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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.35 Rio de Janeiro July/Dec. 2017
ARTIGO BILÍNGUE
A violência do gênero: liberdade de escolha e escolha forçada em um caso de transexualidade na infância1
Gender violence: freedom of choice and forced choice in a case of childhood transsexuality
La violence de genre: liberté de choix et choix forcé dans un cas de transexualité dans l'enfance
Julieta De Battista; Tradução de Vera Pollo
RESUMO
Hoje, somos confrontados com uma ideia amplamente realizada: todo mundo tem seu corpo e tem o direito de fazer com ele o que quiser. Os casos dos chamados "transexuais" são apresentados como ideais desse poder de decisão sobre o corpo e a reivindicação do direito à liberdade de escolha. Este texto propõe interrogar esse ideal para retornar sobre os efeitos da constelação original no advento de um sujeito. Em 1969, Lacan propôs repensá-lo em termos da maneira como o desejo do pai e da mãe foi apresentado ao sujeito, a maneira como o conhecimento, o gozo e o objeto a lhe foram oferecidos. É nesses termos que Lacan localiza a ideia de "trapaça" da escolha entre neurose e psicose. Enganosa ou imprópria, porque não havia tal escolha, a escolha já foi feita no nível do que foi apresentado ao sujeito. A escolha forçada é velada por trás do ideal do direito à liberdade de escolha. No entanto, a força de escolha não obstrui a hipótese de uma posição subjetiva ativa. O texto trabalha essa questão no caso de uma criança transexual.
Palavras-chave: Psicanálise; Transexualidade; Infância; Desejo.
ABSTRACT
Today we are confronted with a widely held idea: everyone owns their body and has the right to do with it whatever they want. The cases of so-called "transsexuals" are presented as ideals of this decision-making power over the body and the claim of the right to freedom of choice. This work proposes to interrogate such ideal to return on the effects of the original constellation in the advent of a subject. In 1969, Lacan proposed to rethink this in terms of the way in which the desire of the father and of the mother was presented to the subject, the way in which knowledge, enjoyment and object a were actually offered to them. It is in these terms that Lacan situates the idea of "cheating" on the choice between neurosis and psychosis. Cheating or improper because there was no such choice, the choice was already made at the level of what was presented to the subject. The forced choice is veiled behind the ideal of the right to freedom of choice. Now, the force of choice does not occlude the hypothesis of an active subjective position. The article addresses this issue in the case of a transsexual child.
Keywords: Psychoanalysis; Transsexuality; Childhood; Desire.
RÉSUMÉ
Notre temps nous oblige à faire face à une idée largement répandue : chacun possède son propre corps et a le droit d'en faire ce qu'il veut. Les cas des soi-disants "transexuels" sont de très bons exemples de ce pouvoir de prise de décision sur le corps et de revendication au droit à la liberté de choix. Cela dit, ce travail propose d'interroger cet idéal, en examinant les effets de cette constellation originelle dans l'avènement d'un sujet. En 1969, Lacan a proposé de la repenser ayant en compte la façon dont ont été présentés au sujet le désir du père et la mère, la manière dont on lui a effectivement offert la connaissance, la jouissance et l'objet a. C'est dans ces termes que Lacan situe l'idée "trompeuse" du choix entre névrose et psychose. Trompeuse ou inappropriée puisqu'il n'y a pas de choix, le choix a déjà été fait au niveau de ce qui a été présenté à ce sujet. Le choix forcé reste voilé derrière l'idéal du droit à la liberté de choix. Or, la contrainte du choix ne masque pas l'hypothèse d'une position subjective active. L'article donc se penchera sur cette question à partir du cas d'un enfant transsexuel.
Mots-clés: Psychanalyse; Transexualidad; Enfance; Désir.
Introdução
Desde que, na década de 1960, os estudos de gênero começaram a tornar visíveis as diferenças irredutíveis que pretendem ser resolvidas pela repartição binária masculino-feminino, a psicanálise começou a ser designada como uma teoria que contribui para sustentar uma visão falocêntrica e paternalista do mundo. Começou assim também a cobrir-se o que a psicanálise tem de prática profundamente transformadora e respeitosa das maiores diferenças.
