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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.3 Belo Horizonte Apr. 2010

 

ARTIGOS

 

Saber e verdade no sonho da injeção de Irma

 

Knowledge and truth in the dream of Irma’s injection

 

Saber y verdad en sueño de inyección de Irma

 

Jésus SantiagoI*; Carolina Esselin de Sousa LinoII**

IUniversidade Federal de Minas Gerais.
IIUniversidade Federal de Minas Gerais.

 

 


RESUMO

A experiência da psicanálise, sendo a experiência do inconsciente, foi inaugurada por Freud na busca por uma verdade desconhecida, e isso resultou em uma relação especial com o saber. Com o desenvolvimento da psicanálise e as contribuições de Lacan, o inconsciente foi identificado à dimensão do saber. Com o objetivo de delinear a dimensão do saber em suas relações com a verdade, recorremos ao sonho da injeção de Irma. Privilegiamos a emergência da fórmula da trimetilamina no sonho e cotejamos com as contribuições lacanianas sobre o tema, principalmente os seminários 16 e 17. A partir do estudo foi possível esclarecer a dimensão do saber na psicanálise como relativa ao inconsciente e em íntima relação com o gozo, e também situar a sua mobilização com base na relação estabelecida com a verdade como causa.

Palavras-chave: saber, verdade, gozo.


ABSTRACT

The experience of Psychoanalysis, being the experience of the unconscious, was inaugurated by Freud in search of a truth unknown, and this resulted in a special relationship with the knowledge. With the development of Psychoanalysis and Lacan’s contributions, the unconscious was identified with the dimension of knowledge. In order to clarify the knowledge’s dimension in its relation with truth, we have used the dream of Irma’s injection. We give preference to emergency of the trimethylamine’s formula in the dream, and equate with lacanian contributions, especially the Seminars 16 and 17. From the study it was possible clarify the dimension of knowledge in Psychoanalysis as on the unconscious and intimate relationship with the enjoyment, and also situate its mobilization from the relationship established with the truth.

Keywords: knowledge, truth, enjoyment.


RESUMEN

La experiencia del psicoanálisis, siendo la experiencia del inconsciente, fue inaugurada por Freud en búsqueda de una verdad desconocida, y esto dio lugar a una relación especial con el saber. Con el desarrollo del psicoanálisis y las contribuciones de Lacan, el inconsciente fue identificado en la dimensión del saber. Con el objetivo de delinear la dimensión del saber en sus relaciones con la verdad, hemos utilizado el sueño de la inyección de Irma. Damos preferencia a la aparición de la fórmula trimetilamina en el sueño, y cotejamos con contribuciones lacanianas sobre el tema, principalmente los Seminarios 16 y 17. Desde el estudio podría aclarar la dimensión del saber en el Psicoanálisis como en el inconsciente y su íntima relación con lo gozo, y también situar su movilización a partir de la relación establecida con la verdad.

Palabras clave: saber, verdad, gozo.


 

 

Introdução

A hipótese do inconsciente sugere uma posição de ignorância especial do sujeito diante daquilo que o determina, uma vez que algumas conexões essenciais do sintoma neurótico são recalcadas. A experiência psicanalítica inclui uma nova relação com o saber com base na consideração do não saber. Jacques Lacan (1998 [1966])1 afirma que o que distingue um discurso de outro, totalizando quatro estruturas, é justamente a relação estabelecida entre o saber e a verdade como causa. Tal afirmação salienta a importância desses conceitos no deslindamento de um discurso.

Na Psicanálise, a noção do saber ganha uma definição conceitual a partir dos seminários lacanianos posteriores. Aí fica claro que a noção de saber se refere ao que se constrói pela ligação entre um significante e outro. Portanto, vincula-se mais à estrutura do dizer do que ao conteúdo do que se diz. "O que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber e não do conhecimento ou da representação. Trata-se precisamente de algo que liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2" (Lacan, 1992 [1969-1970], p. 28). O significante, por sua vez, é abordado em sua materialidade sonora, ou seja, destituído de uma significação ou de qualquer sentido predefinido.

