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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.2 Belo Horizonte May/Aug. 2019

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p422-441 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p422-441

 

Uma reflexão acerca da terceirização dos cuidados maternos em um contexto perpassado por reprodução assistida e gravidez múltipla

 

Reflecting on maternal care outsourcing within a context comprising assisted reproduction and multiple

 

Pregnancy una reflexión sobre la externalización de la atención materna en un contexto de reproducción asistida y embarazo múltiple

 

 

Fernanda Schmitt Ribeiro*; Silvia Maria Abuzamra Zornig**

 

 


Resumo

Este trabalho teve por objetivo compreender as razões pelas quais uma mãe decidiu terceirizar os cuidados de seus bebês. A pesquisa foi desenvolvida por meio do método Bick de observação de bebês, que ocorreu com uma mãe e seus três filhos trigêmeos. A mãe acompanhada teve sua gestação concebida mediante técnicas de reprodução assistida. As observações ocorreram quinzenalmente, durante o primeiro ano de vida dos bebês, na casa da participante. A observadora destaca ter se deparado com um contexto em que ela se via ao lado da mãe vendo as cuidadoras, babás e enfermeira cuidarem dos bebês. Com base nessa constatação, foi proposta na discussão uma reflexão acerca da terceirização dos cuidados maternos no caso acompanhado, levantando-se três hipóteses que se interligam e estão relacionadas a: reprodução assistida, maternidade trigemelar e o sentimento de vulnerabilidade descrito por Winnicott que muitas mulheres vivem ao se tornarem mães.

Palavras-chave: Observação de bebês. Maternidade. Reprodução assistida. Terceirização dos cuidados. Trigêmeos.


Abstract

The purpose of the present study was to understand the reasons why a mother decided to outsource the care of her babies. This work occurred with a mother and her three children through Bick infant observation method. The subject mother conceived her pregnancy through Assisted Reproduction Techniques. The observations occurred every two weeks during the first year of the babies’ life, at the subject’s home. The observer points out to have faced a context in which she saw herself beside the mother watching the caregivers, babysitters and nurses taking care of the babies. Based on that, it was proposed a reflection on the outsourcing of maternal care in the studied case, raising three hypotheses that are interconnected and are related to: assisted reproduction, triplet maternity and the feeling of vulnerability described by Winnicott, that many women experience when become mothers.

Keywords: Observation of babies. Maternity. Assisted reproduction. Outsourcing of care. Triplets.


Resumen

Este estudio tuvo como objetivo comprender las razones por las que una madre decidió externalizar el cuidado de sus bebés. El mismo fue desarrollado a través de Método de Observación del Bebé Bick que se produjo con una madre y sus tres hijos. Esta madre concibió su embarazo a través de Técnicas de Reproducción Asistida. Las observaciones se llevaron a cabo quincenalmente durante el primer año de vida de los bebés, en la casa de la participante. El observador se encontró en un contexto en que estaba junto de la madre observando a los cuidadores y a las enfermeras cuidar a los bebés. A partir de esta observación, se propone una reflexión sobre la externalización de la atención materna acompañada en el caso, con tres hipótesis que están interconectadas y están relacionados con: la reproducción asistida, la maternidad del trío y el sentido de vulnerabilidad descrito por Winnicott.

Palabras clave: Observación de bebés. Maternidad. Reproducción asistida. Externalización de la atención. Trillizos.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos motivos que levaram uma mãe a terceirizar os cuidados dos seus filhos, em um caso acompanhado durante o primeiro ano de vida dos bebês. Esse caso apresenta uma série de peculiaridades, sendo a primeira delas a forma de concepção dessa gestação, que foi concebida por Técnicas de Reprodução Assistida (TRA). As TRA buscam auxiliar casais que não conseguiram atingir a concepção naturalmente a fazê-lo. Gratão, Facin, Cunha-Filho, Freitas, e Passos (2003) explicam que existem diversas TRA, sendo as mais utilizadas a Inseminação Artificial (IA) e a Fertilização In Vitro (FIV). Outra singularidade diz respeito ao fato de essa mãe ter concebido uma gravidez múltipla, de forma que sua experiência de maternidade foi trigemelar. Por fim, chegamos ao fato de que essa mãe contava com duas equipes para cuidar de seus bebês, que se alternavam semanalmente, sendo que cada equipe era formada por uma enfermeira e duas babás.

Uma das características desse caso diz respeito à história dessa concepção, realizada com o auxílio de TRA. A experiência de submissão a tratamentos é um fenômeno muito discutido na literatura internacional, muitas vezes vista como uma intrusão médica que ocorre no âmbito mais privado e íntimo da vida de um casal. Para a psicanalista Nayar-Akhtar (2014), a submissão às TRA pode se configurar uma experiência traumática, devido à instabilidade vivenciada nesses tratamentos, em que se percebe que ciclos de excitação são seguidos por desespero e desapontamento, podendo se repetir inúmeras vezes. A psicanalista Mann (2014) propõe que a depressão pode estar presente nessa experiência, assim como sentimentos de culpa e apreensão.

Conforme mencionado, o caso apresentado é de uma maternidade trigemelar. Ante essa informação, percebe-se que essas duas características não estão simultaneamente presentes ao acaso. Internacionalmente, constata-se a existência de altas correlações entre mulheres que se submeteram à TRA e concepções de gestações múltiplas. Freitas, Siqueira e Serge (2008) informam que, quanto à realidade brasileira, entre os anos de 1984 a 2003, foi verificado que o número de nascimentos como um todo elevou-se 9,5%, sendo que o de nascimentos de triplos ou mais bebês foi cinco vezes maior nesse mesmo período.

