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Psicologia em Revista
Print version ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.11 no.17 Belo Horizonte June 2005
ARTIGOS
Corpo e contemporaneidade
Body and contemporaneity
Teresa Cristina Carreteiro*
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense
RESUMO
As sociedades ocidentais contemporâneas apresentam características que merecem ênfase: o enfraquecimento dos coletivos institucionalizados, o culto do individualismo temperado pelo surgimento de novos coletivos, a importância do sucesso, a pressão da urgência, a prioridade dada ao ato e a ilusão da idéia do absoluto. Tais características oferecem um quadro necessário para o centramento sobre o corpo. O artigo afirma que o corpo tornou-se um dos valores predominantes do mundo contemporâneo. Ao longo do texto, são estudados alguns aspectos que o corpo tem adquirido na atualidade: corpo território, corpo viril, corpo excesso, corpo beleza. A conclusão discute o lugar do corpo como um sintoma contemporâneo, fazendo surgir uma patologia narcísica específica, que gera conseqüências importantes nas concepções subjetivas e sociais.
Palavras-chave: Corpo, Subjetividade, Sociedade.
ABSTRACT
Contemporary western societies present characteristics that deserve special focus: the weakening of institutional Groups, the cult of individuality due to the creation of new collective Groups, the importance of success, the pressure for urgency, the priority given to action, and the illusive idea of the absolute. Such characteristics highlight a necessary framework for the centrality of the body. The article affirms that the body has become one of the most predominant values in the contemporary world. Throughout the text, several aspects that the body has recently acquired are studied: territorial body, virile body, excessive body and beautiful body. The conclusion discusses the bodys place as a contemporary symptom, giving rise to a specific narcissist pathology that has important social and subjective consequences.
Keywords: Body, Subjectivity, Society.
Para abordar o papel essencial do corpo nas sociedades contemporâneas e para examinar em que o centramento nesse objeto superinvestido e supervalorizado pode ser considerado uma patologia narcísica, estudaremos primeiro determinadas características da sociedade ocidental atual. Elas permitem situar as funções exercidas pelo corpo, em seus diversos aspectos (corpo território, corpo viril, corpo excesso e corpo beleza), bem como suas conseqüências sobre a economia psíquica.
O indivíduo hipermoderno vive num momento da história em que grandes transformações acontecem nas formas de assunção de sua subjetividade. Algumas décadas atrás, podíamos constatar que a forte conflitualidade entre as instâncias psíquicas era um dos traços proeminentes da formação psíquica. Os trabalhos de Freud e de seus sucessores já tinham permitido elucidar essa questão, ao desvelar as formas de conflito entre o eu e as outras instâncias psíquicas. O superego exercia papel muito importante, na qualidade de instância de interiorização das regras sociais, que tinham visibilidade e podiam ser facilmente reconhecidas no espaço social. A obediência às normas era considerada uma das características do bom cidadão. Nesse contexto, a conflitualidade resultava da impossibilidade de conciliar os desejos do sujeito com as regras sociais, já que o desejo, enquanto regido pelo processo primário, jamais pode levar em conta os interesses do social. Em sua obra O futuro de uma ilusão, Freud (1971a) mostrou que qualquer civilização é construída na base da coerção e do recalcamento das pulsões, mas ele aponta também o papel essencial da sublimação na construção das obras civilizadoras.
O modelo então vigente colocava o sujeito social em primeiro plano, uma vez que podia se associar ao ideal democrático e enfatizava o sujeito social (trabalhador, cidadão, seja o que respeita a ordem social, seja o que quer transformar o mundo), e não o sujeito individual tomado por seus desejos. Naquele momento, entre o sujeito individual e o social, a primazia era dada ao segundo, sem que o primeiro fosse descartado. Foi a época dos grandes movimentos sociais, das lutas para criar fortes laços entre o indivíduo e a sociedade, entre a vida privada e a vida coletiva. No imaginário da época, o lugar do indivíduo pertencia a um quadro social bem estabelecido. Havia clara separação entre o sujeito individual e social, em outros termos, entre o mundo do primeiro e o do segundo. Compreendia-se que o indivíduo ocupava seu espaço interior as noções aqui evidenciadas eram a interioridade e o espaço privado. Havia, portanto, distinção relativamente grande entre o dentro e o fora. A conflitualidade estava então sempre presente e levava ao surgimento de um mal-estar. Este era, segundo Freud (1971b), o resultado da impossibilidade de conciliação entre o desejo e as obrigações do ser social, e do dilaceramento de todo sujeito humano entre a pulsão de vida e a de morte. Vários modos de estar no mundo decorriam da posição de mal-estar. Compreendia-se que os sujeitos individuais eram marcados pela finitude, pela mortalidade e, conseqüentemente, pela angústia. No entanto, essa experiência estava eficazmente regulada, levando-se em conta as relações estabelecidas com um sistema de regras estáveis (Birman, 1999; Castel; Haroche, 2002). Elas eram conhecidas, e os indivíduos sabiam o que se esperava deles.
