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Psicologia em Revista
Print version ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.14 no.1 Belo Horizonte June 2008
ARTIGOS
Saúde mental dos trabalhadores em saúde mental: estudo exploratório com os profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial de Goiânia/Go
Mental health workers mental health: an exploratory study with professionals in Psychosocial Attention Centres in Goiânia, Goiás State
Salud mental de los trabajadores de salud mental: estudio exploratorio de los profesionales de los Centros de Atención Psicosocial de Goiânia/Go
Elisa Alves da Silva*; Ileno Izídio da CostaI,**
IUniversidade de Brasília
RESUMO
Este artigo trata-se de estudo das relações de (des)cuidado que permeiam o cotidiano de trabalho e influenciam a saúde mental dos profissionais de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em Goiânia/GO. Foram formados três grupos com 22 trabalhadores de diferentes categorias profissionais. A metodologia foi a pesquisaação, e o instrumento os grupos operativos de reflexão. Os dados obtidos foram examinados através da análise de conteúdo. Foram destacadas quatro categorias: experiências de cuidado com o cuidador, relações interpessoais, sofrimento psíquico e dificuldades e desafios em atuar no novo modelo de atendimento em saúde mental. Observamos que a saúde psíquica perpassa a complexidade das relações de (des)cuidado que são estabelecidas com o próprio profissional, com o outro (usuários e colegas de trabalho) e com a instituição (organização do trabalho). Há uma necessidade de investimentos e ações que privilegiem o cuidado com a saúde mental desses profissionais e integrem uma política pública voltada ao servidor da saúde.
Palavras-chave: Relações de cuidado, Profissionais de saúde, Saúde mental, Reforma psiquiátrica, Centros de atenção psicossocial.
ABSTRACT
This article presents an investigation of the care(less) relations that permeate daily work and influence the mental health of Psychosocial Attention Centres (CAPS) professionals in the city of Goiânia, Goiás State, Brazil. Three groups were formed with twenty-two participants representing different professional categories. The adopted methodology was research-action combined with operational groups. A content analysis of the obtained data was carried out. Four categories were emphasized: care experiences with the care professionals at work, personal relations, psychic suffering and the difficulties and challenges to work with the new mental health care model. As a result, it was observed that the psychic health experience permeates the complexity of care(less) relations established with professionals, others (clients and work colleagues) and the institution (work organization). The research shows the need for investments and actions giving priority to the professionals mental health issue, as well as an adequate public policy with that purpose.
Keywords: Care relations, Health professionals, Mental health, Psychiatric reform, Psychosocial Attention Centers.
RESUMEN
Este artículo trata de un estudio de las relaciones de (des)cuidado que permean en el trabajo cotidiano e influyen en la salud mental de los profesionales de los Centros de Atención Psicosocial (CAPS) de Goiânia/GO. Se formaron tres grupos de 22 trabajadores de diferentes categorías profesionales. La metodología fue la pesquisaacción, y el instrumento los grupos operativos de reflexión. Los datos obtenidos fueron examinados a través del análisis de contenido. Se destacaron cuatro categorías: experiencias de cuidado con el cuida-dor, relaciones interpersonales, sufrimiento psíquico y dificultades y desafíos de actuar en el nuevo modelo de atención de salud mental. Observamos que la salud psíquica pasa por la complejidad de las relaciones de (des)cuidado que se establecen con el propio profesional, con el otro (usuarios y colegas de trabajo) y con la institución (organización del trabajo). Son necesarias inversiones y acciones que privilegien el cuidado de la salud mental de esos profesionales e integren una política dirigida al servidor de la salud.
Palabras-clave: Relaciones de cuidado, Profesionales de salud, Salud mental, Reforma psiquiátrica, Centros de atención psicosocial.
A idéia central deste artigo é discutir as vivências das relações de (des)cuidado,1 permeadas no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde mental, trabalhadores de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
O trabalho desenvolvido nos CAPS emprega uma transformação do modelo assistencial em saúde mental preconizado pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esse movimento trouxe ao campo da saúde mental novas formas de divisão de tarefas com a equipe de trabalho, criando responsabilizações e encargos aos profissionais de saúde (Silva, 2005). Além disso, preconiza uma transformação nas políticas públicas de saúde mental, na (re)inserção do usuário na comunidade e, por conseqüência, no modo de trabalho desenvolvido pelos profissionais (Amarante, 1996; Bezerra Jr., 1994; Silva, 2005).
O ato de cuidar e as atividades desenvolvidas pelos cuidadores estão presentes ao longo da história e retratam a preocupação com a qualidade de vida dos seres humanos (Boff, 1999; Madalosso, 2001; Migott, 2001). Desde então, o exercício do cuidado também permeia o trabalho dos profissionais de saúde, podendo assim ser denominados de cuida-dores2 da saúde física e psíquica das pessoas que precisam de auxílio. Dessa maneira, a atenção psicossocial disseminada no campo da saúde mental resgata as atuações relacionadas a essas práticas de cuidado e reinventa o modo de ser e agir dos trabalhadores em saúde no cuidado com o outro.
Acreditamos que assumir o compromisso de um novo paradigma, no que tange ao cuidado da saúde mental, é uma forma de responsabilidade em relação à produção da saúde e da vida num sentido mais amplo; é apostar numa mudança que privilegie a humanização, o acolhimento e a cidadania dos usuários e, por suposto, também dos profissionais envolvidos nessa realidade. Assim, o presente trabalho pretende enfatizar este último caminho.