Meio século depois, as reivindicações dos estudos de gênero passaram a fazer parte da opinião pública, instalando-se no debate cotidiano sobre as desigualdades que recaem sobre as mulheres e aqueles que se afastam da norma cis. Situo aqui o terreno fértil da problemática de que vou me ocupar, porque entendo que ela tem a ver com a transmissão da psicanálise e sua situação no estado de civilização em que estamos, bem como no que se espera dele em nosso século XXI. Não creio que seja uma questão que esteja no nível do processamento do dispositivo analítico, ali onde rege o desejo de obter a diferença máxima, a diferença absoluta.
Como professora universitária de uma psicopatologia orientada pela leitura de Freud e Lacan, dei-me conta, há vários anos, de que alguns enunciados da psicanálise - escutados através do cristal de Judith Butler e das reivindicações de gênero - começaram a se tornar indigestos para meus jovens estudantes. Talvez não seja necessário lembrar que, na Argentina, a carreira de psicologia é uma faculdade em que 90% são mulheres, situação que se reitera em outros países. Se acrescentarmos a isso a onda de assassinatos de mulheres, que ocupa hoje em dia um lugar privilegiado na mídia argentina, a combinação se torna fatídica para a transmissão de alguns princípios básicos da psicanálise, em um contexto em que, durante anos, ela funcionou como causa para muitos jovens que se encontram com a leitura de Freud nos primeiros momentos de sua formação: "Por que continuar falando do Nome-do-Pai? Será que isso não é sustentar o patriarcado que nos oprime e acaba nos assassinando?"; "O que a psicanálise propõe para a histeria não é um modo de patologizar as mulheres e calá-las?"; "Por que pensar que Dora tinha uma participação ativa na história com o sr. K, e não denunciar que ele abusou dela quando ainda era uma menina?"; "Por que patologizar uma escolha de gênero como a dos transexuais, dizendo que poderia tratar-se de uma posição psicótica?". Imagino que vocês podem perceber o tom das interrogações, sua tonalidade fortemente ideológica e a dificuldade extra que introduzem na transmissão de princípios tão subversivos como os da psicanálise nesse contexto: a posição sexualmente ativa da criança, a não redução da feminilidade à maternidade, a psicose como posição subjetiva do ser e não como deficit.
É certo que continua sendo altamente subversivo (e angustiante) escutar as teses freudianas do século XX, tão atuais quase um século depois: o programa de sermos felizes é irrealizável, o mal-estar é imprescindível à condição do homem na cultura, a fonte de maior sofrimento para os homens provém de sua convivência com os demais seres humanos (Freud, 1930 [1929]/1991). E, mais ainda, quando se insurgir diante dessa tese vai contra a constatação contínua de que: "O inferno são os outros".2 "Neste momento obscuro da nossa civilização", escrevia Vitor Hugo em 1862, "o miserável se chama homem, sofre em todos os climas, agoniza em todos os idiomas".3 Neste momento também obscuro da nossa civilização atual, o sofrimento não abandonou o ser humano. Trata-se, sem dúvida, de uma tese cuja "cientificidade" é difícil questionar, por seu alto grau de reprodutibilidade e sua persistência através da história. Quem se atreveria a afirmar que está livre do sofrimento?
A leitura de Lacan tampouco faz objeção a essa tese, ela dá um passo a mais, ao atribuir a fonte do sofrimento - o troumatisme que implica o impacto de lalangue no corpo - à condição de parlêtre do ser humano. O pathos é uma escolha forçada para o ser humano, porque ele é um ser falante, a palavra é um parasita, "a palavra é a forma de câncer que aflige o ser humano" (Lacan, 1975-1976/2005, p. 95). A psicopatologia invade a vida cotidiana. É certo que não há muitos ouvidos prontos para escutar a peste, há talvez muito mais inclinados a sonhar com um mundo feliz, isento das inadequações do sexo e da morte, desejosos de uma convivência harmônica, dispostos a tudo curar com uma boa dose de Soma.4 Esse desejo de um mundo feliz é altamente cotado na bolsa de valores; além disso, mais do que em qualquer outra época, parece estar ao alcance de nossas mãos: podemos fazer algo para obter o que desejamos, podemos fazer algo para que nossas sociedades sejam mais justas e igualitárias, e ainda temos o direito de ser felizes e devemos fazê-lo valer.
