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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.3 Belo Horizonte Dec. 2012

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p446 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p446

 

Errância e isolamento: as dimensões de desejo e de gozo da solidão

 

Wandering and isolation: the dimensions of desire and jouissance of solitude

 

Errancia y aislamiento: las dimensiones del deseo y goce de la soledad

 

 

Miriam Debieux Rosa;* Isabel Tatit**

 

 


Resumo

Esta reflexão foi inspirada no atendimento psicanalítico de migrantes que vivem constante errância e trazem recorrentemente em suas falas a temática do isolamento e da solidão. Este trabalho visa a diferenciar esses dois fenômenos (isolamento e solidão) quanto às dimensões de desejo e de gozo que os envolvem. A solidão e o isolamento estão presentes na experiência de todos (de formas diversas) e são modos de expressar o mal-estar nos tempos atuais. O discurso do isolamento será trabalhado como um efeito do discurso contemporâneo, baseado na lei do mercado, que incita o sujeito aos processos metonímicos e revela assim a dimensão gozante desse fenômeno. Já o discurso sobre a solidão pode sustentar a presença da ausência do outro, a falta e, portanto, é efeito da posição de um sujeito desejante (Tatit, 2011) e, nesse sentido, indica um questionamento à promessa de felicidade ofertada pelo discurso do mercado.

Palavras-chave Solidão. Desejo. Psicanálise. Isolamento. Migração.


Abstract

This discussion was inspired by the psychoanalytic treatment of migrants who live in a state of constant wandering, and who recurrently bring up in their speech themes of isolation and the feeling of loneliness. This work aims to differentiate these two phenomena (isolation and loneliness) according to the dimensions of desire and joy that surround them. The issue prompted us to highlight aspects of contemporary life that can affect everyone, loneliness and isolation are present in the experience of all (in different ways) and are ways of expressing the malaise of modern times. The discourse of isolation will be studied as an effect of contemporary discourse based on the law of the market, which encourages the subject to metonymical processes, thus revealing the extent of the joyful dimension of this phenomenon. As for the discourse of loneliness, it can sustain the existence of the absence of the other, the void, and is therefore an effect of the position of the desirous subject (Tatit, 2011); in this sense,it indicates a challenge to the promise of happiness offered by the discourse of the market.

Keywords: Loneliness. Desire. Psychoanalysis. Isolation. Migration.


Resumen

Esta reflexión se inspiró en el atendimiento psicoanalítico de migrantes que viven errantes y traen con frecuencia en sus dichos la temática del aislamiento y el sentimiento de soledad. Este trabajo pretende distinguir estos dos fenómenos – aislamiento y soledad – en lo que se refiere a las dimensiones del deseo e del goce que los rodea. La soledad y el aislamiento están presentes en la experiencia de todos- de diversas formas- y son maneras de expresar el mal estar en el tiempo actual. El discurso del aislamiento será trabajado como un efecto del discurso contemporáneo, basado en la ley del mercado, que incita al sujeto a los procesos metonímicos, revelando así la dimensión del goce de este fenómeno. Ya el discurso sobre la soledad puede sostener la ausencia del otro, la falta y, por lo tanto, es efecto de la posición de un sujeto deseante (Tatit 2011) y, en consecuencia, indica un cuestionamiento a la promesa de felicidad, ofrecida por el discurso del mercado.

Palabras clave:Soledad. Deseo. Psicoanálisis. Aislamiento. Migración.


 

 

A clínica psicanalítica nos convoca a refletir sobre questões que, presentes no discurso de pacientes, também dizem respeito a aspectos da vida contemporânea que podem afetar a todos: o desejo de liberdade, a solidão e o isolamento (com suas facetas desejantes e gozantes) são modos de expressar o mal-estar nos tempos atuais. Tempos que temem o sofrimento e a ameaça do desamparo, seja pela falta de laços afetivos estáveis, pela falta das grandes narrativas norteadoras ou pelo risco e ameaça de violência constante e nos quais há uma produção de discursos (médicos/midiáticos) que visam a tamponar o mal-estar.