Hoje em dia, a situação é bastante diferente. As relações entre o individual e o coletivo sofreram enormes mudanças, assim como as relações entre o mundo público e o mundo privado. Essas questões foram também estudadas por vários autores (Gauchet, 2002; Enriquez; Lhuilier, 2002; Bauman, 2003). Daí resultam conseqüências em todos os campos da existência, que geram outras construções subjetivas e modificam as formas de estabelecimento de laços sociais. Podemos enfatizar alguns de seus traços marcantes.
O ENFRAQUECIMENTO DOS COLETIVOS
Há um “enfraquecimento do projeto revolucionário” que gera um “apagamento do estilo revolucionário” e, portanto, o apagamento de um “tipo de homem” (Gauchet, 2002). Por isso, vemos que as grandes questões que faziam sentido anteriormente desapareceram do cenário social, o que também ocorreu com as lutas coletivas que buscavam transformar o mundo. Segundo Gauchet (2002), passamos de um momento de afrontamento a outro de evitamento, que trouxe um evitamento da conflitualidade em vários níveis, a saber: com as instituições, com os grupos e consigo mesmo. Os laços sociais atualmente seriam pouco conflituais, trazendo conseqüências no plano individual. Disso trataremos posteriormente.
O CULTO DO INDIVIDUALISMO E A CONSTRUÇÃO DE NOVOS COLETIVOS
O enfraquecimento do coletivo deu grande ênfase ao indivíduo. Anteriormente, na equação individual-coletivo, era dada prioridade ao segundo termo. Hoje a situação não é mais a mesma, é o primeiro que se torna o ator grandioso em todo seu esplendor. Ele reflete bem o novo imaginário criado em torno da figura do indivíduo, quando o que é prioritariamente enfatizado é o “culto do narcisismo” (Lasch, 1979) e os modos usados pelos sujeitos para aparecer em várias cenas sociais. Mas formam-se também outros coletivos, que têm por objetivo defender os interesses particulares dos grupos. Assim, são construídas fronteiras entre esses coletivos. Cada um deles buscará o reconhecimento de sua diferença e a afirmação de seu direito à existência (Bauman, 2003). Esses novos coletivos serão submetidos ao mecanismo identitário chamado por Freud de “narcisismo das pequenas diferenças” (Freud, 1930/1971), segundo o qual os grupos sociais querem diferenciar-se, edificando fortes fronteiras entre o dentro e o fora e praticando uma política de rejeição e de desprezo ao outro. Essa diferença torna-se, para os grupos, uma qualidade a ser preservada a qualquer preço e um valor em si mesma (Bauman, 2003). Conseqüentemente, as formas de gozo são diferentes para os diversos coletivos.
Mas o indivíduo pertence igualmente a coletivos baseados em valores sociais “enfumaçados”. Esses são marcados pela labilidade, pela instantaneidade, pela passagem. “Enfumaçados”, uma vez que podem ser considerados como trabalhados pelo efêmero, com tendência a ser rapidamente substituídos por outros. Nesse sentido, a mídia é um dos principais veículos a impulsionar tais valores. Entre os novos programas de variedade, emerge o “reality show” (Carreteiro; Farah, 2002), uma máquina de fazer novas celebridades a ser consumidas pelo mercado ávido por novos protagonistas de pequenos acontecimentos. A idéia de celebridade na cultura de massa tomou o lugar da idéia de notoriedade. Quando alguém fazia uma carreira ou desenvolvia suas competências em um ou vários campos, seu trabalho era feito silenciosamente. A idéia de notoriedade centrava-se numa concepção de temporalidade, em que o médio e o longo prazos eram valorizados. A temporalidade que sustenta a construção permanente de celebridades é completamente diferente: ela coloca em primeiro plano a fluidez e a labilidade do tempo. Podemos então pensar que a figura da celebridade é a metáfora atual das novas formas de construção subjetiva. Estas podem ser declinadas numa série de dimensões:
O sucesso este se tornou um dos valores maiores da sociedade atual. Ter sucesso é poder ser reconhecido por outros. Ao mesmo tempo, no entanto, essa posição de sucesso raramente é solidificada, já que ele é instantâneo e deve sempre ser colocado à prova. Ele apresenta tanto a luminosidade, com a metáfora do espetáculo e do palco, quanto a sombra, com a metáfora do esquecimento e das trevas. Dessa maneira, as celebridades não conhecerão nada além de fugitivos movimentos de glória.
