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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.35 Rio de Janeiro July/Dec. 2017
DIREÇÃO DO TRATAMENTO
Entrelaçamento entre nominação e lei jurídica: apontamentos sobre a mudança de nome civil por transgêneros1
Interlacing between nomination and legal law: notes on the change of civil name by transgenders
Entrelazamiento entre nombramiento y ley jurídica: apuntes sobre el cambio de nombre civil por transgéneros
Nouage entre la nomination et la loi juridique: notes sur le changement de nom par des personnes transgenres
Eduardo Brandão
RESUMO
A demanda de pessoas transgêneras por alteração judicial do nome civil tem sido cada vez mais frequente, sendo os casos comumente encaminhados pelos juízes à avaliação psicológica antes de as decisões serem tomadas. Uma vez orientado por uma escuta analítica, o dispositivo da avaliação lança alguma luz sobre a articulação da nominação com o campo jurídico. A partir de um fragmento de caso, defendo a hipótese de que a mudança de nome civil é a resposta que o sujeito busca para se situar em dada posição sexuada. A mudança do prenome lhe proporciona o suporte simbólico que o singulariza e ao mesmo tempo representa-o para o Outro. Para tanto, não se pode perder de vista a diferença entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, assim como entre lei jurídica e lei simbólica.
Palavras-chave: Trangêneros; Mudança de nome civil; Lei; Nominação; Sexuação.
ABSTRACT
The demand from transgender people for judicial change of the civil name has been increasingly frequent, and those cases are usually referred by the judges to a psychological evaluation before making their decisions. Once guided by analytical listening, the evaluation device sheds some light on the articulation of the nomination with the legal field. From a case fragment, I defend the hypothesis that the change of civil name is the response that the subject seeks to place themselves in a given sexed position. The change of the name gives the subject the symbolic support that singularizes it and at the same time represents it to the Other. For this, one cannot lose sight of the difference between subject of statement and subject of enunciation, as well as between legal law and symbolic law.
Keywords: Transgenders; Change of civil name; Law; Nomination; Sexuation.
RESUMEN
La demanda de personas transgéneras por alteración judicial del nombre civil es cada vez más frecuente. Los casos suelen ser encaminados por los jueces a la evaluación psicológica antes de la tomada de decisión. Una vez orientado por una escucha analítica, el dispositivo de la evaluación arroja alguna luz sobre la articulación del nombramiento con el campo jurídico. A partir de un fragmento de caso, el artículo defiende la hipótesis de que el cambio de nombre civil es la respuesta que el sujeto busca para situarse en determinada posición sexuada. El cambio de nombre proporciona al sujeto el soporte simbólico que lo singulariza y al mismo tiempo lo representa para el Otro. Para ello, no se puede perder de vista la diferencia entre sujeto del enunciado y sujeto de la enunciación, así como entre ley jurídica y ley simbólica.
Palabras clave: Transgéneros; Cambio de nombre civil; Ley; Nombramiento; Sexuación.
RÉSUMÉ
La demande de personnes transgenres pour le changement de leur nom est de plus en plus fréquente, ces cas étant habituellement renvoyés par les juges à une évaluation psychologique, avant que ceux-ci prennent leurs décisions. Une fois guidé par l'écoute analytique, le dispositif d'évaluation met en lumière l'articulation de la nomination avec le domaine juridique. À partir d'un fragment de cas, l'article soutient l'hypothèse selon laquelle le changement de nom est la réponse que le sujet cherche pour se placer dans une position sexuée donnée. Le changement de prénom lui donne le support symbolique, ce qui le singularise et en même temps le représente pour l'Autre. On ne peut pas perdre de vue la différence entre le sujet de l'énoncé et le sujet de l'énonciation, ainsi que celle entre la loi juridique et la loi symbolique.
Mots-clés: Transgenres; Changement de nom civil; Loi; Nomination; Sexuation.
A interface entre o direito e a psicanálise é um campo fecundo de investigação, do qual faço testemunho desde quando ingressei no cargo de psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 1999. Sob orientação da psicanálise, venho atuando desde então como perito no atendimento às varas de família e, logo, confeccionando laudos como meio de fornecer subsídios às decisões judiciais.