Reforma psiquiátrica
O percurso histórico no campo da saúde mental no Brasil tem sofrido transformações importantes nas duas últimas décadas. Esse movimento recebeu a denominação de Reforma Psiquiátrica, e tem como um dos seus principais objetivos estabelecer a crítica aos pressupostos da psiquiatria com seus modelos de controle e normatização do transtorno mental. Nesse sentido, a Reforma Psiquiátrica traz como característica principal a implementação do argumento dos direitos e da cidadania das pessoas que sofrem de transtornos mentais severos, bem como a necessidade de mudanças no agir profissional, social e cultural em relação à loucura.3 De acordo com Ribeiro e Gonçalves (2002, citado por Garcia & Jorge, 2006) a reforma psiquiátrica ultrapassa as normas técnicas, científicas, administrativas, jurídicas, legislativas, constitui-se em uma mudança da sociedade no lidar com a loucura (p. 766, grifo nosso).
Dessa forma, a atual política de saúde mental brasileira segue os pressupostos da Reforma Psiquiátrica, conforme vem acontecendo em vários países do mundo nos quais é proposta a mudança do modelo assistencial, ou seja, a substituição do modelo asilar (hospitalocêntrico, manicomial) para o modelo psicossocial (comunitário). Ocorre então o processo denominado desinstitucionalização, implicando a desospitalização para a construção de uma rede de serviços alternativos, redirecionando os recursos governamentais ao atendimento comunitário (Bezerra Jr., 1994; Amarante, 1996).
É importante ressaltar que, além de todas as mudanças de atenção ao cuidado com a saúde mental, bem como as novas estratégias criadas nos serviços, ainda ocorrem (des)construções e os desafios são constantes nesse cotidiano. Mesmo com os avanços conseguidos, os campos de elaborações e de constatações das insuficiências estão abertos, pois as práticas desse novo paradigma não são fechadas e cristalizadas. É um serviço que está em construção, podendo-se constatar contribuições de outras experiências de reformas instaladas em outros países.
O campo da saúde mental atualmente encontra-se bastante comprometido com a atenção psicossocial. Com as transformações ocorridas nas políticas de saúde mental, principalmente após as regularizações das portarias nº 189/91, nº 224/92 e nº 336/02 e da implementação da Lei nº 10.216/01 pelo Ministério da Saúde, novos dispositivos de atenção psicossocial foram incorporados à rede de atendimento à saúde.
Nessa direção, surgem os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), que aparecem como principal estratégia do processo da Reforma Psiquiátrica, sendo instituições criadas com compromisso de acolher os usuários com transtornos mentais, oferecendo atendimento médico e psicológico, apoiando-os nas suas iniciativas de busca de autonomia (Ministério da Saúde, 2004).
As intervenções clínicas são de responsabilidade de toda a equipe envolvida com a pessoa em atendimento, tendo como meta de trabalho a atuação da prática interdisciplinar. Ainda dentro da proposta de reinserção social do usuário, Guljor (2003) ressalta que as intervenções não são realizadas somente no espaço institucional e que as comunidades são locais de cuidado considerados privilegiados, por isso vários são os arsenais usados para essa mudança de paradigma.
É importante ressaltar que, além de todas as mudanças de atenção ao cuidado com a saúde mental, bem como as novas estratégias criadas nos serviços, ainda ocorrem (des)construções e os desafios são constantes nesse cotidiano. Mesmo com os avanços conseguidos, os campos de elaborações e de constatações das insuficiências estão abertos, pois as práticas desse novo paradigma não são fechadas e cristalizadas. É um serviço que está em construção, podendo-se constatar contribuições de outras experiências de reformas instaladas em outros países.
Relações de cuidado no cotidiano dos profissionais de saúde mental
O verbo cuidar, em português, está relacionado à atenção, cautela, vigilância, prevenção, zelo. Representa, na realidade, uma atitude de preocupação, ocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o ser cuidado (Boff, 1999; Remen, 1993; Waldow, 1998).
Boff (2005), ao ratificar as relações entre as pessoas, esclarece: Cuidar implica ter intimidade com elas, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, darlhe sossego e repouso. [...] Mais que o logos (razão), é o pathos (sentimento), que ocupa aqui a centralidade (p. 31).
Dessa forma, surge a necessidade de novas atuações relacionadas à prática de cuidados, priorizando mudanças na maneira de ser e agir, proporcionando aos profissionais de saúde caminhos que também possibilitem um viver mais saudável. Fortuna (2003) afirma que trabalhar na saúde revisa nosso modo de ser e de viver, nos reinaugura no instante em que nos coloca em contato com o modo de ser e de viver do outro: é que eles (os usuários) nos mostram pelas suas, as nossas dores (p. IV).
Nesse processo há questões éticas fundamentais, sendo que a ética no campo da saúde remete à ética de cuidar da vida, ou seja, do outro e de nós mesmos (Silveira & Vieira, 2005).
O agir ético e técnico deve vir acompanhado desde a formação profissional, revelando a importância de se ter um compromisso com a profissão e com a comunidade que solicita os serviços (Lunardi et al., 2004; Nogueira- Martins, 2003).
Segundo Cerqueira (1996), no campo da saúde mental, é possível notar ainda mais o distanciamento entre a assistência e o ensino, onde uma série de propostas e novos dispositivos são pensados, construídos, mas seus profissionais, em sua maioria, continuam se formando nas velhas práticas (p. 60). É preciso ensinar as bases teóricas, mas ao mesmo tempo introduzir novos cuidados e relações.