Os riscos físicos e psíquicos das gestações múltiplas são facilmente apontados, destacando-se maiores índices de cesariana, baixo peso do bebê e prematuridade (Mann & Mann, 2014). Já as possíveis consequências dessa forma de concepção sobre a experiência da maternidade de gêmeos vêm sendo investigadas por pesquisadores do mundo todo. Estudos têm associado à gravidez múltipla de mães primíparas, derivada de TRA, maiores índices de estresse materno quando comparadas às mães que se submeteram ao tratamento e conceberam apenas uma criança, ou quando se estabelece uma relação com mães de gêmeos concebidos naturalmente, como apontam Sheard, Cox, Oates, Ndukwe, e Glazebrook (2007). Há também estudos que indicam um maior risco à depressão nessas mães, como demonstram os resultados de Ellison et al. (2005).

Assim, percebe-se que essas mulheres entram em estatísticas não muito otimistas. Possivelmente, esses níveis de estresse e depressão associados a essas gestações surjam devido ao fato de essas mulheres terem de prover cuidados e criarem sua identidade materna com dois ou mais bebês ao mesmo tempo. Podese inferir que, nesse contexto em que o cuidado precisa ocorrer com mais de um bebê simultaneamente, o auxílio à figura materna se torna uma necessidade eminente. Contudo, este artigo busca trazer uma reflexão acerca da fronteira, por vezes sutil para alguns, entre o auxílio que a mãe de gêmeos, neste caso trigêmeos, necessita e da terceirização de cuidados, na qual o que se percebe não é um auxílio ao exercício da maternidade, mas sim uma delegação dos cuidados dos filhos a especialistas e cuidadoras. Assim, este estudo demonstra sua relevância por ter procurado identificar fatores que possam ter contribuído para que essa terceirização de cuidados ocorresse, tendo como objetivo oferecer uma contribuição àqueles profissionais que auxiliam mulheres em contextos similares de maternidade. Além disso, suas reflexões teóricas buscam contribuir aos estudos da maternidade no contexto, perpassado por TRA e gravidez múltipla.

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Neste estudo, foi utilizado o método de observação de bebês Esther Bick, que será brevemente apresentado. Criado em 1948, o objetivo desse método é possibilitar ao observador uma oportunidade de compreender o universo da relação diádica mãe-bebê. Bick (1967) defende que a observação de bebês se configura uma técnica inovadora, uma vez que o observador passa uma hora na companhia da dupla mãe-bebê, durante um período e frequência acordados com a parturiente, possibilitando um verdadeiro testemunho do nascimento e desenvolvimento dessa relação. Por essa razão, foi agregado ao plano de estudos do Instituto de Psicanálise de Londres em 1960, sendo considerado útil para que os estudantes em formação em psicanálise desenvolvessem a compreensão da conduta não verbal do bebê e de seus jogos.

Em relação a essa potencialidade do método Bick de desenvolver o analista, Caron e Lopes (2015) propõem que esse método serve como uma ferramenta para o desenvolvimento da escuta analítica, especialmente em relação aos fenômenos psíquicos mais primitivos. As autoras sugerem que o desenvolvimento dessa capacidade possibilita que o analista possa lidar com o fenômeno transferencial e contratransferencial de níveis mais primitivos, em que sua confiabilidade, consistência, constância e preocupação são mais importantes do que sua capacidade de interpretar a partir do conhecimento teórico.

Oliveira-Menegotto, Menezes, Caron e Lopes (2006) escreveram um artigo acerca desse método e de suas implicações quando este é empregado como instrumento de pesquisa. Em sua revisão de literatura, destacam que o propósito da observação de bebês é a reflexão sobre as interações entre o bebê, a mãe e os demais cuidadores, permitindo ao observador pensar acerca do desenvolvimento do bebê e da sua relação com a mãe. As autoras enfatizam a importância de o observador poder participar da experiência, partindo do não saber, buscando um desprendimento dos seus hábitos terapêuticos e teorias, para apenas observar. Dessa forma, o observador acompanha a construção desses laços, sem interferir ou impedir o seu desenvolvimento, o que não significa ausência de intervenção, uma vez que sua presença altera a dinâmica do sistema familiar. Por essas razões, as autoras defendem que esse método efetivamente promove uma abertura aos aspectos não verbais da comunicação, trazendo inúmeras contribuições. Contudo destacam que este apresenta limitações, uma vez que seus resultados não são passíveis de generalizações.

Neste estudo, foram acompanhados uma mãe e seus três bebês, assim como as cuidadoras, uma vez que existiam duas equipes que cuidavam dos bebês. Essa mãe teve seus filhos um pouco antes de completar 38 anos de idade e estava casada com o pai dos bebês havia seis anos. Quanto às funcionárias, semanalmente, uma equipe nova chegava e substituía a equipe anterior, que havia ficado na casa durante sete dias contínuos. Cada equipe era formada por uma enfermeira e duas babás, de forma que sempre havia uma cuidadora para cada bebê. Eventualmente, houve algumas demissões de funcionárias ao longo desse ano.