Entretanto, uma situação passou a ocorrer de forma cada vez mais frequente nos últimos anos, a saber, o recebimento de ações judiciais de homens e mulheres trans que demandam a mudança de registro civil, alterando o nome que consta em suas certidões de nascimento para o chamado nome social. Os juízes encaminham normalmente tais sujeitos para avaliação social e psicológica para, ao final, formar sua convicção que os autorize, ou não, a mudar o prenome.
A demanda crescente desse tipo de ação judicial produz questionamentos tanto para o direito quanto para a psicanálise, sobre os quais convém debruçarmo-nos sem deixar de ressaltar a dificuldade dada de entrada que consiste na sustentação da posição ética da psicanálise em um contexto tão estranho a ela: o de avaliação pericial.
A grande maioria dos transgêneros que chega ao Tribunal com o pedido de mudança de nome civil costuma passar anteriormente pelo processo transexualizador - não necessariamente a cirurgia, mas ao menos a hormonioterapia -, que, de acordo com a Portaria do Ministério da Saúde nº 2.803, de 2013, amplia esse procedimento no Sistema Único de Saúde (SUS), exigindo, por seu caráter irreversível, que o paciente preencha os requisitos de maioridade, acompanhamento psicoterápico por pelo menos dois anos, laudo psicológico/psiquiátrico favorável e diagnóstico de transexualidade. Assim, frequentemente tais sujeitos chegam à avaliação no Judiciário já tendo percorrido uma longa trajetória de elaboração sobre sua própria condição subjetiva.
Diante desse quadro, procuro habitualmente fazer do dispositivo da perícia um espaço de fala e escuta do sujeito, convidando-o a falar com liberdade, sem temer consequências indesejadas para a ação processual que, ao menos, não possam ser conversadas.
Com base nesse contexto bastante peculiar, orientado por uma escuta analítica, pretendo lançar luz sobre a questão da nominação entrelaçada ao campo jurídico. Para tanto, tomarei como hipótese que a mudança de nome civil pode ser a resposta que o sujeito busca para se situar em dada posição sexuada.
Para tanto, convém destacar que, de acordo com nosso Código Civil, toda pessoa tem direito ao nome ao nascer, não sendo, contudo, uma propriedade de que o sujeito possa dispor, emprestar ou trocar. A questão do nome encontra-se no direito de personalidade, de tal maneira que se refere a prerrogativas inerentes à pessoa humana. No direito de personalidade, destacam-se, além do nome, o direito à vida, à liberdade, ao corpo, à imagem e à honra, destinando-se a resguardar a dignidade humana. Entre tais direitos, o nome é o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade (Carvalho & Chatelard, 2016).
Vale observar que, no direito, o nome corresponde ao nome completo, do qual o prenome pode ser livremente escolhido desde que não exponha o portador ao ridículo. Por sua vez, o sobrenome é o que identifica a procedência, assinalando a linhagem e destacando a transmissão familiar sobre os filhos. O prenome marca o indivíduo, constituindo-se em signo de identidade social, ao passo que o sobrenome situa o portador como membro de determinado grupo familiar, sendo recém-nascido ou adotado (Carvalho & Chatelard, 2016). Em uma só frase, o prenome particulariza e o sobrenome coletiviza.
O primeiro relato que se escuta habitualmente para justificar a demanda de alteração do prenome refere-se ao sofrimento real do sujeito diante da violência social. Na medida em que o nome de registro civil toma distância do corpo, de sua imagem e, sobretudo, de sua identidade de gênero, o sujeito torna-se vulnerável não somente à violência física, mas também à violência simbólica representada pelo olhar alheio.
Basta emprestar os ouvidos para escutar histórias verdadeiramente contundentes sobre uma das formas mais cruéis de segregação que esses sujeitos sofrem desde muito cedo. O leque de exclusão social vai desde a violência física, perpetrada por familiares e terceiros, passando pela destinação à prostituição, pela recusa de empregabilidade, por humilhações e constrangimentos diversos, e chega a formas mais invisíveis, mas não menos violentas, quando, por exemplo, o sujeito não é simplesmente visto como tal quando seu nome não corresponde à aparência de gênero.