Trabalho e saúde mental
Diversos autores afirmam que o trabalho pode ser um desencadeador de saúde ou de doença, de bem-estar e de prazer, e até mesmo de desestruturação mental e loucura (André & Duarte, 1999; Dejours, 1987; Lunardi & Lunardi Filho, 1999; Patrício, 1996; Ramos, 1997). Nesse sentido, a prática laboral depende da relação estabelecida entre o indivíduo e o trabalho, podendo ser vivenciada como indesejada, labuta penosa e humilhante, ou, ao contrário, pode ser algo que dá sentido à vida, que eleva o status, define a identidade pessoal e impulsiona o crescimento humano (Rodrigues, 1991, citado por Migott, 2001, p. 30).
A transformação de doenças do trabalhador para doenças do trabalho, segundo Vasques-Menezes (2004), representa um importante marco, passando a reconhecer o meio laboral como um fator de adoecimento, excluindo a responsabilidade do trabalhador e responsabilizando o trabalho. Contudo, seguir somente essa linha de pensamento pode tornar o processo de adoecimento impessoal, afastando o trabalhador de sua identidade individual e inserindo-o em categorias e dados epidemiológicos, destituindo-o de seu contexto e de sua historicidade (p. 22).
Nos estudos que Le Guillant (1984, citado por Lima, 2004) realizou no campo da Psicopatologia do Trabalho, os quadros clínicos desenvolvidos nos trabalhadores pelas condições de trabalho envolvem diversos fatores psicossociais. O que ressalta de pronto a importância de articular as condições sociais, as condições de trabalho e os fatos clínicos preservando o indivíduo na sua singularidade (Lima, 2004). Dejours (1987) defende que a organização do trabalho é responsável pelo sofrimento mental do profissional. Por sua vez, Tittoni (1994) enfatiza a temática da subjetividade e procura analisar o sofrimento baseando-se nas experiências e vivências que cada pessoa adquire no ambiente de trabalho. Autores como Lima (2004) e Vasques-Menezes (2004) levam em consideração tanto a organização do trabalho quanto a subjetividade, não descartando a importância de cada fator. Defendem um modelo de análise mais complexo, o que parece mais apropriado por não fragmentar aspectos relevantes e por ser um modelo mais completo e abrangente (psicossocial) para o ser humano.
Assim, a categoria trabalho apresenta-se como um fator relevante na saúde mental do indivíduo e atua diretamente como fonte de saúde-doença, prazersofrimento, satisfação-insatisfação, dentre outras. Nesse sentido, a análise do trabalho perpassa não somente pela organização do trabalho mas também pela multiplicidade das relações objetivas e subjetivas que se estabelecem no cotidiano da relação trabalho-trabalhador. Dessa maneira, fica clara a complexidade existente no sentido da resolutividade de todas as relações que estão inseridas no contexto de trabalho.
Políticas públicas em saúde mental do trabalhador
Com relação ao campo da política de saúde mental, os princípios e diretrizes preconizam a valorização da importância do trabalhador de saúde mental na produção do ato de cuidar. Para isso, no Relatório da III Conferência Nacional de Saúde Mental no ano de 2001, foram discutidos os instrumentos para construção e consolidação de uma política adequada de recursos humanos que fosse coerente aos princípios da Reforma Psiquiátrica. Essas ações são necessárias e devem garantir aos profissionais os seguintes programas estratégicos: capacitação e qualificação continuada; remuneração justa aos profissionais; garantia de condições de trabalho e de planos de cargos, carreira e salários; democratização das relações e das discussões em todos os níveis de gestão, contemplando os momentos de planejamento, implantação e avaliação; garantia de supervisão clínica e institucional; avaliação de desempenho e garantia da jornada de trabalho adequada para todos profissionais de nível superior; desenvolvimento de estratégias específicas para acompanhar e tratar da saúde mental dos trabalhadores de saúde; criação de programas de saúde mental no âmbito da administração municipal para os funcionários e servidores portadores de sofrimento psíquico (Ministério da Saúde, 2001).
Existem programas e projetos já ratificados no campo das políticas públicas para os trabalhadores de saúde, mas parece haver ainda uma lacuna entre a realidade prática das ações e as necessidades detectadas. Ramminger (2005), em sua pesquisa realizada sobre os trabalhadores de saúde mental, verificou a existência de poucas ações voltadas à saúde do servidor público e falta de políticas públicas organizadas para esse setor. Assim, justificou que o não-investimento nessa área reflete nos atendimentos desses serviços, ficando somente ao encargo de cada gestor o funcionamento e o acolhimento das questões relacionadas à saúde no trabalho.
Percurso metodológico
Para o percurso metodológico, optamos pela pesquisa-ação em função de seu duplo objetivo (Barbier, 2002): modificar a realidade e produzir conhecimentos relativos a essas transformações. Com isso, os pesquisadores e participantes se envolvem de modo cooperativo e participativo e são representantes da pesquisa realizada (Thiollent, 1996).
Para realização do trabalho de campo, foi feito contato com a Divisão de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, com os Coordenadores de Equipe de alguns CAPS e com toda a equipe dos três CAPS selecionados.