O significante é o recurso usado pelo saber na inscrição enigmática de uma verdade sempre parcial. Sendo o significante não idêntico a si mesmo, e operando regido por uma lógica da diferença, ele funciona na base da relação com outro significante, ou seja, na base de, no mínimo, dois significantes, mantendo assim sempre uma parte do dizer que ainda não foi dita. Lacan localiza o lugar da verdade nesta dimensão que falta ao saber.

Interrogamos, assim, a dimensão do saber na Psicanálise quando tomamos como referência o modo de relação com a verdade. Com o objetivo de oferecer subsídios para uma possível resposta a essa questão, utilizamos como campo de pesquisa o sonho freudiano da injeção de Irma cotejando com algumas contribuições lacanianas.

O sonho da injeção de Irma está relatado na Interpretação dos Sonhos, publicado em 1899, com a data de 1900, e ocorreu a Freud na noite de 23 para 24 de julho de 1895, na estação de Bellevue, a estação de veraneio em Viena, aonde ia frequentemente durante as férias. Irma era uma amiga da família de quem Freud tratava. Segundo historiadores, o nome verdadeiro dela era Emma Eckstein. Freud, em uma carta endereçada a Fliess, datada de 12 de junho de 1900, identifica esse sonho como responsável pela inauguração da Psicanálise, e a sua análise considerada satisfatória, porém incompleta, marcaria, pois, a descoberta do segredo dos sonhos. Isso quer dizer que alguma coisa não trivial foi revelada a Freud nesse momento, digno de que, a partir daí, um novo discurso fosse inaugurado.

Podemos identificar, pelo menos, três aspectos principais presentes no sonho. Um deles é remetido ao fato de que Irma continua doente apesar do tratamento despendido por Freud e se refere à questão dos erros médicos presentes em algumas experiências profissionais vividas e relembradas por Freud, especialmente aquela conhecida na literatura psicanalítica como o "episódio da cocaína"2. O segundo aspecto diz respeito tanto à dificuldade de examinar a garganta da paciente, que se recusa a abrir a boca, quanto da imagem inominável que surge quando o exame enfim se inicia. Essa parte do sonho faz Freud se lembrar da dificuldade de ter acesso às mulheres, especialmente sua esposa, que, na época do sonho, estava grávida. Freud associa o fato de Irma não colaborar com o exame no sonho a pacientes que não lhe falavam o quanto deveriam. Em torno da imagem de "extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas crespas" estampada na garganta, seguem associações com doenças que acometeram alguns pacientes de Freud e também a própria filha. Uma das pacientes que ficara muito mal devido ao tratamento com sulfonal tem o mesmo nome da filha de Freud, Mathilde, o que o faz pensar que estava sendo castigado pela sua falta de consciência médica. O terceiro aspecto contemplado no sonho, e que fecha a sequência do exame médico nele realizado, enfoca a emergência da fórmula química da trimetilamina em "grossos caracteres". É sobre as condições de emergência dessa fórmula que gostaríamos de nos deter neste trabalho.

 

A verdade como causa do saber

No sonho, ao encarar a garganta obscura de Irma, Freud encontra-se diante do impossível de saber e se dirige então à busca da palavra que mediaria essa falta no simbólico. Com base na indicação de Lacan, fazemos aqui um paralelo entre a emergência da fórmula da trimetilamina e a inauguração do inconsciente. A inauguração do inconsciente se dá no encontro com a sexualidade para a qual não há uma representação suficiente. Nesse momento, o processo de recalque entra em cena. Inicialmente, o encontro do sujeito com a sexualidade é marcado apenas por uma ausência de representação que lhe causa susto. Essa lacuna, em si mesma, não pode ser de fato recalcada, sendo necessária uma representação que a delimite. Tal representação, quando acionada posteriormente, desperta uma excitação sexual que não aparecera no acontecimento anterior de susto e acaba por ser recalcada conforme evoca o equivalente à ausência da representação. De acordo com Freud (1974 [1915]), o recalque consiste em interditar ao representante psíquico da pulsão a entrada e admissão no consciente. Assim, o inconsciente acolhe o representante que se viesse, à consciência, causaria mal-estar por remeter a uma lacuna da dimensão simbólica. Os outros representantes que podem estabelecer relação com esse primeiro representante estão destinados a se associarem a ele, formando uma cadeia simbólica inconsciente.