A urgência (Aubert, 2003) dimensão que se encontra presente em todas as novas construções sociais e individuais do Ocidente , está tão integrada nas formas de funcionamento da modernidade que se tornou um traço completamente ordinário, praticamente naturalizado. Isso faz com que todo sujeito individual ou social se sinta sempre obrigado a ultrapassar seus limites (Ehrenberg, 1999). Os indivíduos e os sistemas sociais exigem performances e competências cada vez mais elaboradas e complexas. O tempo tornou-se um dos dados mais importantes da hipermodernidade; ele é sempre o elemento a ser levado em conta. No entanto, pensamos poder dominá-lo. O sujeito quer se tornar rei, reinar sobre o tempo. O aforismo atual é este: é preciso mudar. Isso permite que se entreveja menos aonde se quer ou aonde se pode ir, já que a obrigação de mudança opõe-se aos objetivos a ser atingidos. Essa perspectiva encontra as teorizações de Bauman (2002) a respeito do sujeito líquido da hipermodernidade, que se opõe ao sujeito em estado sólido, que enfatizava uma visão a priori, do estado final.
O ato a dimensão do fazer, de mostrar o que foi acumulado ou de dar uma dimensão de acontecimento ao que ainda não foi feito é uma das obrigações da hipermodernidade. Na sociedade do espetáculo (Debord, 1994), é preciso que os atos sejam vistos e, se possível, apreciados por muitas pessoas. Os dados estatísticos tornam-se aqui um índice importante. Bauman (2003b) afirma que a autoridade dos números legitima o reconhecimento dos indivíduos. Os atos para ter valor precisam de público para avaliá-los. O olhar adquire um lugar considerável na sociedade da ação contínua, e a histerização dos atos passa a ter papel privilegiado. Ela terá como objetivo atrair o olhar do outro e querer receber forte valência de sua parte. Os pequenos palcos públicos, com seus numerosos espectadores, têm papel crucial na construção do reconhecimento do ato. O lugar do ato torna-se mais reconhecido do que o lugar da própria pessoa. É o ato que dará grandeza a seu autor. Há uma redução do indivíduo ao ato. O autor se empenhará para tentar usar de toda sua inteligência, capacidade de improvisação e de sedução, para continuar como objeto da atenção do outro. A grande ou a pequena celebridade torna-se o alvo almejado. Estar fora do palco equivale a não existir.
Nesse contexto, a inventividade tornou-se um novo imperativo que guia os atos individuais ou institucionais. Criar coisas diferentes, fazer com que pequenas novidades tornem-se objeto de cobiça e de desejo é um dos objetivos dos atos colocados pelos mercados, aqui considerados em sentido lato, englobando tanto os pequenos quanto os grandes mercados.
Se seguirmos a idéia de Bauman (1999), passamos de uma posição de ética do trabalho a uma posição de estética do consumo. É também nesse sentido que podemos considerar que o ato é mais importante que os sujeitos, uma vez que ele pode ser digerido no espaço de sua exibição.
Traçado esse quadro, podemos entender as observações de Castoriadis (2000) a respeito do aumento da insignificância na nossa sociedade. O autor faz uma ligação entre o enfraquecimento do político e o crescimento da insignificância em vários campos. Isso nos leva a pensar que a sociedade atual conduz os indivíduos e os meios de comunicação a promover atos insignificantes. A insignificância passa a ser digna de importância; o seu culto, uma expressão adaptada de nossa época.