A família foi acompanhada durante o primeiro ano de vida das crianças, configurando-se, assim, um estudo de caso único de caráter longitudinal. As observações ocorreram quinzenalmente, a fim de facilitar a adesão da família à pesquisa, uma vez que se compreendeu que, com essa frequência, seria possível acompanhar o desenvolvimento desse vínculo. A duração das observações era flexível, tendo em vista que se tratava de um contexto da maternidade com três bebês, estas tiveram em média uma duração de duas horas. Após o término, a pesquisadora realizava um relato em que expunha os principais acontecimentos, acrescentando suas sensações, sentimentos e percepções. Esses relatos serviram de base para as análises realizadas, que, neste artigo, foram abordadas de uma forma abrangente, buscando-se uma leitura do todo das observações em conjunto. Essa pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Rio e teve seu parecer aceito (2016-25). A participante do estudo também assinou o termo de consentimento livre e esclarecido.

3. APRESENTAÇÃO DO CASO

O caso acompanhado se tratava de uma mãe que, pelas TRA, concebeu uma gravidez trigemelar. A mãe era uma empresária que tinha sob seu comando diversos funcionários. Essa característica se faz importante, pois esse olhar empresarial, muitas vezes, estava presente em sua forma de administrar as equipes que cuidavam dos bebês. Com câmeras espalhadas pelos cômodos da casa, a mãe encontrou uma forma de retornar ao trabalho o quanto antes, podendo assim acompanhar de longe os bebês e as cuidadoras. Algumas demissões ocorreram ao longo desse período, e a praticidade dessas trocas de profissionais se sintetiza na resposta que a mãe deu, quando questionada pela observadora se os bebês sentiam, de alguma forma, a ausência das cuidadoras demitidas: "Eles estão tão acostumados com tantas pessoas, que a gente brinca que basta estar de branco para eles se acostumarem (risos)".

Nesse contexto, a observadora se deparou com uma mãe que observava seus filhos junto com ela, uma vez que delegava os cuidados básicos às cuidadoras, que estavam sempre num grupo de três (uma enfermeira e duas babás), de forma que sempre havia uma cuidadora para cada bebê. Assim, quando um dos bebês estava tomando banho, a mãe sempre permanecia com algum dos outros bebês que estivesse brincando, de forma que nunca acompanhava o filho que estava no banho. À noite, quem ficava com os bebês era a enfermeira e uma das babás (as duas babás podiam se revezar), e elas acudiam os bebês quando choravam. Ao ser questionada se havia casos em que a mãe era chamada, a enfermeira respondeu que houve um episódio em que um dos bebês chorava muito, e ela teve de chamar a mãe para acudi-lo, pois já estava incomodando os outros dois. Por outro lado, em relação ao momento da alimentação dos bebês, a observadora percebeu que, nas ocasiões em que a mãe estava presente, ela sempre elegia um dos filhos para alimentar.

Os bebês nasceram prematuros e, por essa razão, permaneceram cerca de três meses na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) perinatal. Essa informação se torna importante quando consideramos outra característica que chama a atenção nesse caso: após cerca de um mês de os bebês estarem em casa, a mãe já havia retomado algumas reuniões de trabalho e suas idas à academia. Também se torna pertinente mencionar que a mãe realizou uma viagem quando seus filhos estavam com seis meses de vida, tendo se ausentado por alguns dias para viajar a lazer com seu marido.

Apesar do distanciamento aparentemente presente neste caso entre a mãe e seus bebês, ela demonstrou empatia com seus filhos, especialmente em momentos de desconforto, quando, por exemplo, um deles demonstrava estar com cólica ou dificuldade de arrotar, ou quando o ambiente parecia estar frio ou com excesso de luminosidade. Outra observação a ser destacada é a capacidade de a mãe identificar e destacar as individualidades de cada um dos filhos, desde o início das observações, em que já tinham sido atribuídos aos filhos adjetivos que os distinguiam quanto às suas personalidades.

Durante esse acompanhamento, houve um fato que trouxe importantes repercussões nesse caso. Com mais ou menos um mês após a alta da UTI perinatal, um dos bebês se engasgou com o leite e teve de ser reanimado pela enfermeira. O bebê sobreviveu, mas precisou passar mais alguns dias na UTI. Após esse acontecimento, a mãe decidiu que, enquanto eles estivessem pequenos, sempre haveria uma enfermeira presente, o que ocorreu até a observação ser encerrada. Assim, sempre havia uma profissional de enfermagem para passar a noite com os bebês.

Quanto à presença de familiares ao longo dessa observação, a avó paterna foi uma figura bem presente, que aparecia e auxiliava as cuidadoras nos afazeres com os bebês e, ainda que demonstrasse estar numa posição de dar ordens às cuidadoras, colocava-se bastante disponível para auxiliá-las com os cuidados. A avó materna nunca foi encontrada nas observações. Segundo a mãe dos bebês, ela também era uma executiva que tinha muitas responsabilidades e trabalhava a maior parte do tempo. O pai dos bebês foi visto em duas ocasiões distintas, rapidamente, quando saía para trabalhar.

4. DISCUSSÃO

A terceirização de cuidados tornou-se um fator presente em muitas famílias da classe média brasileira. A antropóloga Lima (2014) destaca, em seu estudo, a presença da figura da babá nesse contexto socioeconômico. Em seu trabalho, relata ter escutado de um médico pediatra que, em suas consultas médicas, comumente ele se dirigia diretamente às babás para saber das crianças e não às mães. A autora também destacou que, em festas de aniversários, é comum, no lugar dos nomes dos pais das crianças, estarem na lista de convidados os nomes das cuidadoras. Esses foram alguns dos dados que Lima utilizou para demonstrar como a presença dessas profissionais se efetivam no dia a dia dessas famílias.

Tendo em vista essa constatação, é possível perceber que a terceirização dos cuidados não era algo excepcional na realidade que vive a mãe acompanhada neste estudo. Entretanto, este se propõe a ir além dessa constatação social e levanta questionamentos acerca das possíveis razões que levaram essa mãe a escolher esse tipo de cuidado para seus filhos.