O sonho da injeção de Irma, especialmente a garganta examinada, ilustra o encontro enigmático com a sexualidade para a qual nenhuma representação é adequada. A proposta freudiana na época era a de que o sintoma neurótico manifestava a presença de certas representações simbólicas desconhecidas pelo sujeito e que um ganho de saber seria o caminho para a cura. O inconsciente, no aspecto de um reservatório de representações simbólicas que tiveram que ser excluídas, traz a dimensão de um saber não sabido e, com a verbalização da palavra adequada, um ganho de saber seria esperado, acreditando-se que assim o sintoma poderia ser suprimido. A intenção psicanalítica, com base nesse ponto de vista, é de engatar o sujeito na construção do saber que ficou esquecido por imposição do recalque, na esperança de encontrar a representação referente ao sexo. De acordo com Lacan (1985 [1972-73], p. 119), "O inconsciente é suposto pelo fato de que, no ser falante, há, em algum lugar, algo que sabe mais que ele". Mas, afinal, o que tornaria viável o investimento na construção de um saber desconhecido, tal como observamos Freud no sonho, em posição de ignorância e instigado com a opacidade da garganta de Irma?

Freud, no contexto de sua vida, desperta daquele momento, está tão apaixonado pela pesquisa e afoito para saber, que ele não se detém na cena de horror da garganta de Irma. O mal-estar diante daquilo que ele viu como real, atualizado pelo sexo feminino, clama por uma mediação simbólica, ou seja, um saber que explicasse a infecção constatada e assim retardasse a morte iminente da paciente. A seguir, Freud reveste a imagem assustadora da garganta de Irma com a fórmula química escrita da trimetilamina, que surge junto com a causa da doença da paciente. Essa fórmula, além de ter outras referências, é um elemento da decomposição do esperma e, por isso, se refere à causa sexual da doença de Irma. O que interessa a Lacan (1985 [1954-55]) é que a fórmula remete à "palavra por excelência", ou seja, à própria dimensão de linguagem do inconsciente.

De acordo com o próprio Freud (1976), os enigmas do sexo são os principais mobilizadores do saber. Ele enfatiza em seu texto O esclarecimento sexual das crianças (1907) que, quanto mais a verdade sobre o sexo é ocultada das crianças, mais se intensifica nelas o desejo de conhecimento3. Assim, o interesse intelectual da criança pelos enigmas do sexo e o seu desejo de conhecimento incidem, segundo a perspectiva freudiana, mais fortemente nas dúvidas e curiosidades a respeito do nascimento dos bebês e também sobre ter ou não um pênis. Tais curiosidades na infância são, na vida adulta, o estímulo para a busca do conhecimento e projetos científicos.

Para Lacan o objeto desconhecido responsável pela mobilização do saber recebe o estatuto de uma verdade. O enigma, como pergunta que nos força a responder, é um corolário da verdade como causa do saber. A verdade é uma pergunta que desafia o saber, e podemos usar, como fez Lacan, o exemplo da Quimera no mito de Édipo para explicar tal concepção. A Quimera propõe um enigma ao homem Édipo e que se assemelha a uma pergunta que já contém, de forma enigmática, a resposta e cuja revelação libertaria Tebas da peste que a assolava. Assim, a função do enigma é um "semidizer", ou seja, um dizer que se divide, enunciando-se de forma obscura. Essa parte obscura é justamente o que caracteriza a dimensão da verdade: "Em suma, o semidizer é a lei interna de toda espécie de enunciação da verdade, e o que melhor a encarna é o mito" (Lacan, 1992 [1969-70], p. 103). Baseando-se em Lévi-Strauss, Lacan conclui que o mito mostra a verdade em uma alternância de coisas estritamente opostas. Tal como a Quimera faz aparecer um meio-corpo pronto a desaparecer completamente logo que surge, a verdade está condenada a nunca poder ser dita a não ser parcialmente. É essa condição de obscuridade da verdade o que vai colocar em marcha a construção simbólica, funcionando então como causa do saber.