Este trabalho1 tem como objetivo fundamentar a afirmação delicada, de que a solidão pode ser um sentimento ético nos dias atuais. Com o intuito de dar respaldo a essa afirmação, será necessário estabelecer uma diferenciação entre duas facetas da solidão: a do gozo e a do desejo. Traremos primeiramente um exemplo de como a solidão tem sido tratada, em uma tentativa de ser "exterminada", pelo discurso médico presente nos meios de comunicação contemporâneos, para, em um segundo momento, confrontar esse discurso com uma abordagem psicanalítica sobre a solidão, que a considera como uma experiência simbólica e que, portanto, pode viabilizar as manifestações mais singulares do sujeito. Os atendimentos no Projeto Migração e Cultura assim como casos de migrantes nos consultórios darão corpo às nossas articulações teórico-clínicas sobre essa temática, que traz elementos que julgamos contribuir para elucidar tanto aspectos da clínica psicanalítica como do mal-estar na cultura contemporânea.

 

Solidão negada: a obturação do desejo a serviço de uma posição cristalizada

A pesquisa de maior repercussão midiática em 2011 sobre a solidão é a de John T. Cacioppo, diretor do centro de neurociência da Universidade de Chicago, publicada em um livro lançado em 2010, chamado "Solidão" (Cacioppo & Patrick, 2010). Mas Cacioppo não é voz única no campo médico. Nos últimos anos, um boom de matérias na internet, em jornais, em revistas e na televisão tem divulgado pesquisas científicas norte-americanas acerca de uma "nova doença epidêmica": a solidão. Ao ser tomada dessa forma, ela vem sendo tratada pelo discurso médico hegemônico como uma categoria patológica, mais especificamente como uma manifestação doentia de subjetividades mal adaptadas ao corpo social.

A frase-slogan que os meios de comunicação priorizaram desse livro foi: "A solidão prejudica a saúde, mais que a obesidade e o tabaco". Outro carro-chefe da pesquisa de Cacioppo é a estatística de que a solidão é "a maior causa de infelicidade de 1 em cada 5 americanos". Em uma visão evolucionista, trata o vínculo social como uma característica instintiva que foi desenvolvida pelo processo de seleção natural da espécie humana. Para Cacioppo, portanto, estar "sem solidão" é o mesmo que estar "sem sede", "sem fome" ou "sem dor", cito o próprio autor: "a saúde e o bem-estar para um membro de nossa espécie requer uma condição de não se sentir só, que é algo que faz parte do estado normal das coisas" (Cacioppo, 2010, p. 24).

Para esse neurocientista, a solidão é um mal que está localizado no cérebro dos solitários. Dessa forma, seus estudos neurocientíficos comprovam que a causa da solidão é fundamentalmente endógena. Não seria exagero prever a produção de um novo medicamento que solucionará convenientemente esse distúrbio.

Em um outro estudo, realizado pela Universidade da Califórnia, Steve Cole, psicólogo responsável por produzir um teste de solidão (uma escala avaliativa) que verifica o nível de solidão dos sujeitos, afirma que "pessoas que se queixam de uma vida reclusa possuem genes menos ativos na proteção contra vírus, pois os sociáveis estão naturalmente mais propensos a contrair viroses por estarem em maior contato com outros indivíduos" (Anguzi, 2011).

Embora um estudo enfoque o impacto genético da solidão e outro enfatize o aspecto neurocientífico causador dela, ambos, em uma perspectiva médica de saúde, visam a verificar o desviante, não são, o não adaptado às relações sociais por meio da escala avaliativa, para, assim, poderem tratar os pacientes, expurgando esse mal.