A ILUSÃO DA IDÉIA DO ABSOLUTO
Outra característica da sociedade contemporânea é o fato de essa ser atravessada pelo imaginário que pretende criar produções sociais sem falhas. A psicanálise pode nos ajudar a discutir essas idéias, quando enfatiza a castração, a impossibilidade de completude, a conflitualização, enfim, as falhas às quais estão sujeitas todas as construções humanas. O que rege o imaginário aqui discutido é o desejo de onipotência, como se a pulsão de dominação, que pretende tudo controlar, apontasse constantemente para a doença da idealidade nas construções imaginárias. Os indivíduos que querem tudo dominar desenvolvem mecanismos defensivos muito fortes para negar ou transgredir as situações que, de algum modo, tocam aspectos do vazio ou da morte. As formas de funcionamento que daí resultam são mais próximas das imagens ligadas ao excesso, afastando-se do vazio, da morte ou da finitude.
Para realizar o banquete contínuo da idealidade, devemos levar em conta todas as dimensões citadas ao longo deste texto, visto que elas se associam em sistema. Contudo, o temor da falha real ou simbólica continua a assombrar qualquer sujeito. Nesse caso, podemos considerar duas conseqüências: ou o sujeito vive “o cansaço de ser ele mesmo” (Ehrenberg, 1999) ou o medo vai realimentar os sistemas de hiperação e o individuo buscará melhor performance (Aubert; Gaulejac, 1991). Mesmo se o sentimento de desamparo continua nos sujeitos, eles serão cada vez mais tomados por mecanismos defensivos, não permitindo que suas faces sombrias sejam reveladas. Aqui o consumo desempenha papel de destaque. Os sujeitos compram as próteses oferecidas pela sociedade de consumo, tendo a impressão de que estão vivendo “pequenas salvações” por poderem participar do mercado dos bens sociais. Nesse contexto, o gozo ocupa lugar proeminente. Observamos o enfraquecimento do superego, uma vez que as obrigações sociais são menos rígidas. Os sujeitos menos guiados pelo superego deixam que a libido busque suas formas de gozo. E passam a ser miniempreendedores de si mesmos, de modo que o objetivo principal é fabricar, produzir e consumir gozo. É nesse cenário que o corpo entra em cena.
O CORPO: METÁFORA DA SUBJETIVIDADE
Para precisar o papel do corpo na sociedade contemporânea, vamos utilizar uma série de elementos citados anteriormente. O lugar que o corpo ocupa atualmente é uma das conseqüências do enfraquecimento dos coletivos e da configuração maior da cultura do narcisismo. Como já vimos, determinados autores destacam o desengajamento como uma das características proeminentes de nossas sociedades, o que leva ao afastamento dos sujeitos dos grandes projetos sociais. Bauman (2003a) nos chama a atenção sobre um outro aspecto. A hipermodernidade, advinda do excesso de globalização, da migração e da deslocalização dos poderes, está atribuindo novo sentido ao território, à área ou aos lugares. Julgamos que é na relocalização da atenção dada ao lugar que o corpo se torna também objeto de investimento privilegiado. Ele pode ser considerado como um “quase lugar”. Nesse sentido, observamos quatro modos-tipos de viver o corpo na sociedade hipermoderna: o corpo território, o corpo viril, o corpo do excesso e o corpo beleza. Como veremos adiante, esses modos não são imutáveis; podem se reagrupar ou estabelecer laços.
O corpo território
Aqui, o corpo é considerado, ao mesmo tempo, um lugar de expressão da subjetividade e das questões sociais. Ele terá por função a vontade de transmitir uma mensagem ou de se constituir como um ato.
O corpo território é também o corpo superfície. Tomemos, como exemplo atual, o fenômeno da tatuagem, como se as pessoas tatuadas tivessem o desejo de deixar marcas indeléveis em seu corpo. Mas, ao mesmo tempo, toda pessoa tatuada, ainda que não diga nada, quer transmitir uma mensagem ao público que a vê. Aquelas que têm grandes tatuagens criam pequenos acontecimentos por onde quer que passem; seu próprio deslocamento no espaço já é um pequeno ato, já que o sujeito tatuado tornou-se um microterritório em carne. Sua identidade está colada em seu corpo. Ele convoca o olhar e alguma expressão verbal ou silenciosa de quem o vê.
