir dessa referência ao sonho, propomos tomar a errância de Joel como efeito de uma formação de compromisso que coloca algo do real em questão. Daí tomarmos as pontas soltas de suas lembranças como o eixo de onde parte um trabalho de atualização do inconsciente, enquanto causado pelo gozo e pelo significante.
Descobrimos então que Joel já namorara Clementine e que a conhecera em Montauk. O relacionamento teve fim após uma intensa discussão, deixando dolorosas cicatrizes para ambos. Logo após o rompimento, chega ao conhecimento de Joel pelo setor de propaganda da empresa Lacuna que Clementine recorreu aos seus serviços para apagar as lembranças do romance frustrado. "Por que sofrer inutilmente quando se pode abandonar o fardo das lembranças desagradáveis e viver uma nova vida?", eis o mote da empresa que ele lê no cartão de marketing. Seguindo o exemplo da ex-companheira, Joel opta por se submeter ao mesmo tratamento.
O desenrolar da história nos mostra o quão cínica e enganosa é essa proposta da Lacuna. O próprio dono da empresa sabe das consequências e impasses que o emprego de sua técnica acarreta. Não obstante, sua atitude é a radicalização do mesmo expediente. Ou seja, ele busca afastar tudo aquilo que nos seus clientes e colaboradores possa resultar numa atualização das lembranças apagadas: fotos, anotações, gravações, filmes, objetos pessoais etc. No caso das desilusões amorosas, faz-se necessário ainda que a contraparte envolvida, o ex-parceiro, também consinta em se submeter ao mesmo tratamento.
Ao contrário do que a propaganda da Lacuna apregoa, está implícito nesse esforço de manutenção do esquecimento que há sempre um elemento transindividual implicado em toda recordação humana. Tal fato evidencia que o sujeito posto em causa por meio de suas recordações não se trata de uma mônada isolada em si mesma ou um epifenômeno vinculado a processos fisiológicos. Na verdade, ele constitui uma função – efêmera e insistente –, resultado dos efeitos da concatenação de uma alteridade com uma linguagem articulada. Dessa forma, é a partir dos hiatos e lacunas do discurso que sua singularidade emerge como resposta ao Outro (LACAN, 1963-64/1998).
A ficção constitui aqui uma forma de abordar a realidade. Essa oferta da Lacuna pode ser tomada como a caricatura de uma característica de nosso tempo: a presença ostensiva e cotidiana dos produtos da aliança entre o discurso da ciência e do capitalismo, que engendra objetos de gozo para consumo rápido e dispositivos instantâneos de regulação do mal-estar e erradicação do sofrimento. Para a Lacuna, o problema está em encontrar os meios mais apropriados para tornar essas lembranças um objeto passível de ser manipulado e, dessa forma, possibilitar uma planificação das expressões da subjetividade.
O que persiste, então, como manifestação do sujeito?
O brilho do significante
A palavra Lacuna, que batiza a empresa, é apresentada conforme sua raiz latina, ainda que o filme tenha sido originalmente escrito e rodado em inglês. De acordo com o dicionário Aurélio (2010), ela possui as seguintes significações: vácuo, falha, falta, omissão, buraco. Pode denotar também a porção de um texto ilegível, ou em razão de estar materialmente danificada, ou por ter sido deliberadamente suprimida. Já o dicionário Michaelis (2015) acrescenta as seguintes definições: espaço não ocupado, seja ele natural ou artificial; abertura ou cavidade; sentimento de perda.
Lembramos a etimologia desse termo para destacar que o surgimento do discurso analítico está relacionado à problematização dos chamados fenômenos lacunares (GARCIA-ROZA, 2009). A psicanálise se funda na constatação de que há nas lacunas algo passível de ser lido e interpretado, na medida em que os hiatos e cortes no discurso demarcam o lugar privilegiado onde o sujeito emerge a partir da ambiguidade indissolúvel da mensagem do Outro a quem está estruturalmente alienado.