Fragmento de caso
Marcelo é um homem trans que se refere ao prenome que ainda consta em seu registro civil - Marcela - como a "falecida", significante esse compartilhado pela comunidade trans para designar o nome de registro, o que não deixa de ter efeitos de significação particularmente para cada um. Na adolescência, apaixonou-se por várias mulheres, mas acreditava que não fosse apenas lésbica, sentindo que "havia algo de estranho" consigo. Com acesso a informações que começaram a se difundir mais intensamente há cerca de 10 anos, passou a se reconhecer do lado do gênero masculino, mas conteve seu desejo de realizar mudanças efetivas no corpo até conseguir estabilidade em um emprego público. Uma vez obtido, submeteu-se à terapia hormonal e, atualmente, vive um relacionamento estável com uma mulher cis, Andrea.
Marcelo descreve uma situação exasperadora, na qual conversava com um gerente de banco sobre os problemas de sua conta bancária. Toda vez que o gerente respondia às suas indagações, ele se dirigia a Andrea, que se encontrava ao lado de Marcelo, convencido de que se tratava de problemas dela, e não dele. Para Marcelo, era absurdo que se tornasse invisível diante dos olhos do gerente, angustiando-se a cada vez que ele se via obrigado a suplicar por seu olhar. Para completar o quadro, quando, finalmente, o gerente percebeu que se tratava da mesma pessoa, cujo gênero não condizia com o nome de registro, ele chamou a segurança para retirá-los da agência.
Mas o que podemos dizer sobre o nome para além da necessidade de colocar o sujeito ao abrigo da barbárie?
O nome próprio na psicanálise
Na psicanálise, podemos dizer, inicialmente, que o nome próprio está articulado com a noção de significante em Lacan, pois, embora o sujeito não se confunda com o significante, pois o significante em si não significa nada, não há sujeito se não houver um significante que o funde.
Quando a criança nasce, o Outro que dela se ocupa vai possibilitar a transmissão dos significantes que a articula com a cadeia genealógica, delimitando a passagem do estado de natureza para a cultura. Na medida em que nenhum sujeito pode se autofundar, o Outro é, para ele, o lugar de sua causa significante.
A operação da metáfora paterna substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante do desejo materno, inscrevendo o sujeito no campo da linguagem. O Nome-do-Pai aponta para um além do desejo da mãe, articulando lei e desejo, sustentado pelo falo como significante da falta no Outro. Dito de outro modo, o Nome-do-Pai é o laço que amarra o desejo materno à interdição do gozo sexual da criança, cuja perda é a mola essencial do desejo humano.
O pai simbólico não é uma ficção jurídica - cujo sobrenome atribuído a alguém estabelece um ato de fé, pois apenas a mãe sabe quem é o progenitor, a despeito da pretensão da ciência em proporcionar alguma certeza a partir do esperma. Ele é uma ficção de linguagem que se assenta no Nome do Pai, que, por sua vez, não é idêntico ao patronímico, tampouco depende do pai da realidade, ou seja, do progenitor em carne e osso. Nesse contexto de discussão, Safouan observa que o desejo depende não apenas do peso que a mãe confere ao Nome do Pai, mas ainda da maneira como esse pai lida com a lei: "ou seja, como alguém que dela se autoriza, ou como seu autor mesmo (no que a autoridade vira impostura)" (Safouan & Hoffmann, 2016, p. 60).
No que tange ao prenome, ele é escolhido, boa parte das vezes, pelos pais por portar uma significação, melhor dizendo, uma historicidade que remete ao par familiar, portanto, ao lugar que a criança ocupa no desejo do Outro. Em geral, antecede a vinda da criança, sendo, portanto, o símbolo que envolve o sujeito antes de seu nascimento e, assim, porta o traçado de seu destino. Articula-se, assim, com os S1s que provêm do Outro materno, sendo necessária a operação da metáfora paterna que retira a criança do lugar de objeto e a inscreve no universo das substituições próprias da linguagem.