O corpo território é também objeto de maus tratos por parte de seu proprietário. Atualmente, existem formas de se cortar pedaços do corpo, como a falange de um dos dedos. Infligir-se dor e, ao mesmo tempo, causar dor ao outro, agredir-se e agredir a outrem, parece ser o sentido desse ato. Tal prática ainda é recente para poder ser bem compreendida. No entanto, qualquer que seja o sentido que se queira associar a ela, há a idéia de que a matéria de base, o corpo, é vivida como uma “quase coisa”, o que permite que ele seja mutilado. Não se trata de um suicídio, uma vez que esse atinge a totalidade da pessoa, mas tratase do extermínio de uma parte do corpo. Assemelhando-se à idéia de território, o próprio corpo pode ser atacado, até mesmo despedaçado e desmembrado.
O corpo território é também um objeto político cada vez mais poderoso. Isso faz com que sujeitos ligados a grupos políticos fechados façam cada vez mais uso de seu corpo para denunciar o mundo ou integrá-lo às suas lutas. As mulheres ou os homens-bomba se matam por causas. Atualmente, esse processo está se expandindo.
O corpo viril
O corpo é aqui considerado sob a modalidade da força física. É o esforço feito pelos sujeitos para sentirem-se e mostrarem-se fortes com relação às pessoas com quem convivem e que consideram importantes. O olhar do outro favorecerá o reconhecimento da ação do sujeito pela virilidade que seu corpo é capaz de expressar em público.
Em um texto anterior (Carreteiro, 2000), analisamos até que ponto esse ideal de corpo era valorizado, no Brasil, pelos traficantes de drogas. Ele é indispensável para a atividade do tráfico. Nesse contexto, os sujeitos não devem mostrar-se temerosos. Devem estar sempre prontos para exibir sua força através da violência que seu corpo (apoiado pelas armas) é capaz de exercer. Essa violência deve manifestar-se diante do máximo possível de pessoas, para que seja bem visível, gerando temor e terror. O público legitima ou confere prestígio aos personagens desses atos, ainda que o prestígio seja adquirido pelo medo que os autores podem secretar. Eles são reconhecidos por sua força, sua bravura e sua capacidade de fazer de seu corpo uma máquina de luta.
Na encenação, o olhar do outro sempre ocupa lugar privilegiado. Quando escutamos, nesse contexto pouco favorecido, as narrativas das brigas dos adolescentes, constatamos que a faísca inicial vem do olhar considerado de reprovação de alguém. Aqui, vemos de que maneira encontram-se as figuras do corpo território e do corpo viril. É como se o olhar funcionasse como uma metáfora belicosa, uma arma que invadisse um território. E, quando a situação é percebida como agonística, a única resposta possível é a luta ou a guerra, com o objetivo da vitória. A dramatização e a teatralização do corpo território e viril permite que a violência se manifeste de diversas maneiras. Assim, nos códigos de conduta do tráfico, está previsto que os habitantes de um lugar sob determinado comando não devem visitar territórios que estejam sob poderes diferentes. Podem então ocorrer combates violentos quando “sujeitos-territórios” se encontram em lugares supostamente neutros, como nos ônibus. Os indivíduos querem mostrar sua identidade no espaço em questão, ainda que não sejam diretamente ligados ao tráfico. Nesses momentos, as questões sociais, econômicas e morais são reduzidas à demonstração da força física, através do corpo viril- território.
Evidentemente, essas situações revestem formas extremas no contexto de forte exclusão social. No entanto, elas também ocorrem em quadros de forte inserção social, como entre certos jovens de classe média alta. No Rio de Janeiro, ocorrem inúmeras brigas em casas noturnas entre esses jovens que não se conhecem. O olhar, na maioria dos casos, é sempre o objeto considerado maléfico que incita as brigas.
Há outras acepções do corpo viril. Ele não pretende ser unicamente a realização de atos de violência. Ele é o corpo que quer ser bem modelado, trabalhado por novas tecnologias que lhe permitem aumentar sua massa muscular. Os sujeitos, homens ou mulheres, submetem-se a um trabalho desenfreado de escultura de seu próprio corpo. Ainda que essas pessoas não queiram participar de cenas violentas, seu corpo impõe respeito. Ele é objeto de admiração de todos aqueles que gostariam de ter um igual. Ele também provoca certo medo nos outros, pelo temor da violência implícita que denota. Essa dimensão pode estar completamente ausente da idéia daqueles que constroem seu corpo viril, mas pode ser projetada por aquele que o vê, uma vez que ele atualiza, por causa desse temor, um elemento da sociedade contemporânea, segundo o qual todo sujeito é um inimigo potencial. Essa corporeidade extremamente acentuada e musculosa atrai esse tipo de representação social.
