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Psicologia em Revista
Print version ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.3 Belo Horizonte Apr. 2010
ARTIGOS
Centro de Acolhimento da Crise: Hospital Galba Velloso e algumas de suas respostas aos desafios da Reforma Psiquiátrica
Refuge center of crisis: Galba Velloso Hospital and some of its answers about the challenge of the Psychiatrist Reform
Centro de Acogida para las Crisis: Hospital Galba Velloso y algunas de sus respuestas a los desafíos de la Reforma Psiquiátrica
Ilka Franco Ferrari *
Universidade de Barcelona, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
RESUMO
Este texto se constrói com base em pesquisa realizada no Hospital Galba Velloso, analisando as implicações da transformação do seu Posto de Urgência Psiquiátrica (PUP) em Centro de Acolhimento da Crise (CAC). O CAC foi o caso estudado por meio de 600 prontuários de pacientes residentes em Belo Horizonte, entre 2001 e 2006, e 25 entrevistas com profissionais relacionados a ele. Aqui se privilegiam os dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas, trabalhadas por meio da análise de conteúdo. Eles foram refletidos com base nos princípios da Reforma Psiquiátrica e sua operacionalização na cidade de Belo Horizonte, onde o hospital se insere, do Plano Diretor do Hospital e da psicanálise como eixo articulador. As conclusões apresentam acordos e desacordos sobre o modo de funcionamento do CAC e mostram que o Programa de Atenção à Saúde Mental, de Belo Horizonte, reconhecido pelos avanços, não prescinde, ainda, da função social e terapêutica do Hospital.
Palavras-chave: crise, hospital psiquiátrico, Reforma Psiquiátrica, psicanálise.
ABSTRACT
This article builds itself according to researches realized at the Galba Velloso Hospital, analyzing the implications of the transformation of its Emergency Psychiatric Station (EPS) in Centre Crisis Refuge (CRC). The CRC was a case studied using 600 promptuary of patients who reside in Belo Horizonte, from 2001 to 2006, and 25 semi-structured interviews, developed through content analysis. They were reflected upon principles of the Psychiatric reform and its operationalization in Belo Horizonte city where the hospital inserts itself, of the Director's plane and of the psychoanalysis as an articulator axis. The conclusions show agreements and disagreements about the CRC operation mode and they show the Programa de Atenção à Saúde Mental, of Belo Horizonte, known by progress, and do not prescinds, until now, the social and therapeutics function of the Hospital.
Keywords: crisis, psychiatric hospital, Psychiatrist reform, psychoanalysis.
RESUMEN
Este artículo recoge la investigación llevada a cabo en el Hospital Galba Velloso, analizando las implicaciones de la trasformación de su Servicio de Urgencias Psiquiátricas (PUP) en el Centro de Acogida para las Crisis (CAC). Se consideró al CAC como el caso de estudio centrándose en los registros de 600 pacientes que residían en Belo Horizonte, entre 2001 y 2006 y, en 25 entrevistas con profesionales relacionados con este servicio. Se exponen, aquí, los datos obtenidos en las entrevistas semiestructuradas, analizadas por medio de análisis de contenido. Los datos obtenidos fueron analizados a partir de los principios de la Reforma Psiquiátrica y su operacionalización en la ciudad de Belo Horizonte donde se localiza el Hospital, del Plan Director del Hospital y teniendo el psicoanálisis como eje articulador. Los resultados presentan acuerdos y desacuerdos sobre el modo de funcionamiento del CAC y muestra que el Programa de Atención a la Salud Mental de Belo Horizonte, reconocido por sus avances, aún no descarta la función social y terapéutica del Hospital.
Palabras clave: crisis, hospital psiquiátrico, Reforma psiquiátrica, psicoanálisis.
Após a Reforma Psiquiátrica brasileira, parece ser uma constante a preocupação com a oferta de serviços que possam responder, de forma adequada, às situações conhecidas como momentos de crise dos portadores de sofrimento mental.
A superação do paradigma psiquiátrico que se estruturou em torno do isolamento e exclusão dos doentes mentais exige cuidados contínuos e, conforme escreve Souza (2008, p. 112), a resposta às crises é um dos principais desafios da Reforma Psiquiátrica, pois ela é condição para dar "sustentação ao conjunto de iniciativas no campo da assistência/cuidado e reabilitação psicossocial desses sujeitos". E funciona como um analisador dos processos da própria Reforma. Souza lembra a seu leitor que a OMS e pesquisadores associados a ela asseguram que atenção à crise, à assistência e à reabilitação dos portadores de sofrimento mental "são pilares da implantação de um sistema balanceado de cuidados, de base territorial, em saúde mental". Isso porque a Reforma objetiva tratar a crise em liberdade, fora do modelo manicomial que tenta silenciá-la como "prenúncio do crime e ruptura da ordem".
Na cidade de Belo Horizonte, onde, até o início de 1990, havia cerca de 2 100 leitos, a maioria de longa permanência, a orientação para a Política de Saúde Mental, iniciada em 1993, conforme asseguram Abou-Yd, Silva e Souza (2008, p. 11), busca "o diálogo com a cidade, formulando estratégias e criando dispositivos capazes de sustentar a presença pública e digna do portador de sofrimento mental". Sem dúvida, modo de dizer de política pautada na lógica da desinstitucionalização da loucura, por meio da construção de uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.
A Reforma Psiquiátrica brasileira, como bem lembram Zambenedetti e Silva (2008), articula-se ao Sistema Único de Saúde (SUS), que, conforme a Lei 8.080, também propõe a criação de redes de serviços, ações regionalizadas e hierarquizadas, seguindo princípios como universalidade, equidade e integralidade, comportando, assim, hierarquização, municipalização, participação e controle social.