A exigência da paridade5 é sumamente tentadora. Também o é a ideia do respeito aos direitos humanos e da liberdade de escolha do gênero e do sexo. Qualquer enunciação que tenha a ousadia de interrogar os efeitos dos novos princípios de nossa civilização corre o risco de ser escutada como uma posição anacrônica, machista, troglodita, até mesmo fascista. Pode-se rapidamente cair sob a suspeita de ser simpatizante dos feminicidas, sobretudo se quem se atreve a interrogar é um varão! Destaco a vertente ideológica do assunto, pois contrasta com o estado de nossas sociedades atuais: sociedades que continuam a ser regidas pela segregação urinária, pela adoração da prevalência da gestalt do falo6 e... de um pai que ponha ordem nesse obscuro cambalacho. Talvez aflorem outros problemas em outros momentos da civilização. Não é maluquice pensar que amanhã, talvez, já não importe ser cis ou trans, que baste ser humano... ou não. E a inteligência artificial não terá mais nada a ver nem com a sexualidade nem com a morte.
Nesta ocasião, quero compartilhar com vocês meus primeiros balbucios. Decidi começar por um tema que me interroga de forma especial: o da transexualidade. Reconheço alguns desencadeadores: o filme The danish girl [A garota dina marquesa], baseado no diário da primeira pessoa que se submeteu à cirurgia de mudança de sexo; mas também os relatos dos profissionais que trabalham com as demandas de readequação do sexo em função da identidade de gênero escolhida em um hospital público da cidade de La Plata. Parecia-me que esses casos nos confrontam com uma ideia amplamente difundida hoje em dia: a de que cada um é dono de seu corpo e tem o direito de fazer com ele o que bem quiser. No ano 2012, foi sancionada na Argentina a Lei nº 26.743, de identidade de gênero, que foi regulamentada no ano 2015. Essa lei permite que as pessoas trans (travestis, transexuais, transgênero) sejam inscritas em seus documentos pessoais com o nome e o gênero de sua escolha. Ordena também que os tratamentos médicos de adequação à expressão de gênero escolhida sejam incluídos no Programa Médico Obrigatório. Ela foi distinguida como a única lei sobre identidade de gênero no mundo inteiro que não patologiza a condição trans. Entendo que pathos é entendido aqui como a discriminação de uma diferença. Porém, a expressão "patologizar a condição trans" contém o risco de se pensar que acompanhar o processo de adequação do corpo em função da identidade de gênero escolhida implicaria a extinção do sofrimento, supostamente ocasionado por essa falta de adequação entre o sexo biológico e a identidade de gênero assumida.
Não patologizar seria, então, assumir que já não há sofrimento nos sujeitos trans que conseguiram fazer sua readequação? O sofrimento dos sujeitos trans não se resolve com intervenção cirúrgica, nem com a inscrição do documento nacional de identidade. De acordo com o relato da equipe já mencionada, que trabalha com essas demandas, logo após a cirurgia aparecem outras causas do mal-estar: seja porque a voz não combina com a identidade de gênero que foi assumida (com a dificuldade a mais de que a voz não pode ser operada), seja porque o neo-órgão reconstruído se parece bastante com o órgão desejado, mas não funciona como sede de excitações, seja, ainda, porque a inserção formal de trabalho dos sujeitos trans está cheia de dificuldades, algumas intransponíveis, e 85% obtêm renda com a prostituição, embora prefiram outro emprego. De acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2014, a expectativa de vida da comunidade transexual na Argentina chega somente aos 41 anos, ao passo que a expectativa da população em geral chega aos 75. As principais causas são os homicídios transfóbicos, o abuso policial e o mau uso de silicones industriais.
Por um lado, os casos dos transexuais se apresentam como ideais desse poder de decisão sobre o corpo e da reivindicação do direito à liberdade de escolha. Por outro, é indubitável que o exercício ideal da liberdade de escolha contrasta com a baixa expectativa de vida dos transexuais, a constante segregação e marginalidade, os altos índices de suicídio.
Para adentrar esse tema, decidi começar por uma aresta especialmente sensível do problema: os casos de transexualidade na infância. Vou oferecer uma leitura do relato testemunhal da mãe de um menino que, antes dos 2 anos de idade, começa a dizer que é uma menina, e não um menino. O caso adquiriu relevância em nosso país por se tratar do primeiro menino trans de 6 anos a quem foi outorgada a mudança de documento de identidade, reconhecendo a assunção de uma identidade de gênero diferente com tão pouca idade. É um caso conhecido pelas conquistas que implicou para a comunidade trans na Argentina. Vou poupá-los de toda a vertente de reconhecimento e de empoderamento da defesa dos direitos que o caso suscitou, e cujo valor é inquestionável, para ir direto às manifestações de sofrimento. Insisto no ponto em que não se trata de patologizar a condição trans, mas em considerar a forma do pathos que assedia todo ser humano. Interrogar a expressão que esse Pathos universal encontra na singularidade irredutível de cada um, até o ponto em que, querer despatologizá-lo, leva a correr o risco de deixar de ser escutado.
