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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016
RESENHAS
Édipo ao pé da letra, de Antonio Quinet
Édipo ao pé da letra, from Antonio Quinet
Vera Pollo*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano da Internacional dos Fóruns - IF-EPFCL
Universidade Veiga de Almeida. Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicologia Clínica
"Fragmentos de tragédia e de psicanálise", eis o subtítulo escolhido por Antonio Quinet para o seu novo livro Édipo ao pé da letra, recém-lançado pela Jorge Zahar Editora. Um e outro, o título e o subtítulo, são fiéis ao que o leitor encontrará à medida que for virando suas páginas. Porém, mais do que isso, suas páginas testemunhariam, se necessário fosse, que não vivemos para além do Édipo, como não vivemos para além do inconsciente, nem mesmo da psicanálise. Mas, para caminhar com seus próprios pés, é preciso tomar o Édipo ao pé da letra. Esta seria talvez a melhor síntese de todo o livro.
Arriscaria dizer que a ideia da escrita por meio de fragmentos dá ao livro um toque singular que nos permite tratá-lo como uma sessão de análise, como se estivéssemos escutando algo assim: "Sim, comece de onde você quiser. Quer voltar atrás? Então volte, quantas vezes você quiser. Já não dizia Fernando Pessoa que é preciso navegar?!". Tome a direção que tomar, você irá se surpreender. Se o autor nos adverte que encontraremos algumas frases repetidas, verificamos, no entanto, que a repetição nunca é repetição do mesmo, pois este livro, simultaneamente leve e erudito é, acima de tudo, um cuidadoso trabalho de decifração de enigmas. Com ele, tomamos conhecimento dos diferentes modos de se ler a tragédia de Édipo, aprendemos como traduzir os mais variados termos da língua grega, e descobrimos o sentido, por vezes trágico, do gozo de lalíngua.
São, ao todo, cinco partes: Édipo em Freud, Édipo em Lacan, Retorno a Sófocles, O enigma da Esfinge e A tragédia grega. Cada uma é composta por um número variável de capítulos, e este chegará a 23 na última parte. Composto por uma série de fragmentos, nem por isso se trata de um livro fragmentado. Qual Sherlock Holmes, ele nos deixa a impressão de que Quinet se deixou guiar de ponta a ponta por uma pergunta misteriosa: "Por que Sófocles não se debruçou sobre o crime de Laio? E seus desdobramentos: Por que Freud e Lacan tampouco o fizeram? Por que, principalmente, omitiram esse crime que se estende como uma maldição pelas gerações subsequentes e põem fim aos filhos de Édipo e de Jocasta sem deixar herdeiros?"
A bem da verdade, desde a orelha do livro somos informados de que Antonio Quinet, com seu Édipo ao pé da letra, vai em busca da "preteridade velada", desta que só advirá em ato, mediante o inevitável retorno do recalcado. Ao revirar o Édipo pelo avesso – seguindo uma orientação bem lacaniana, por sinal – ele descobre a origem do vaticínio do oráculo de Delfos: "Matarás teu pai e dormirás com tua mãe!". Ela está no crime de Laio, o homem do pé torto. Para quem não sabe, o avô de Édipo se chamava Labdaco, isto é, pé manco; seu pai, Laio, era pé torto; ele, Édipo, pé inchado. Três significantes da lalíngua grega, que demonstram como o significante marca o corpo, em sua transmissão geracional.
Em sua desmedida, ou, se preferirmos, sua hybris, Laio raptou o filho de seu anfitrião e fez dele o seu amante. Eis o que se extrai do saber da tragédia grega: atentar contra a hospitalidade é crime hediondo e não fica impune aquele que o comete. No capítulo intitulado "É proibido ver a nudez do pai", aprendemos que, enquanto Freud acentuara a importância dos desejos edipianos parricidas, a releitura de Lacan acentuou o filicídio como o ato criminoso por excelência, o crime do gozo do pai que se transmite de uma a outra geração. Laio desejou matar o filho, Édipo promoveu a morte dos seus. "Eis a herança de Isaac e também a de Édipo: o filicídio", declarou Lacan. Pois, se a ordem do pai real é: "ignore!", vem "daí a paixão da ignorância de Édipo" (p. 49).
Em "Enlace e nomeação", capítulo que segue de imediato o "Édipo borromeano", Quinet chega a propor a tradução inédita de um comentário de Lacan, na aula de 14 de janeiro de 1975 do Seminário R.S.I. Ei-la: "Enlaçar-me de outra forma, é isso que faz o essencial do complexo de Édipo e é muito precisamente nisso que opera a psicanálise" (p. 57). Logo, não se trata de ir além do Édipo, pois tampouco se pode ir além do nó, trata-se, isso sim, "de enlaçá-lo de outra forma".