Em Belo Horizonte, a materialidade da rede tem sido considerada uma das mais ousadas experiências da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Ela cresce, movimenta-se e se reformula com base em avaliações sobre seus serviços e hospitais que são fechados (Nilo et al., 2008). De acordo com Barreto (1999, p. 207), o movimento mineiro se distingue, desde o princípio, pela participação e enlace entre a psiquiatria, a psicanálise e a dimensão sociopolítica, em complexo contexto no qual estiveram presentes as ideias de "Pinel e Kraepelin, Freud e Lacan, Foucault e Basagila". Para Barreto, mais que uma síntese ou mera composição, tratou-se de exercício teórico e prático tenso, com avanços e retrocessos, por meio do qual se colocou em destaque o conceito de cidadania e a clínica do sujeito.
É nesse contexto peculiar de Belo Horizonte que seus dois hospitais psiquiátricos públicos, Hospital Galba Velloso (HGV) e o Instituto Raul Soares (IRS), tiveram seus leitos reduzidos e, embora geralmente não sejam mencionados quando se fala das parecerias que a rede municipal constrói, estão presentes em seu circuito. Os anos de trabalho como professora, que contam com aulas práticas no Hospital Galba Velloso, portanto presente em certo cotidiano dessa instituição, favoreceram agudeza para a constatação de alguns de seus problemas cruciais que levaram à pesquisa intitulada "As implicações da transformação do Posto de Urgência Psiquiátrica (PUP) do Hospital Galba Velloso-Fhemig em Centro de Acolhimento da Crise (CAC), no contexto da Reforma Psiquiátrica"1 .
Algumas interrogações sobre o modo de funcionamento CAC, nessa trama da rede pública de Belo Horizonte, e o conhecimento de "nós críticos" no funcionamento do Hospital, apresentados no Plano Diretor 2005/2007, a exemplo de menção à insuficiência de produção científica, produção de saber, movimentaram a decisão. A PUC Minas e o Hospital Galba Velloso têm uma longa parceria na formação de profissionais e já favoreceu a escrita de vários trabalhos acadêmicos, dos mais simples até uma tese de doutorado2 . A produção de saber científico é algo com que a Universidade pode contribuir e é mesmo um modo de fortalecer suas parcerias.
O objetivo geral da pesquisa consistiu em analisar o modelo assistencial de acolhimento da crise, praticado desde 2001, no Centro de Acolhimento da Crise (CAC) do Hospital Galba Velloso, frente aos princípios que nortearam sua origem e implicações de sua operacionalização, até o ano de 2006, ano-base do início dos estudos para a pesquisa. Considerou-se que, de 2001 a 2006, havia decorrido um tempo que permitia um estudo consistente das mudanças implantadas.
Estabeleceram-se como objetivos específicos: a) estudar o perfil da clientela e, principalmente, o circuito que percorrem na rede, por meio de dados do prontuário e entrevistas com profissionais do CAC e das enfermarias de média permanência; b) identificar os indicadores usados pelos profissionais do CAC na determinação do que é um acolhimento de crise; c) analisar os efeitos desse modelo de assistência para a vida cotidiana do sujeito/cidadão e seus familiares; d) estudar em que o CAC se diferencia dos CERSAMs existentes em Belo Horizonte, com base nos princípios que o norteiam e da missão estabelecida para o Hospital no plano diretor construído em 2004; e) colher informações sobre o modo de funcionamento do CAC, com profissionais que são funcionários do Hospital, mas não trabalham no CAC.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Fhemig e da PUC Minas, vinculou-se ao Laboratório de Estudos Clínicos do Instituto de Psicologia da PUC Minas (atualmente Faculdade de Psicologia), recebeu concessão de auxílio financeiro da Fapemig, CNPq e do FIP da PUC Minas, o que denota sua importância na realidade social brasileira. Desenvolveu-se, portanto, no contexto da realidade social considerada pela psicanálise como transindividual, socializante e simbólica, ou seja, realidade que não é uma ilusão individual, é construída e se modifica "segundo uma causalidade, uma dialética própria, que vai de subjetividade a subjetividade e que talvez escape a qualquer espécie de condicionamento individual" (Lacan, 1954-1955/1987, p. 19), pois supõe solidariedade entre a dimensão do particular e do coletivo.
Sobre o desenvolvimento da pesquisa
As questões do tipo "como?", "por quê?", relativas ao conjunto contemporâneo de acontecimentos complexos, sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle, fizeram com que a ferramenta do estudo de caso se adequasse bem a essa pesquisa (Yin, 2005). Decidiu-se que o CAC seria o caso a ser estudado, o que significou considerar toda sua estrutura de funcionamento: o ambulatório especializado no acolhimento da crise, a enfermaria de crise e os leitos de observação, mas, também as quatro enfermarias de média permanência, local em que alguns pacientes são encaminhados, e o manejo dos prontuários dos pacientes que por ali passaram.
Os dados foram obtidos por meio de dois recursos: a) entrevistas semiestruturadas, realizadas com profissionais que trabalham nas estruturas de funcionamento acima citadas; b) estudo de 600 prontuários de sujeitos residentes em Belo Horizonte, em razão dos objetivos propostos e já mencionados, 100 prontuários para cada ano estudado (2001 a 2006). Os dados permitiram análise qualitativa e quantitativa. Várias tabelas foram construídas a partir da análise dos prontuários, mas os dados numéricos só tiveram valor pela análise de suas qualidades.
As perguntas orientadoras das entrevistas buscavam informações sobre motivos de demanda do Hospital, a missão do Hospital, os indicadores daquilo que os entrevistados consideravam uma situação de crise, o que eles consideravam acolhimento da crise, como avaliavam o acolhimento realizado no CAC, quais efeitos o trabalho do entrevistado surtia na vida do paciente e, ou, familiar, perspectivas viam para o CAC e as diferenças, se existentes, entre o modelo assistencial do CAC e dos CERSAMs.
Na ocasião, havia 187 profissionais trabalhando nos locais pesquisados. No CAC, eram 30 psiquiatras, 3 psicólogos, 5 enfermeiros, 2 terapeutas ocupacionais, 3 assistentes sociais e 50 técnicos de enfermagem. Nas enfermarias, 11 psiquiatras, 7 psicólogos, 8 enfermeiros, 4 terapeutas ocupacionais, 4 assistentes sociais e 60 técnicos de enfermagem.