O caso7
Manuel e Federico são gêmeos, os primeiros filhos de Gabriela. Porém, não os de Guillermo - o pai -, que, no momento do nascimento dos dois, já tinha abandonado outros três filhos. Gabriela passou toda a gravidez, que foi de alto risco, e os primeiros anos da criança com medo de que esses filhos também fossem abandonados pelo pai. A marca do abandono insiste nas gerações: ela mesma é a terceira irmã mulher criada por uma mãe que ficou só. O pai de Gabriela também abandonou os filhos e desapareceu. A mãe de Gabriela, uma "batalhadora nata", criou sozinha seus quatro filhos: "ela nos deu amor e cuidado materno, nunca nos faltou nada, embora não tivéssemos um pai" (Mansilla, 2014, p. 63).
O pai dos gêmeos imaginava um futuro para os dois varões: trabalhariam juntos, um seria eletricista, como ele; o outro, mecânico. Gabriela insiste várias vezes que ela não desejava uma filha, muito menos "um casalzinho": "Fiquei feliz quando me disseram que eram dois meninos. Eu achava que, se fossem meninas, iam sofrer muito. Porém, sendo meninos, estudar, conseguir um emprego, sair de casa... tudo é mais fácil para eles, não acha?" A associação entre "ser menina" e "sofrer" parece comandar sua interpretação das primeiras condutas de seus bebês: enquanto Federico nada pedia, dormia bem e era muito tranquilo, Manuel era muito demandante, ficava chamando a atenção o tempo todo, chorava desconsoladamente e não dormia bem, dormia muito pouco: "Eu consolava rapidamente o seu irmão, mas você, eu não conseguia acalmar (...), nada lhe agradava, você estava sempre precisando de alguma coisa que eu não podia decifrar, porque você nem sequer falava. Eram inteiramente diferentes, tanto de dia quanto de noite. Ele parecia sereno e tranquilo, mas você parecia não ter paz. Era perceptível em seu olhar, seus olhinhos profundamente tristes causavam surpresa" (Mansilla, 2014, p. 25). A diferença também aparecia nas brincadeiras: Manuel não gostava das brincadeiras "brutas", era muito sensível e não queria bater no pai. Um parecia estar bem em seu próprio corpo; o outro sofria sem motivo, sempre em "desconforto".
Segundo relata a mãe, um episódio casual, quando Manuel tinha 2 anos - a visão do filme A bela e a fera -, parece dar nome a essa diferença no corpo: Manuel baila como a Bela, fica deslumbrado por essa princesa e pega saias de sua mãe para bailar. Desde então, vestir-se com as roupas da mãe se torna uma coisa cotidiana; "você passava o dia inteiro vestido com uma das minhas saias" (Mansilla, 2014, p. 27). E às noites também, porque as escondia embaixo do travesseiro. As noite de insônia, os terrores noturnos e o choro contínuo e sem sentido acompanham esses dias, em que a única coisa que parecia acalmá-lo eram os vestidos da mãe. Outras condutas autodestrutivas foram se somando aos episódios de "choro desesperado": arrancar os cabelos até produzir a queda de tufos inteiros, bater a cabeça contra a parede, morder-se. Também sofria de asma. Manuel tinha apenas 2 anos, mas "não tinha paz, eu não conseguia entendê-lo". Um corpo que pede aos gritos para ser vestido, basta isso para fazer dele um corpo de mulher?
A mãe conta que, assim que Manuel começou a falar, aos 20 meses, sua primeira frase foi "Eu menina, eu princesa"; ali, selou-se para ela o início de uma "longa batalha", a do reconhecimento de que Manuel havia nascido com um corpo de varão, mas desejava ser uma menina. A diferença entre os dois irmãos é nomeada como uma questão de gênero, a experiência do insuportável desse corpo passa a ser reconduzida ao desacordo entre o que se vê e o que se é. As práticas de Manuel de cobrir-se com qualquer tecido ou pano que encontrava - toalhas, panos de chão - eram sempre interpretadas como o desejo de ser uma menina: "como se fossem vestidos", "como se fosse princesa". Contudo, há momentos em que o relato da mãe deixe entrever que talvez a diferença fosse um pouco mais além do que a diferença dos sexos e dos gêneros, pois parecia concernir às bordas de um corpo que se pudesse habitar: "no entanto, eu escutava os seus gritos cada vez que iam retirar o que você havia posto, não estavam tirando a sua roupa, eu sentia que estavam tirando a sua pele" (Mansilla, 2014, p. 31). Os transbordamentos de Manuel continuavam. A constituição da consistência do corpo é um dado prévio aos dois tempos da escolha sexuada.