Foram formados três grupos, com representantes de diferentes categorias profissionais (Arteterapia, Artista Plástica, Assistente Social, Enfermagem, Musicoterapia, Professor de Educação Física, Psicologia e Psiquiatria), totalizando 22 profissionais. Cada grupo teve um número de encontros diferentes, variando entre sete e nove, com duração de cerca de uma hora. O período de realização dos encontros dos grupos foi de setembro a dezembro de 2005.
O instrumento selecionado para o desenvolvimento da pesquisa-ação foi o grupo operativo de reflexão, e as técnicas definidas entre pesquisador e participantes foram as leituras de textos relacionados ao tema Saúde Mental dos Profissionais de Saúde, seguidos de discussões, reflexões e questionários com a presença de todos os participantes. Outra técnica foi a utilização de dinâmica grupal e vivências que possibilitassem a reflexão em torno da atuação profissional e como estavam sendo vivenciadas as relações de (des)cuidado no plano institucional e também pessoal por esses profissionais. Ficou estabelecido por todos os grupos que esses encontros deveriam ser intercalados entre leituras e discussões de textos.
Organizando e analisando os dados
Utilizamos o método de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977) para analisar os dados, uma vez que este se propõe a evidenciar opiniões, críticas, julgamentos, reações afetivas nos relatos e vivências que os participantes tiveram nos encontros. Em face da imensa quantidade de dados, empregamos o levantamento quantitativo da freqüência das categorias tão-somente para selecionar os discursos mais recorrentes, fazendo assim um recorte factível para o objetivo desta investigação.
Para Franco (2003), o processo de organização da análise de conteúdo envolve as seguintes fases: a) pré-análise; b) núcleos temáticos e categorização; e c) ordenação dos dados obtidos por meio das definições de temas e categorias.
Na pré-análise faz-se a escolha do material coletado e a leitura flutuante. Assim, os nossos materiais escolhidos foram os registros transcritos dos encontros com os grupos de profissionais de saúde. Após isso, inicia-se a categorização, considerado procedimento essencial da análise de conteúdo, visto que faz a ligação entre os objetivos da pesquisa e seus resultados. A categorização semântica é definida por categoria temática, pois todos os temas que possuem a mesma significação ficam agrupados em uma mesma categoria (Bardin, 1977; Franco, 2003). Desse modo, o critério adotado neste trabalho foi o de análise de conteúdo por categorias temáticas (Franco, 2003).
As reflexões: implicações das relações de (des)cuidado vivenciadas no cotidiano de trabalho
A análise dos dados evidenciou várias categorias, demonstrando que a saúde mental do trabalhador envolve diversos fatores: objetivos e subjetivos, além de ser pouco problematizada em pesquisas e por ações que integrem uma política pública ao servidor da saúde.
A ordenação dos dados descritos e obtidos será exposta por categorias temáticas, indicadores/temas e respectivas freqüências. Para identificar os temas mais recorrentes, utilizamos a análise quantitativa. Foi verificada a quantidade de menções nos discursos dos participantes e dada a freqüência de cada tema. A escolha de algumas verbalizações foi feita pelos pesquisadores, nas quais identificamos os discursos mais significativos que demonstrassem clareza da realidade exposta nos depoimentos dos outros participantes. Para tanto, apresentamos quatro quadros por categoria selecionada:
Considerações sobre os momentos e vivências de cuidado da saúde mental do profissional no ambiente de trabalho
As experiências de programas e vivências relacionadas à saúde mental do trabalhador se revelaram como momentos escassos no cotidiano laboral, ou seja, existe uma lacuna nas ações voltadas à atenção da saúde do profissional. Nos CAPS pesquisados, foram identificadas poucas ações de cuidado no ambiente de trabalho com relação aos participantes. Podemos incluir nesse quadro a precária atenção dada a essas prioridades, tanto por parte da equipe quanto dos próprios gestores. Nós precisamos ser francos com a gente mesmo. Na verdade, esses espaços de cuidado com a saúde mental da gente são espaços tão dispersos que fica difícil de ver onde eles estão (Musicoterapeuta).
Ramminger (2005) considera que o acolhimento (ou não) das questões relacionadas à saúde mental do profissional depende, muitas vezes, do funcionamento e das diretrizes de cada serviço. Entretanto, mesmo que gestores e equipes evidenciem essas responsabilidades, é inegável que também há a falta de políticas públicas que priorizem esses momentos no trabalho.
Um espaço que seja adequado às discussões e que possibilite apreender os sentimentos envolvidos nos casos atendidos aparece como sugestões de cuidado com o trabalhador. Poder-se-ia, nesse espaço, criar momentos para se construírem as práticas interdisciplinares, compartilhar as dificuldades cotidianas e contar com o apoio da equipe
A gente chega aqui e cada um já tem seu grupo formado com o colega de profissão e não temos muito tempo para trocas. São só nos casos mais extremos que levamos os casos para reunião técnica e nessas horas vemos que há uma necessidade de trocas de experiências. (Arteterapeuta)
Nesse aspecto, os participantes apontaram os grupos de reflexão e de estudos como uma opção estratégica para melhorar o cotidiano de trocas e saberes entre os profissionais. Os grupos de estudos parecem ser importantes no cotidiano dos CAPS por diminuir a lacuna da falta de preparo que alguns profissionais sentem na atuação nos CAPS, até mesmo com informações básicas sobre as propostas da reforma psiquiátrica e as formas de atendimento, colocando os profissionais em maior sintonia de pensamentos, críticas, avaliações e objetivos comuns.