Uma das matérias publicadas no site da Editora Abril, que divulgava a pesquisa de Los Angeles, é ilustrativa do que esse tipo de discurso sobre a solidão produz:

    Para domar a solidão:
    Cuide dos seus pensamentos: se você se sente bem permanecendo um tempo sozinho, não foque em problemas, mas em assuntos positivos.
    Gerencie seu tempo: apesar da correria, é importante manter um momento para os amigos e a família e para cuidar de si mesmo. Abra o leque de relacionamentos: permita-se conhecer novas pessoas e controle a ansiedade para evitar possíveis decepções. (Agunzi, 2011)

Como se vê, o discurso médico contemporâneo, ao produzir um novo sintoma, faz da solidão algo que deva ser abolido, superado, administrado e medicalizado. Etiquetar a solidão e colocá-la dentro da gaveta das categorizações patológicas significa cair em uma armadilha, que captura os que se regulam por critérios de normalização: a associação da solidão a uma noção de déficit. Como nos alerta Rosolato (1969), não poderíamos falar de "carência de sociabilidade" quanto à solidão, pois tal postura é demasiadamente reduzida e, do ponto de vista psicanalítico, não pode ser mantida se nos dispusermos a ouvir cada sujeito.

Ao analisar as falas de nossos pacientes, parece-nos que Cacioppo (2010) (representante aqui do discurso médico contemporâneo sobre a solidão) transforma o mal-estar do sentimento de solidão que diz respeito à indeterminação do desejo em um sofrimento determinado. A perspectiva médica parece transformar o vínculo afetivo com o outro em mais um objeto de satisfação que deve ser conquistado por cada indivíduo, em nome de sua "saúde e bem-estar".

Portanto pensar a solidão como doença do indivíduo que sempre fracassa na relação com o outro é reduzir essa experiência a um estatuto imaginário das relações sociais, podendo legitimar inclusive a queixa do neurótico insatisfeito que sente falta de mais reconhecimento do outro. É um pensamento que simplifica e reduz, tanto a concepção de solidão, quanto a complexidade que envolve os vínculos entre os sujeitos, que, em certo sentido, sempre fracassam. Nessa direção, Lacan (1998) nos alerta, em seu Seminário VII, que devemos ser mais cautelosos às análises que segundo ele pendem "para a facilidade" e que fazem "todo o tratamento deslizar para o manejo da frustração". A prevalência dada à demanda é algo que o neurótico já faz, alerta o autor. Não devemos tratar a solidão, portanto, ao modo do neurótico, ou seja, tamponando a falta que ela envolve, como se houvesse um objeto predeterminado a ocupar esse lugar. A solidão como presença de uma ausência é um sentimento que pode simbolizar a falta e, portanto, revela uma posição desejante em vez de demandante. É sobre essa concepção de solidão que a psicanálise pode se deter (Tatit, 2012).

Talvez também seja interessante, nesse momento, retomarmos a tese central de Freud (2010) no texto sobre o mal-estar, em que há uma dimensão de conflito inerente à cultura, que resistirá a toda e qualquer reforma. No entanto, o psicanalista aposta na transformação social a fim de melhorias, considerando legítima a tentativa de evitar tanto sofrimento, mas se estivermos cientes de que é impossível eliminar as dificuldades completamente (p. 83). Essa dimensão do conflito que é inerente se presentifica em dois níveis: o da renúncia pulsional, que entendemos ser a troca "de um tanto de felicidade por um tanto de segurança" (p. 82) e o surgimento do que Freud chamou de "miséria psicológica da massa", que, por sua vez, pode ser evitado. O perigo de haver uma cristalização nesse estado se dá quanto mais alto for o grau de "homogeneidade mental" (Freud, 1969, p. 109), em que o vínculo social, estabelecido principalmente pela identificação dos membros entre si gera um estado de influência recíproca. Nesse sentido, o sujeito que cede a todos os ideais civilizatórios, identificado cegamente a um grupo, pode contribuir para o estado que Freud nomeou de "miséria psicológica da massa", no qual as singularidades são esvaziadas e submetidas a uma unificação do desejo, das escolhas, dos modos de apreender o mundo.