A partir do enunciado "Eu menina, eu princesa", tudo se encaminha para que Manuel seja acompanhado pelo que se interpreta como seu desejo de ser menina e sua escolha de identidade; acompanhar, não reprimir, escutá-lo e ajudá-lo a se converter na "princesa mais formosa do mundo" (Mansilla, 2014, p. 36); no percurso de "como você deixou de ser o meu neném e passou a ser Luana, minha princesa" (Mansilla, 2014, p. 25). Luana foi o nome escolhido pelo menino. Então aparecem as perucas, os disfarces de princesa, as bonecas e também as resistências: "Por que você compra revistas de menina para ele?; "Os carrinhos são para você, não as bonecas". Os outros se negavam a vender uma revista de princesas ou um vestido para um menino, as professoras do jardim o obrigavam a agir como menino, não o deixavam ser o que ele queria e tinha direito de ser: uma menina. Uma hesitação ocasional de Manuel tampouco encontra muito lugar, pois, quando a mãe, ao vê-lo usar uma capa de almofada como vestido, lhe pergunta se está brincando como uma menina, ele lhe responde: "Não, mamãe, estou bailando, eu sou um bebê." Mas Gabriela menciona, em seguida, que o menino havia aprendido a dizer apenas o que queriam escutar.
O pai também se opõe a acompanhar essa mudança, cuja necessidade vai se tornando cada vez mais impositiva para a mãe, e com convicção crescente. Contrariado, mas na intimidade do lar, o pai lhe permite vestir-se de menina, porém não aceita que Manuel saia à rua desse modo, tampouco aceita lhe comprar bonecas, não obstante a mãe lhe prometa. Para a mãe, o pai começa a converter-se em "nosso maior obstáculo" (Mansilla, 2014, p. 56). Ela insistia em que o pai devia reconhecer o desejo do filho de ser uma menina; nas palavras dela, o pai "estava entre a espada e a parede. Entre ter um varão infeliz e com medo ou uma menina com pênis" (Mansilla, 2014, p. 49). Os comportamentos autoagressivos de Manuel continuavam sendo interpretados como uma reação diante da não aceitação do desejo de ser uma menina; "você se destruía diante dos nossos olhos" (Mansilla, 2014, p. 46). A situação se torna intolerável para o pai, que, diante das demandas da mãe, acaba aceitando comprar uma boneca, mas já não pode olhar nem cumprimentar o filho, evita-o, apenas. Embora a mãe sustentasse que o pai estava começando a aceitar que o filho era uma menina, ele acaba atirando uma garrafa contra o chão, sem notar que a jogara na direção de Luana. O pai começa a ausentar-se, desaparece por vários dias, até que não volta mais. Para a mãe, abriu-se algo novo: "Se era possível enfrentar e lutar com seu pai, então era possível fazê-lo com todos" (Mansilla, 2014, p. 63); "no fundo do meu coração, eu sabia que um dia ele iria. Quando conheci seu pai, ele já tinha três filhos e já os tinha abandonado, esse era o meu grande medo, o de que ele fizesse o mesmo e nos abandonasse também, deixando-nos sozinhos" (Mansilla, 2014, p. 47). Afinal, a mãe "lutadora" é também um traço das mulheres de sua família.
Porém, as resistências não são apenas do pai, mas também dos outros, e talvez as mais insistentes provenham do próprio corpo, de uma parte que incomoda: o "peruzinho". Manuel já tem 4 anos e trocou seu nome pelo de Luana; mas o pênis permanece no lugar, e essa parte do corpo ficou sem função, pois é negada. Ele não quer fazer nem pipi nem cocô para não se ver, começa a fazer pipi sentado, dizendo: "Não tenho peruzinho, sou uma menina." Nesse caso, curiosamente, a diferença entre os sexos não passou pela premissa universal do pênis, mas foi enunciada desde o início nos termos de "as meninas têm vagina e os meninos têm pênis". A mãe propõe que ela é "uma menina diferente, uma menina com pênis", mas isso não basta, e Luana replica: "Queria ser uma menina comum" (Mansilla, 2014, p. 66). O medo da mãe de que Luana se machuque ou corte o pênis vai aumentando, até o ponto de ela esconder todos os instrumentos cortantes.