O corpo do excesso ou da compulsão
Referimo-nos aqui aos sujeitos que, consciente ou inconscientemente, usam seu corpo para praticar excessos. Consideramos, em primeiro lugar, o excesso sob a forma de práticas que geram dependência ou que a elas se assemelham. Nesse caso, é impossível detectar nos sujeitos um prazer que se prolongue no tempo, já que esses não são capazes de elaborar ações a médio prazo. A temporalidade que comanda as ações de seu corpo é a imediaticidade, uma espécie de urgência permanente. Observamos esses excessos em casos considerados como uma patologia pessoal, tal como a toxicomania e formas de grandes compulsões. No entanto, nosso interesse aqui é avaliar o lugar que a compulsão pode ocupar. Ela se traduz por uma proibição de pensar e uma obrigação de agir. Agir no sentido dos modos de oralidade máxima, como as compulsões por alimentos ou pela ingestão de drogas ilícitas ou lícitas. Nessas formas compulsivas, surgem construções subjetivas enfrentadas pelos clínicos e psicanalistas em seus consultórios. O excesso, por exemplo, não é somente a ingestão massiva de alimentos, é também seu contrário, a ausência de consumo nas anorexias, ou a conjugação das duas figuras, como no caso da bulimia. A compulsão é a sucessão de atos na busca contínua de um possível gozo.
Mas o excesso não está somente nas formas extremas como as compulsões. Também existe quando se planeja um momento posterior para se obter uma imagem de corpo desejável. Aqui encontramos o ideal do corpo como beleza, o que se vê nas técnicas de remodelagem do corpo pelo excesso de ginástica, de práticas esportivas e de cirurgias. Isso nos conduz ao último ideal do corpo.
O corpo-beleza
O mundo contemporâneo é fascinado pela estética, de maneira que os sujeitos têm cada vez mais tendência a investir em seu corpo, a fim de tornálo conforme os atuais ideais de beleza. Conseqüentemente, a estética corporal torna-se um dos maiores mercados da sociedade de consumo. O corpo-beleza suscita idéias e práticas muito diversas. Determinadas pessoas o vêem como instrumento que deve ser perfeito, donde uma constante remodelagem (isso já foi observado, ao falarmos sobre o corpo-excesso). Para outras, o corpo deve estar simplesmente em boa saúde e gerar bem-estar. É preciso, portanto, protegê-lo de todo excesso. Donde o desenvolvimento da cultura de alimentos sem agrotóxicos, a moderação no consumo de álcool, a supressão do tabaco, a ginástica leve, etc.
O mundo contemporâneo é fascinado pela estética, de maneira que os sujeitos têm cada vez mais tendência a investir em seu corpo, a fim de tornálo conforme os atuais ideais de beleza. Conseqüentemente, a estética corporal torna-se um dos maiores mercados da sociedade de consumo. O corpo-beleza suscita idéias e práticas muito diversas. Determinadas pessoas o vêem como instrumento que deve ser perfeito, donde uma constante remodelagem (isso já foi observado, ao falarmos sobre o corpo-excesso). Para outras, o corpo deve estar simplesmente em boa saúde e gerar bem-estar. É preciso, portanto, protegê-lo de todo excesso. Donde o desenvolvimento da cultura de alimentos sem agrotóxicos, a moderação no consumo de álcool, a supressão do tabaco, a ginástica leve, etc.
AS TRANSFORMAÇÕES DEFINITIVAS
Nesse caso, a influência do mercado médico é enorme. Tanto para homens quanto para mulheres, são permanentemente criadas técnicas cirúrgicas que atraem novos clientes. No Brasil, é comum que a mulher de classe média ou alta já tenha feito esse tipo de intervenção ou planeje fazê-la. Submeter-se a uma cirurgia estética para melhorar a imagem física é quase considerado parte da imagem corporal da idade madura da mulher.