No "Retorno a Sófocles", Quinet se apoia em um helenista inglês, Bernard Knox, para dizer, com certa ousadia, que Édipo rei não é uma tragédia do destino, porque o herói é livre, portanto responsável por sua própria catástrofe. Esta parte do texto, como se deduz do título, é rica em termos gregos traduzidos para o português, e o primeiro, não poderia deixar de ser, é Óidipous.
Estranhíssima a figura da Esfinge, tal como a descreve Sófocles em Édipo rei, e a retoma Antonio Quinet, que, não por acaso, a aproxima da "não toda" e assim a descreve: "cara e seios de mulher-menina, corpo de cadela, garras de leão com unhas curvas, asas de pássaro e virgem. Ela se apresenta cantando. É uma cadela cantante" (p. 100). Além disso, como ela utiliza os equívocos da lalíngua, "é também uma representação do inconsciente".
Mas a resposta de Édipo à Esfinge: "É o homem!", embora lhe abra as portas de Tebas – ou melhor, por isso mesmo – é uma pseudorresposta, que simultaneamente realiza e mascara "sua identidade de parricida e incestuoso" (VERNANT apud QUINET). Édipo não tem lugar em Tebas, como não o teve previamente no desejo de seus pais. E assim ele ensina ao leitor que o enigma do lugar do sujeito como objeto a na fantasia é o de ser simultaneamente desejado e dejetado, convidado e expulso.
No subcapítulo intitulado "Faltou poesia", não podia deixar de ser, o convidado de honra de Quinet é Heidegger. Este vem nos ensinar que "poesia é o ato de medir esse entre-dois entre a terra onde a pergunta é jogada e o céu que não responde" (p. 121) e, mais do que isso, que há dois tipos de cegueira: uma provocada pela falta, outra pelo excesso, já que, para Hölderlin, "o rei Édipo talvez tivesse um olho a mais" (p. 122).
A quinta e última parte, como dissemos anteriormente, chama-se "A tragédia grega". Nela, aprendemos que a tradução literal do termo alemão Trauerspiel, tragédia, é jogo de luto (p. 161). A tragédia não é o mito, não é uma de suas inúmeras versões, pois o que a caracteriza, entre outros, é a equivocidade da língua e a contradição entre a fala poética do coro e a fala coloquial dos atores. A tal ponto que, para Goethe, o trágico é justamente a "contradição irreconciliável", o evento terrível que é consequência do fazer humano. Édipo, "multifacetado e sutilmente complexo, é o maior indivíduo da tragédia grega (p. 133)".
A catarse, objetivo maior de toda peça trágica, longe de ser simples purgação, no sentido de ab-reação do "afeto estrangulado" – esta que foi talvez a primeira definição freudiana do sintoma conversivo –, merece ser tomada em seu verdadeiro sentido de "manifestação em estado puro da compaixão e do temor" (p. 135). Pois a Mimesis – que é representação, e não imitação –, "permite que se experimente sem dor esses dois afetos, e isso devido ao efeito da beleza que a arte produz" (p. 135). Por isso Freud qualificou de Genuss, ou seja, gozo, a satisfação experimentada pelo espectador da tragédia, e Lacan concluiu que o desejo puro se localiza no espaço trágico do entre-duas-mortes.
Na definição de que a obra de arte é metáfora do gozo da desmedida, o termo metáfora não corresponde exatamente à substituição de um significante por outro; ele significa, sobretudo, transposição, transporte, como se pode ler no livro de Quinet, assim como em veículos coletivos que circulam em cidades gregas. Mas a tragédia permite, sim, uma certa substituição, uma vez que permite substituir o desprazer trágico pelo prazer estético. Ou melhor, transporta-nos de um ao outro.
Ao fim, Quinet nos lembra que Lacan se referiu à cena grega para explicitar o lugar de semblante do objeto a. Porém, mais do que isso, sugere pensarmos o que teria acontecido, se Édipo tivesse laiusado. Ele não o fez. Em contrapartida, é isto que fazemos, enquanto analisantes, durante o tempo da análise. Laiusar significa "ir além do desejo de salvar o pai, usar e gastar o pai real, defrontar-se com seu crime e vencer a ordem de ignorância feroz" (p. 173). Numa só palavra, parafraseando o poeta: "Laiusar é preciso, viver..." bem, desde que seja "laiusando". E precisa mais?
Endereço para correspondência
Rua Benjamim Batista, 15 / 101
Jardim Botânico Rio de Janeiro (RJ)
E-mail: verapollo8@gmail.com
* Psicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia pela PUC-RJ; D.E.A. pela Universidade de Paris VIII. Analista membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da Internacional dos Fóruns (IF-EPFCL). Professora Titular do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. Autora de Mulheres histéricas (Contra Capa Livraria, 2003) e de O medo que temos do corpo (Editora 7Letras, 2012).