Enquanto isso, tudo o que Luana faz insiste em ser interpretado na mesma chave do gênero: "você devia ser uma menina para se sentir bem (...) mamãe estava ao seu lado no seu desejo de ser e tornar-se a menina que você é" (Mansilla, 2014, p. 95), e conduzia a um novo patamar na luta pela reivindicação dos direitos: que o jardim da infância aceite que ela é uma menina e que o Estado mude sua certidão. Nenhum desses avanços consegue deter algumas condutas que se repetem: o mal-estar não desaparece, tampouco desaparece o choro desconsolado, pesadelos menos ainda, ela continua se machucando e despertando aos gritos no meio da noite; ela se morde, arranca os cabelos, arranha o rosto. Mas esse sofrimento recebe novamente a mesma interpretação: "Você gritava para que fosse aceita, pedia aos gritos que a deixassem ser uma menina" (Mansilla, 2014, p. 73); "Seu desejo de ser uma menina era tão forte, tão intenso, tão necessário, havia tanto instinto em você, tanta essência feminina, que todo mundo que a conhecia podia percebê-lo" (Mansilla, 2014, p. 115). O desejo da menina a transforma também em uma lutadora, com quem se pode aprender, que deve ser escutada e seguida: "Você percebeu sua identidade muito antes de saber qual era a diferença física entre um menino e uma menina (...) hoje você é muito mais menina do que as meninas que eu conheço" (Mansilla, 2014, p. 115).
Mas é certo que se vestir de menina, ter uma certidão de menina, ser chamada como uma menina e ser aceita como menina 24 horas por dia não acalma o sofrimento do corpo. Luana já tem 5 anos e não para de arranhar o rosto, arrancar os cabelos, morder os próprios dedos, bater no rosto até chorar, e o faz diante de todos. Aparecem as cenas em que enfrenta a mãe e se torna hostil com Federico: queria que seu irmão também fosse uma princesa com pênis. Na ocasião de uma atividade escolar, Luana fica parada no meio do pátio diante de todos e, olhando para a mãe, começa a arranhar o rosto com as duas mãos até se ferir (Mansilla, 2014, p. 167). Ela tinha acabado de ver no banheiro uma menina e sua vagina. As perguntas sobre a função do pênis e dos testículos insistem. Para que eles servem?, pergunta Luana. A mãe responde: "Servem para que mais tarde construam uma vagina, se você quiser. No dia em que você não quiser mais o seu peruzinho, mamãe vai levá-la a um médico que pode transformar esse pênis e os testículos em uma vagina" (Mansilla, 2014, p. 110). "Posso ter bebês? Quero um bebê menina e a quero dentro da minha barriga" (Mansilla, 2014, p. 127).
A presença do pênis parece levar Luana a vacilar:
- Não quero mais ir no jardim, mamãe. Corta meu cabelo e me chama de Manuel (...). É que tenho que ser um menino.
- Por que você tem que ser um menino?
- Porque tenho pênis.
- Mas você é uma menina diferente.
- Os meninos têm pênis, então tenho de ser um menino. (Mansilla, 2014, p. 104)
Para que servem os órgãos fora de um discurso estabelecido? O intuito da mãe de povoar seu pequeno mundo fabricando bonecas com pênis não pôde evitar a presença real desse órgão, cuja existência pode ser negada por enquanto, mas retornará revigorada com os embates da puberdade.
Discussão
Esse caso gerou muitas controvérsias entre os psicanalistas de nosso país. Por um lado, há a leitura daqueles que acompanharam Luana e sua mãe, cuja posição é clara e pode ser seguida no testemunho. É a posição de um olhar que se pretende despatologizador e, por isso, pode acompanhar o desejo de transformação de Luana, defendendo sua força envolvente. Nessa leitura, o desejo deve ser escutado, acompanhado, não reprimido, e o próprio desejo se converte em um primeiro direito: o direito ao desejo. Mas essa leitura tende a fazer desaparecer a ideia de Lacan de que o desejo é o desejo do Outro e de que o desejo é sua interpretação.