Desde o tratamento das histéricas por meio do método catártico, quando se verifica a partir de suas falas um esquecimento seletivo e a permanência das lembranças alijadas na forma de sintomas corporais, Freud desconfiava do que era considerado falhas da memória no sentido da decomposição de seu registro fisiológico. Para ele, as experiências de prazer-desprazer, principalmente aquelas mais significativas, deixam traços indeléveis no psiquismo (FREUD, 1887-1902a/1962).
Na carta 52, Freud (1887-1902b/1962) desenvolve a tese de que esquecer não implica necessariamente a perda da informação que compõe o registro psíquico. A partir daí, o ato de rememorar, segundo seus argumentos, passa a ser explicado como um complexo mecanismo de transcrição, reinscrição e tradução por meio do qual os traços de percepção são transpostos em marcas mnêmicas. Estas marcas, por sua vez, estão organizadas em estamentos, cada qual com lógica e gramática próprias. Na passagem de um estamento para outro ocorrem perdas e distorções, o que demarca um limite à simbolização e à rememoração, além de impor a exigência de uma reinvenção e reconstrução contínuas das lembranças.
Logo, a concepção freudiana de aparelho psíquico rompe com os pressupostos de um realismo ingênuo e de um empirismo mecânico. Nele, não há uma continuidade ininterrupta e imediata entre percepção, memória e pensamento. Como consequência, o funcionamento psíquico não está orientado para constituir um decalque internalizado da realidade. Daí a necessidade de se conceber uma outra realidade, a psíquica, que coexiste ao lado da realidade objetiva. A memória, nesse contexto, torna-se uma função mais ampla, extremamente complexa e sutil, que não se limita à rememoração consciente dos fatos.
Por isso, no livro dos sonhos, marco de surgimento da psicanálise, Freud enfatiza que não se trata de analisar o sonho em si mesmo, como se fosse possível reconstituí-lo da forma como o sonhador o sonhou, mas de interpretar a partir de cada fragmento do texto de seu relato o conteúdo latente que se decanta das associações do sonhador.
Ao formular seu primeiro modelo de aparelho psíquico, a primeira tópica, Freud cunha a expressão "núcleo do nosso ser" (Kern unseres Wesen) (Die Traumdeutung, op. cit. pp. 572, 573) para imputar ao processo primário a condição de principal eixo de funcionamento do psiquismo. Dele deriva o movimento metonímico do desejo em torno de uma falta constitutiva.
Com isso, Freud passa a interessar-se pelos esquecimentos, lembranças encobridoras, atos falhos (FREUD, 1898/1999, 1899/1999, 1902/1999) e, posteriormente, pelos fenômenos de dessubjetivação e desrealização – déjà vu, déjà raconté, déjà expérimenté – (FREUD, 1914/1997a) e, por fim, pelas repetições.
Acerca desse último ponto, Freud (1914/1997b) sustenta que, por efeito do recalque, prevalece no psiquismo uma tendência de repetir em ato aquilo que não pode ser rememorado intencionalmente. Por outro lado, destaca que para ser possível esquecer algo de fato, no sentido de dirimir a influência que uma representação exerce no contexto de uma cadeia associativa, é preciso que essa representação seja rememorada pela fala com o intuito de elaborar suas intensidades, proporcionando-lhes outros destinos. Logo, esquecer aqui possui o sentido de consentir em reconhecer.
Retornemos às desventuras de Joel. Durante a consulta de avaliação com o dono da Lacuna – o médico responsável por coordenar o procedimento de apagamento de suas lembranças – é tomado por uma sensação de déjà expérimenté que o desnorteia. Tem a impressão de já ter vivido a mesma cena em outra ocasião. As explicações sobre o procedimento a que vai se submeter ficam em segundo plano em face da abertura para essa outra realidade que se mostra ao mesmo tempo evanescente e mais urgente.
O médico prossegue em sua explanação: a técnica consiste em infligir "um dano mínimo aos neurônios, similar ao que ocorre numa noite de bebedeira. Faremos um mapeamento de seu cérebro e apagaremos apenas as lembranças indesejáveis" (...). "Há um centro emocional para cada uma de nossas lembranças, e quando apagarmos este centro, inicia-se o processo de degradação" (...). "Assim, quando acordar pela manhã, todas as memórias atingidas terão definhado e desaparecido, como se acordasse de um sonho."