Com relação às supervisões técnicas, os participantes avaliaram que o (a) profissional que irá coordenar precisa ser externo(a) à equipe de trabalho e necessita conhecer o funcionamento dos CAPS. Um atributo relevante é o de que esse(a) supervisor(a) tenha uma atitude de acolhimento com a equipe, mostrando-se aberto(a) para conhecer a experiência de trabalho da equipe e as relações estabelecidas, com uma atitude de respeito e consideração pelo trabalho desenvolvido. É ainda necessário que se tenha conhecimento sobre questões relativas à organização de trabalho e saúde do trabalhador.
Durante os relatos, alguns profissionais reconheceram a importância de cuidar de si para cuidar do outro. Sentem que atuam melhor no trabalho e nos atendimentos quando estão bem consigo mesmos, com uma disponibilidade maior em cuidar do outro (usuário). Essa consciência de cuidar de si faz-se mais presente quando há um caso que exige mais subjetivamente do profissional ou quando a saúde física começa a ser prejudicada.
Cada unidade dessa que eu trabalhava eu fui ver o quanto era importante a saúde do cuidador. Eu percebia assim muito claramente a diferença daquele cuidador que tava num momento de mais compromisso com ele mesmo, a diferença até de resposta dele com o menino que ele cuidava. (Psicóloga)
Machado (2006) sinaliza que o reconhecimento do próprio cuidado com a saúde possibilita a transformação do modo de trabalho, podendo conduzir o profissional a uma nova construção da identidade e, portanto, contribuindo para auto-realização no cuidado de si e do outro.
Relações interpessoais e trabalho em equipe
As relações interpessoais aparecem como um fator de relevância no ambiente de trabalho. Houve relatos que se contrapunham às experiências que cada profissional vivenciava na equipe. Observamos dois posicionamentos: ao mesmo tempo em que a atuação em equipe era sentida como um ponto de apoio, de alívio e de espaço de cuidado, eram feitas queixas de conflitos interpessoais, de injustiças na responsabilização pelo trabalho e de dificuldades para se chegar a um consenso.
A equipe cumpre um papel fundamental para produção do trabalho nos CAPS, pois na busca de um modelo que rompesse com o paradigma manicomial, a noção de equipe era determinante (Guljor, 2003, p. 146). Nesse sentido, apontamos, como a autora, para o fato de que a construção do novo modelo de assistência em saúde mental pressupõe uma atuação mais plural por parte dos profissionais. Dessa forma, a equipe é um dos atores principais dessa configuração (p. 85). Eu, por exemplo, quando eu coloco uma angústia, alguma coisa que está me desagradando na reunião, que compartilho com a equipe e que resolve, não deixa de ser um cuidado comigo, eu tô trabalhando mais tranqüila, alivia mais o dia-a-dia. (Psiquiatra)
Por esse motivo, a equipe surge como uns dos instrumentos-chave no cenário dos CAPS. Em todos os encontros realizados por nós com os três grupos, o assunto das relações entre os profissionais fazia-se presente durante as discussões, dando a entender que, tomando-se por base esses relacionamentos, a divisão de trabalho que eles estabelecem e o espaço já instituído nas reuniões já citadas, são constituídos o agir e a produção dos resultados no trabalho. Sendo assim, não é difícil imaginar que o entrelaçamento de visões distintas gera conflitos, como também traz o enriquecimento e o desafio de construir estratégias baseadas em pactuações do grupo, conseqüentemente, desenvolvendo a clínica institucional, fruto dessa dinâmica de relações (Guljor, 2003, p. 85).
Os participantes avaliaram as supervisões com profissionais externos(as) à equipe como uma estratégia importante na resolução dos conflitos das relações interpessoais. Desse modo, as verbalizações demonstraram que as supervisões desempenham papel fundamental na coesão e integração da equipe.
Após alguns encontros com os grupos pesquisados, algumas pessoas começaram a relatar suas percepções em relação ao modo de funcionamento de sua equipe. Indicaram as características que dificultavam as relações interpessoais, como, por exemplo, a intolerância com colega de trabalho, a exigência no sentido de que o colega tenha os mesmos comprometimentos, conhecimentos e responsabilizações, e o não-acolhimento dos colegas que se mostravam pouco produtivos.
A minha sensação desse funcionamento nosso é como de um trem mesmo, eu tô num trem numa velocidade e aí chegaram as pessoas, por exemplo, nossos colegas chegaram numa reunião que o pau tava quebrando, e então não deu pra dizer assim: olha, bem vindos, lindos, né?, não dava! Todo mundo falou rapidamente oi, tudo bem?; todo mundo falou, né?, mas continuou o pau quebrando. Não tem nada disso de acolhimento. (Psicóloga)
No relato dos participantes parecia não existir uma flexibilidade de alguns da equipe em relação aos trabalhadores que não possuíam uma implicação e disponibilidade aos objetivos e projetos preconizados pela reforma psiquiátrica. Ramminger (2005), em sua pesquisa sobre a saúde dos trabalhadores da saúde mental, mostra que alguns profissionais se esforçam para se adequar às exigências de outros colegas. Para a autora, dois caminhos diferentes podem abrir espaço para o adoecimento: o de não encaixar-se no modo de trabalho que a equipe de saúde mental exige e o aparecimento do trabalhador-militante, que, por seu envolvimento afetivo, sobrecarrega e desgasta o cotidiano de trabalho, por exigir mais tarefa e esperar que o colega também se responsabilize tanto quanto ele.