A noção de gozo no ensino de Lacan também serve como paradigma a partir do qual podemos abordar outras condições do sujeito do inconsciente, inclusive a sua relação com o saber. Essa noção está em consonância com o que Freud chamou de além do princípio do prazer. Se, por um lado, temos o gozo sexual, limitado e franqueado pelo princípio do prazer, para além dele temos um Outro gozo que ultrapassa a tensão usual da vida. Pode-se entender o gozo como satisfação da pulsão ou como aquilo que resta da conformação da libido em desejo, ou ainda como limite do prazer por ser demasiado intenso (Miller, 2000). Na fase do ensino lacaniano que estamos priorizando neste trabalho, qual seja, dos Seminários 16 e 17, defende-se a ideia de que há uma primitiva relação dos significantes com o gozo. A entrada do sujeito no campo da articulação significante e, portanto, no campo do saber, depende da separação entre significante e gozo. A proibição fundadora barra o gozo, lançando o sujeito no campo da linguagem. O lugar criado com a subtração do gozo é ocupado pela dimensão da verdade. É por isso que Lacan estabelece entre a verdade e o gozo uma íntima relação.

De acordo com Lacan (2008 [1968-69], p. 312), foi decisivo o passo dado por Freud ao revelar a relação entre a curiosidade sexual e toda a ordem do saber marcado pela falta de gozo. O gozo é recalcado porque ele traz uma desordem na sociedade e na estabilidade simbólica que provê o mundo de sentido. Com a exclusão do gozo, então, a verdade o substitui, possibilitando a construção de um quadro simbólico que representa a realidade. O saber é o que estabelece as relações entre os elementos do quadro. Mas, se para a fundação do sujeito de um saber é preciso que ele renuncie ao excesso de gozo, então, como podemos entender os efeitos do retorno do gozo? Na neurose, o que fica sem representação insiste em retornar ao simbólico e, ao parasitar o significante, o gozo causa ao saber uma inércia própria: "Se o gozo é proibido, claro que é apenas por um primeiro acaso, uma eventualidade, um acidente, que ele entra em ação" (Lacan, 1992 [1969-70], p. 47).

De acordo com a interpretação de Jacques Alain-Miller, em seu artigo "Sobre o transfinito" (1993), a redução do gozo necessária para a fundação do saber não o esgota todo e, assim, o objeto mais-de-gozar atualizado na articulação significante refere-se a um excedente do gozo que não foi trocado pelo significante. A tradução do gozo em saber, de forma a estabelecer o quadro da realidade, não se dá sem que uma reserva de parte do gozo seja mantida intacta, funcionando como motor de continuidade da articulação significante. É aí que encontramos o mais-de-gozar como objeto paralelo ao saber que traz um sentido obscuro que é o da verdade: "É com o saber como meio do gozo que se produz o trabalho que tem um sentido, um sentido obscuro. Esse sentido obscuro é o da verdade" (Lacan, 1992 [1969-70], p. 48). Isso significa que o saber é inaugurado em busca do gozo que ficou excluído da dimensão simbólica, mas o que ele de fato produz é a verdade como atualização da face refratária ao saber. A verdade como enigma, como sentido obscuro do gozo que desafia o saber, mantém a articulação simbólica funcionando a partir de sua impossibilidade, ou da não realização de seu intento. Nesse sentido, a verdade é causa do saber conforme mantém relação com o gozo.