Possivelmente a busca pela terceirização de cuidados nesse caso se deu por um conjunto de fatores que se entrelaçam. Primeiramente, temos a questão de essa gestação ter sido concebida com o auxílio de especialistas, o que pode ter gerado nessa mulher uma desautorização acerca do seu saber como mãe, levantandose, então, a hipótese de que a terceirização dos cuidados estaria relacionada à forma de concepção dessa gestação. Como essa mãe precisou de especialistas para conceber seus filhos, ela não confiava em sua capacidade materna para saber o que era melhor e necessário para eles, de forma que delegou seus cuidados a especialistas, da mesma forma como havia feito para concebê-los.

Essa hipótese pode ser fortalecida com os achados encontrados em um estudo brasileiro qualitativo realizado por Braga e Amazonas (2006), que investigou a experiência da maternidade concebida por meio das TRA com seis mulheres que haviam se submetido às técnicas. Neste, as autoras sugerem que a dificuldade de engravidar tende a criar na mãe uma supervalorização de seu filho ainda no período gestacional, visto que, mesmo antes de conceber um bebê, a vida dessas mulheres já está girando em torno dessa concepção. Esse histórico leva a mãe a não se sentir segura para carregar essa criança, tendo uma necessidade maior de apoio, duvidando, muitas vezes, de seu próprio entendimento sobre o bebê. As autoras também sugerem que a intensa disciplina que essas mulheres tiveram de apresentar para conseguir engravidar por meio desses tratamentos desencadeia um sentimento de insegurança quanto às suas capacidades maternas, já que estavam sempre rodeadas de especialistas que lhes prescreviam o que deviam ou não fazer. Assim, essas mulheres acabavam por se cobrar demais e tornaram-se muito exigentes para consigo.

Na direção dessas reflexões, temos um outro estudo brasileiro qualitativo realizado por Dornelles e Lopes (2011), que também investigou a maternidade em meio ao contexto de TRA. As autoras concluem que essa experiência de gestação e maternidade está perpassada pelo receio constante de perder o bebê, assim como a presença de sentimentos de incapacidade de levar a gestação a termo. As autoras sugerem que, nesse contexto, a prematuridade torna real a possibilidade, tão temida, de perda do filho. Com base nessa constatação, lembramos que, no caso apresentado neste estudo, a mãe teve uma possibilidade de perda real de um dos bebês, não destacada na época do nascimento, em que todos os filhos ficaram na UTI perinatal, mas sim quando um dos bebês se sufocou com o leite e foi reanimado por uma enfermeira, precisando retornar à UTI. A partir desse fato, a mãe impôs a necessidade de uma profissional com essa especialidade, de forma que a presença de uma enfermeira trazia segurança para essa mãe, demonstrando-se de fundamental importância para ela. Aparentemente nos confrontamos com uma deslegitimação dessa mulher em relação a seus próprios conhecimentos como mãe. Ante essa constatação, vejamos algumas reflexões do psicanalista Donald Winnicott acerca de como uma mãe consegue cuidar de seu bebê.

Em seu texto, A mãe dedicada comum (Winnicott, 2013c), ele descreve uma transformação importante que ocorre com a mulher durante os nove meses de gestação, o que ele denomina preocupação materna primária. Essa condição possibilita a mulher se conectar com uma extrema sensibilidade com seu bebê, em um refinado processo de identificação. No seu texto intitulado A dependência nos cuidados infantis, Winnicott (2013b) afirma que não há nada de místico nessa capacidade materna de compreensão das necessidades do bebê, justamente porque ela ocorre devido a esse estado de identificação que a mãe consegue alcançar. Pelo conceito holding, Winnicott busca abranger tudo aquilo que uma mãe é e faz com e para seu bebê, defendendo que esse aprendizado se dá naturalmente, não podendo ser obtido nos livros.

Nesse sentido, Winnicott (2013b) defende que os conhecimentos teóricos são absolutamente desnecessários, uma vez que as mães desempenham satisfatoriamente a tarefa de cuidar de seus bebês há milhões de anos. Para Winnicott, por mais boa vontade que tenham os auxiliares, incluindo os médicos e as enfermeiras, eles não podem saber tanto quanto a mãe sobre as necessidades de seu bebê e sobre como se adaptar a elas, tendo em vista que ela "passou por um aprendizado de nove meses" (p. 75). Contudo, Winnicott (2013c) aponta como essencial para que a mãe possa se entregar a esse estado que ela esteja assistida de alguma forma: pelo pai do bebê, por sua própria mãe ou até pelo governo. O psicanalista Figueiredo (2007), em seu texto A metapsicologia do cuidado, indica a importância de o cuidador saber seus limites, de que nem tudo sabe, nem tudo pode. Figueiredo sugere que, quando um cuidador compartilha seus afazeres e decisões com outros agentes cuidadores, ele melhora a qualidade de seu cuidado. Ou seja, o fato de a mãe estar preparada para cuidar de seu bebê não significa que ela não precise de ajuda para fazê-lo.

Nesse ponto, partimos para outra hipótese da terceirização de cuidados neste caso, que se entrelaça com a anterior, relacionada ao fato de essa mãe ter se confrontado com três bebês ao mesmo tempo, de forma que talvez ela tivesse reconhecido que a trigemelaridade poderia causar limitações dos cuidados. Assim, essa hipótese parte da premissa de que era impossível para essa mãe dar uma atenção individual a cada bebê por um tempo prolongado, e, por essa razão, talvez ela, de alguma forma, tivesse “preferido” se ausentar dos cuidados de todos os filhos, uma vez que seria inviável cuidar integralmente de cada um deles.