Nessa última sentença o "como se" faz toda a diferença. Sabemos com Freud que a causa do esquecimento é a censura psíquica. Ao acordarmos, não há apagamento do material mobilizado pelo trabalho do sonho, mas a restituição de uma conjunção energética que revigora o recalque, cuja ação havia sido abrandada durante o sono.
A técnica utilizada pela Lacuna, em contraste com a explicação freudiana do esquecimento, nos coloca diante da suposição de que o cérebro é uma superfície, onde aquilo que se inscreve pode também ser apagado. As emoções, nessa perspectiva, são abordadas como epifenômenos relacionados a um processo supostamente objetivo de inscrição de vivências. Tais inscrições, por sua vez, são tomadas cinicamente como legíveis e tecnicamente manipuláveis.
A pedido do médico, Joel então traz para a consulta uma coleção de objetos vinculados aos momentos que viveu ao lado de Clementine. Eles servirão de estímulo para o mapeamento cerebral e, depois, serão arquivados. Também grava uma fita com o relato das coisas que gostaria de esquecer.
O médico então inicia o esquadrinhamento da superfície de seu cérebro: "Diga o que se lembra e começamos daí, das lembranças mais recentes em direção às mais antigas". Nesse momento, é advertido para algumas dificuldades do procedimento: "Procure apenas visualizar as situações que deseja esquecer, evite descrições verbais".
É pertinente perguntar, a partir dessa lógica, o que faz com que as descrições verbais representem um estorvo para a localização das lembranças na superfície do cérebro. As referências que trouxemos até aqui nos fornecem o fundamento para sustentarmos que, em vez de um obstáculo que embaralha as referências de localização dos traços mnêmicos, a linguagem é o principal alicerce da memória humana, conferindo a ela a estrutura de uma rede rizomática. Essa rede, por sua vez, é composta por elementos independentes e heterogêneos que, isoladamente, não respondem pela constituição das lembranças. Sobre isso, citamos Lacan (1957/1998): "É na cadeia significante que o sentido insiste, mas que nenhum elemento da cadeia consiste na significação" (p. 506).
O paradoxo tragicômico encarnado por Joel e Clementine é que, após o apagamento, em vez de trilharem caminhos diferentes e viverem uma nova vida, eles são atraídos pelas reminiscências que supunham abolidas. Nós os acompanhamos no desenrolar da história a tatear os resíduos de suas representações esmaecidas, a repetir os mesmos traços do passado sem a possibilidade de elaborá-los.
Todavia, essa inércia plástica dos fragmentos das lembranças se apresenta ao mesmo tempo como a possibilidade de constituição de um novo arranjo. Assim, imediatamente após o apagamento, os técnicos da Lacuna constatam que as representações associadas à Clementine continuam a existir, mas transformadas, amalgamadas a outras lembranças. Por meio de um processo de deslocamento e condensação, um resíduo mnêmico de Clementine é transposto para outro traço de memória, valendo-se para isso da estrutura em cadeia que ordena a inscrição dos traços mnêmicos no psiquismo, seguindo o movimento do processo que Freud nomeia regressão.
Do exposto, propomos descrever a errância de Joel a partir da atração que a letra – como aquilo que celebra uma inscrição mais fundamental de uma vivência de gozo no psiquismo – exerce na conformação de sua cadeia de pensamentos. Por isso, Lacan defende que é a partir da letra que se produz "todos os seus efeitos de verdade no homem" (Ibid., p. 513).
Em outro texto, Lacan (1953/1987) afirma que essa verdade, no entanto, só pode ser articulada na forma de uma ficção ou mito. Logo, se a letra celebra o gozo, ela exige o suporte de um dizer que implique o sujeito em sua verdade, ainda que esta, em última instância, permaneça opaca e irredutível, uma vez que não há significante que possa dizê-la por completo.