Levantam-se, por outro lado, as vozes de protesto, que defendem os tempos da constituição subjetiva, assinalando a necessária passagem pela alienação do desejo da criança ao desejo dos pais, porém também sua separação posterior. Não tenho a intenção de voltar às teorias que encontram na atribuição de culpa à mãe a mola da posição de criança. Quero retomar a ideia de Lacan sobre os efeitos da constelação original no advento de um sujeito e recordar que tampouco se trata de um determinismo absoluto, pois implica o posicionamento ativo do menino diante dessa oferta. É uma terceira leitura possível desse caso, que procura ir adiante na trilha de interrogar o desejo, e não simplesmente acompanhá-lo em sua afirmação ou sustentá-lo em sua alienação, e sim recuperar seu potencial de corte, de separação, de constituição subjetiva, sem desconhecer as condições de possibilidade do desejo, nem buscar sua força na alienação. É uma leitura que resgata a importância de pelo menos dois tempos na escolha e na constituição subjetiva. São dois tempos cujo percurso não deve ser curto-circuitado, pois sua abertura inaugura a interrogação do desejo, a diferença absoluta, em sua possível disponibilidade para o laço social.
Em 1969, Lacan propôs repensar a biografia original em termos da forma em que foram apresentados ao sujeito o desejo do pai e da mãe, o modo como lhe ofereceram efetivamente o saber, o gozo e o objeto a. É nesses termos que Lacan situa a ideia "enganosa" da escolha entre neurose e psicose. Enganosa ou imprópria, porque não houve tal escolha, a escolha já estava feita em nível do que foi apresentado ao sujeito. Desse modo, Lacan chama a atenção para as condições da oferta em que um sujeito pode advir e de que maneira. Ali, já há uma escolha; porém, uma escolha que antecede, uma escolha forçada, um primeiro tempo.
Lacan (1967/2001) insistiu sobre essa ideia da constelação original que precede o advento de um sujeito e com respeito à qual este pode constituir-se. Recordou as leis dialéticas que extraiu das observações de Cooper: é necessário o trabalho de duas gerações para obter uma criança psicótica, ela mesma sendo seu fruto na terceira. Esquecer o estatuto da fantasia é cair na ideia enganosa de que há uma escolha subjetiva entre neurose, perversão e psicose. Algo já está estabelecido no momento da chegada do recém-nascido. Trata-se, então, de saber se a criança serve ou não, diz Lacan, como objeto transicional para a mãe, se serve ou não como objeto condensador de seu gozo, se realiza ou não a presença desse objeto, se suborna ou não a fantasia materna e que papel o pai desempenha nesse agravo.
Não há escolha entre neurose e psicose, essa escolha está forçada pelas condições do que efetivamente se ofereceu ao recém-chegado. Em contrapartida, considero que haja uma escolha entre psicose e debilidade mental, e talvez esse possa ser um dos sentidos da afirmação de Lacan em 1976-1977: "entre loucura e debilidade mental, não temos senão uma escolha". É uma escolha que concerne a um segundo tempo, à possibilidade de constituir-se subjetivamente e sair da posição de realização do objeto da fantasia materna, embora não pela grande via que o Nome-do-Pai oferece. A posição do débil, holofraseado com sua mãe, não lhe propicia instalar-se solidamente como sujeito, permanece flutuando entre dois discursos, tal como Lacan (1971-1972/2011) o relembra no O seminário: livro 19: ...ou pior, na aula de 11 de dezembro de 1972.
Em contrapartida, a psicose, sim, implica um movimento de separação, de constituição do sujeito sob a forma da recusa foraclusiva. Tratar-se-ia, então, de uma recusa que se dá em dois tempos, uma dupla recusa. A recusa primordial do significante do Nome-do-Pai, Ur-Verwerfung, que deixa como alternativa situar-se como objeto do obscuro desejo materno, sem possibilidade de que o sujeito se constitua por essa via, permanecendo alienado ao discurso do Outro prévio. Mas haveria uma recusa secundária, uma recusa que separa da existência alienada e dá lugar a outro desejo, um desejo original, que surge da dupla recusa da oferta primordial que presidiu o nascimento. É nessa recusa secundária que encontro a possibilidade da constituição subjetiva do psicótico, a saída da posição de débil mental para a loucura. É a posição subjetiva de quem não consente em permanecer reduzido a mero suporte do desejo materno.