Winnicott (1985, p. 156) parece compreender que exista certa impossibilidade na maternidade gemelar, ao afirmar que as mães de gêmeos têm uma tarefa extra: "Dar-se a dois bebês ao mesmo tempo". O autor conclui que é impossível à mãe de gêmeos conseguir satisfazer e atender seus bebês juntos, sendo ela uma só, de forma que o fracasso dessa tarefa seria algo iminente, em que a mãe teria de se contentar em fazer o melhor possível e esperar que, de alguma forma, seus filhos compensassem essa desvantagem que a condição gemelar impõe. Ainda que seja considerada essa dificuldade, parece que essas mães conseguem dar conta dessa situação, uma vez que não há registros de que filhos gêmeos apresentem maiores problemas psíquicos ou interpessoais, o que nos leva a acreditar que essas mães se entregam ao processo de preocupação materna primária simultaneamente a dois bebês.

Essas reflexões winnicottianas, contudo, auxiliam-nos a refletir acerca dos desafios que a maternidade gemelar impõe. Nesse sentido, torna-se relevante lembrar que a mãe acompanhada neste caso teve trigêmeos. Pode-se pensar que a realidade de uma mãe que concebe três ou ainda mais bebês em uma gravidez múltipla pode ser ainda mais complexa. Garel, Salobir, e Blondel (1997) realizaram um estudo qualitativo francês com 11 mães que haviam tido trigêmeos, sendo que 10 gestações foram concebidas por TRA. As entrevistas foram realizadas quando as crianças estavam com 4 anos de idade. Nos resultados desse estudo, as autoras constataram que muitas mães demonstraram arrependimentos quanto a terem tido três filhos. Outro achado intrigante da pesquisa se refere ao fato de as autoras terem percebido que aquelas mães isolavam um dos bebês, de forma a considerá-los como diferente dos outros dois. Uma pesquisadora, Klock (2004), ao se deparar com esse achado do estudo francês, atribuiu a este o significado de que aquelas mães formavam um par de crianças e deixavam a terceira sobrando, como se fosse uma extra.

Refletindo acerca dessas considerações na dissertação de mestrado de uma das autoras deste artigo (Ribeiro, 2014), foi levantada a hipótese de que pode haver um limite subjetivo em relação ao número de bebês que as mães conseguem dar conta simultaneamente, que foi embasada pela constatação do estudo de Garel et al. (1997), de que o terceiro bebê foi percebido como excluído. Outro achado dessa dissertação, que também aponta para a elevada dificuldade de elaboração de uma gestação múltipla, foi a percepção de Ribeiro (2014) de um estado de "com fusão" nas mães desse estudo, no qual apareceu uma grande dificuldade de as mulheres grávidas de gêmeos abrirem espaço para receber seus dois bebês. Essa percepção surgiu da observação da pesquisadora de fatos tais como uma mãe comprar dois armários e dois bercinhos para seus filhos, mas ocupar apenas um, de outra mãe colocar seus bebês para dormirem juntos no mesmo berço, assim como a presença de atos falhos, como "Nós dois, nós três né", quando uma mãe referia-se a ela e a seus dois bebês. Esses dados foram compreendidos como uma dificuldade de assimilação em um nível inconsciente da chegada de seus dois bebês, de forma que essas mães os uniam em apenas um, como apareceu nessas atitudes e falas.

Uma compreensão teórica para essa dificuldade de se preparar para receber dois ou mais bebês talvez possa ser encontrada com base na ideia desenvolvida pelo psicanalista Lebovici (1987) acerca das preconcepções dos pais em relação a seus filhos. Essas preconcepções são representações que foram distinguidas entre quatro tipos que coexistem nas mentes dos pais em relação a seus bebês e que colocam em cena os mais diversos aspectos que envolvem suas motivações e expectativas acerca dos seus filhos (Solis-Ponton, 2004). Essas representações serão brevemente descritas a seguir.

Primeiramente, em um nível inconsciente, há a criança fantasmática, que surge a partir da própria história de cada um dos pais, que, desde o início de suas vidas, carregam representações inconscientes que dão forma à criança imaginada, como explica a psicanalista Solis-Ponton (2004). O filho fantasmático traz a resolução da conflitiva edípica, em que a mãe completa sua ausência de não ter pênis, se identifica com sua mãe e, finalmente, dá a seu próprio pai um filho, segundo Lebovici (1987). Solis-Ponton (2004) explica que a criança imaginária é uma segunda representação que está em um nível pré-consciente e pertence ao casal. Está carregada com as expectativas criadas sobre o bebê: como ele será, qual será o seu sexo, etc. A terceira é a criança narcísica, que diz respeito a uma representação do filho como alguém que pode suceder a seus pais quanto a seus ideais. Assim, os pais enxergam seu bebê como alguém melhor do que eles. A quarta representação é a criança mítica ou cultural, que se refere às representações coletivas presentes em determinadas cultura e época. Por fim, chega-se ao bebê real, o bebê que a mãe carrega em seus braços. Como Solis-Ponton (2004) explica, as quatro representações se relacionam com o bebê real, misturando-se com ele e, consequentemente, acabam sofrendo alterações.