Levantamos a hipótese de que a garganta de Irma, no sonho, atualiza o gozo que transborda nos sintomas histéricos, nas paralisias, convulsões e cenas nas quais essas mulheres, em crise sem causa aparente, contorciam-se aos olhos de Freud. Enquanto o gozo ultrapassa as leis de contenção do simbólico, tal presença avassaladora clama por uma representação que a delimite. Dessa forma, a associação se dá, para Freud, como iminência da morte de alguns de seus pacientes, fazendo emergir a trimetilamina que, além de outras referências, faz Freud se lembrar mais uma vez de suas experiências profissionais que quase levaram alguns pacientes à morte.

 

A produção do saber no discurso da histeria

Não podemos desconsiderar o fato de que, entre as condições de emergência da fórmula da trimetilamina no sonho com Irma, temos a posição histérica da paciente4. Lacan (1992 [1969-70]) entende que, além da dialética com o gozo, o saber é efetivamente mobilizado pelo discurso da histérica. Pela escuta interpretativa dispensada às pacientes histéricas e, particularmente, pelo caso Dora, Freud, apesar de tardiamente, percebeu que, detrás do sofrimento dessas mulheres, estava o enigma do órgão sexual feminino. Dora foi a paciente de Freud que, instigada pelo papel que a namorada de seu pai desempenhava para ele, desenvolveu sintomas histéricos. A interrogação histérica sobre o valor da mulher na relação sexual faz com que Lacan localize a produção de saber nesse discurso. No Seminário 17, a histérica é apresentada justamente como veiculando um discurso que mostra o saber derrapando com base no que ela, como mulher, pode abrir para o gozo que escapa da linguagem. A histeria coloca, no horizonte do saber, o gozo absoluto como ideal, fazendo engatar uma articulação simbólica com a qual o sujeito nunca estará satisfeito, já que o absoluto postulado pela histérica como meta do saber pressupõe, de saída, uma impossibilidade. Essa relação da histérica com o gozo coloca uma barreira ao saber e, assim, instiga o seu parceiro. "Vemos então a histérica fabricar, como pode, um homem – um homem movido pelo desejo de saber" (Lacan, 1992 [1969-70], p. 31).

Com base na consideração da histeria como discurso que faz o saber derrapar, acreditamos que a cena do sonho na qual Irma resiste em abrir a boca, evitando o exame, representa o desafio ao saber de Freud. Ao demonstrar que há um gozo ainda não alcançado, Irma mantém instigado o pesquisador Freud na produção de significantes. O desafio da histérica ao saber pode também ser ilustrado pela provocação de uma paciente de Freud: "'O senhor sempre me diz’, começou uma inteligente paciente minha, 'que o sonho é um desejo realizado’. Pois bem, vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto – um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor enquadra isso em sua teoria?" (Freud, 1987 [1900], p. 161). A histérica parece realmente nutrir uma insatisfação com o alcance do saber e, quando Irma mantém a boca fechada para protestar contra a função fálica de significação, ela aponta a impotência do significante diante do seu gozo. A histérica, então, deseja inserir o feminino dentro das referências do significante por meio da estruturação lógica de sua lacuna ou deseja manter o feminino como inalcançável? Quando Irma resiste ao exame proposto por Freud, podemos pensar que ela não quer ter sua sexualidade inserida nas referências de um saber e, dessa forma, ela está apontando a Freud o fracasso de seu saber e a impotência do significante fálico diante da mulher. Nenhum saber produzido pelo mestre da histérica será suficiente diante do gozo que ela encarna.

Se a histérica constrói um homem movido pelo desejo de saber, então, no caso da Psicanálise, esse homem foi Freud, que podemos pensar ter sido assim instigado a procurar por um saber que reordenou a relação do sujeito com a verdade. Freud foi tocado pelo discurso da histeria e assim mobilizado em busca de saber o que restava como desconhecido. Ao procurar pelo que escapa ao saber, Freud encontrou o inconsciente como um saber não sabido. A histeria exerce, sem dúvida, uma função essencial no movimento inicial da Psicanálise, mas o sonho da injeção de Irma, assim como também Lacan, nos aponta outra condição essencial na relação da Psicanálise com o saber. Trata-se do sujeito suposto saber ilustrado pela presença de Fliess como figura que, aos olhos admirados de Freud, é suposto detentor do saber.