Ressaltamos que a tomada de consciência das características citadas anteriormente, percebidas por alguns profissionais, foi importante para o processo de mudança do olhar e agir com o colega que está inserido no mesmo ambiente de trabalho, o que possibilitou novas atitudes na relação com a equipe.
Sofrimento psíquico
Sabemos que em qualquer relação humana há mobilizações de conteúdos psíquicos que ativam afetos e representações que se estabelecem nos vínculos, e assim não é diferente o contato/vínculo entre profissional e usuário, profissional e profissional, profissional e instituição (Fraga, 1997).
Logo, na análise dos dados, identificamos nas verbalizações dos participantes indicadores de sofrimentos psíquicos que são vivenciados no cotidiano de trabalho, envolvendo as seguintes relações: profissional-usuário, profissionalprofissional (relações interpessoais) e profissional-instituição (organização do trabalho), sendo que a relação profissional-usuário aparece mais enfatizada e mobilizadora de fortes sentimentos.
Sinto também muito esse sofrimento, sinto essa angústia e me sinto muito mal, porque eu quero ajudar ele (usuário). Eu acho que aqui a gente se envolve até mais, conversa mais com os pacientes e até leva esses problemas com a gente, fico pensando o que eu posso fazer, como ajudar, é muito sofrido. (Enfermeira)
Ter um espaço, como já proposto pelos participantes na categoria anteriormente citada, para que os profissionais de saúde aprendam a lidar com questões emocionais geradas pelo ambiente de trabalho, pode contribuir para o alívio de tensões. Osório (2003) corrobora com essa idéia ao afirmar que a equipe precisa ser estimulada a reciclar conteúdos e sentimentos relativos ao trabalho, tendo por base sua própria competência relacional.
Outro fator de sofrimento relacionado à relação profissional-usuário ocorre quando o tratamento planejado que o profissional faz (tanto do usuário quanto da família) não atende ao esquema que ele espera, e, portanto, não corresponde a suas expectativas e necessidades na relação estabelecida.
A atuação do profissional de saúde mental no papel de técnico referente do usuário aparece, para maioria dos participantes, como causadora de maiores responsabilizações durante o tratamento, o que resulta no aumento de preocupações e angústias.
A forma como eu me ligo a determinados usuários me faz sofrer às vezes, principalmente quando sou referente. Durante um bom tempo a minha relação com um determinado usuário foi muito complicada, primeiro porque eu me interessei muito pelo caso e depois porque eu me sentia responsável por diminuir aquele sofrimento, sabe? (Prof. Ed. Física)
No indicador dificuldades nas relações interpessoais de trabalho existem mobilizações de sentimentos na relação profissional-profissional, demonstrando que esse aspecto também merece atenção no cotidiano de trabalho. Como foi visto na categoria anterior, o convívio relacional é fonte de apoio bem como de conflitos. Portanto, a falta de integração da equipe e de espaços de escuta e reflexão podem ser identificados como fatores que contribuem para o adoecimento dos trabalhadores (Ramminger, 2005, p. 85).
A baixa-remuneração, a dupla jornada de trabalho e a falta de reconhecimento no trabalho produzem insatisfações e desmotivações ligadas ao exercício profissional, gerando sofrimentos ao lidar com a realidade em que o profissional de saúde está inserido no atual momento de nossa sociedade.
Pensar no sucateamento da saúde, entende? Eu acho que isso é a maior causa, sabe? É um dos fatores que mais faz o profissional de saúde sofrer. [...] A gente perde a qualidade de vida, de saúde mesmo, da condição de trabalho. (Musicoterapeuta)
Os participantes se sentem desmotivados com o seu campo de atuação na saúde, com as condições materiais, financeiras e psicológicas que precisam enfrentar no cotidiano do ambiente laboral e, conseqüentemente, devido ao sofrimento produzido por essas adversidades. Essas situações, no entanto, fazem parte da organização do trabalho, estabelecendo o vínculo entre profissionalinstituição.
Dificuldades na atuação profissional no novo modelo de atendimento em saúde mental
Durante os relatos nos grupos, houve concordância entre todos os participantes, no sentido de que há, de fato, necessidade de investir em programas que possam capacitar os profissionais a atuar no campo da saúde mental. Percebemos que as demandas para a implantação das capacitações são mais reivindicadas por trabalhadores recém-chegados ao serviço, pois, inicialmente, até mesmo pela falta de preparação durante a formação, ficam inseguros e confusos. Isso, muitas vezes, gera dificuldade de integração na equipe e insegurança no agir com o usuário.
Cheguei aqui há pouco tempo e no momento me sinto confusa, sem saber direito como aproveitar as coisas que eu sei. [...] Tem pouco tempo que estou trabalhando aqui no CAPS e também na área da saúde mental. E eu ando sentindo que eu levo muita coisa pra casa, dos usuários daqui, deve ser o começo, né?; porque acho que depois eu devo acostumar. (Artista Plástica)
Nos encontros percebemos também dois grupos com diferentes formas de atuação: de um lado, havia profissionais experientes, que fizeram a opção por aturarem em um novo modelo assistencial e acreditaram no trabalho que estavam desenvolvendo; de outro lado, profissionais sem experiência do campo da saúde mental, ou seja, com dificuldade para lidar com a clientela do CAPS escolhido, tendo em vista os objetivos que foram traçados pela reforma psiquiátrica. Nesse processo, houve relatos de profissionais insatisfeitos com projetos ou não-compatibilização com a entrada de outros colegas, o que faz com que algumas equipes tenham maior rotatividade de profissionais. Uma das razões apontadas para esse fato foi o pouco investimento na capacitação da equipe.