O prenome pode ter um caráter mortífero, a ponto de colocar o sujeito em risco, tal como bem demonstra Dolto ao citar o caso de um menino de 15 meses de vida que sofria de terror noturno e, portanto, não dormia: "se o pai, de quem ele gosta muito de dia, se aproxima dele à noite, põe-se em opistótono, urrando de terror; quando é a mãe, ela não pode se aproximar, mas sua voz o tranquiliza um pouco" (Dolto, 2013, p. 426). Os pais haviam perdido um filho ao nascer e, depois de restabelecidos, tiveram uma filha, e depois esse menino, cujo nome foi o mesmo destinado à criança morta. Em uma sessão com a criança, Dolto contou que ele tivera um irmão mais velho que morrera ao nascer, de tal modo que herdou seu nome e, assim, "talvez ele mesmo estivesse pensando que, quando dormia, representava um menino morto" (Dolto, 2013, p. 427). Após a interpretação da analista, houve a remissão dos sintomas da criança.
Com efeito, a nominação intima a função subjetiva que o portador será levado a responder, mesmo que, vale dizer, para repudiá-la. A transmissão do nome e o direito pelo filho de portá-lo se articulam com o modo como cada sujeito vai poder se apropriar e arcar com os significantes provenientes do Outro. Nesse sentido, se toda pessoa tem direito ao nome, ela precisa posicionar-se em relação a ele em sua história. O nome é, portanto, uma marca que requer uma resposta do sujeito diante da questão fundamental: o que o Outro quer de mim? A resposta do sujeito permite que ele fale em nome próprio, situando-se para além do enredo e dos romances familiares (Carvalho & Chatelard, 2016).
Nesse ponto, convém assinalar a guinada no pensamento de Lacan no final dos anos 1960, quando passa a se situar "para além da operação significante da metáfora paterna" (Quinet, 2015, p. 36). A ênfase na dimensão do gozo leva-o a seguir um viés diferente de sua doutrina clássica da relação do sujeito com o falo e, logo, com o Nome-do-Pai e o Outro simbólico. A relação entre pai e filho passa a ser vista em termos de modelo da função-gozo, e não mais como identificação edipiana e interdição.
Assim, o Nome do Pai é o elemento que assegura a articulação do falo com o objeto a, na medida em que consiste em uma primeira nomeação do inominável da mulher que há na mãe. A criança corre o risco de que o desejo do Outro materno se apresente na forma de um gozo impossível de suportar quando não se dispõe do significante fálico que lhe permite dar sentido ao enigma do desejo materno. O corpo desse pequeno ser falante é transtornado por um gozo excessivo ao ser invadido pela língua materna - a lalangue -, de tal modo que não mais a ordem simbólica, e sim o objeto pequeno a é que delimita o gozo desarrazoado do Outro. Por sua vez, quando o Nome do Pai opera e a castração é simbolizada, a criança sai da posição de objeto de gozo materno e articula os S1s da lalangue materna ao S2s que dará o sentido da proibição, inscrevendo-a no universo de substituições próprio da linguagem (Fuentes, 2012).
Nesse contexto de virada do pensamento de Lacan, o nome próprio adquire nova acepção, sobretudo a partir do seminário A identificação (1961-1962).
Lacan associou a identificação ao traço unário como a operação inaugural da relação entre o sujeito e o significante. Se, como já foi dito, o sujeito constitui-se ao se fazer representar por um significante do Outro, ele identifica-se com aquilo que o significante não recobre, ou seja, com o vazio que aponta para a falta. Essa operação assinala a constituição arcaica do sujeito, aquém das identificações imaginárias do Eu (moi). Portanto, o traço unário é a marca que identifica o sujeito e o determina sem que ele o saiba. Essa marca identificatória situa o ponto de ancoragem do sujeito do inconsciente, constituindo sua relação mais radical com o objeto. Assim, a identificação está articulada com o objeto, que, em virtude do apagamento da Coisa, é contado por sua ausência. Donde se conclui que o traço unário é o significante não da presença, mas da ausência do objeto. Pressupõe uma marca que passa pelo apagamento originário, de um real impossível de simbolizar, tendo como efeito o sublinhamento da diferença a cada repetição. Para Lacan, o "unário" corresponde menos a uma função unificadora do que distintiva, pois, como vimos, o que é posto em jogo é o próprio sujeito, cujo surgimento só é possível se houver a diferença de si mesmo inscrita pelo traço no campo do real.