 

A suposição de saber: o exemplo de Fliess

Lacan (2008 [1968-69]) nos alerta que a incitação ao saber não depende apenas da histerização do discurso. Tal investimento depende também da função do sujeito suposto saber, que, embora seja projetado na figura do analista, trata-se, no fundo, do código da linguagem pressuposto na sustentação da fala. A noção do conceito lacaniano de sujeito suposto saber diz respeito a um saber que, mesmo desconhecido, subsiste nas relações entre um significante e outro sustentado pela estrutura da linguagem. Pela dificuldade de constatar a independência da significação que se deslinda autonomamente na articulação significante, o código para a decifração é atribuído a uma pessoa especial que é suposta detentora do saber. A construção de um saber que ainda não se sabe depende, então, da hipótese de um lugar no qual, supostamente, tudo se sabe.

A experiência da Psicanálise, sendo a experiência do inconsciente, foi inaugurada por Freud na busca por um saber desconhecido, e como não poderia deixar de ser, ele também teve seu sujeito suposto saber para incitá-lo nessa busca. O sonho com Irma, conforme reconstrói o cenário do movimento inicial da Psicanálise, traz a nós indicações nesse sentido. Nas "extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas crespas" que Freud vê no fundo da garganta de Irma, a única coisa reconhecível, ou seja, a única referência concreta é que, "evidentemente, estavam modeladas nos cornetos do nariz". O mal-estar freudiano, conforme salientou Lacan (1989 [1954-55]), é desencadeado pela falta de referente para a imagem insituável do órgão sexual feminino no qual haveria de ser localizada a causa da doença. As crostas, ou as estruturas crespas, não significam nada, são palavras genéricas. Notem que apenas os cornetos do nariz são identificados como tais, e que, sendo o nariz uma especialidade de Fliess, esse detalhe do sonho é uma referência ao seu saber de rinolaringologista.

Freud recorre à fórmula da trimetilamina como recurso para nomear o que vira e, em sua análise do sonho, relata que essa parte do sonho é também uma referência a Fliess, que compartilhara algumas ideias sobre a química relativa aos processos sexuais e mencionara a trimetilamina como um de seus componentes. Na investigação realizada por Freud no sonho com Irma, temos, então, dois achados, o nariz e a trimetilamina, retirados explicitamente do saber de Fliess. Diante da falta de referente para situar a garganta de Irma, ou seja, a sexualidade responsável pelo seu sofrimento, Freud busca o saber de Fliess na esperança de que pudesse encontrar uma resposta para esse enigma. O próprio Freud comenta que, diante de dificuldades nas suas formulações, ou quando só encontra críticas ao seu trabalho e ninguém o compreende, ele encontra refúgio no amigo Fliess.

No sonho com Irma, diante da conversa absurda que Freud presencia entre Otto, Leopold e Dr. M., ele sai de cena e depois retorna com uma referência ao saber de Fliess, como que para dar sentido à discussão. É interessante notar que esse direcionamento se dá no momento em que o saber dos médicos presentes na cena, incluindo aí o próprio Freud, mostrou-se falho e contraditório. A instauração do sujeito suposto saber em Fliess é correlato da falta do saber de Freud que, sem garantias, e um tanto inseguro, busca aquele que sabe para sustentar sua busca que desemboca na fórmula da trimetilamina. Fica claro que essa falta de saber de Freud refere-se ao feminino, já que foi a sexualidade da mulher que lhe colocara em posição de ignorância e que era justamente sobre esse objeto que ele supunha que Fliess sabia. Temos aí duas condições combinadas para que o sujeito suposto saber possa motivar a perseverança do pensamento diante do desconhecido: do lado de Freud, a falta de saber e, do outro, a suposição de que o saber estivesse presente de forma idealizada.