Por que as pessoas devem ser, todas, seres bem relacionados socialmente, amigáveis, populares, rodeadas de pessoas? Freud já criticava o mandamento do supereu cultural "ama teu próximo como a ti mesmo", discurso que incita, sem muito questionamento, o vínculo com todo e qualquer outro próximo. O sujeito solitário também sofre da punição desse ideal social de ter que se relacionar, Freud diz que o "[...] supereu da cultura, exatamente como o do indivíduo, institui severas exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante ‘angústia de consciência’" (Freud, 2010, p. 117).

O sujeito se manifesta com o sofrimento contra o que está posto. Essa é uma descoberta freudiana desde o tratamento com as histéricas. Nesse sentido, há uma política nos sintomas a ser considerada pela psicanálise, a solidão é tomada, dessa forma, como manifestação de um recalcado que retorna para dizer do mal-estar no laço. O sentimento de solidão pode se manifestar contra a miséria psicológica da massa, a miséria que postula uma posição de gozo universal cristalizada para os sujeitos: "goze sendo autossuficiente e sociável".

Ao ouvirmos nossos pacientes migrantes, portanto, pudemos destacar claramente dois tipos de movimentos. O primeiro se relacionava à tentativa de sustentação de um discurso de autossuficiência, que, não por coincidência, fazia coro com o discurso médico hegemônico midiático. Nesse sentido, suas falas giravam em torno da afirmação de que "não dependiam de ninguém" e por isso podiam se lançar a infindáveis deslocamentos territoriais por se sentirem "livres para começar sempre do zero". Ao longo da análise, esse discurso, que se repete em vários pacientes, parece surgir como resposta ao imperativo superegoico gozante que está em nosso campo social: "seja independente, autônomo e feliz". Após o esvaziamento de ideais relativos à autossuficiência, alguns pacientes puderam deparar com a própria falta, de modo que um sentimento de solidão passou a ser manifestado, tanto para falar da suposição de um outro que poderia estar presente quanto para falar do próprio desamparo. O segundo movimento se vinculava ao deslocamento solitário que tinha como efeito o rompimento com algumas identidades cristalizadas, bem como à possibilidade inédita de busca do novo, que parecia ser indicativa de um movimento desejante do sujeito. É o que discutiremos mais adiante.

Na análise desses dois movimentos, há ainda que se colocar lado a lado a experiência dos pacientes migrantes ou imigrantes que se lançam a uma errância sem fim com a de sujeitos que migram infinitamente de objeto a objeto, deslocando sua angústia relativa à sua falta constitutiva para objetos substitutivos, objetos presentes no mercado e na mídia que obturam momentaneamente o desejo. Como vimos, o discurso hegemônico nesses meios sobre a solidão administram o sofrimento, de modo que o sujeito não pode nem tampouco ter uma dor que lhe é singular. Dito de outro modo, a busca infinita movida pelo vazio, que visa ao laço via objeto, obscurece tanto a presença do semelhante, que oferta ao sujeito sempre um encontro faltoso, quanto uma experiência própria de singularidade. Em vez do outro e suas vicissitudes, o laço no capitalismo promete o objeto perfeito e uma solução adequada a qualquer tipo de sofrimento, como garantias ilusórias de completude, na qual o sujeito nunca se sentirá solitário e ou de mal com a vida.

Ser sujeito não é ter uma essência, mas movimento, errância, um caminhar incessante em seu pensamento, vida sem repouso e sem medir distâncias. Consideramos que o discurso contemporâneo, baseado na lei do mercado, incita o sujeito aos processos metonímicos, deslocando sua angústia e a confrontação da falta para objetos substitutivos, objetos presentes no mercado, que obturam a falta do sujeito, lançando mão de uma promessa de felicidade. Em contraposição a isso, a política da psicanálise está mais próxima do estatuto de autoexílio do sujeito do que da autoestima.