Por conseguinte, o traço unário é o que viabiliza a escrita de S1, significante que inaugura a cadeia e que fica recalcado para o sujeito. Ele se escreve como significante de uma falta de significante no campo do Outro. Esse "significante solitário" - único, unitário e unificante - é o suporte material da diferença entre significantes, fundamental para a representação do sujeito no desejo do Outro: "não pode haver definição de nome próprio senão na medida em que nós nos apercebemos da relação da emissão nomeadora com algo que, em sua natureza radical, é da ordem da letra" (Lacan, 1961-1962, pp. 89-90).
O nome próprio funciona como traço unário, porque importa uma diferença pura, sendo algo que se transmite, porém não se traduz. O nome próprio se singulariza por ser um puro significante. Mas não é simplesmente a designação metafórica de um sujeito, e sim uma pura marca distintiva no real, a ser contornada pelo Outro do Simbólico. Logo, antes mesmo que o infans diga "Eu", há a inscrição de um traço com o qual o sujeito se identifica e que, assim, escreve seu próprio nome. Não por menos Lacan recomendava a importância que tem, em toda análise, do nome próprio do sujeito, devendo o analista prestar atenção em como se chama o paciente (Lacan, 1961-1962).
A identificação com o traço procura lidar com o vazio deixado pela ausência originária do objeto, engendrando, por consequência, a relação do sujeito com o significante. A vocalização primitiva do infans confere estatuto fonético ao traço, porém, no momento em que o significante se engendra, a escrita já funciona como operação latente no próprio ato de enunciação do sujeito. A letra, como impossibilidade de representação por um significante, é o que faz furo no simbólico. É o que permite a inscrição significante, ao mesmo tempo que dá lugar ao registro de uma escrita.
O significante é, por excelência, relacional, cujo valor está em marcar diferenças fônicas em uma cadeia. Por sua vez, a letra é seu suporte material da inscrição significante. Seguindo esse raciocínio, o que constitui o nome próprio não é tanto o fonema quanto a letra. O nome próprio mostra que, antes de toda fonematização, a linguagem encerra a letra como traço distintivo. Dito de outro modo, ele está articulado com uma letra que, fundadora, já está lá antes de ser lida.
Por fim, vale dizer que tal discussão será retomada por Lacan no seminário De um discurso que não fosse semblante (1970-1971/2009), no qual retoma o escrito inicial sobre "A carta roubada" para localizar o gozo pela instância da letra no inconsciente e introduzir o paradigma da impossibilidade da relação sexual, base de seu último ensino. Se o significante se situa do lado do simbólico, a letra encontra-se do lado do real. Donde Lacan vai definir a letra como "terra do litoral" (1970-1971), chegando a assimilá-la, nos seminários de 1975-1977, à Mulher, que, por ser sempre Outro, radicalmente ausente, lembra que o surgimento do ser falante na linguagem se funda em uma escrita.
Retornando ao caso
Alguns significantes pululam nas entrevistas com Marcelo: "invasores", "intrusos" são os termos que ele emprega para designar os seios indesejáveis que se esforçava por esconder com faixas apertadas até extraí-los, finalmente, por cirurgia.
Pergunto-me sobre esse real que invade o corpo de Marcelo - signo de feminilidade, portanto de um gozo outro - e que ele procura extirpar por meio cirúrgico. Para Lacan, convém destacar, a questão da diferença sexual não é pensada em termos de papéis identificatórios, e sim de gozo masculino e feminino, correspondendo a posições do sujeito passíveis de ser ocupadas tanto por homens quanto por mulheres, sem complementariedade entre um e outro (Quinet, 2015). No campo do masculino, o sujeito se especifica por manter uma relação com o gozo estritamente no campo do gozo fálico, limitado. Já o sujeito posicionado no feminino frequenta não só o gozo fálico, mas um além dele, denominado gozo do Outro, ilimitado, um gozo suplementar, vale frisar, independentemente da anatomia corporal masculina e feminina. Seguindo esse raciocínio, poderíamos pensar que Marcelo busca se situar do lado do gozo masculino como meio de lidar com o gozo feminino? Qual seria, então, a operação esperada com a mudança do nome civil? A mudança do prenome teria como função dar o suporte material da diferença que o singulariza, condição ao mesmo tempo fundamental para a representação do sujeito no desejo do Outro? O prenome do qual ele almeja obter reconhecimento civil teria sido inventado como significante, porque haveria alguma coisa lá para ser lida - o traço - com o qual o sujeito se identifica?