Outra questão refere-se às limitações dos serviços relacionados ao campo da saúde mental e, sobretudo, das ações de suporte social na rede de atendimento. Esse é, particularmente, o fator apontado pelos participantes como um bloqueador da atuação profissional, gerando descrédito no papel desenvolvido pelas políticas públicas.
A atuação interdisciplinar entre os participantes foi considerada como um caminho a se conquistar, uma trajetória que a equipe tenta fazer; no entanto, ainda encontram dificuldades nessa prática.
Os participantes representantes da área da educação física relataram a ausência de conhecimento que os profissionais dos CAPS deveriam ter, referente à atuação do professor de educação física no campo da saúde mental. Esse dado sinaliza as dificuldades do diálogo entre as áreas da saúde e educação e também diz respeito à prática interdisciplinar e à troca de saberes, como visto anteriormente.
O indicador dificuldades de trabalhar com colegas que não estão preparados tecnicamente para atuar na saúde mental reflete alguns dos obstáculos no relacionamento entre a equipe e a carência de capacitação para os profissionais atuarem no campo da saúde mental. Essa situação impede a integração da equipe e facilita a formação dos subgrupos.
Aliam-se a esse quadro as dificuldades que se estabelecem na equipe pela falta de preparo e capacitação de alguns profissionais e a ausência de políticas públicas que consigam modificar tal situação. Portanto, é prioritário que os serviços desenvolvidos na atenção psicossocial sejam avaliados na tentativa de identificar as intervenções possíveis, a fim de resgatar o que há de instituído em nossas práticas, para diferir e produzir novos modos de agir, novas estratégias de intervenção/invenção (Silveira & Vieira, 2005, p. 99).
Considerações finais
O Movimento da Reforma Psiquiátrica evidencia a importância da construção de espaços para problematização e discussão do trabalho em saúde mental, criando novos dispositivos de atenção psicossocial ao atendimento do usuário. Assim, o foco deste artigo esteve voltado à reflexão e à vivência das práticas de cuidado e os desafios enfrentados pelos profissionais nesse novo campo de atuação.
Neste estudo várias categorias profissionais estiveram representadas em todos os grupos. Foi possível perceber que os participantes mais recentes (um mês a um ano) apresentaram maior disponibilidade em aprender e conhecer sobre o campo de trabalho, no entanto sentiam-se mais inseguros, ansiosos e preocupados com relação aos atendimentos, já que não se sentiam preparados para atuar nesse novo modelo de atenção psicossocial. Os profissionais que já estavam há mais tempo (dois a quatro anos) se mostravam mais descrentes e insatisfeitos com os órgãos públicos e com as poucas ações voltadas para a área da saúde mental, porém acreditavam nas propostas da reforma psiquiátrica.
Nos documentos referentes às ações de atenção à saúde do trabalhador que foram incorporados ao discurso do movimento da reforma psiquiátrica encontramos uma preocupação desse movimento com a saúde mental dos profissionais, existindo diretrizes que apontam para a necessidade do desenvolvimento de estratégias para acompanhar a saúde mental do trabalhador. No entanto, perante as regulamentações pesquisadas, a estruturação dessas ações ainda estão no patamar de planos a serem implementados.
Com relação aos espaços de cuidado com a saúde mental do trabalhador, instituídos nos locais de trabalho, conforme apontado pelos participantes, cumprem papel de destaque a equipe, a supervisão e a capacitação. A integração da equipe permeada pelos bons relacionamentos interpessoais, com reuniões para discussão de casos e práticas do serviço, contribui para o sentimento de apoio e realização com o trabalho. Diante disso, é preciso lembrar que dentro desse novo campo de atuação, a reunião de equipe constitui um instrumento de conquista importante para o espaço do trabalhador.
O tema trabalho em equipe e relações interpessoais esteve presente em todas as categorias selecionadas para este estudo. Logo, a equipe de trabalho é tida como um dos instrumentos-chave no cenário dos CAPS. No modelo de atendimento psicossocial, preconizado pela Reforma Psiquiátrica, aparecem novas formas de divisão de tarefas entre a equipe que demandam mais responsabilidades e encargos, como, por exemplo, o papel de técnico de referência, tão comentado pelos participantes dos grupos. Desse modo, a criação de momentos que permitiam a reflexão e a avaliação dos serviços que cada equipe desenvolve em sua unidade gera integração entre os profissionais e maior clareza do trabalho desenvolvido e, conseqüentemente, resultados mais enriquecedores.
A supervisão foi avaliada, pelos participantes, como suporte tanto para os atendimentos quanto nas relações interpessoais, garantindo a continuidade do trabalho e das dificuldades encontradas. Consideraram, que, para um melhor aproveitamento, os (as) profissionais responsáveis pelas supervisões deveriam ser externos(as) à equipe de trabalho. Porém, esses(as) profissionais precisam de conhecimento sobre o modo de funcionamento dos CAPS, da organização do trabalho, da saúde do trabalhador, além de uma atitude de acolhimento e respeito pela equipe.