 

Errância e desenraizamento: uma faceta possivelmente desejante da solidão

Tanto o trabalho em albergues para imigrantes quanto a escuta de migrantes em consultório particular nos levaram a pensar acerca da condição errante do desejo e suas vicissitudes, ou seja, no deslocamento territorial e sua contrapartida em deslocamento psíquico, modo como Freud nomeia uma das leis do inconsciente freudiano. Para levantar as coordenadas sobre a função dos deslocamentos em suas relações com a solidão, portanto, em trabalhos anteriores, temos relacionado o deslocamento como fenômeno migratório com o deslocamento como uma das leis do inconsciente freudiano e sua versão em Lacan, a metonímia (Rosa, Berta, Carignato e Alencar, 2009).

Articulamos o deslocamento/metonímia aos avatares do desejo, desenvolvendo a hipótese de que as dimensões diacrônicas e sincrônicas do discurso, expressas pela metáfora e pela metonímia, demonstram a condição itinerante do desejo que se reinventa a todo o momento em tensão com uma ficção que é construída em relação ao sujeito. Ambas são concomitantes e compõem a historicização do sujeito. Dissociadas, podem gerar, de um lado, um movimento contínuo sem ponto de báscula (nos casos que atendemos, isso resultava em um deslocamento territorial infindável do sujeito e o sentimento de desenraizamento) e, de outro, podem levar a uma identidade cristalizada alienante que retira o sujeito de sua condição desejante. Ou seja, todo sujeito neurótico se constitui na alternância entre o movimento metonímico do desejo e a cristalização sintomática em identidades.

No trabalho com migrantes e imigrantes, essas duas dimensões ficam evidentes, posto que, por vezes, o deslocamento territorial proporciona um potencial inovador, mas, em outros momentos, tem como efeito muito sofrimento e o isolamento de alguns sujeitos. Muitas vezes, isso ocorre porque há condições contingentes de penúria geradas por questões sociais e não intrínsecas ao processo migratório. Entendemos que o momento do deslocamento pode ser uma vivência de suspensão das certezas simbólicas e imaginárias do Eu. Portanto a migração pode remeter ao desejo humano, por meio da cadeia metonímica de associações, de significações e de substituições metonímicas que contornam o desejo do Outro.2 Nessa direção, pode-se ir ao país do Outro movido pela premência de romper com alienação mortífera, de mudar de lugar subjetivo desconstruindo ficções do Eu, desencadeando movimentos que possibilitem experimentar outros destinos, novas dimensões da vida e o contato com uma alteridade verdadeira. Entendemos, no entanto, que essa possibilidade pode ser impedida por contingências sociais que segregam quem migra.

 

Solidão imposta: a segregação como uma faceta gozante da solidão

O risco dessa aventura, especialmente quando forçada e associada a processos de exclusão e abuso social e político, é da dissociação dos processos metafóricos e metonímicos, como ocorre com alguns dos usuários da Casa do Migrante e com alguns dos sujeitos nos tempos sombrios do capitalismo avançado. De um lado, erram sem destino; do outro lado, o sujeito circunscrito ao ponto de basta, sem o necessário deslizamento do significante que o identifica a determinados grupos sociais, é o sujeito fortemente alienado a uma identidade nacional ou étnico-religioso-cultural. A ameaça da desterritorialização, não necessariamente produzida nas migrações, pode acarretar na constituição de uma territorialidade circunscrita por uma demanda fixa e sem possibilidade de dialetização; ou seja, uma fixação maior no nível sincrônico do discurso que alude ao ponto de basta que circunscreve, revela e veda a verdade do sujeito. Muitas vezes, o apego à territorialização aparece imaginariamente como garantia de pertencimento. Essa condição de imigrante, refugiado e de errante pode propiciar, sem dúvida (e é o que observamos) toda sorte de manipulações e abusos. Pressionado, desenraizado, o sujeito deixa-se emaranhar nas garras do instantâneo, do reagir em vez do agir. Muitos deles se perdem em questões como emissão de documentos, empregos precários, casamentos arranjados, em filhos gerados para legalização, estratégias que supostamente decidiriam a posição do sujeito.

 

Uma solidão que possa ser ética

Freud, no texto Moisés e o monoteísmo (2010), defende as vicissitudes da errância e do nomadismo do desejo, mostrando que a sua precedência sobre a sedentarização marca o povo judeu. Tal povo, segundo Fuks (2000), busca na experiência da errância como ato, uma metáfora da errância do sujeito pelo deserto da libido. As migrações territoriais, os atos de errância e nomadismo não são maldição ou benção, mas uma possibilidade do sujeito que, em seu movimento de exílio, regresso e solidão, pode estabelecer uma abertura radical e primeira ao Outro.

No entanto, como vimos, tal exílio e identidade ganham especificidades nos diferentes processos de deslocamento. A migração territorial é um processo que mobiliza e enlaça motivações sociais, políticas, econômicas e subjetivas (a relação com a nova terra e também os novos laços terão as marcas desses processos). Essa condição tem a potência de relativizar toda relação fixa do sujeito com o poder de modo que o olhar do exilado, migrante ou refugiado pode, por sua exterioridade, ser perturbador para a cidade, gerando hostilidades e violências. Também pode assim abalar a identidade do sujeito, tomada aqui como a ficção de si mesmo. Por isso mesmo, o exílio pode levar o indivíduo ou grupo a se enclausurar nas chamadas "comunidades étnicas".

Em trabalhos anteriores realizamos uma importante diferenciação entre a situação de segregação imposta e a migração em termos de deslocamento, que é própria do movimento de busca da diversidade e de tornar-se outro. A dimensão trágica do migrante encena algo comum a todos, pois todos somos sujeitos exilados, desenraizados de nós mesmos, constituídos pelo desconhecimento enigmático da dimensão inconsciente.

Nota-se que certos deslocamentos sucessivos promovem a suspensão da função pacificadora e estabilizadora do Eu, produtora de um apoio identitário. Tal suspensão reverte no abrandamento das leis e valores que favoreceriam a dimensão desejante, mas dificultam marcar o lugar de onde podem estabelecer laços com o outro. Além disso, os abalos identificatórios afetam especificamente o Eu, seja no registro imaginário (Eu ideal), seja no registro simbólico (ideal do Eu). Eles podem ser libertários, mas também desorientadores. E facilitam a aceitação do mínimo para a subsistência, dispensados os artifícios narcísicos, que podem tomar forma de conformidade e submissão (Rosa et al., 2009).

Neste trabalho, ressaltamos um outro aspecto, de que a solidão, ao contrário da segregação e do isolamento, não se faz inimiga da cultura. Não podemos confundir solidão com segregação. A solidão não é apenas o refúgio em um mundo próprio, uma fuga do desprazer ou uma faceta do individualismo, da indiferença ao outro, do narcisismo, onipotência, entre tantos outros nomes que poderíamos usar, reduzindo a experiência de solidão. Obviamente há movimentos inibitórios que servem como tentativas de isolamento, de criação de um espaço com risco zero e protegido, buscando um velamento das dificuldades entre o sujeito e os outros. Há, ainda, práticas segregativas advindas do Outro, nas quais a solidão passa a ser uma condição forçada.

Defendemos, no entanto, que a solidão singular de cada sujeito se distingue destes por incluir o mal-estar da falta constitutiva, e é essa solidão que pode ser ética. A psicanálise deve levar em conta esse mal-estar sem se oferecer como um objeto substituto a essa falta, posto que a solidão é uma experiência simbólica que não tem um objeto específico que a tampone. A experiência de mal-estar do sentimento de solidão é, como reforça Dunker (2011), simbólica por excelência, e, diferentemente do que essas pesquisas apresentam, a solidão não está associada a uma falta de objetos determinados.