À guisa de hipótese, a mudança de nome pode completar uma operação para a qual a mudança corporal não foi suficiente, a saber, situar o sujeito na posição masculina para lidar com o gozo invasivo, muito embora saibamos que haverá sempre um resto refratário ao falo. Trata-se de uma proposição a ser desenvolvida em um ensaio futuro, mas que envolve de imediato o que poderia estar subjetivamente em jogo em um pedido de mudança de registro civil, para além ou aquém de salvaguardar o sujeito do constrangimento social.
Por fim, ao debruçar-me sobre essas questões, evoco a diferença formulada por Lacan entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação: no plano do enunciado, o sujeito faz prevalecer seu ser, isto é, suas identificações: "Eu sou isto ou aquilo"; no da enunciação, o sujeito está para além ou para aquém das identificações, suspeitando do caráter enganador da fantasia que as sustentam. Tal discriminação é válida em face da miríade de identidades que se sobrepõem à cena jurídica, não somente relacionadas com o tema em questão - redesignação do nome civil por "transgêneros" -, mas com inúmeras outras sobre as quais a autoridade judicial se apoia para selar seus destinos: a mãe alienadora, o pai abusador, o jovem infrator, a criança indisciplinada, o homem criminoso, a mulher negligente, entre tantas outras. A dimensão do sujeito, em psicanálise, faz com que nem sempre seja possível alguma conciliação com o direito, cuja concepção de sujeito, ou até mesmo de pessoa humana, é bastante distinta.
Como observa Elia (1999), o inconsciente é um lugar de corte, furo, no tecido social, por meio do qual o sujeito do inconsciente pode emergir para além ou aquém dos significantes da cultura. A categoria de inconsciente introduz uma subversão que rompe com os significantes organizados pela ordem social. Donde um sujeito jamais será idêntico à determinação social, aos significantes que o representam. O inconsciente cria um para além das identificações, cujo gozo faz o sujeito aderir a elas.
As leis jurídicas fornecem as balizas da ordem social e, nesse sentido, não devemos perder de vista a diferença em relação à lei simbólica.
Tal diferença reside no fato, como demonstra Quinet, de que as leis jurídicas são feitas pelos homens para regular as relações entre si, ao passo que a Lei simbólica é aquela que rege os homens na condição de seres que habitam a linguagem: "A Lei simbólica é estrutural, ou seja, independente do lugar, do momento histórico e da constituição social" (Quinet, 2003, p. 57).
Nesse contexto de discussão, Elia (2007) assinala que se a lei jurídica se impõe ao conjunto da sociedade sem que precisemos pensar constantemente sobre sua incidência, por um lado e por outro, a lei simbólica rege nossa posição sexuada de tal maneira que, como sujeito, não posso deixar de responder a ela. Da posição de sujeito, como diz Lacan, ele é sempre responsável, diferente de uma coerção moral: "O sujeito é a resposta que dá a lei, sendo uma questão de estrutura e não de julgamento" (Elia, 2007, p. 80). E se algo falha nesse aspecto, cabe ao psicanalista ofertar a palavra a esse sujeito, devendo, por conseguinte, escutá-la sem lançar mão do juízo moral ou da normatividade que rege a vida social.
Referências bibliográficas
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Safouan, M. & Hoffmann, C. (2016). O desejo nas mutações familiares e sociais. São Paulo: Instituto Langage. [ Links ]
Recebido: 29/09/2017
Aprovado: 25/01/2018
1 O presente texto integra minha pesquisa de pós-doutoramento, iniciada em 2017, sob orientação do professor Antonio Quinet, por meio do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, e foi apresentado como palestra no Seminário Internacional "Identidade de Gênero e Transexualidade - Psicanálise e Teoria Queer", organizado pelo Programa e pela Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano.