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Avaliação Psicológica
Print version ISSN 1677-0471On-line version ISSN 2175-3431
Aval. psicol. vol.14 no.3 Itatiba Dec. 2015
Estudo exploratório das relações entre valores básicos pessoais e psicossociais1
Exploratory study of the relationship between basic personal values and psychosocial values
Estudio exploratorio de las relaciones entre los valores básicos personales y psicosociales
João Wachelke2; Laiz Bueno Rodrigues
Universidade Federal de Uberlândia
RESUMO
Considerando duas teorias sobre os valores cujas relações não foram investigadas, os objetivos deste estudo são realizar uma avaliação exploratória das correlações entre versões adaptadas de medidas da teoria funcionalista dos valores humanos (Questionário de Valores Básicos) e abordagem societal dos valores (Questionário de Valores Psicossociais) e avaliar a possibilidade de explicar seus indicadores a partir de dimensões latentes em comum. Os participantes foram 722 estudantes do ensino médio de Uberlândia, Minas Gerais, que responderam a versões adaptadas das duas medidas. Foram realizadas correlações bivariadas e uma análise fatorial exploratória contendo itens das duas medidas. A análise fatorial sugeriu quatro dimensões explicativas, duas delas próximas de sobreposições entre as medidas originais e duas identificando uma ética do trabalho para obter ganhos materialistas e metas de solidariedade social. Conclui-se que o estudo conjunto das duas teorias pode ampliar o entendimento dos valores para além dos escopos das perspectivas originais.
Palavras-chave: valores sociais; valores; psicologia social.
ABSTRACT
With consideration of two theories on values, whose relationships have not been studied, the present study aims to conduct exploratory analysis of the correlations between adapted versions of measures of the functional theory of human values (Basis Values Survey) and of the social approach to values (Psychosocial Values Questionnaire), while assessing the possibility of explaining their indicators through common latent dimensions. The participants were 722 secondary school students from Uberlandia, Minas Gerais, who completed adapted versions of the two measures. Bi-variate correlations and exploratory factor analysis containing items from both scales were carried out. The factor analysis suggested four explanatory dimensions, two of them near-overlaps with the original measures and the other two identifying a work ethic to obtain materialistic gains and social solidarity goals. It is concluded that the joint study of the two theories might expand the understanding of values beyond the scopes of the original perspectives.
Keywords: social values; values; social psychology.
RESUMEN
Teniendo en cuenta dos teorías acerca de los valores cuyas relaciones no han sido investigados, los objetivos de este estudio son llevar a cabo una evaluación exploratoria de las correlaciones entre versiones adaptadas de medidas de la teoría funcionalista de los valores humanos (Cuestionario de Valores Básicos) y el enfoque societal de valores (Cuestionario de Valoes Psicosociales), y evaluar la posibilidad de explicar sus indicadores desde dimensiones latentes en común. Los participantes fueron 722 estudiantes de secundaria de Uberlandia, Minas Gerais, que respondieron a las versiones adaptadas de las dos medidas. Se realizaron correlaciones bivariadas y análisis factorial exploratorio con elementos de las dos mediciones. El análisis factorial sugiere cuatro dimensiones explicativas, dos de ellos indicando superposiciones entre las mediciones originales y dos que identifican una ética de trabajo para el beneficio material y metas de solidaridad social. Se concluye que el estudio conjunto de las dos teorías puede ampliar la comprensión de los valores más allá de los alcances de las perspectivas originales.
Palabras-clave: valores sociales; valores; psicología social.
A psicologia social brasileira tem importantes contribuições para o estudo dos valores. Há dois modelos teóricos com suporte empírico que foram desenvolvidos por equipes chefiadas por pesquisadores brasileiros. O que chama a atenção, também, é que os dois modelos se baseiam em explicações bem diferentes para os valores humanos; a teoria funcionalista dos valores humanos, desenvolvida por Valdiney Gouveia e sua equipe, trata os valores humanos como representações cognitivas de necessidades humanas universais (Gouveia, 2003, 2013). Já a abordagem societal dos valores, de autoria de uma equipe em que se destacam Cícero Pereira, Leoncio Camino, Joseli Bastos da Costa, Ana Raquel Torres e Marcus Eugênio Lima, concebe os valores como construtos originados de conflitos entre grupos sociais (Pereira, Camino, & Costa, 2004, 2005; Pereira, Lima, & Camino, 2001; Pereira, Torres, & Barros, 2004).
O desenvolvimento das duas teorias ocorreu de modo paralelo e independente. Apesar de ambas dialogarem com outras teorias da Psicologia Social, como a tipologia motivacional dos valores de Schwartz (Schwartz, 1992; 1994; 2005) e a teoria do materialismo e pós-materialismo e Inglehart (Inglehart, 1977; 1989), e se situarem em relação a elas, curiosamente não há estudos relacionando as duas teorias brasileiras sobre valores. É plausível antever que as duas teorias apresentem alguma sobreposição empírica. Seria possível identificar relações empíricas entre instrumentos psicométricos associados às duas perspectivas?
Além disso, por mais que os dois modelos impliquem entendimentos distintos sobre os valores, o conteúdo das dimensões constituintes de cada instrumento, a ser descrito nas próximas seções, não é de todo diferente entre si. Uma análise conjunta de itens dos respectivos instrumentos poderia indicar dimensões latentes comuns ou que englobem aspectos das duas teorias? A pesquisa relatada neste artigo apresenta um estudo correlacional de caráter exploratório das relações entre indicadores empíricos dessas duas teorias, de modo a identificar possíveis sobreposições entre as duas perspectivas. Para tanto, primeiramente apresentam-se de modo breve os dois modelos.
Teoria Funcionalista dos Valores Humanos
Partindo do pressuposto de que os valores humanos são princípios-guia que representam cognitivamente as necessidades humanas e transcendem situações específicas (Gouveia, 2003), a teoria funcionalista dos valores humanos propõe que valores são metas superiores individuais. A teoria trata apenas de valores terminais, isto é, estados desejáveis de existência, e pressupõe também que os valores expressam conteúdos positivos e baseiam-se em motivações humanas (Gouveia, Fonsêca, Milfont, & Fischer, 2011).
A teoria funcionalista é um projeto integrativo que busca de certo modo unificar dois modelos internacionais sobre os valores. O primeiro desses modelos é a tipologia motivacional dos valores (Schwartz, 1992; 1994; 2005). Esse modelo trata de valores como princípios-guia nas vidas das pessoas, isto é, metas terminais (objetivos finais) ou instrumentais (modos de agir) que expressam interesses do indivíduo, da coletividade ou de ambos acerca de um tipo de motivação. A tipologia motivacional baseia-se no pressuposto de que os valores respondem a necessidades universais dos seres humanos, e estudos empíricos apontam para uma estrutura muito parecida de relações entre os tipos motivacionais ou classes de motivações que agrupam os valores em termos de maior ou menor compatibilidade entre si. Ou seja, em muitas culturas os padrões de relações entre valores repetem o mesmo padrão, isto é, organizam-se da mesma forma, o que representa evidências fortes da universalidade do modelo.
O segundo modelo é a perspectiva dos valores materialistas e pós-materialistas (Inglehart, 1977, 1989). É uma abordagem interessada em valores de nações, e não em prioridades individuais. O aspecto principal de interesse aqui é que esse modelo prevê dois conjuntos de valores. Os valores materialistas, ligados às necessidades básicas de segurança física e econômica, como ordem, economia estável e defesa, seriam valores originados com o estabelecimento do capitalismo para substituir valores religiosos. Nos contextos em que o atendimento a essas necessidades materialistas não fosse mais um problema, predominaria um segundo conjunto de valores pós-materialistas, vinculado a necessidades mais abstratas, como autoestima, conhecimento, beleza e relações sociais. Os valores pós-materialistas teriam encontrado suas condições de possibilidade após os avanços das sociedades pós-industriais. Ainda de acordo com essa perspectiva, haveria uma direção nas prioridades de valores das culturas nacionais; à medida que se tornassem mais desenvolvidos, os países deixariam de orientarem- -se por valores materialistas, substituindo-os por metas pós-materialistas.
A teoria funcionalista reúne elementos tanto da tipologia motivacional quanto dos valores materialistas e pós-materialistas ao indicar dois tipos de funções psicológicas que seriam exercidas pelos valores. A primeira seria direcionar as ações do ser humano numa orientação pessoal, voltada para o indivíduo; social, voltada para a sociedade, o grupo, a coletividade, ou central, alvos compatíveis com indivíduo e grupo. Nesse ponto, incorpora a noção da tipologia motivacional de expressar interesses pessoais, da coletividade ou de ambos. A segunda função diz respeito ao tipo de necessidade que é expressa pelos valores; na teoria funcionalista há dois tipos de motivador: necessidades materialistas, ligadas a questões práticas, como sobrevivência e aspectos normativos; e necessidades idealistas, de orientação universal, ligadas a princípios abstratos que independem de aspectos materiais. Observa-se, nesse momento, praticamente uma equivalência em relação à oposição materialista pós- -materialista de Inglehart. Por compatibilizar aspectos- -chave de duas teorias sobre valores num único quadro teórico, diz-se que a teoria funcionalista é integrativa e parcimoniosa (Gouveia, 2003, 2013; Gouveia et al., 2011; Gouveia, Milfont, & Guerra, 2014a).
O cruzamento dos três tipos de orientação (pessoal, central e social) e dos dois tipos de motivador (materialista e idealista) resulta em seis subfunções. A subfunção existência (orientação central e motivador materialista) diz respeito às necessidades orgânicas e de segurança dos indivíduos, como saúde e sobrevivência. A subfunção suprapessoal (central e idealista), por sua vez, lida com a autorrealização individual e necessidades ligadas ao conhecimento e estética, em valores como maturidade e beleza. Quanto às subfunções de orientação pessoal, há a realização (motivador materialista), vinculada às necessidades individuais de autoestima e realização pessoal geralmente ligada à esfera de status e profissional, e valores como êxito, poder e prestígio. A subfunção experimentação (motivador idealista) refere-se à busca do prazer e satisfação de impulsos fisiológicos. Do lado da orientação social, a subfunção normativa (motivador materialista) preza pela preservação de sistemas tradicionais de autoridade para controlar as próprias necessidades em prol de instituições e da coletividade, e a subfunção interacional (motivador idealista) relaciona-se ao cultivo de relações interpessoais e valores, como afetividade e apoio social. As subfunções, por indicarem valores positivos, são correlacionadas positivamente entre si, mas aquelas com motivadores e orientações coincidentes apresentam correlações mais fortes (Gouveia, 2013).
Em pesquisas empíricas (Gouveia, 2013; Gouveia et al., 2011), foi encontrado suporte para uma estrutura estável dos valores nas subfunções identificadas, tal como na tipologia motivacional, isto é, uma mesma estrutura que é encontrada em diversos estudos. A medida utilizada para avaliar os valores é o Questionário de Valores Básicos. Trata-se de uma escala de 18 itens com resposta no formato Likert de 7 pontos (de Nada importante a Muito importante), em que os respondentes indicam a importância de valores como princípios-guia em suas vidas.
Abordagem societal dos valores
A abordagem societal dos valores (Estramiana, Pereira, Monter, & Zlobina, 2013; Pereira et al. 2004; Pereira et al., 2005; Pereira et al., 2001; Pereira et al., 2004) parte do princípio de que perspectivas internacionais difundidas, como as mencionadas, tipologia motivacional e perspectiva do materialismo e pós-materialismo, incorrem em reducionismos; a tipologia motivacional seria psicologista, ao restringir os valores a necessidades do indivíduo, enquanto que a teoria do materialismo e pós-materialismo iria pelo caminho oposto, dando ênfase a valores culturais e deixando de lado o nível individual. Para Pereira et al., (2005), os valores, bem como a psicologia social, precisam articular níveis de explicação diferentes. Nesse sentido, entende- -se que valores são conhecimentos socialmente estruturados, produções sociais derivadas de conteúdos ideológicos de cada sociedade, produzidas nas interações interpessoais. Os valores surgiriam a partir de conflitos ideológicos de grupos em busca do poder e sua origem se localizaria nas identidades dos grupos. Assim, de certo modo, pode-se dizer que também a abordagem societal visa integrar a tipologia motivacional de Schwartz com a perspectiva sociológica de Inglehart (Estramiana et al., 2013), assim como a teoria funcionalista, porém diverge desta ao situar as origens dos valores nos conflitos sociais, em vez de nas necessidades humanas.
A abordagem societal dos valores utiliza como instrumento de medida o Questionário de Valores Psicossociais (QVP-24), em que cada respondente deve avaliar o grau de importância de vinte e quatro valores para a suposta construção de uma sociedade ideal, em escores de 1 a 5. Estudos empíricos, todos realizados com amostras brasileiras, indicam a existência de quatro sistemas que agrupam esses valores: o sistema hedonista aborda valores ligados à sexualidade e prazer; o sistema religioso reúne valores típicos da religiosidade cristã dominante no Brasil; o sistema materialista agrupa valores ligados ao bem-estar econômico e manutenção de hierarquia na sociedade; e um amplo sistema pós-materialista integra subdimensões ligadas à satisfação de necessidades mais abstratas de autorrealização e manutenção de interações positivas, no contexto do bem-estar social, bem- -estar individual e bem-estar no trabalho (Pereira et al., 2004; Pereira et al. 2004).
Relações entre medidas de valores
Modelos teóricos diferentes frequentemente explicam, ainda que parcialmente, os mesmos fenômenos. A esse respeito, o estudo de Pereira et al. (2005) traz correlações, numa amostra brasileira, entre as subescalas do QVP-24 sobre sistemas de valores e as dimensões referentes à tipologia motivacional dos valores. Foram observadas diversas correlações positivas maiores que 0,40: o sistema materialista correlacionou-se com o tipo motivacional poder/social e com o tipo de segunda ordem autopromoção. O sistema de valores religioso correlacionou- se com benevolência, tradição e conformidade dentre os tipos de primeira ordem e com o tipo de segunda ordem conservação. O sistema hedonista teve associações com os tipos hedonismo e estimulação, de primeira ordem, e com abertura à mudança, de segunda ordem. Finalmente, o sistema mais heterogêneo pós-materialista correlacionou-se com autodireção, universalismo, benevolência, tradição, conformidade e segurança, e com os tipos de segunda ordem conservação e autotranscendência. A análise também mostrou que não havia correlações negativas entre os sistemas de valores e tipos motivacionais, e os sistemas de valores todos têm correlações positivas entre si, o que aponta também que todos os valores são desejáveis socialmente e positivamente relacionados, implicando a inexistência de conflitos entre motivações de indivíduos e coletividades.
Os construtos da teoria funcionalista de valores básicos também têm relações com os tipos motivacionais de Schwartz. Gouveia (2003) observou convergência entre as medidas relativas às duas teorias por meio de escalonamento multidimensional; um eixo espacial horizontal distinguiu entre as dimensões de valores básicos e tipos motivacionais, mas os valores básicos de orientação social (subfunções normativa e interacional) mostraram-se próximos a tipos motivacionais de natureza coletiva (benevolência, tradição e conformidade), enquanto que os valores básicos com orientação pessoal (experimentação e realização) mostraram-se relacionados aos tipos individualistas (estimulação, hedonismo, autodireção e realização). Por fim, os valores centrais e tipos motivacionais de segurança e universalismo situaram- se entre os pessoais e sociais.
Mais recentemente, Gouveia, Milfont e Guerra (2014b) confirmaram a estrutura fatorial da teoria funcional com dados do questionário PVQ-21 (Portrait Values Questionnaire), também ligado à teoria de Schwartz. Foi observado que a localização dos tipos motivacionais se mostrou compatível com a teoria funcionalista, indicando que esta não depende do instrumento específico a ela vinculado e pode explicar também resultados de valores com outras medidas.
No entanto, até o momento, não há estudos empíricos das relações entre medidas vinculadas à teoria funcionalista dos valores humanos e a abordagem societal dos valores, mesmo ambas constituindo perspectivas brasileiras sobre fenômenos muito próximos. Aliás, considerando que a primeira trata de valores como representações cognitivas e a segunda de valores como conteúdos ideológicos de grupos sociais, grosso modo não seria um equívoco dizer que são pontos de vista diferentes sobre o mesmo fenômeno. Desse modo, é possível que, em alguma extensão, as duas teorias sejam compatíveis com um mesmo quadro explicativo em termos de dimensões latentes estruturais dos valores.
O objetivo deste estudo é realizar uma avaliação exploratória das correlações entre indicadores das duas perspectivas e também da possibilidade de explicar esses indicadores a partir de dimensões em comum, o que pode apontar para um esforço inicial de integração das duas teorias ou de sua diferenciação. O estudo foi realizado junto a uma população escolar, no contexto de um projeto de avaliação de medidas psicossociais para formato de resposta Likert de 3 pontos e, portanto, trata de adaptações dos instrumentos de mensuração das duas perspectivas.
Método
Participantes
A amostra, não probabilística, foi composta por 722 estudantes matriculados na 2ª série do ensino médio de duas escolas da rede pública e uma da rede particular do município de Uberlândia, Minas Gerais. Da amostra total, 392 participantes (54,3%) eram estudantes da escola particular. Em termos da distribuição de sexo, 372 (51,5%) eram do sexo feminino. A média de idade foi de 16 anos (DP=0,89) e variou de 14 a 24 anos de idade, mas 93,7% dos participantes tinham entre 15 e 17 anos de idade.
Em termos de classes econômicas classificadas pelo Critério de Classificação Econômica Brasil da Associação Brasileiras de Empresas de Pesquisa, a maior proporção de participantes pertencia à classe B1 (26,7%), seguida da classe B2 (26,3%), A2 (24,4%), C1 (12,7%), C2 (5%) e A1 (4,8%). Quanto à composição racial, 53,8% dos participantes declararam-se brancos; 40% disseram ser pardos; 3,8% pretos; 1,4%, indígenas e 0,8% asiáticos. Finalmente, a amostra tem 42,8% de católicos; 26,1% de evangélicos; 10% de espíritas e 7,1% de ateus. Os demais 13,9% distribuem-se entre outras crenças.
Instrumentos
Um questionário incluindo as medidas foi utilizado na coleta de dados. A primeira parte consistiu numa adaptação do Questionário de Valores Básicos (QVB) (Gouveia, 2003, 2013), medida que operacionaliza os valores humanos de acordo com a teoria funcionalista. A medida original utiliza uma escala de resposta do tipo Likert que apresenta dezoito valores e breves definições, solicitando ao participante indicar o quanto cada valor é considerado importante na sua vida, numa escala de 1 Pouco importante a 7 Muito importante. Os valores do instrumento agrupam-se em seis subescalas, referentes às seis subfunções valorativas, consistindo em medidas com índices de confiabilidade aceitáveis, variando de 0,53 a 0,60 numa amostra brasileira recente (Gouveia et al., 2014a) e de 0,52 a 0,66 numa amostra espanhola (Gouveia et al., 2010). Em amostras regionais brasileiras, ocasionalmente foram encontrados valores inferiores a 0,50 (Medeiros, 2011).
O presente estudo não utilizou a medida original do QVB. A pesquisa insere-se no contexto de um projeto coordenado pelo primeiro autor, com a finalidade de adaptar medidas psicossociais para populações escolares, pautado na avaliação de escalas psicométricas com três opções de resposta e vocabulário simplificado. A lógica por trás desse projeto está em simplificar medidas de modo a garantir o entendimento das etiquetas de todas as opções de resposta da escala Likert e também assegurar a compreensão do texto dos itens mesmo em situações de familiaridade diferente com o vocabulário da medida entre os participantes da amostra e também de variações de nível de escolaridade e idade e, posteriormente, avaliar o comportamento das medidas resultantes junto às populações a que se destinam.
A princípio, a utilização por três opções de resposta é polêmica, já que escalas de 6 ou 7 pontos permitem às pessoas expressar com mais detalhamento suas avaliações (Preston & Colman, 2000). Porém, cabe apontar que esse ganho de informação ligado ao maior detalhe das escalas de 6 ou 7 pontos pode não ocorrer quando os participantes não possuem habilidades para diferenciar entre as opções; nesse sentido, a ambiguidade de interpretação dos intervalos é prejudicial (Krosnick, & Presser, 2010; Weathers, Sharma, & Niedrich, 2005). Nesses casos, há suporte para a escolha por menos opções, que tem significados com pouca divergência de interpretação. Além disso, Peabody (1962) verificou em estudo clássico que a direção do item (se concordância ou discordância) prevê melhor os escores compostos de escalas de atitudes que o grau de intensidade (extremismo) de cada posição, indicado pela maior quantidade de intervalos em cada posição de direção. Adicione-se a isso a maior facilidade e rapidez percebidas e reais para completar escalas com duas ou três opções e a frequente obtenção de resultados equivalentes ou pouco inferiores de formatos com duas e três opções de resposta em análises de validade e confiabilidade (p. ex.; Dolnicar & Grün, 2007; Dolnicar, Grün, & Leisch, 2011; Grassi et al., 2007). Assim, parece haver algumas justificativas para a escolha por essas modalidades mais econômicas de número de resposta de itens, mesmo com restrições que acompanham essa escolha.
No caso do presente estudo, o instrumento utilizado para avaliar a teoria funcionalista implicou modificações no QVB, nas descrições que acompanhavam cada valor, substituindo algumas palavras por outras mais comuns. Como exemplo, no QVB o valor Emoção é descrito como desfrutar desafiando o perigo; buscar aventuras; na versão modificada utilizada neste estudo, a expressão foi: buscar aventuras; gostar de desafiar o perigo. Ou seja, foram poucas mudanças realizadas em apenas alguns itens para simplificar algumas palavras menos usuais. Além disso, havia as seguintes três opções de resposta: Pouco importante, Mais ou menos importante, e Muito importante. Neste artigo, a medida da teoria funcionalista será referida como AQVB para explicitar que se trata de uma adaptação, e não do QVB validado, de modo a evitar qualquer mal-entendido ou incompreensão por parte dos leitores que visem colocar os resultados em perspectiva com outros da área.
A segunda parte foi formada por uma adaptação semelhante do Questionário de Valores Psicossociais-24 (Pereira et al., 2004), medida de referência da abordagem societal. Na medida original, são apresentados vinte e quatro valores, aos quais os participantes devem atribuir avaliações de importância para construir uma sociedade ideal, variando de 1 Sem importância a 5 Extremamente importante. Conforme análises de validação, os valores formam quatro subescalas referentes aos sistemas de valores, com medidas de confiabilidade de 0,70 a 0,92. Neste estudo, foi adotado o mesmo formato de resposta utilizado em relação à AQVB, com três opções. Para diferenciar de escalas validadas anteriormente, a medida será referida como AQVP-24.
Outras seções do questionário não foram abordadas para o estudo aqui relatado, pois diziam respeito a outras pesquisas constituintes do projeto mais amplo referido anteriormente. Tratava-se de questões opinativas sobre trabalho, emprego e explicações sobre os eventos sociais, com respostas objetivas. Finalmente, uma última parte do questionário solicitava informações sociodemográficas dos participantes, como sexo, idade, grupo racial (por autodeclaração) e religião. Foi também utilizado um questionário sobre bens de consumo, acesso a serviços e escolaridade dos pais, o Critério de Classificação Econômica Brasil-CCEB. Conforme as respostas dos participantes, é atribuída uma pontuação padronizada para chegar a uma classificação aproximada de sua classe econômica. Foi utilizado o CCEB 2013, condizente com a data de coleta, considerando-se que a classe econômica A corresponde à renda média bruta familiar mensal de R$ 9.263, a classe B1 a R$ 5.241, a classe B2 a R$ 2.654 e a classe C1 a R$ 1.685.
Procedimentos
O projeto referente ao estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia (parecer 379.510). Após contato com as administrações das escolas, foram distribuídos, em sala de aula, termos de consentimento livre e esclarecido que foram entregues pelos estudantes aos respectivos responsáveis para autorização da participação no estudo. Alguns dias depois, dois pesquisadores recolheram os termos assinados e realizaram a aplicação do questionário junto a grupos de alunos em sala de aula, em horário letivo. Os questionários foram respondidos individualmente, com instruções de preenchimento comunicadas oralmente de modo coletivo. Os pesquisadores colocaram-se à disposição para sanar dúvidas de entendimento.
A análise de dados consistiu no cálculo de escores de cada subfunção, no caso da AQVB e sistema de valores, para a AQVP-24. Foram computadas médias dos itens constituintes de cada subescala, conforme os estudos de validação publicados das medidas oficiais, bem como calculados os índices de confiabilidade (alfa de Cronbach). Posteriormente, foram calculadas correlações entre os escores das subescalas dos dois instrumentos. Finalmente, foi realizada uma análise fatorial exploratória visando a identificar dimensões subjacentes que pudessem explicar os padrões de correlações das duas medidas consideradas em conjunto. Todas as análises foram realizadas no ambiente de computação estatística R (R Core Team, 2013), por meio de funções estatísticas nos pacotes base, psych (Revelle, 2013), Rcmdr (Fox, 2005) e nFactors (Raiche, 2010).
Resultados
De modo a verificar as relações empíricas entre as medidas adaptadas da teoria funcionalista dos valores humanos e da abordagem societal dos valores, foram construídas matrizes de correlação entre as subescalas das medidas. Posteriormente, para avaliar a possibilidade de uma estrutura latente comum às duas escalas, foi realizada análise fatorial exploratória incluindo conjuntamente os itens de ambas. A Tabela 1 apresenta estatísticas descritivas referentes às subescalas da AQVB e da AQVP- 24, bem como seus respectivos índices alfa de Cronbach. Observa-se que, à exceção do sistema materialista da AQVP-24, as subescalas apresentam médias na amostra acima do ponto neutro (2), indicando altos graus de importância conferidos às subfunções ou sistemas de valores. No que diz respeito aos índices de confiabilidade, as subescalas da AQVB apresentaram desempenho inadequado, com alfas de Cronbach abaixo de 0,50 em todos os casos, atestando baixa fidedignidade. No que diz respeito às subescalas da AQVP-24, foram observados índices aceitáveis.
A Tabela 2 apresenta correlações de Spearman entre as subescalas da AQVB e AQVP-24 entre si. A opção pelo coeficiente de Spearman justifica-se por ser uma escolha conservadora para respeitar a natureza ordinal dos dados. Em conformidade com os padrões de congruência previstos pela teoria funcionalista (Gouveia, 2013), os pares de subfunções interacional-realização e normativa- -experimentação têm correlações baixas ou até mesmo negativas, já que expressam orientações e motivadores diferentes. Além disso, o par interacional-experimentação apresenta baixa correlação, enquanto que normativa- -realização apresenta correlação intermediária, sendo que os dois pares, por terem o mesmo tipo de motivador, apresentariam supostamente correlações moderadas. Finalmente, os pares interacional-normativa e realização- -experimentação apresentam correlações, respectivamente, um pouco mais elevadas e moderadas, quando o esperado seria ter alta congruência por uma coincidência de orientação. Quanto às subfunções de Orientação central, a subfunção Existência tem correlações de moderadas a baixas com as outras dimensões da AQVB, exceto experimentação; padrão semelhante é observado com a subfunção Suprapessoal.
No que diz respeito aos sistemas de valores medidos pela AQVP-24, foi observada correlação mais forte entre os sistemas hedonista e materialista, e não houve correlação entre o sistema religioso e hedonista. As demais relações foram de moderadas a baixas.
Já quanto às correlações entre as duas escalas, observaram- se as de mais importância entre a subfunção interacional e os sistemas pós-materialista e religioso; entre a subfunção normativa e os sistemas religioso e pós-materialista; entre a subfunção suprapessoal e o sistema pós-materialista; entre a subfunção existência e o sistema pós-materialista; entre a subfunção experimentação e o sistema hedonista; e entre a subfunção realização e o sistema materialista. As relações mais fortes envolveram as subfunções normativa e o sistema religioso, e a subfunção realização e o sistema hedonista, indicando uma sobreposição explicativa das dimensões avaliadas.
A fim de averiguar as dimensões explicativas comuns organizando as subfunções de valores humanas e os sistemas de valores, foi realizada uma análise fatorial. Após constatação das condições dos dados atestadas pelo índice KMO no valor de 0,85, indicando bom grau de variância comum, foi realizada uma análise paralela para decidir sobre o número de fatores a serem extraídos, haja vista que se trata de uma técnica com boa acurácia para essa finalidade (para uma breve revisão a respeito, ver Damásio, 2012, p. 217-218). Os cinco primeiros autovalores empíricos foram 7,04; 4,41; 3,07; 1,78 e 0,79. Os autovalores simulados foram 0,68; 0,56; 0,52; 0,47 e 0,43. Ainda houve mais autovalores empíricos com valores superiores aos simulados, mas optou-se por realizar a extração de quatro fatores, visto que, a partir do quinto autovalor empírico, o valor foi menor que 1, a que corresponde a condição mínima do critério de Kaiser-Guttman, o qual tende a superestimar a quantidade de fatores (Laher, 2010). Portanto, condicionou-se a análise paralela, considerada mais precisa, pelo critério de Kaiser-Guttman.
A análise fatorial (método dos resíduos mínimos) teve rotação oblíqua oblimin. Não foi imposta restrição quanto à possibilidade ou não de os fatores serem independentes (não correlacionados), e a rotação oblimin, por ser oblíqua, permite avaliar as correlações entre os fatores sem forçar a independência. Além disso, a análise foi baseada na matriz de correlações policóricas, respeitando- se a natureza ordinal dos itens. Os quatro fatores explicaram 40% da variância. A Tabela 3 apresenta as cargas fatoriais e comunalidades dos itens com cargas iguais ou superiores a 0,30; os valores sobrevivência, saúde, beleza e prestígio, referentes à AQVB, tiveram cargas menores e não compuseram a tabela. Pode ser observado que o primeiro fator reúne valores pessoais e psicossociais relacionados à esfera da religião e tradicionalismo; o segundo fator refere-se a valores de aprimoramento e desenvolvimento pessoal, agrupando alguns aspectos materialistas e de bem-estar profissional, sugerindo que a busca por aspectos materiais se dê por meio da qualidade profissional; o terceiro fator aborda claramente a busca pelo prazer e emoções, abarcando o sistema hedonista e a subfunção experimentação; e o quarto fator trata de desenvolvimento das relações sociais, envolvendo valores pós-materialistas de bem- -estar social e a subfunção interativa, bem como cargas negativas associadas a aprimoramento pessoal como lucro, status e riqueza.
No que diz respeito às correlações entre esses fatores, há correlações de moderadas para baixas entre os fatores religioso (1) e de aprimoramento pessoal (2) (0,29) e entre os fatores de busca pelo prazer (3) e aprimoramento pessoal (0,20), bem como uma relação negativa entre a busca pelo prazer e o fator de desenvolvimento social (4) (-0,18). Há também correlações fracas entre desenvolvimento social e aprimoramento pessoal (0,13) e entre religioso e desenvolvimento social (0,08).
Discussão
Uma primeira apreciação dos resultados descritivos das medidas adaptadas aponta um padrão recorrente na pesquisa sobre valores. Observa-se que os escores são elevados, o que é algo comum, visto que, por definição, os valores são desejáveis socialmente, representando metas reconhecidas como legítimas (Gouveia, et al., 2011; Pereira et al., 2001).
Um segundo aspecto, porém, é mais problemático: os índices de confiabilidade (alfa de Cronbach) relativos à AQVB são baixos, situando-se todos menores que 0,50. Contudo, Schmitt (1996) ressalta que não há valores objetivos que indiquem limites superiores e inferiores aceitáveis desse índice, apontando que medidas com índices alfa baixos podem mostrar-se úteis. Parece ser o caso de valores; o Schwartz Value Survey apresenta ocasionalmente valores menores que 0,50; e algumas versões do QVB também apresentaram variações de 0,40 a 0,60 em coletas diferentes (Gouveia, 2003; Gouveia et al., 2014a). No que diz respeito ao QVB, Gouveia, Santos, e Milfont (2009) justificam esses valores pela baixa variação (alto consenso) nos escores dos itens nas culturas e também pela baixa quantidade de itens em cada fator. Mesmo assim, a baixa confiabilidade das dimensões da medida da teoria funcionalista utilizada recomenda uma leitura cautelosa dos resultados, evitando generalizar os resultados referentes aos indicadores da teoria funcionalista para além da amostra considerada neste estudo. Cabe ressaltar que a AQVP-24, que de fato têm mais itens, obteve resultados melhores de fidedignidade na pesquisa atual.
No que diz respeito à avaliação das relações entre as duas medidas de valores, há dois pares de dimensões entre as escalas que apresentam correlações mais elevadas, maiores que 0,60, indicando forte sobreposição de conteúdo: é o caso da relação entre sistema de valor religioso e subfunção normativa; e entre sistema de valor hedonista e subfunção experimentação. Contudo, predominam correlações positivas, baixas e moderadas. O padrão de relações positivas entre dimensões reproduz os pressupostos e resultados empíricos das duas teorias, cujos autores enfatizaram o quanto essas configurações desafiam a visão de conflitos e oposições de valores de Schwartz, que não lidaria bem com relações positivas entre todas as dimensões (Gouveia et al., 2011, Gouveia, 2013, Pereira et al., 2001). As correlações fortes mencionadas indicam a possibilidade de que as duas escalas estejam cobrindo aspectos coincidentes dos valores, o que permite considerar a investigação de um quadro teórico comum, que tenha poder explicativo para abranger os indicadores empíricos das duas teorias. Foi o que se tentou identificar, ainda que em caráter inicial e exploratório, ao realizar-se a análise fatorial.
Os resultados da análise fatorial efetivamente permitiram antever dimensões mais amplas que dão sentido aos padrões de correlação das duas medidas. Foi observado que uma síntese das relações pode ser expressa em quatro fatores com correlações modestas, em que especialmente os fatores 1 e 3, sobre tradicionalismo e busca pelo prazer e emoções, tornam claro como alguns itens das duas medidas têm comportamento parecido em termos de correlação; são majoritariamente os itens envolvidos nas dimensões com associações mais fortes mencionadas anteriormente, isto é, o fator 1, de tradicionalismo, associa o sistema religioso da subfunção normativa, enquanto que o fator 3 trata principalmente de uma justaposição de valores da subfunção experimentação e do sistema hedonista. Nesse ponto, as duas teorias, por caminhos diferentes, parecem tratar de fenômenos muito parecidos.
As possibilidades da análise conjunta dos itens das duas medidas tornam-se mais interessantes ao se observar o segundo e quarto fatores, que apresentam dimensões que fogem à interpretação das dimensões das medidas utilizadas, parecendo indicar éticas integrativas mais amplas, que provavelmente não teriam sido identificadas com análises das duas medidas isoladamente. O fator 2 é uma mescla de valores materialistas e de bem-estar no trabalho, associando os valores ligados às atividades profissionais à busca por metas materiais. Trata-se de uma ética do trabalho associada a ganhos econômicos que associa uma parte dos valores do sistema pós-materialista (aqueles ligados à realização no trabalho) a valores básicos materialistas. Já no quarto fator identificaram-se temáticas ligadas a desenvolvimento social, e que parecem associar-se a uma ética específica ao conter associações negativas com os escores de lucro e status, comumente ligados a metas individualistas e hierárquicas. Esse fator poderia indicar uma configuração ampla de valores voltados a ideais de solidariedade social.
É possível entender também as tendências de como se relacionam essas dimensões por meio de suas correlações mais importantes: a busca por valores materialistas e de bem-estar no trabalho mostra-se compatível com priorizar valores religiosos e normativos e valores de busca pelo prazer. Já a dimensão de desenvolvimento social é valorizada na proporção inversa à busca pelo prazer, mas se correlaciona de modo positivo, ainda que fraco, com a priorização dos valores materialistas e de bem-estar no trabalho.
A despeito dos resultados encontrados e sua eventual pertinência para o campo de pesquisa, é essencial ressaltar as peculiaridades e limitações do estudo realizado, que exigem cautela ao avaliar os achados obtidos. Em primeiro lugar, é possível levantar objeções de que a escolha por restringir as respostas das escalas de tipo Likert de três pontos. Por um lado, é possível afirmar que as adaptações são muito semelhantes às medidas originais, o que reduziria a probabilidade de que isso tenha se constituído num problema significativo, e a literatura sustenta a equivalência ou pequena diferença nos resultados de análises de validade e confiabilidade de escalas com 5 a 7 pontos e versões com 2 a 3 pontos (p. ex. Dolnicar, & Grün, 2007; Dolnicar et al., 2011; Preston, & Colman, 2000; Weng, 2004;). Mesmo assim, o formato de três pontos e as pequenas modificações nos itens nas adaptações das medidas utilizadas implicam reconhecer que foram usadas escalas diferentes dos instrumentos padrão das duas teorias. Portanto, é possível que os resultados com as medidas originais não sejam reproduzidos em outras investigações com os instrumentos validados. Além disso, cabe lembrar que os resultados de precisão das medidas, especialmente da adaptação do QVB, foram insatisfatórios, o que prejudica fortemente a consideração dos itens dessa medida em conjunto. Optou-se por fazê-lo de modo a dialogar com os estudos da área, mas certamente o comportamento da medida adaptada demanda reservas. Outro ponto de atenção diz respeito à população participante do estudo: estudantes de ensino médio. É importante levar em conta que os resultados não podem ser generalizados para outras faixas etárias; um estudo numa amostra brasileira alinhado com a teoria funcionalista dos valores humanos aponta evidências de padrões de mudança relevantes dos valores durante o ciclo de vida, seguindo diferentes funções (lineares, quadráticas, cúbicas) a depender das subfunções valorativas consideradas (Gouveia, Vione, Milfont, & Fischer, 2015).
Feitas essas ressalvas importantes, conclui-se, a partir dos dados correlacionais, que as duas teorias, apesar de terem sido construídas baseadas em pressupostos diferentes entendimentos de valores como orientadores para a vida pessoal ou como objetivos para direcionar a sociedade e, como atestado por uma série de estudos de validação, apresentarem indícios fortes de validade teórica das medidas a ela associadas, podem alternativamente ser consideradas sobrepostas em termos de sua cobertura empírica. Isso foi atestado por correlações entre as dimensões das medidas associadas a essas teorias e agrupamento de itens nos mesmos fatores de uma análise conjunta. Também foi possível avançar na identificação de dimensões latentes que indicam relações mais amplas entre esses valores e ultrapassam os significados originais das medidas iniciais: uma dimensão que avalia adesão à busca de realização de objetivos materialistas associados à obtenção de metas profissionais, e outra de busca de uma solidariedade social rejeitando-se metas materialistas.
Por se tratar de uma exploração inicial dos dados, não há hipóteses específicas ou bases teóricas anteriormente alinhavadas para explicar esses padrões de resposta, entendendo que é uma interpretação para dar conta das correlações e estrutura fatorial observadas. Assim, em vez de optar por uma outra teoria como alternativa mais parcimoniosa para explicar o fenômeno dos valores, constituindo uma disputa teórica entre perspectivas concorrentes, talvez seja mais interessante tentar planejar pesquisas futuras para entender as relações de entrelaçamento dos valores pessoais e objetivos para as sociedades, que parecem se relacionar estruturando quadros de referência mais complexos atrelando o que é desejável para a vida individual e para a coletividade de modo geral, escopo respectivamente das teorias funcionalista e societal. Acredita-se que o presente estudo indica que essas duas esferas podem se combinar de modo a estruturar lógicas sociais capazes de explicar e orientar cursos de ação de pessoas e grupos.
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recebido em janeiro de 2015
reformulado em setembro de 2015
aprovado em setembro de 2015
Sobre os autores
João Wachelke: é doutor em Psicologia Social e da Personalidade pela Università degli studi di Padova, Mestre e Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
Laiz Bueno Rodrigues: é graduanda de psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
1Apoio financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científica e Tecnológico (CNPq).
2Endereço para correspondência: wachelke@yahoo.com