Justamente por todas essas representações que se entrelaçam, o que a mãe vê quando olha para seu filho não diz respeito apenas ao bebê real que ali está, mas também a esses outros bebês que tomam a cena nessa interação. Assim, conforme explica Lebovici (1987), essas representações são determinantes na maneira com que a mãe age com o filho. Tendo em vista esse processo de representações mentais que a mulher passa, pode-se pensar que as mulheres que estão vivendo o processo de maternidade com dois ou mais bebês ao mesmo tempo são desafiadas a, primeiramente, ter sua vida fantasiosa despertada por bebês imaginários distintos e depois a aprender a lidar com dois ou mais bebês reais simultaneamente. Solis-Ponton (2004) explica que a dificuldade de se defrontar com o bebê real está relacionada ao fato de o bebê imaginário não ter sido concluso na gestação de uma gravidez singular, então se pode prever que, em se tratando de uma gestação que envolva mais bebês, o confronto com a realidade pode se tornar ainda mais desafiante.

Assim, pode-se inferir que, além das questões de ordem prática que envolvem cuidar de três bebês ao mesmo tempo, é possível perceber que há um intenso trabalho psicológico que a mãe precisa realizar para conseguir conectar-se com o seu bebê, permitindo que sua individualidade surja. Será necessário que a mãe empreste simultaneamente sua vida psíquica a bebês distintos, que ela possa fantasiá-los distintamente e reconhecê-los como bebês reais que são, distintos uns dos outros. Nesse sentido, parece que a mãe do caso apresentado teve sucesso ao emprestar sua vida fantasiosa e reconhecer a individualidade de cada filho. Como dito anteriormente, desde a primeira observação, ela já destacava características de cada um dos bebês, diferenciando-os e demonstrando projeções psíquicas distintas sobre cada um deles. Entretanto a hipótese de que a terceirização de cuidados nesse caso estaria atrelada à maternidade de trigêmeos estaria alicerçada ao que diz respeito à impossibilidade materna de desempenhar as tarefas de cuidados necessárias a três bebês recém-nascidos.

Em meio aos processos psíquicos vivenciados pela mãe descritos acima, existe um ponto que ainda não foi mencionado: a vulnerabilidade. No texto A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências, Winnicott (2013a) explica que muitas mulheres temem que a profunda identificação com seus bebês vá transformá-las em vegetais e, por essa razão, podem se prender à sua carreira como um salva-vidas, não se entregando nunca completamente a essa experiência materna, nem mesmo temporariamente. Para Winnicott, o desamparo do bebê mobiliza as pessoas que lidam com ele de tal forma que o psicanalista propõe que os cuidadores estão tão desamparados em relação ao desamparo do bebê quanto o próprio bebê. Esse sentimento de vulnerabilidade alicerça a terceira hipótese dos motivos que levaram a mãe analisada neste artigo à terceirização dos cuidados.

Trazendo essas reflexões teóricas para o caso analisado, é importante lembrar que essa mãe é uma empresária que tem vários funcionários sob seu poder, de forma que talvez se identificar com esse nível de desamparo e ter de tomar as rédeas de sua vida possa configurar-se uma ambivalência tão assustadora que a possibilidade de passar por essa experiência e não conseguir retornar dela é inadmissível. Também podemos pensar que o desamparo vivido por essa mãe, que teve três bebês que necessitaram ficar internados na UTI perinatal, vivenciando uma dependência de aparelhos e especialistas para sobreviver, pode ter sido definitivo para tornar esse distanciamento uma solução segura.

Nesse sentido, torna-se pertinente a apresentação dos achados do estudo de Esteves, Anton, e Piccinini (2011) acerca da preocupação materna primária no contexto da prematuridade. Para os autores, a ameaça de prematuridade do bebê pode gerar muito sofrimento e sentimentos ambivalentes que podem dificultar a relação entre mãe e bebê já no período gestacional. Por essa razão, uma gestação de risco pode elevar o nível de ansiedade e demandar um maior esforço para atingir o estado da preocupação materna primária. Os autores justificam essa dificuldade, demonstrando em seus achados que as mães acompanhadas em seu estudo e que tiveram seus filhos prematuramente apresentaram um retardamento no aparecimento dos indicadores da preocupação materna primária. Também foi relatado um grau acentuado da ambivalência relacionada aos bebês nessas participantes. Por fim, os autores explicam que, nos casos de partos pré-termo, existe uma impossibilidade de a gestante chegar ao fim do terceiro trimestre gestacional, momento em que, segundo Lebovici, a mulher está mais pronta psicologicamente para o nascimento, e destacam que, além de essa mãe não ter alcançado esse momento, ainda teve de se deparar com um bebê frágil.

Assim, conforme demonstrado no artigo de Esteves et al. (2011), pode-se compreender que a questão da prematuridade dos bebês e sua fragilidade pode desencadear atravessamentos na experiência da maternidade, como possivelmente ocorreu também no caso acompanhado neste artigo. Esse estado de fragilidade pode ter intensificado o sentimento de vulnerabilidade dessa mãe, atrapalhando o desenvolvimento do estado de preocupação materna primária, levando seu ego a buscar uma solução segura para manter sua integridade, representada pelo distanciamento dos cuidados dos seus filhos. Nesse ponto, fica evidente como essas três hipóteses se relacionam, pois provavelmente o fato de essa mulher ter necessitado de auxílio de especialistas para engravidar acentuou seu sentimento de vulnerabilidade, assim como o fato de ela ter se deparado com três bebês simultaneamente, que, além de tudo, eram prematuros, o que possivelmente acentuou ainda mais esse quadro.

Retomamos, neste ponto, a colocação de Winnicott (2013a) sobre a vulnerabilidade, pela qual ele explica que muitas mulheres, devido ao medo que sentem de se despersonificar após o processo de identificação com seus bebês, acabam prendendo-se à sua carreira como um salva-vidas, não se entregando completamente à essa experiência materna. Travassos-Rodriguez e Férez-Carneiro (2013) propõem um olhar acerca da ambivalência materna relacionada à carreira. As autoras vinculam esse sentimento à idade avançada da mulher, que é o caso da mãe acompanhada neste trabalho. Para essas autoras, nosso contexto cultural impõe uma imagem à mulher de mãe perfeita e profissional bem-sucedida, contudo, na realidade, o que se percebe é que, com o passar dos anos, as mulheres que cultivam uma carreira têm cada vez mais atribuições e responsabilidades, o que leva a uma ambivalência ainda mais proeminente na maternidade tardia. Para as autoras, esse fenômeno está associado às altas expectativas fomentadas, visto que muitas das mulheres que postergam a maternidade têm um alto nível de satisfação pessoal e profissional e estão bem estabelecidas em outros territórios da vida. Assim, essas mulheres se deparam com a grande dificuldade de conciliar a vida já estruturada com uma nova função a ser desenvolvida.

Badinter (2011) também lança seu olhar sobre as causas da ambivalência materna assim como evidencia as perdas efetivas que a mulher sofre para se entregar ao processo de maternidade. Badinter explica que, com o avanço dos métodos contraceptivos, a possibilidade de a mulher escolher quando será mãe e se realmente o será tornou a ambivalência materna mais perceptível. Para essa autora, a conciliação entre os deveres maternos e o próprio desenvolvimento pessoal da mulher torna-se uma equação difícil de ser solucionada. Dessa forma, Badinter busca demonstrar que a concepção romântica acerca da existência de um desejo universal por ter filhos é contestável, visto que muitas mulheres parecem perceber a maternidade como uma experiência aprisionadora.

Essas reflexões foram trazidas para apresentar um contraponto, uma vez que se sabe que a mãe acompanhada neste estudo é uma executiva que tem muitas responsabilidades e atribuições, e certamente vive sentimentos de ambivalência por questões tais como apresentadas por Travassos-Rodriguez e Férez-Carneiro (2013), e por Badinter (2011). Assim, além de a carreira se demonstrar uma fuga em relação à vulnerabilidade, como sugere Winnicott, nesse caso possivelmente existe um conflito relacionado à manutenção do papel profissional concomitantemente ao papel materno na vida da mãe acompanhada.

Nesse ponto, torna-se relevante descrever os sentimentos contratransferenciais da observadora, que foram permeados por muitas oscilações. Em algumas observações, a pesquisadora saía com uma sensação intensa de abandono, principalmente quando presenciava situações em que a mãe lidava com certo distanciamento e praticidade com as questões relacionadas aos bebês. Um dos maiores exemplos era a praticidade com que ela lidava com as demissões de algumas cuidadoras. Contudo, em muitas análises, a observadora sentia a empatia dessa mãe para com seus bebês e um afeto consistente. Essas oscilações trouxeram constantemente, ao longo deste trabalho, um grande questionamento acerca dessa mãe. Seu afeto e desejo de se entregar à maternidade era sentido pela observadora, mas, ao mesmo tempo, parecia haver uma impossibilidade para que essa entrega fosse plena. Possivelmente essa oscilação contratransferencial apontava para a oscilação que essa mãe vivia entre entregar-se de forma mais plena ou não à maternidade. Tendo em vista essas reflexões, a hipótese considerada é de que o sentimento de vulnerabilidade, acarretado pela conjunção dos fatores expostos anteriormente, freava essa mãe para essa entrega.

Nesse ponto, torna-se importante destacar que, no caso de uma gestação múltipla, certamente é indispensável que a mãe tenha um apoio ainda mais veemente do que aquele que uma mãe de uma gestação singular necessita. Contudo as reflexões trazidas neste artigo buscam problematizar a delegação dos cuidados a terceiros, como foi testemunhado no caso apresentado, não negando o fato de que a gestação múltipla gera uma condição que coloca a mãe em uma posição de real impotência, em que a ajuda será sempre necessária. Esta pode ser uma fronteira aparentemente sutil, mas que pode fazer uma enorme diferença na relação que esta mãe virá a estabelecer com cada um de seus bebês.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou trazer algumas reflexões acerca das possíveis razões que levaram uma mãe de trigêmeos a delegar os cuidados de seus bebês. Aparentemente, temos dois fatores que não se conectam diretamente. Por um lado, a história prévia de uma concepção que ocorreu através de TRA, com a ajuda de especialistas; por outro, a experiência de uma gestação múltipla pode ter causado nessa mãe um sentimento de impotência por vir a se deparar com três bebês simultaneamente. Ainda que esses fatores aparentemente não se relacionem, vemos uma correlação crescente entre gestações concebidas mediante TRA e gestações múltiplas, como foi apresentado na introdução deste artigo. Assim, percebe-se que, muitas vezes, as gestações múltiplas têm como história de concepção a submissão às TRA e a decorrente dependência de especialistas, o que, de certa forma, pode nos fazer pensar que a situação observada neste contexto pode vir a se repetir em outros casos.

Neste ponto, torna-se importante ressaltar uma das limitações deste estudo. As reflexões propostas estão alicerçadas em um estudo de caso único, de forma que estas não permitem generalizações. Contudo propomos uma problematização acerca do fato de que esse contexto, permeado por tratamentos médicos invasivos e as peculiaridades que uma gestação múltipla acarreta, demonstra-se vulnerável para que a terceirização de cuidados ocorra.