Inclusive, o sujeito não precisa tampouco estar sozinho para vivenciá-la, pois, como afirma o autor (Dunker, 2011), a solidão é uma versão do que nós, psicanalistas, chamamos de separação ou castração, uma vez que nessa experiência, o objeto ao qual poderíamos nos identificar para cobrir nossa falta e a nossa falta no Outro é finalmente deslocado de sua função encobridora.

A experiência de separação não é livre de angústia, e o sujeito pode vacilar na efetividade da sua aposta e em relação ao preço que paga, sempre excessivo na concepção do neurótico, alimentado pelo discurso midiático. Sua escolha é sustentar essa aposta ou a angústia da falta da falta, como aponta Lacan:

    [...] A possibilidade da ausência, eis a segurança da presença. O que há de mais angustiante para a criança é, justamente, quando a relação com base na qual essa possibilidade se institui, pela falta que a transforma em desejo, é perturbada, e ela fica perturbada ao máximo quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas dela, especialmente a lhe limpar a bunda, modelo da demanda, da demanda que não pode falhar (Lacan, 2005, p. 64).

Não parece ser uma tarefa fácil, mas entendemos que, do ponto de vista psicanalítico, escutar as falas dos sujeitos sobre sua experiência de solidão pode ser uma direção possível de tratamento. Entendemos que a solidão pode ser ética uma vez que parece encarnar um conflito que, elucidado, contém crítica a uma sociedade homogeneizada, que valoriza a coesão de grupo, a harmonia, a felicidade, ao mesmo tempo em que incita a autossuficiência, a autonomia e a independência.

Concluindo, a partir da reflexão sobre o deslocamento de migrantes e imigrantes em sua relação com as modalidades de vínculo estabelecidas por eles, consideramos que a solidão é uma experiência solidária à sustentação de uma posição desejante que não dispensa os laços com o outro.

A proposta deste trabalho foi traçar um caminho da faceta gozante do discurso sobre a solidão que a toma como uma manifestação patológica de subjetividades mal adaptada ao corpo social, à faceta desejante da solidão que a considera uma experiência que pode viabilizar as manifestações mais singulares do sujeito. Do nosso ponto de vista, dizer dessa experiência é poder historicizar a trajetória metonímica do desejo e os impasses que ela promove ao sujeito em seus laços identificatórios já constituídos onde ele é o estrangeiro entre seus pares. É a tarefa do sujeito articulando os processos metonímicos aos metafóricos que dará consistência, permanência à experiência reorganizando o Eu e seus laços. Tal trajetória é marcadamente solitária e remete à ética da solidão que, mais do que significar algo específico universalmente, refere-se à singularidade do sujeito, na margem em que ele se separa do Outro e, nesse confronto com a ausência do outro, a possibilidade de se confrontar com a própria falta.

 

Referências

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Tatit, I. (2012). Do discurso de isolamento a uma experiência de solidão. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

* Professora do Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o Laboratório Psicanálise e Sociedade e o Projeto Migração e Cultura; professora titular da Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Política. E-mail:debieux@terra.com.br.
** Mestra em Psicologia Social pela PUC-SP, membro do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Política, psicanalista. E-mail:i_tatit@hotmail.com.
1 Trabalho apresentado na 1ª Jornada Internacional: O Mal-estar na Cultura – A Solidão, 16 e 17 de setembro de 2011, na Câmara Municipal de São Paulo. Evento organizado pelos membros da Etc. e Tal - Psicanálise e Sociedade.
2 Lê-se grande Outro. Trata-se de um conceito lacaniano que recebe diversas significações ao longo da obra do psicanalista francês. Em nosso texto, usaremos Outro para designar um lugar simbólico, inconsciente, que marca a relação do sujeito com seu desejo. A noção de Outro é contraposta à de outro, definido como o outro imaginário da alteridade especular: nosso semelhante.