Considerou-se que o número de profissionais entrevistados seria delimitado pelo critério de saturação teórica. Fontanella, Ricas e Ribeiro (2008) afirmam que Glaser e Strauss (1967) parecem ser os inauguradores do uso da expressão theoretical saturation, para dizer de uma ferramenta conceitual que se usa, com frequência, em pesquisa qualitativa, principalmente em diferentes áreas do campo da saúde, para estabelecer ou fechar o tamanho de uma amostra a ser estudada. No caso desta pesquisa, a saturação teórica foi usada para o fechamento amostral, "operacionalmente definido como a suspensão da inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta de dados" (2008, p. 17). Nesse momento, nenhum discurso é igual ao outro, mas todos apresentam elementos comuns entre si, sem acréscimos nas respostas. No caso de pesquisa qualitativa, como lembram esses autores, a pergunta "quantos?" é menos pertinente que a pergunta "quem?".
Ao se considerar o ponto de partida como a proporcionalidade de 10% de profissionais de cada área de atuação naqueles serviços (psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e técnicos de enfermagem), 13 deles pertenciam ao CAC e 12 às enfermarias de média permanência, totalizando 25 profissionais. Havia, obviamente, uma lista de nomes/reserva preparada para alguma eventualidade e possível expansão do número de entrevistados. Não foi necessário, entretanto, ir além das 25 entrevistas para cumprir o critério de saturação teórica.
Os dados das transcrições das entrevistas, gravadas com o consentimento dos profissionais, sofreram ordenamento por meio da análise de conteúdo, conforme orientações de Laville & Dionne (1999), mas, por meio de temas-eixos, nos moldes de macrocategorias. Foram recortes amplos, que permitiram boa análise, sem cair em excessiva depuração dos fatos, em nome da exaustividade e mútua exclusividade, consideradas essenciais em sistemas de categorias. Por serem essenciais, são também caminho fácil por onde se perde a singularidade dos sujeitos e dos fatos que implica.
Reconhece-se, junto com o psicanalista Jacques-Alain Miller (2001, p. 9), que uma categoria é, primeiramente, "uma qualidade atribuível a um objeto, o que a converte em uma classe onde é possível situar objetos de igual natureza. Trata-se, portanto, de um princípio de classificação". Se ela é primeiramente uma classificação, a consideração do particular e do singular não pode ser perdida de referência. Nesta pesquisa, houve, portanto, o cuidado de utilizar a produção científica sem dispensar o caso a caso, mesmo quando se realizou o exaustivo estudo dos 600 prontuários, o que merecerá outro texto, dada a riqueza de informações que apresenta.
Os resultados foram analisados à luz das orientações da Reforma Psiquiátrica brasileira e do funcionamento do SUS (naquilo que enfatizam sobre funcionamento em rede), do texto do Plano Diretor do Hospital Galba Velloso para 2005/2007, escrito por Souza, Assumpção e Mascarenhas (2004), e de formalizações psicanalíticas que permitem refletir e articular as informações.
A criação do Centro de Acolhimento da Crise no HGV
O Centro de Acolhimento da Crise (CAC) foi criado em agosto de 2001, implicando a extinção do Posto de Urgência Psiquiátrica (PUP), porta de entrada para o Hospital Galba Velloso (HGV), construído em 1972.
Entre as condições de possibilidade de sua construção, havia a efervescente discussão da desospitalização dos pacientes, permeada pelo debate sobre crise e urgência que, no contexto da saúde mental, na verdade, nunca deixou de existir. Acreditava-se que o PUP mantinha a lógica da triagem, embora houvesse sido criado para evitá-la, e que a urgência ali manifesta favorecia, então, a entrada no circuito psiquiátrico, sustentada pela noção de periculosidade e lógica segregativa. A terapêutica consistia em medicar e internar. No ano 2000, com uma nova diretoria e por meio de discussões estabelecidas com a equipe do PUP, segundo Souza, Assumpção e Mascarenhas (2004, p. 24), a "lógica da triagem para a internação e encaminhamento para hospitais privados conveniados ao SUS" se transformou "em lógica da clínica, do atendimento da crise".
Essas autoras delineiam um pouco o contexto da época. Em agosto de 1999, começou, no HGV, um processo constante de redefinição de seu projeto assistencial e reestruturação dos serviços existentes, o que resultou na criação do Grupo Gestor Assistencial, em 2000. Eram constantes os contatos com as coordenações de saúde mental da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e do Estado de Minas Gerais, objetivando adequar o funcionamento do Hospital aos princípios da Reforma em Minas Gerais. Reuniões eram promovidas com equipes dos CERSAMs de Belo Horizonte e coordenações de saúde mental dos municípios da Região Metropolitana, que tinham demanda expressiva dos serviços do Hospital, a exemplo de Contagem, Ibirité e Ribeirão das Neves. Nessas reuniões, discutiam-se casos clínicos, com indagação das razões que levavam os familiares e pacientes a procurarem o Hospital psiquiátrico e não o serviço de saúde mental próximo à sua residência, e se trabalhava o estabelecimento do fluxo de referência e contrarreferência. Em agosto de 2001, foram desativadas as oficinas terapêuticas; em dezembro de 2002, o Ambulatório Luiz Cerqueira, nesse mesmo ano se comprovou a redução e até extinção de encaminhamentos dos pacientes para os hospitais privados conveniados com o SUS e o redirecionamento do hospital-dia para a permanência-dia. Conjuntamente aconteciam mudanças no espaço físico do Hospital, criava-se o Núcleo de Gestão de Informação, a ficha de acolhimento conjunta com o Instituto Raul Soares e buscava-se maior integração das unidades ortopédica e psiquiátrica e administração geral do hospital.
O Hospital Galba Velloso (HGV) é uma instituição pública que pertencente à Fhemig, fundada em 1977. Em seu espaço físico, desde 1984, há a peculiar situação de uma creche para 80 crianças, filhos dos servidores da rede Fhemig e Funed (Fundação Ezequiel Dias), de 4 meses até 6 anos e 11 meses de idade. Ali há, também, desde 1998, um centro de ortopedia, considerado um anexo do Hospital de Pronto Socorro João XXIII. Sua implantação objetivava contribuir para a elevação do padrão técnico do hospital e integração na rede Fhemig. Diante disso, o HGV se divide, tecnicamente, em duas unidades díspares: a antiga unidade psiquiátrica e a novata unidade de ortopedia.
Souza (2008, p.111), ao escrever sobre a experiência da Política de Saúde Mental da Prefeitura de Belo Horizonte, reafirma a polissemia da palavra crise, apropriada por matrizes teóricas diversas e usada para definir um espectro amplo de fenômenos. De forma prática e evitando maiores retorcimentos, demarca a posição que sustentam: sofrimento grave, quase sempre persistente, "muitas vezes complicado por comorbidades diversas, clínicas e de álcool e drogas, evoluído com crises frequentes e de intensidade suficiente para requisitar cuidados que, tradicionalmente, a Medicina nomeia de urgência e emergência".
No Galba Velloso do ano 2000, segundo Souza, Assumpção e Mascarenhas (2004, p. 24), Nicolas de Coulon (1999) foi o autor de onde se retirou a orientação para a noção de crise, na base da alteração de PUP para CAC, comungando com o espírito da época. Originado do grego Krinomai, para referir-se ao momento de decisões que supõem certa urgência sobre o caminho a ser seguido, o termo crise levou Coulon (1999) a extrair daí três tempos: o momento da ruptura do equilíbrio intrapsíquico e, ou, interpessoal que leva o sujeito ao encontro de profissionais da área de saúde mental; o momento em que o profissional deve transformar a necessidade de resposta imediata, que comporta uma urgência, em tempo de trabalho de crise, dilatando esse tempo de forma a explorar a dinâmica do desequilíbrio, e o momento fecundo de remanejamento psíquico, pois, segundo o autor, a crise é tempo de abertura para esse remanejamento.
O princípio orientador dessa política de tratamento da crise aliava-se à noção de acolhimento: acolhimento da crise. Para a concepção de acolhimento, os profissionais que articulavam as transformações no serviço de urgência do Hospital nortearam-se em Baillon (1998), conforme ensinam Souza, Assumpção e Mascarenhas (2004, p. 24). Para esse autor, acolher é momento anterior ao trabalho de crise. Consiste na disponibilidade dos profissionais para receber e escutar o sujeito em crise, permitindo a criação de um vínculo. É o momento de se estabelecer contato com familiares e com os serviços de referência, de tentar esclarecer a crise vivida atualmente pelo sujeito e as perspectivas de encaminhamento para os serviços da rede de saúde mental.
Essa separação de acolhimento e trabalho de crise é, no mínimo, curiosa. Receber e escutar o sujeito em crise, sua família, já não é trabalhar a crise? Não haveria, nessa separação de acolhimento e crise, o privilégio do cidadão, ainda que a palavra sujeito seja empregada? Não é difícil constatar que fazer o que Baillon propõe como acolhimento já é forma de trabalhar a crise.
Nas palavras de Souza (2008, p. 117), na rede pública de Belo Horizonte, o modelo de crise "leva em conta a sua dimensão clínica clássica: a psicopatologia, o diagnóstico psiquiátrico, o diagnóstico de estrutura clínica, no sentido psicanalítico" e que, para além dos sintomas, a crise comporta a dimensão de ameaça ou ruptura do laço social, "crise do Outro, nomeada pelo Outro social". O sujeito é o suporte individual da crise, portador de uma sintomatologia, mas se apresenta como aquele que produziu a ruptura, "rompeu contratos, como um indivíduo fora ou contra a ordem pública". A configuração do laço social e a posição do sujeito "irão modular, em última instância, a gravidade e a forma de apresentação da crise".
Na posição política e ética dos serviços de saúde mental desta cidade, há, então, como assegura Souza (p. 118), a consideração de que, na crise, há um sujeito "afirmado no plano da cidadania", sujeito "de direitos e deveres" e "não mero objeto de intervenções". Essa consideração do sujeito e a de que o modelo de rede deve ser o de rede ampla de cuidado e reabilitação, sustentando projetos terapêuticos de cada usuário em sua comunidade e território, é o que faz com que a rede "realize a abordagem das crises, num instante anterior à sua precipitação em urgência e emergência".
A psicanalista Maron (2008, p. 37), ao seu estilo, afirma a presença de urgência subjetiva na crise: "Na urgência há, um segundo desenlace, não apenas interno ao discurso subjetivo, mas entre a cadeia significante e o gozo pulsional veiculado por ela". Nela a vertente mortífera da pulsão está presente, segue a autora, pois as urgências são expressões da pulsão de morte em que se evidência o desenlace do tempo e do espaço, coordenadas simbólicas importantes. Ocorre a suspensão temporária do tempo e da localização do sujeito em relação ao coletivo, o Outro. Trata-se de momentos em que é difícil para o sujeito lidar com seu sofrimento, pois já não conta com um discurso que opera, levando-o ao "sofrimento sem imagens nem palavras" (p. 36), caracterizado como urgência e usualmente chamado de crise. Se, na urgência, o sofrimento é solidário à ruptura da cadeia significante, o sujeito não pode se representar, ou seja, surge a dimensão do real e a ruptura de uma realidade estável ordenada pelo imaginário coletivo. Acolhê-lo já é contar com toda essa trama.
Os termos acolhimento e crise, presentes no nome "Centro de Acolhimento da Crise (CAC)", reforçavam "o objetivo clínico de transformar a pressão da resposta imediata da urgência" e mostravam o ensejo de ampliar as possibilidades terapêuticas naquele Hospital, afirmam Souza, Assumpção e Mascarenhas (2004, p. 30). Mas, anos antes, o então diretor-geral do Hospital, Paulo Sérgio Araújo (1994, p. 5), falava em acolhimento da crise no PUP. Por que, em 2000, essas ideias surgem como inovadoras?
No ano de 2004, Souza, Assumpção e Mascarenhas apresentam números comprobatórios dos efeitos da mudança de PUP para CAC: alteração na lógica da internação e queda do número de atendimentos realizados; levantamento da procedência dos pacientes atendidos, envio sistemático das informações para as coordenações de saúde mental de alguns municípios do Estado, para os distritos sanitários e centros de referência em saúde mental (CERSAMs) de Belo Horizonte; criação de reuniões para discussões de casos clínicos com as equipes, consequentemente, interação com outros serviços da rede de saúde mental.
Naquele mesmo ano, no entanto, de janeiro a outubro de 2004, chegaram ao hospital 1008 pacientes da Regional Noroeste, 982 pacientes da Regional Oeste e 845 pacientes do Barreiro, totalizando 4 091 atendimentos. O HGV continuava com alta demanda para acolher a crise, apesar do Projeto de Saúde Mental do Município de Belo Horizonte (PSM-BH), com suas diretrizes e política de rede integrada de serviços na via da desconstrução do modelo hospitalocêntrico.
Souza (2008, p. 114) comenta que, no ano 2003, quando a rede de Belo Horizonte se mostrava "relativamente exuberante", explicitaram-se dificuldades, impasses e contradições. O Encontro Nacional de CAPs III e o Congresso Nacional de CAPS foi oportunidade para explicitar que os serviços substitutivos ainda não estavam bem incorporados: não havia alterado o quadro de internações de agudos nos hospitais Galba Velloso e Raul Soares; os dois CERSAMs (os CAPs mineiros) 24 horas não conseguiam constituir-se em referência de urgência, seus profissionais continuavam internando alguns de seus usuários ou recorrendo a pernoites nesses hospitais; nos CERSAMs, havia uso excessivo de medicação para supressão de sintomas; usuários e profissionais se queixavam dos deslocamentos que precisavam fazer entre Cersam e hospitais; o trabalho de reinserção era precário, havia tutela de usuários e familiares, ambulatorização dos serviços, cronificação dos usuários, entre outros problemas. Era necessário repensar, discutir a Reforma Psiquiátrica em Belo Horizonte.
No que respeita especificamente ao Galba Velloso, em 2004, portanto com o CAC em funcionamento, entre reconhecimento público pelos trabalhos prestados e conflitos internos e externos, constituiu-se o "Grupo Gestor", com função de criar um plano diretor, orientado pela missão da unidade psiquiátrica do Hospital:
- Atender a clientela acima de 18 anos, portadora de transtorno mental, em situação de crise, considerando as diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Através do trabalho de equipes multidisciplinares e de dispositivos terapêuticos diversos, possibilita o acolhimento e o tratamento do sujeito em crise até a sua estabilização psíquica assim como a articulação da continuidade do tratamento na rede de atenção à saúde mental do Município, da Região Metropolitana e das demais cidades do Estado de Minas Gerais, possibilitando a esse sujeito o restabelecimento de seus laços sociais (Souza, Assumpção & Mascarenhas, 2004, p. 79).
Foram constituídos seis grupos de trabalho para aprofundar macroproblemas constatados, e a Oficina de Modelo Assistencial levantou 25 problemas, mais diretamente ligados ao funcionamento do CAC. Entre eles, vale mencionar: a) deficiência de atividades terapêuticas para pacientes do CAC e enfermarias; b) excesso de "consultas psiquiátricas ambulatoriais" não urgentes; c) diferentes critérios de internação; d) clientela com problemas clínicos graves que gera dificuldades de encaminhamentos para hospitais clínicos; e) anotações ilegíveis e incompletas nos prontuários; f) falta de conduta ética de alguns profissionais; g) dificuldade da equipe e falta de estrutura de segurança para lidar com clientela (traficantes, usuários de drogas, ladrões, etc.) que ameaçava profissionais e outros pacientes; h) falta de integração entre área assistencial e administrativa, e dentro das equipes; i) insuficiência de informação às famílias sobre o funcionamento e normas do Hospital; j) insuficiência de interlocução efetiva com as cidades do interior.
Causas diversas foram apontadas para tais problemas: a) dificuldade/falta de motivação de alguns profissionais para trabalhar em equipe; b) falta de treinamento de técnicas de trabalho em equipe; c) insuficiência de produção cientifica/produção do saber; d) insuficiência de grupos de estudos; e) falta de supervisão periódica para discussão de casos clínicos; f) insuficiência de espaço de elaboração/sistematização dos casos; g) pouca atuação das comissões de ética (enfermagem, médicos); h) dificuldade de contato com os hospitais clínicos para encaminhamento dos pacientes em síndrome de abstinência e com intercorrências clínicas graves; i) preconceito/rejeição dos hospitais clínicos em aceitar os pacientes psiquiátricos; j) deficiência na segurança para receber determinado tipo de clientela; k) falta de trabalho de sensibilização das equipes com os usuários e os familiares quanto à especificidade da saúde mental; l) precariedade de estruturação dos serviços da rede externa de saúde mental (insuficiência de recursos humanos, transporte, medicação, etc.); m) falta de investimento dos municípios de Minas Gerais nos serviços de saúde mental.
A partir daí, foram estabelecidas diretrizes e operações para enfrentar os nós críticos, acompanhadas pela diretoria do Hospital, chefia de divisão assistencial e gerência administrativa, por meio de reuniões mensais do grupo gestor com os responsáveis pelas operações. Essa pesquisa se iniciou em 2006, percorrendo a época em que eram desenvolvidas essas diretrizes e operações.
O que as entrevistas contam
Neste item, são considerados os pontos cruciais das entrevistas, com base nos eixos ordenadores delas. As categorias escolhidas são expressas nos escritos em itálico.
A respeito do que faz com que o paciente e, ou, familiar procurarem o Hospital, neste contexto da rede municipal de saúde de Belo Horizonte, a principal resposta dos entrevistados é a crise, entendida como situação limite em que o sujeito é risco para si e para outros, com seus delírios, alucinações e transtornos vários, insustentáveis para a família. Nas palavras de Santos (2008, p. 117), "perigoso para si e para outrem" é o que diz a psiquiatria. Nesse raciocínio, no CAC, prevalece o discurso médico.
Foram considerados facilitadores da demanda o fato de o HGV ser um hospital de referência na cidade e no Estado, tradicionalmente identificado como hospital para atendimento de indigentes, sua localização geográfica, as condições do atendimento com serviço digno, escuta e compromisso efetivo com os pacientes e familiares, criação de vínculos com estes, alimentação e higiene adequadas, envolvimento dos familiares no tratamento e equipe de profissionais em período integral, entre outros.
Alguns entrevistados comentaram que os serviços substitutivos não são devidamente conhecidos nem suficientemente aparelhados para atender à demanda que lhes era endereçada e nem para realizar um atendimento à altura do que é realizado pelo HGV. Há críticas relativas ao fato de que, muitas vezes, o paciente deveria ser encaminhado ao hospital geral, mas, por "sintomatologia parecida à da doença mental", acaba no HGV, bem como casos de pacientes com história psiquiátrica que não são aceitos por outros hospitais quando necessitam.
São mencionados casos em que o Hospital é demandado para obtenção de "ganho secundário", mas também para abrigo de alguns e por despreparo da maioria das famílias em lidar com a crise. Algumas querem livrar-se do paciente por maior tempo possível, e outras têm expectativa do alívio e cura do sofrimento. A família é considerada como a que toma a iniciativa da procura do Hospital, exceção feita para usuários de droga e álcool, em que a demanda espontânea é o usual.
Essas informações fazem surgir antigas perguntas: urgência para quem? Crise para quem? Zenoni (2000, p. 14-15), em conferência realizada em Belo Horizonte, enfatizou a instituição como uma necessidade social, mas também como forma de resposta da sociedade a certos fenômenos clínicos e estados da psicose, "certas passagens ao ato, alguns estados de depauperamento físico, que podem levar o sujeito à exclusão social absoluta e até à morte". Para esse autor, a instituição é a única resposta praticável, em alguns estados da clínica, sem a qual "as pessoas que sofrem, ou as pessoas que lhe são próximas, ficam expostas ao insuportável, que pode ter consequências dramáticas" (p. 16). Os entrevistados mostram que não ignoram essa dupla função da instituição: social e clínica.
A função social do Hospital aparece em suas respostas, ao reconhecerem que ele é procurado como asilo, como proteção para "situação aguda, intolerância familiar, crise de agressividade, síndrome de abstinência de drogas e álcool, lugar para se alimentar e, ou, dormir". Sua função clínica pode ser vista em relatos tais como: "os familiares sentem segurança no Hospital com psiquiatras 24 horas", "equipe de profissionais dando assistência", "os familiares podem ficar junto ao paciente"; "no HGV, há compromisso com o paciente, consegue ouvir um pouco mais que só a queixa"; "o paciente e a família são acolhidos, alguns pacientes estabelecem vínculo com os médicos, com o local, há preocupação com a construção do caso clínico". Articular a função social e a função de tratamento na instituição implica então distinguir e articular a dimensão do sujeito e a do cidadão.
A maioria dos entrevistados assinala que o Cersam e CAC/HGV têm como objetivo o acolhimento do sujeito em crise e, consequentemente, estão disponíveis para a mesma população. Mas alguns apontam diferenças entre os dois serviços: "No Cersam, quando o paciente entra em crise, fica agitado ou demanda assistência que o serviço não pode oferecer, eles são encaminhados para o hospital psiquiátrico"; "o serviço substitutivo nem sempre está organizado para atender os pacientes em crise"; "nos serviços substitutivos, por vezes, acolhem os pacientes, mas, no Galba, além do acolhimento, o paciente e a família estabelecem vínculos com os profissionais e com a instituição"; "o paciente e os familiares ainda não conhecem bem o Cersam, a família acha que o Cersam é lugar de doido, drogado, viciado"; "o HGV é instituição de referência estadual em atendimento pelo SUS, mas os usuários da saúde mental já estão começando a reconhecer o Cersam".
A missão do Hospital, orientadora do plano diretor, não é conhecida pela maioria dos entrevistados, ainda que exposta na entrada principal da instituição e adotadas medidas para favorecer a comunicação dentro da instituição. Por exemplo, modificou-se o treinamento dos novatos, criou-se o Galba Net e o folhetim publicado mensalmente, noticiando fatos que aconteceram ou acontecerão no espaço institucional. Não conhecer a missão do Hospital parece, então, ser de outra ordem e exemplifica o que psicanalista francês Eric Laurent (2003) define como sendo uma instituição, ou seja, ela é um conjunto de regras que o sujeito desconstrói. Mas, é importante dizer, enquanto os entrevistados falam, eles dizem de prática que a inclui.
Sobre o que consideravam indicadores de uma situação de crise, em geral os profissionais diziam que eles compunham um quadro grave que explicita uma ruptura de uma situação anterior: "descontrole dos atos, alterações de comportamento e pensamento, risco para si próprio e para terceiros, agitação, agressividade, depressão, isolamento, delírios, alucinações, ausência de cuidados pessoais, desorganização, desagregação, conflitos com família e sociedade, automutilação, recusa à medicação, fala desorganizada, fora de nosso padrão de realidade, inquieto..."
Um dos entrevistados expressa para muitos: "o comportamento visível diz tudo"; "não tem nem sentido perguntar"; "de bater o olho, você vê"; "a família percebe". Posição fenomênica, própria da clínica do olhar e de acordo com o discurso médico presente nesse espaço. Esse discurso também prevaleceu quando se abordaram os motivos que levam o paciente ou a família a buscar o Hospital. Mas, como afirma Souza (2008, p. 117), e já mencionado neste texto, na rede pública de Belo Horizonte, se o modelo de crise considera a estrutura clínica, ele também considera a "psicopatologia, o diagnóstico psiquiátrico". E, para além dos sintomas, na crise, há a dimensão de ameaça ou ruptura do laço social, o que é notado pelos entrevistados.
Há algumas referências ao fato de que é necessário "conversar" com o paciente para se caracterizar a situação como crise. Mas a noção de urgência subjetiva, momento de um real que é enlouquecedor por não ser recoberto por um discurso anterior, às vezes vacila ou não existe na consulta/acolhimento realizada por alguns desses profissionais, ainda que a palavra escuta seja bastante mencionada pelo grupo.
Se o reconhecimento da situação de crise parece não depender muito da escuta do paciente, paradoxalmente o acolhimento a pressupõe para a maioria dos entrevistados: "procura-se conhecer melhor a crise, ouvir o que a pessoa tem a dizer, de modo a iniciar a construção do caso clínico, para medicar, se for o caso". O acolhimento é considerado "um momento fundamental para início de tratamento", para definir condutas, envolver familiares, criando vínculos e possibilitando "solução efetiva e mais tranquila para o caso". Dado bastante curioso e controvertido, que não deixa de levantar questão sobre o manejo do que escutaram, pois, no tratamento da crise, a escuta parece ter pouco ou nenhum espaço.
Ao avaliarem os acolhimentos realizados no CAC, a maioria dos entrevistados fala sobre crise e acolhimento sem os separar em momentos distintos, como aparece na época do estabelecimento do plano diretor do Hospital. O acolhimento é elemento do tratamento da crise ou parte dele, no qual se busca formatar um projeto terapêutico individual (PTI), voltado para o encaminhamento aos outros serviços, facilitado pelo resumo da história clínica do sujeito em outras internações. Considera-se que isso traz benefícios de internações curtas, inclusão da família ou responsáveis no tratamento, constituição de equipe multidisciplinar, com o "médico sendo referência importante para diferenciar problemas orgânicos que são frequentes".
Não aparece opinião francamente desfavorável à criação do CAC. Mas são ressaltados pontos fracos: a) funcionamento nos moldes de triagem, agora para a rede de saúde mental do Município, preenchendo lacunas da rede e fazendo encaminhamentos para serviços substitutivos, ainda que marcado pelo esforço de humanização. Se "antes a triagem era feita pelo auxiliar técnico, agora é feita pela enfermeira". "É chamado o psiquiatra, que toma as providências"; b) equipe "sem orientação sobre qual é a política do Hospital", sua manutenção na rede ou desconstrução e, consequentemente, "sobre sua orientação clínica", o que leva a trabalho sem sintonia e profissionais perdendo-se nas brigas por causa de diagnóstico". E "quando a equipe não funciona como equipe, os pacientes respondem piorando, a internação aumenta"; c) "a escuta realizada é mais fundada em uma lógica médica, ainda que os que a praticam não sejam os médicos"; d) "poucos profissionais praticam a escuta"; e) "o paciente existe multidisciplinarmente durante o dia, isso não ocorre no plantão noturno"; f) o trabalho com a família é falho, faltam profissionais e "a maioria das famílias está desorganizada e tem que dar uma direção, senão volta"; g) leitura pouco efetiva dos prontuários, mal preenchidos; h) consultas para pacientes que deveriam estar em outro local; i) insuficiência de produção de saber, de grupos de estudo e discussão de casos clínicos; j) funcionamento parecido com as antigas enfermarias de média permanência.
Os entrevistados têm visão da necessidade do acolhimento e da implicação da família, do vizinho ou conhecido que acompanha o paciente, para melhorar ou evitar nova crise. Um dos entrevistados até diz que "primeiro tem que tratar a família". Mas alguns avaliam que as medidas adotadas até o momento, ou seja, a construção de uma cartilha para o paciente e outra para os familiares, com informações sobre as normas e rotinas da instituição, e o atendimento dos familiares, em grupo, realizado por profissionais da equipe, como parte do projeto terapêutico de cada paciente (PTI), não foram suficientes para incluir a família no tratamento do paciente: "pouco ou nenhum efeito na família; a família abandona o paciente, não o aceita em casa, é menos frequente nas alas e no atendimento noturno".
A maior parte dos profissionais considera, no entanto, que há efeitos de seu trabalho, para o paciente e a família. Entre os efeitos, citam: possibilidade de convívio social, autonomia, projeto de vida e iniciativa, diminuição da agressividade e estabilização do quadro, esclarecimento sobre o quadro clínico e responsabilização do paciente e família pelo tratamento, diminuindo o "estigma da doença". Isso se manifesta de várias formas, segundo afirmam, inclusive por meio de elogios e presentes.
Os entrevistados demonstram otimismo em relação às perspectivas para o CAC, reconhecendo sua importância no bom acolhimento que leva à redução de leitos na enfermaria e na ágil definição do tratamento, sem desconsiderar a necessidade de melhorias no serviço prestado: "contratação e aperfeiçoamento dos profissionais, fim e, ou, redução das internações, possibilidade de servir de modelo para os serviços de saúde mental, conforme os serviços substitutivos falham". Mas, no que se refere às melhorias, há pessimismo: "precisa de investimento do Estado". Nesse aspecto, alguns dizem que não sabem se os investimentos não chegam porque querem acabar com o hospital ou se é por descuido mesmo, "pois o hospital ainda é demandado".
Alguns não esquecem, entretanto, que, na perspectiva futura do CAC, é necessário reconhecer que a rapidez com que o atendimento é realizado, derivando o paciente para o sistema substitutivo do Hospital, faz com que ele retorne.
Conclusões
Como se pode ver, o HGV faz parte daquele grupo de instituições que, por terem a "situação de crise" como parceira cotidiana, precisam se repensar continuamente. A crise tem sido a pedra no sapato que, nas palavras de Souza (2008, p. 122), nos últimos anos, tem convocado a Reforma, em escala mundial, a estabelecer estratégia mais definida de ações: leitos ou unidades psiquiátricas em hospitais gerais, hospitais de pequeno porte, dedicados aos agudos, "implantação de equipes móveis de resolução de crise/tratamento domiciliar e equipes de tratamento assertivo comunitário".
No que se refere à Reforma brasileira, os avanços consideráveis não impediram impactos que levaram a reformulações e nem a constatação de que ainda "estamos com problemas no campo de atenção à crise", como relata Souza (2008). Em Belo Horizonte, desde 2003, o modelo de Reforma implantado passa por séria reconfiguração. A ênfase é dada para o cuidado e assistência direta ao usuário.
O SAMU, a partir do final de 2004, assumiu urgências e emergências em saúde mental, o que resultou na diminuição da presença da polícia nessas situações. Criou-se uma rede de atenção às urgências e emergências clínicas de saúde mental, envolvendo todos os serviços, da qual o Hospital Galba Veloso e Instituto Raul Soares fazem parte. Afinal, também como escreve Souza (2008, p. 122), "as equipes de resolução de crise e tratamento assertivo, mesmo que reduzam as internações, podem muito bem conviver com o hospital psiquiátrico, inclusive internando os usuários". Lógico, com atenção para evitar a reprodução de práticas manicomiais.
Implantou-se, em 2006, o projeto "A urgência psiquiátrica e a hospitalidade noturna". Os sete CERSAMs da cidade passaram a contar com hospitalidade noturna, e foi criado o Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP), com leitos e serviço móvel integrados à rede de saúde do Município. Antes disso, as crises ocorridas no período noturno tinham como referência exclusiva os hospitais. A pesquisa aqui relatada colheu informações exatamente até 2006, e a análise dos dados deve ter em conta essa realidade.
Nas falas dos entrevistados pode-se ver, no entanto, que, até 2006, também permaneciam alguns problemas antigos no HGV, entre os 25 levantados em 2004, e apresentados no item "A criação do Centro de Acolhimento da Crise no HGV". Pontos de repetição que marcam obstáculos de difícil abordagem, o real que se apresenta. Isso, apesar das medidas tomadas por ocasião da transformação de PUP em CAC, e de todo seu envolvimento no projeto da rede de saúde mental de Belo Horizonte.
As dificuldades de integração das equipes continuavam. No CAC, havia o convívio de, pelo menos, duas tendências: trabalho desenvolvido em lógica identificada com o discurso médico, com a participação secundária de outras categorias profissionais e, por outro lado, profissionais que buscam integração por meio da construção do caso clínico segundo modelo psicanalítico, o que nem sempre é harmônico em decorrência até mesmo dos diferentes saberes que permeiam essa ação. Não é difícil constatar, assim, que permanecia a deficiência de atividades terapêuticas.
A insuficiência de produção de saber prosseguia nesse Hospital que tem até uma revista própria. Ela aparece diretamente nas queixas de falta de grupos de estudo, falta de sistematização dos casos e de supervisão clínica e, no fato constatado, por exemplo, de que muito se falava do acolhimento/atendimento, mas poucos diziam como o praticam. E, quando isso acontecia, eram usados indicadores amplos: "buscar certa proximidade com o paciente"; "envolver familiares"; "conhecer melhor a crise para iniciar a construção do caso clínico"; "medicar, se necessário", "definir condutas".
A insuficiência de informação às famílias sobre o funcionamento e as normas do Hospital permanecia, foi bastante abordada, apesar de haver medidas práticas para evitá-la. O excesso de consultas psiquiátricas, não urgentes, está evidenciado na fala de alguns entrevistados, que disseram que ali chegavam pacientes que deveriam estar em outro local. O Hospital sempre propiciou serviço de urgência 24 horas, e não raro foi usado como substituto para outros serviços da rede, abrigando o que psicanaliticamente se conhece como urgência subjetiva, não constatada somente por elementos fenomênicos. Os buracos da rede levavam ao Galba, por demanda direta, vários neuróticos e alguns casos caracterizados por Zenoni (2000) como demanda social: sujeitos que o buscavam para comer, tomar banho, abrigar-se, buscar remédios...
A dificuldade de contato com os hospitais clínicos para encaminhamento dos pacientes psiquiátricos continuava realidade, bem como as queixas sobre os prontuários: anotações ilegíveis, incompletas, nem sempre usadas por outros profissionais na sequência do tratamento. Dado já apresentado, em anos anteriores, por Ferrari (2001). Realizar esta pesquisa, lendo 600 prontuários, não foi mesmo tarefa fácil, e o curioso é que, com o plano diretor, criou-se uma "comissão de prontuários", cuja função é garantir a visibilidade e, consequentemente, melhor comunicação das informações. Uma vez mais se percebe, de forma clara, a instituição como conjunto de regras que o sujeito desconstrói (Laurent, 2003), ou seja, não bastam regras ou criação de comissões avaliadoras.
O plano diretor, elaborado em 2004, operacionalizado em 2005-2006, como se nota, estabeleceu diretrizes, políticas de ação, mas, conforme elas se colocaram a serviço do funcionamento humano, mostraram necessidade de novas construções. Este estudo realizado teve seus dados disponibilizados e discutidos, em mais de uma ocasião, com a diretoria e funcionários do HGV e fazem parte das considerações para melhoria de seus serviços. Serviços com função terapêutica e social, de acordo com Zenoni (2000), e com o qual o reconhecido e importante Programa de Atenção à Saúde Mental, de Belo Horizonte, como assinala Souza (2008, p. 122), ainda conta.
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* Doutora em Psicologia pelo Programa de Clínica y Aplicaciones del Psicoanális, na Universidade de Barcelona, professora adjunta e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
1 Pesquisa coordenada por Ilka Franco Ferrari, com participação dos pesquisadores Eliane Mussel da Silva, Mário Lúcio Vieira da Silva e Glacy Gonzales Gorski (pesquisadora consultora). Na Biblioteca da PUC Minas consta relatório do trabalho com nomes dos bolsistas do curso de graduação em Psicologia.
2 Tese "Urgência Psiquiátrica: el practicante del psicoanálisis y el ingreso del sujeto", defendida por Ilka Franco Ferrari, na Universidade de Barcelona, em 2001.