Lembramos que Lacan localiza o processo de presentificação da verdade na fulguração efêmera pela qual um significante representa um sujeito para outro significante. Isso quer dizer que, antes de dominar a linguagem, o sujeito é efeito dela. Logo, sua essência é fugaz, pois não possui consistência e duração. Se há um sujeito pretensamente senhor da significação, este constitui uma ficção que responde pelo nome de Eu. Sua função é de desconhecimento em relação ao inconsciente e à verdade que lhe habita. Por isso, a frase de Freud (1917/1999): "O Eu não é senhor em sua própria casa" .
Podemos dizer então: se a realidade é traumática, isso não se deve à ocorrência de um fato na biografia, seja ele infeliz ou violento. O trauma, enquanto evento, é sempre uma repetição desse momento essencial no qual a verdade se revela para o sujeito para em seguida novamente se ocultar. Logo, se algo se repete, isso se dá por meio da realidade, não por causa dela (LACAN, 1963-64/1998).
Essa fórmula remete ao que Lacan convencionou chamar de tiquê: algo que se repete como que por acaso em relação ao que os analistas não devem se deixar tapear, o encontro faltoso com o real. O real enquanto distinto da ideia de realidade, como aquilo que resiste ao simbólico e sempre retorna ao mesmo lugar.
O gozo como substrato material do sujeito
A sessão de apagamento então começa. Uma dupla de técnicos da Lacuna vai à casa de Joel trazendo toda a parafernália necessária para executar o procedimento. Inicia-se então uma verdadeira caçada, na qual a mente de Joel é o palco, as lembranças, o alvo e os instrumentos de mapeamento, o perseguidor. Nessa disputa, observamos as lembranças sobre Clementine se entrelaçarem com recordações e investimentos afetivos da infância mais remota de Joel.
Tal fato nos remete ao caráter efêmero do objeto sobre o qual incide a escolha objetal. Freud (1905/1997) nos indica que toda escolha amorosa se desdobra em dois momentos. Assim, na vida adulta, já sob o primado genital, o sujeito busca reencontrar no parceiro os traços significantes do seu primeiro objeto de escolha amorosa. Esse primeiro objeto possui uma natureza incestuosa, pois se apoia na referência a um dos membros do casal parental, e constitui o modelo para as escolhas futuras.
O processo psíquico que força a supressão do investimento nesse primeiro objeto de amor é denominado complexo de castração. Esse é o caminho pelo qual o sujeito busca preservar a sua integridade narcísica, deslocando para os substitutos futuros dessa primeira escolha a possibilidade de obtenção de uma satisfação libidinal. Entre a bolsa ou a vida, é feita a opção da vida sem a bolsa (LACAN, 1963-64/1998). É a configuração singular desse jogo de forças que preserva os investimentos libidinais nas representações de Clementine.
O desenrolar da história nos revela que esse efeito de pregnância das lembranças apagadas já era fato conhecido pelos técnicos da Lacuna. Uma prática corrente entre eles é a utilização das recordações dos clientes em proveito próprio, como estratégia de sedução por sugestão. Acompanhamos então as investidas frustradas de um dos técnicos da dupla que acompanha Joel. De posse de seu prontuário, nos intervalos de folga, ele tenta sem sucesso seduzir Clementine, conseguindo apenas transtorná-la e confundi-la.
Em seguida, nos é dado conhecer que a bela atendente da Lacuna, a mesma responsável pelo envio dos prospectos de propaganda para os ex-parceiros dos clientes da empresa – descobre que suas lembranças também foram apagadas. Ela tem acesso ao material que um dos técnicos utilizava para conquistá-la e que se encontrava armazenado nos depósitos da Lacuna.
Nos arquivos sobre sua pessoa, ela descobre que o amor frustrado de sua vida é o seu chefe, o médico e dono da empresa. A admiração, afeição e dedicação que pautava a relação entre os dois – aparentemente restrita ao âmbito profissional – logo se transmuta em ódio quando ela se dá conta que, para manter seu casamento e se livrar da aventura inconveniente, ele resolve apagar dela as lembranças do que viveram juntos. Como vingança, a atendente envia pelo correio para seus verdadeiros donos os objetos arquivados e as fitas cassete com o relato das memórias apagadas.
O filme retoma o fio narrativo da sequência inicial. A cena mostra Joel e Clementine, cada um em suas próprias casas após o que imaginavam ter sido o primeiro encontro no passeio a Montauk. Atônitos, abrem os pacotes recém-recebidos com uma série de objetos estranhamente familiares. Dentre eles, as fitas. Escutam as gravações nas quais suas próprias vozes vaticinam o destino funesto daquela relação que mal iniciara. Depois de se assenhorarem minimamente da perplexidade causada pelo impacto da revelação, optam por repetir o que aparentemente deu errado no passado. Talvez, desta vez, Joel e Clementine estejam um pouco mais advertidos dos percalços que encontraram no caminho.
Fica em aberto a questão se isso é suficiente, se eles realmente topam suportar a infelicidade banal do neurótico para, então, buscar uma felicidade possível e contingente. Apesar do desfecho feliz, na melhor tradição hollywoodiana, somos céticos acerca da estabilidade da resolução apresentada no filme. Ainda que ela seja possível e factível, a permanência dos vínculos amorosos costuma ser, via de regra, a primeira vítima das promessas de promoção de gozo e regulação de sofrimento.
Conclusão
Na história, o método empregado pela Lacuna evidencia o conhecimento cientificamente valorizado em nossa sociedade. No caso, a conjugação de tecnologias computacionais, com a neurologia e uma explicação cognitivista dos processos psíquicos. Talvez encontremos aqui uma síntese metafórica de um projeto de planificação dos desejos, por meio de uma aproximação entre o pensar humano e o processamento de informação nas máquinas. Sabemos que outras técnicas e práticas discursivas podem ser cooptadas dentro do mesmo enquadre de produtividade e eficácia. Por exemplo: a farmacologia, a religião, as propostas de autoajuda e as práticas de promoção da autoestima, só para citar algumas delas.
Apesar do seu apelo e popularidade, os efeitos subjetivos que essas estratégias engendram são devastadores, na medida em que atuam ou no enrijecimento das defesas egoicas ou na regulação do gozo por meio de uma intervenção no real do corpo. Assim, ao não proporcionarem uma articulação do desejo na estrutura psíquica, torna-se necessário que tais estratégias – ou a combinação delas – sejam utilizadas repetidamente como forma de afugentar o sofrimento não subjetivado e promover a satisfação da pulsão de morte na medida em que força uma ultrapassagem dos limites do princípio do prazer.
Daí as questões que se colocam para o psicanalista: como responder a essas modalidades de retorno no real daquilo que é foracluído pelo discurso da ciência e que constitui parte significativa das demandas por tratamento em nossa época? Como favorecer uma torção discursiva que atualize, a partir das mediações da cultura de nosso tempo, a subversão subjetiva necessária para o início de uma psicanálise?
A simples denúncia dos males inerentes ao espírito de nossa época se mostra uma estratégia insuficiente, uma vez que se apoia na crença em uma militância pedagógica baseada numa posição de mestria, que não raro deságua numa atitude de impotência. Por outro lado, se uma tentativa de diagnóstico dos processos discursivos nos quais estamos inseridos pode ser justificada, isso acontece pela possibilidade de vislumbrar a partir dela as linhas de fuga que são produzidas no interior dessas mesmas estratégias, evidenciando novas e antigas possibilidades de resistência.
Acreditamos que essa perspectiva está bem demarcada no filme, na medida em que interroga o preço pago pelo sujeito ao se submeter a essas tecnologias de regulação do sofrimento. A resposta do psicanalista talvez não constitua uma novidade. Consiste em interrogar o sujeito em seu sofrimento, naquilo que presentifica sua divisão subjetiva a partir das repetições significantes e suas vivências de gozo.
Referências
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Endereço para correspondência
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Recebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016
* Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – EPFCL. Professor do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí – Campus Parnaíba
1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no X Encontro Nacional da EPFCL – O inconsciente e o CORPO, que ocorreu em Joinville (SC) em novembro de 2009.