De acordo com Serge André (1998), o laço entre Freud e Fliess é tecido em função de certa relação ao saber que, por tomar a sexualidade como meta, se transforma em relação amorosa, na qual cada um se apaixona por aquilo que supõe no outro. A relação entre ambos perdurou e Fliess foi considerado como a inspiração de Freud na criação da Psicanálise, que escrevera cerca de 300 cartas àquele. Em uma delas, horas depois de seu sonho memorável com a injeção aplicada em Irma, Freud o tratava como seu "daimon", seu destino, sua inspiração. As dissensões entre eles vão surgir e se acumular entre os anos de 1895 e 1898. O rompimento definitivo se deu no verão de 1900, no congresso de Achense durante o qual Fliess ataca violentamente Freud, acusando-o de "ler seus pensamentos" ou de não querer ler em seus pacientes senão seus próprios pensamentos.

 

Conclusão

Com base na leitura do sonho da injeção de Irma, avançamos no entendimento das condições de mobilização do saber na Psicanálise. Primeiramente, concluímos que tal conceito está intimamente ligado aos fenômenos da fala e da linguagem e, como tal, constitui a estrutura do inconsciente.

A fórmula da trimetilamina revela-se, no sonho, como solução simbólica para o inominável da sexualidade e, por isso, nós a situamos como a própria revelação do inconsciente, em analogia ao representante que é objeto do recalque original. Todos os outros representantes com os quais o recalcado estabelece ligação serão também recalcados, inaugurando um saber no inconsciente. É esta a dimensão que vai mobilizar as formações simbólicas do inconsciente, aos moldes do que Lacan afirma sobre a verdade como causa do saber.

Dentro dessa perspectiva, a fórmula da trimetilamina, como verdade procurada, é o ponto que engata todas as formações do sonho, e ela é o que se procura deslindar. O estudo nos ensina que, nos processos do inconsciente, o saber depende de sua relação com a verdade conforme está em jogo a visada do gozo. Como vimos, o processo de engajamento da estrutura significante dependerá, principalmente, de que algo seja subtraído da vivência do sujeito. O gozo a ser recuperado responde ao lugar negativo deixado por essa subtração operada pela incidência do significante no campo da sexualidade. O saber que estrutura o inconsciente só será inaugurado se o gozo for renunciado, mas, ao mesmo tempo, circunscrito por meio da dimensão da verdade. Esta, por sua vez, não é senão a atualização da representação incompleta e caduca eleita para tentar nomear o inominável da sexualidade no momento de sua eclosão.

 

Referências

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* Doutor, professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
** Mestre pelo Programa de Pós-graduação de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço: Rua Donato da Fonseca, 658, apto. 302, Luxemburgo, Belo Horizonte-MG. CEP: 30380-260. E-mail: carollinaesselin@gmail.com.
1 Entre colchetes, citamos o ano de origem do texto utilizado.
2 Em 1884, Freud realizara pesquisas sobre a cocaína, esperando conseguir reconhecimento profissional e científico. No entanto, o que restou de sua relação com a cocaína foi certa vergonha e sentimento de culpa por ter sido acusado de, ao indicar o uso da droga pela via intravenosa como forma de tratar o vício em morfina, antecipar a morte de seu colega e paciente Fleischl-Marxow.
3 Aqui ainda não se tinha clara a distinção, na Psicanálise, tal como temos hoje devido a Lacan, entre saber e conhecimento, por isso o termo utilizado por Freud era "desejo de conhecimento", querendo se referir à motivação para empreender pesquisas e projetos científicos (cf. Lacan, 1992 [1969-70], p. 151).
4 De acordo com Peter Gay (1989, p. 92), a histeria é um dos aspectos de Irma que se liga à Emma Eckstein, paciente que também está aí representada. Freud ficou muito interessado na histeria a partir das apresentações de pacientes realizadas por Charcot, na França. No sonho da injeção de Irma, a resistência da paciente misturada ao pudor de abrir a boca, bem como a dificuldade de encontrar a causa orgânica dos sintomas remetem a essa neurose.

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