Os participantes apontaram outra função importante da supervisão: amenizar o sofrimento psíquico a que estão sujeitos no cotidiano laboral. Sofrimento psíquico neste estudo foi expresso por referências a angústias, preocupações, decepção, frustração, dificuldades nas relações, responsabilização excessiva, insatisfações e falta de reconhecimento, dentre outros. O espaço da supervisão reservado aos participantes contribui para o alívio desses sentimentos.
O papel da capacitação e qualificação continuada foi considerado pelos profissionais como auxiliar da formação técnica para atuar no campo da saúde mental, permitindo a eles o mesmo acesso de informação, o que reflete maior entrosamento entre equipe e melhor desenvolvimento no trabalho.
Notamos que um dos motivos da carência do conhecimento das novas práticas instituídas no campo da saúde mental é devido aos cursos de formação/ graduação que, em sua maioria, são voltados para o modelo biológico e medicamentoso, e não atualizam as novas formas de atenção à saúde. Assim, grande parte das instituições de ensino se apresenta desatualizada para as exigências do mercado profissional na área de saúde. Desse modo, fazem-se necessárias reformas curriculares, com o objetivo de reduzir o distanciamento entre a teoria e a prática, demandando a inserção do tema saúde mental como conteúdo permanente.
Outro ponto importante foi detectar que os profissionais de saúde não são formados e incentivados para pensar neles mesmos enquanto cuida-dores e, conseqüentemente, como pessoas que também necessitam de cuidados. Durante o curso de graduação, principalmente na área de saúde mental, o profissional precisa ter a oportunidade de aprender e ampliar habilidades que contribuem para sua autopercepção, desenvolvendo a consciência e o agir éticos.
Além desse descomprometimento entre os profissionais, existe a falta de políticas públicas que integrem ações à atenção da saúde do trabalhador de saúde mental. Nesta investigação, foi possível evidenciar que não estão efetivamente regulamentadas a estruturação e a sistematização de políticas e ações voltadas à saúde dos trabalhadores. De tal modo, foi enfatizada a necessidade de uma política do desenvolvimento dos serviços substitutivos, com os devidos recursos financeiros voltados a essa área, como forma de consolidar o movimento da reforma psiquiátrica. Como vimos, a falta de estruturação dessas ações reflete no cotidiano desses serviços.
As condições de trabalho vivenciadas pelos profissionais de saúde também revelam o descrédito com o reconhecimento desses profissionais. A baixa remuneração e a dupla/tripla jornada de trabalho confirmam esse descaso. A maioria dos participantes relatou ter dupla jornada de trabalho e não considera que a remuneração seja justa. Não podemos deixar de citar que essa realidade, por si só, desmotiva e decepciona a atuação na área da saúde, tornando o vínculo estabelecido entre profissional-instituição enfraquecido, uma vez que esta dimensão influencia a vida pessoal cotidiana do trabalhador. Assim sendo, é indispensável a regulamentação de investimentos e verbas destinadas à implantação de programas voltados à atenção da saúde do trabalhador nos serviços substitutivos.
Tomando como base de observação a experiência vivida com os grupos de profissionais de saúde, evidenciamos que a construção de espaços para discussões e reflexões das práticas de cuidado contribui para a percepção de
um novo fazer e agir. Esse novo olhar gera mudanças na atuação do profissional com a equipe, com o trabalho desenvolvido com o usuário e consigo mesmo, na forma de procurar identificar as atividades que proporcionam o equilíbrio psíquico e emocional.
Por fim, ressaltamos a relevância dos serviços substitutivos como novo campo de atuação profissional dentro da saúde mental. Com esta investigação, esperamos ter discutido e contribuído para o repensar das práticas que vêm sendo desenvolvidas e para as possíveis mudanças que necessitam ser implementadas nessa trajetória.
No entanto, muitas outras dimensões precisam ser melhor pesquisadas, para que possamos pensar a complexidade dessa realidade de forma mais completa possível. Para além do recorte feito nesta investigação, dispomos, a partir de agora, de outros materiais (dados) que deverão ser trabalhados para desvelar, contribuir e aperfeiçoar esses mecanismos de ação em saúde mental. Porém, tendo como centro o trabalhador que assim se prontifica, pois podemos afirmar, conclusivamente, que são de fato pessoas especiais.
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Texto recebido em outubro/2007.
Aprovado para publicação em maio/2008.
*Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica e Cultura pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, membro do Grupo de Intervenção Precoce nas Psicoses GIPSI/UNB. E-mail: elisapsi@gmail.com
**Doutor em Psicologia Clínica, professor adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, MA em Filosofia e Ética da Saúde Mental (Inglaterra), coordenador da Clínica Escola (UnB) e do Grupo de Intervenção Precoce nas Psicoses (Instituto de Psicologia UnB). E-mail: leno@unb.br
1Durante a realização desta investigação percebemos que, no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, existem relações que perpassam pelo cuidado e descuidado pessoal, institucional e relacional. Assim, consideramos o uso deste termo mais adequado para a realidade que encontramos.
2A utilização deste termo é para marcar, claramente, o que a palavra, por si só, já traz como possível conceito. Cuidador reflete, em princípio, o cuidar da dor, seja física ou emocional.
3Consideramos importante ressaltar este termo para reafirmar que a desconstrução das práticas de cuidado envolve também o questionamento do conceito de loucura e da forma generalizada que é repassada a toda sociedade. Dessa maneira, adotamos a consideração feita por Costa (2003), em que o autor apresenta o termo loucura (...) sob uma perspectiva mais ampla, multicausal, multidisciplinar e questionadora (p. 21).