A intuição não deixa de estar assentada na experiência clínica dos analistas que trabalham com essas crianças e da qual Maud Mannoni deixou numerosos testemunhos:8 o fato de a intervenção do analista apontar para localizar o sujeito na díade holofrásica do débil mental e sua mãe provoca a psicotização do primeiro. Lacan desenvolveu essa ideia ao evocar como "a dimensão psicótica se introduz na educação do débil" (Lacan 1964/1981, p. 215). Na série dos casos enodados pela holófrase: o fenômeno psicossomático, a debilidade mental e as psicoses, há, sem dúvida, diferenças, porque o sujeito não ocupa o mesmo lugar em cada caso. A dimensão psicótica se introduz na debilidade mental nesse ponto em que o débil passa a localizar-se como sujeito, deixando de estar reduzido a ser o mero suporte do obscuro desejo da mãe. Um sujeito se constitui nessa recusa a partir da emergência de um desejo cuja operação de corte é separadora. Pois bem, o débil se enoda holofrasicamente ao corpo da mãe, e essa solidificação parece resolver a consistência do corpo pela via de converter-se em objeto dos cuidados e da proteção da mãe, com o gozo que isso acarreta. A saída dessa posição e a constituição subjetiva que a recusa secundária implica engendram irremediavelmente um desligamento da consistência do corpo, uma soltura do imaginário, um deixar-se cair do corpo que é próprio às psicoses.
Conclusões
Pergunto-me se, no caso de Luana, a escolha forçada não ficou velada por trás do ideal do direito à liberdade de escolha. As condições da oferta se prestam à recusa, e o significante "menina" parece adquirir uma vertente holofrásica, é a resposta iterativa a todas as perguntas. Considero que se deva incluir também a violência de gênero, como parte do que a precede, entre as condições da oferta. Há um discurso preestabelecido quanto a isso: o da adequação entre o sexo biológico e o gênero. Discurso do mestre que diz o que se deve fazer com os corpos e órgãos, um modo estabelecido de fazer laço social. Essa forma de fazer laço sustenta tradicionalmente: "Se seus genitais são masculinos, banca o homem, se são genitais femininos, banca a mulher." Impõe-se desde a escolha do nome, das vestimentas e do modo de agir. É um modo de fazer laço que está estabelecido e, como tal, designa funções ao corpo. Pois bem, o caráter forçado da escolha não exclui a hipótese de uma posição subjetiva ativa, mas considero que essa escolha se liga ao fato de aceitar ou recusar as formas estabelecidas de fazer laço.
Em uma primeira leitura do caso se poderia pensar que o desejo inconsciente da mãe acerca do sexo da criança fosse determinante em sua transformação. No entanto, é possível que esse caso nos confronte com a existência de um desejo que se assenta no desejo dos pais, porém sob a forma de uma recusa, um desejo que não é efeito da père-version.9 Considero, então, que pode haver desejos originais que não se apoiam em uma transmissão, mas que surgem da recusa do que foi estabelecido, do que foi oferecido. São desejos que subvertem o estabelecido, estão orientados para o real e se confrontam ao modo de agir com um corpo que evita as formas tradicionais de fazer laço. Desejos trans que não se confrontam com a recusa do estabelecido, senão que se empenham em transformar a realidade.
Referências bibliográficas
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Recebido: 15/10/2017
Aprovado: 09/01/2018
1 Este artigo está baseado no texto de uma apresentação no II Simpósio Interamericano da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano, que aconteceu nos dias 8, 9 e 10 de setembro de 2017 no Rio de Janeiro, bem como em sua discussão posterior.
2 Sartre, J. P. Quatro paredes.
3 Hugo, V. Os miseráveis.
4 Huxley, A. Um mundo feliz.
5 Tomo emprestada a expressão "exigência de paridade" da conferência Laço social e paridade, que Colette Soler pronunciou na Universidade de La Plata, em 2015.
6 Evidentemente, o ser humano tem um gosto especial para erigir monumentos cada vez mais altos, e não por cavar buracos cada vez mais profundos. O único memorial cuja forma é de um agulheiro é o de 11 de Setembro, em Manhattan. Impossível desconhecer sua origem.
7 Todas as citações são do livro de Gabriela Mansilla, Eu menina, eu princesa, na edição da Universidade Nacional de General Sarmiento, de 2014.
8 Vejam-se as obras de M. Mannoni: A criança atrasada e sua mãe e A primeira entrevista em psicanálise.
9 Em francês no original. [N.T.]