No entanto, a idade da clientela está começando a mudar. Adolescentes e jovens adultos submetem-se cada vez mais a essas intervenções cirúrgicas. A imagem da perfeição encontra-se subjacente a essa conduta. O menor descontentamento com relação a alguma parte do corpo pode torná-lo objeto de retificações. A maioria dos clínicos está sempre pronta a intervir, reforçando com isso a imagem do corpo ideal. As demandas acentuam-se pela pressão social que erige o corpo como um ideal do mundo contemporâneo.
Essa maneira de conceber o corpo anda de mãos dadas com o aumento da sedução, que adquire uma posição privilegiada. Ela torna-se quase um elemento básico das comunicações. Seduzir o outro pela beleza passa a ser um ponto muito importante nas trocas sociais.
No que se refere às mudanças definitivas, o corpo-beleza pode assemelharse ao corpo-excesso, como no caso dos atletas. Quando os sujeitos não toleram que uma mínima parte de seu corpo lhes pareça desagradável, ou quando querem seguir as novas tendências dos estilos corporais, recorrem a intervenções cirúrgicas para aumentar ou diminuir seios, glúteos, bocas. O corpo se torna objeto das várias mudanças ditadas pela moda. Atualmente, o ideal de corpo não é mais os das madonas de Rubem ou Botticelli, a idealidade é a das top models.
AS MUDANÇAS CONJECTURAIS
A indústria da estética elabora, a cada dia, produtos destinados a uma nova clientela. Os cosméticos se dirigem a outros segmentos de clientes, como pessoas de cor negra ou mulata. Outros são destinados aos homens. Produtos estéticos extremamente caros são alvo de publicidade, cujo intuito é mostrar que esses produzem efeitos semelhantes aos da cirurgia estética, sem, contudo, comportar seus riscos.
Além disso, a indústria dos medicamentos de conforto e a indústria paramédica estão vivendo dias de glória. Elas também incentivam o superinvestimento do corpo-beleza. Esses conjuntos de novos mercados desenvolvem- se desmedidamente. Sempre há uma nova molécula, fruto de novas pesquisas, apresentada como revolucionária.
O superinvestimento do corpo beleza tem, em segundo plano, um inimigo que os consumidores devem combater, e esse torna-se álibi fecundo para os mercados: a finitude. O corpo-beleza em suas formas extremas alimenta-se da ilusão da vitória sobre a idade. Ele se constrói como metáfora de uma subjetividade lisa, isto é, aquela que leva cada vez menos em conta a interioridade. Dessa maneira, a atenção é levada aos relevos, aos detalhes mínimos, como as rugas, e às intensidades da exterioridade, não as intensidades da interioridade. Esses quatro modos de conceber o corpo não são imutáveis, eles se interligam e têm pontos de contato, como pudemos verificar acima.
CONCLUSÃO O CENTRAMENTO SOBRE O CORPO: PATOLOGIA NARCÍSICA CONTEMPORÂNEA
O interesse quase exclusivo que se dá ao corpo sob os diversos aspectos mencionados neste texto (corpo-território, corpo-viril, corpo-excesso, corpo- beleza) pode ser considerado como uma das patologias narcísicas contemporâneas. Esse caráter narcísico não precisa ser enfatizado, na parte final deste texto, por ser tão evidente: quando os indivíduos preocupam-se com seu corpo a esse ponto, quando procuram nele os mínimos defeitos, quando fazem dele seu ideal, quando o remodelam para exibi-lo em todo seu esplendor e sua força, eles só podem acabar machucando-se em sua visão, como Narciso, prestes a esquecer que também são espíritos e possuem uma psique dotada de afetos.
A maneira pela qual os libertinos e os preciosos1 da aristocracia, nos séculos XVII e XVIII, cuidavam de seu corpo, a fim de dar-lhe a melhor aparência possível, assemelha-se estranhamente à preocupação contemporânea com o corpo. A diferença é que somente a aristocracia era afetada, ao passo que atualmente esse fenômeno atinge praticamente todas as camadas da população. Entre outras coisas, os preciosos preocupavam-se também, ao contrário do que hoje ocorre, com seu espírito e seus sentimentos. É interessante observar que esse culto à aparência desenvolveu-se particularmente no momento em que o antigo regime, depois de ter atingido sua maior glória, caminhava para a decadência e para o desaparecimento, sendo incapaz de enfrentar os verdadeiros problemas econômicos, políticos e sociais que então o afligiam. Não estaria a sociedade contemporânea numa situação análoga, caminhando em direção a um impasse, a um “alegre apocalipse”? (Retomando a expressão em voga na Áustria antes do deslocamento do império).