A partir desta discussão, percebe-se que a intervenção de um profissional de Psicologia se faz necessária para ajudar essas mulheres que passaram por esses tratamentos a primeiramente resgatar sua confiança acerca de seus sentimentos e certezas maternas. Além disso, uma intervenção com aquelas que gestarem uma gravidez múltipla pode ser essencial para primeiramente oferecer um acolhimento ante um possível desamparo e sentimento de impotência que essa experiência de maternidade pode despertar, assim como para auxiliar a construção imaginária destes bebês ao longo da gestação.

No caso apresentado, pode-se inferir que três hipóteses entrelaçadas alicerçam a terceirização de cuidados. Primeiramente, a submissão às TRA, muitas vezes, leva a uma deslegitimação do saber materno. O segundo fator nos mostra como uma gravidez múltipla pode causar na mulher um sentimento de insegurança e impotência pelo fato de acarretar uma maternidade que ocorrerá simultaneamente com mais de um bebê. Por fim, o sentimento de vulnerabilidade despertado em algumas mulheres quando tornam-se mães, devido ao contato com o primitivo que o bebê recém-nascido invoca. Nesse sentido, é importante considerar o contexto contemporâneo em que vivemos, no qual a mulher concilia sua vida profissional com a maternidade. No caso apresentado, o papel profissional tinha uma grande relevância na identidade dessa mulher. Assim, mergulhar no processo de maternidade e se conectar e identificar com a vulnerabilidade do bebê poderia se tornar uma ameaça a seu ego.

Torna-se importante retornar à distinção entre terceirização de cuidados e o apoio que a mulher necessita para exercer a maternidade, que é ainda mais necessário em casos de gêmeos. No caso acompanhado, possivelmente essa mulher acabou buscando por uma rede de apoio externa por não ter tido o apoio que necessitava dentro de seu seio familiar. Conforme mencionado, sua mãe nunca foi vista ao longo das observações e o seu marido parecia não se relacionar com os assuntos ligados aos bebês. Esses pontos seguem sendo analisados na tese de doutorado da observadora, na qual serão ainda mais aprofundados.

Para finalizar este trabalho, vejamos como Figueiredo (2011) apresenta a noção de cuidado. Segundo o autor, essa é uma atitude que diz respeito a todo o campo das ocupações e preocupações recíprocas em que estão presentes a dependência e interdependência individuais, sendo uma atitude que humaniza o sujeito. Para Figueiredo, é necessário que o agente cuidador tenha a capacidade de sustentar e conter o objeto de cuidado, de reconhecer suas necessidades e de convocá-lo como sujeito.

Para Figueiredo (2007), o ato de cuidar e deixar-se cuidar faz parte do que há de saudável no indivíduo, de forma que não conseguir transmitir a capacidade cuidadora é a prova de que ela não pôde ser bem exercitada. Analisando o caso apresentado, este trabalho é concluso com uma reflexão baseada na inferência de Figueiredo, de que nossa sociedade parece estar vivendo uma crise de cuidadores. Para esse psicanalista, cada vez mais, temos menos sujeitos se sentindo aptos dispostos a cuidar, e muitos que o fazem exercem os cuidados mecânica e estereotipadamente: "Na ausência de cuidadores 'naturais', cresce a demanda por especialistas" (Figueiredo, 2007, p. 27). Em um contexto social em que a terceirização dos cuidados é vista de forma crescente, como expôs Lima (2014), devemos nos questionar sobre o que está causando essa quebra na transmissão da capacidade cuidadora de geração para geração.

Considerando as reflexões apresentadas dentro do contexto do caso analisado, podemos considerar dois fatores que poderiam contribuir para essa interrupção da transmissão do cuidado. Primeiramente, temos os impactos que as novas tecnologias de reprodução acarretam sobre o processo de maternidade de algumas mulheres, que, muitas vezes, sentem seu saber materno desqualificado. Também é preciso considerar a inserção da mulher no mercado de trabalho, em que o lugar da maternidade está sendo reencontrado. Tendo em vista a complexidade dos fatores que se interlaçam neste caso, como sugestões para pesquisas futuras, seria relevante investigar outros casos de terceirização de cuidados para que possamos compreender a forma contemporânea com que muitas mulheres estão exercendo a maternidade e como elas estão se relacionando e significando a terceirização de cuidados.

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Texto recebido em 29 de março de 2016 e aprovado para publicação em 1º de fevereiro de 2017.

 

 

*Doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), mestra em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), psicóloga.E-mail: fernandapsi_84@hotmail.com.
** Pós-doutora em Saúde da Criança e da Mulher pelo Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz; doutora em Psicologia Clínica pela PUC Rio; mestra em Saúde Mental pela Universidade de Colúmbia, Nova Iorque; graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR); professora adjunta no programa de Pós-Graduação e Graduação do Departamento de Psicologia da PUC Rio; coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica com Crianças e coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada da PUC Rio (2012-2014); professora visitante do Instituto de Psicologia da Universidade Paris-Descartes (2013); membro-psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; atua nas áreas de Psicologia, Psicanálise e Clínica da Infância e da Adolescência, desenvolvendo pesquisas sobre os processos de simbolização primários e a clínica não neurótica, a clínica dos primórdios e o processo de construção da paternidade e da maternidade; membro da World Association for Infant Mental Health, da Associação Brasileira Universitária de Psicopatologia Fundamental e membro-fundadora da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê (Abebe). E-mail: silvia.zornig@terra.com.br.

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