O caráter patológico desse movimento em direção ao corpo pode gerar discussões, uma vez que esse fenômeno tornou-se praticamente normal e quase naturalizado nas sociedades ocidentais. No entanto, quando uma sociedade se dirige tranqüilamente para o abismo e deixa de ser capaz, como pensava Marx, de resolver seus problemas, não poderíamos dizer que ela está se tornando “patológica”? (Enriquez; Haroche, 2002). Além do mais, o termo patologia é o adequado para designar sintomas. Sintoma de quê, senão do encolhimento do espaço interior, portanto do apagamento da interioridade, do aparecimento de uma subjetividade lisa, cada vez menos capaz de preocuparse com aquilo que a anima no mais profundo de seu ser e que, como se não bastasse, não dá mais atenção ao laço social e à vida da cidade? Melman (2002) considera que há uma nova economia psíquica, uma nova relação com os outros. Muitos indivíduos das sociedades contemporâneas (claro, ainda há numerosas exceções) estão cedendo à ilusão que estabelece uma homologia entre o corpo supostamente liberto e sua liberdade. Eles acreditam que gozar de seu corpo e afirmar seu caráter de indivíduo livre têm a mesma natureza. Essa tendência exprime-se particularmente na obsessão e na prática da liberdade sexual, no aumento do número de casas de prostituição, de clubes de trocas, de “bacanais”, de práticas de triolismo, de sadomasoquismo, etc. “Goze sem entraves” torna-se o mote de Millet (2001), em seu livro La vie suxuelle de Catherine M. Mas poderemos nos perguntar se esse gozo não tem um preço. Tentaremos esboçar um pouco essa questão para finalizar.
As sociedades do século XIX também interessavam-se pelo corpo, mas, ao invés de fazer dele a metáfora da subjetividade, faziam a metáfora do social ao falar do corpo social, corpo político, do espírito de corpo. Considerável diferença. Quando o corpo é a metáfora do social (ainda que essa metáfora possa ser criticada), isso significa que os indivíduos se interessam pela sociedade, sentem-se cidadãos, desejam viver numa unidade orgânica. Não é mais esse o interesse prevalente atualmente. Ao contrário, com a ênfase na metáfora do corpo-subjetividade, a do corpo social fica enfraquecida. E sabemos que, quando o laço social se enfraquece ou se decompõe, os indivíduos acabam sofrendo transformações em suas formas subjetivas.
Assistimos atualmente ao esquecimento ou ao recalcamento da idéia e da prática da fraternidade. Quando a pessoa está centrada em si mesma, ela pode até dirigir sua atenção aos grupos de iguais, mas o resto do mundo torna-se quase inexistente ou invisível. Os outros, ainda que não sejam inimigos, não são mais considerados semelhantes, podem se tornar somente seres de quem se tem inveja. A rivalidade mimética, mencionada por Girard (1968), torna-se uma característica comum. Quando essa rivalidade predomina, não é mais possível localizar a ferida nos outros e respeitá-la. Da mesma maneira, não podemos mais percebê-la em nós mesmos, já que queremos mostrar um corpo pleno, sem falhas e sem problemas. Os indivíduos tornam-se estranhos uns para os outros. Quando tal situação acontece, o estranho pode facilmente tornar-se um simples instrumento de gozo. O Marquês de Sade nos havia mostrado, com muita antecedência, onde o gozo nos faz entrar: no mundo da própria produção do gozo, de seu consumo excesso, assim como da instrumentalização dos outros (Enriquez, 1991). O mundo atual não é o do Marquês de Sade, mas quem garante que ele não está, silenciosa e insidiosamente, aproximando-se dele? Se assim for, esse será o preço a pagar por termos feito do corpo um valor cardinal.
Referências
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• Texto recebido em abril/2005 e aprovado para publicação em junho/2005.
* Psicanalista, professora titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia de UFF, membro do
Ebep (Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos); pesquisadora do CNPq; e-mail:tecar2@uol.com.br