SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 issue2Psychology and social inequality in higher education: the tricks of socio-historical (re)productionsSocial inequality and revolutionary subjectivity: the challenges of psychology work at the CRAS author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.2 Belo Horizonte May/Aug. 2019

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p759-773 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p759-773

 

A problemática da pobreza nos acolhimentos realizados nos serviços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes e os desafios para a atuação do psicólogo

 

The problem of poverty in the shelter assistance carried out at the institutional welfare services for children and adolescents and the challenges to the psychologist’s deeds

 

La problemática de la pobreza en las acogidas realizadas en los servicios de acogimiento institucional para niños y adolescentes y los desafíos para la actuación del psicólogo

 

 

Renato Ramos*; Antônio Euzébios Filho**

 

 


Resumo

Este artigo analisa a relação da pobreza com os motivos de acolhimento de crianças e adolescentes registrados pelos Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA). Para isso, foram analisados dados apresentados por duas pesquisas: O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil, publicado em 2004, e Levantamento nacional de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento institucional, publicado em 2013. A comparação dessas pesquisas mostra caminhos opostos: enquanto a primeira considera que a pobreza contribui para diversos motivos de acolhimento institucional, entre eles, a negligência familiar, na última, a pobreza não é significativamente considerada, principalmente nos casos de negligência e abandono. Assim, responsabiliza exclusivamente as famílias ao mesmo tempo em que atenua a função do Estado na produção da pobreza. Esse cenário traz desafios para o trabalho do psicólogo e reforça a importância de uma atuação implicada com aspectos sociais e políticos.

Palavras-chave: Pobreza. Acolhimento. Crianças. Adolescentes. Psicologia.


Abstract

This study analyzes the relationship between poverty and the reasons for the reception of children and adolescents registered in the Institutional Reception Services for Children and Adolescents (SAICA - acronym in Portuguese). In order to do so, the data collected from two researches: O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil – The right to Family and Community Interection: Child and Adolescent Shelters in Brazil published in 2004, and Levantamento nacional de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento institucional – Data Registry of Children and adolescent in Institutional Sheltering Assistance - published in 2013, were analyzed. The comparison between these investigations shows opposite paths: while the first considers that poverty contributes to various reasons for institutional reception, among them, family negligence; in the latter, poverty is not significantly considered, mainly in cases of negligence and abandonment. Thus, the latter holds exclusive responsibility for families, while at the same time attenuating the role of the State in the production of poverty. This scenario brings challenges to the psychologists’ work and reinforces the importance of an action intermingled with social and political aspects.

Keywords: Poverty. Reception. Children. Teenagers. Psychology.


Resumen

Este artículo analiza la relación existente entre la pobreza y los motivos de acogida de niños y adolescentes registrados por los Servicios de Acogida Institucional para Niños y Adolescentes (SAICA). Para ello, se analizaron los datos presentados por dos investigaciones: O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil, publicado en 2004, y Levantamento nacional de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento institucional, publicado en 2013. La comparación de estas investigaciones muestra caminos opuestos: mientras la primera considera que la pobreza contribuye a diversos motivos de acogida institucional, entre ellos, la negligencia familiar; en la última, la pobreza no es significativamente considerada, principalmente en los casos de negligencia y abandono. Así, esta última responsabiliza exclusivamente a las familias, a la vez que atenúa la función del Estado en la producción de la pobreza. Este escenario trae desafíos para el trabajo del psicólogo y refuerza la importancia de una actuación implicada en aspectos sociales y políticos.

Palabras clave: Pobreza. Acogida. Niños. Adolescentes. Psicología.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto de reflexões iniciadas no III Colóquio de Psicologia Sócio- Histórica no contexto brasileiro de desigualdade, abrangendo a temática Perspectivas críticas sobre a conjuntura das desigualdades: a dimensão psicossocial. Buscou-se analisar a relação da pobreza com os motivos de acolhimento de crianças e adolescentes registrados pelos Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA), com base em duas pesquisas que apuram a atuação desses serviços ao longo de todo o Brasil. A primeira delas é O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil (Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2004). Essa pesquisa abrangeu 626 instituições, cerca de 20 mil crianças e adolescentes, e foi publicada em 2004. Já a segunda pesquisa elencada aqui é o Levantamento nacional das crianças e adolescentes em serviço de acolhimento (Assis & Farias, 2013). Esta é uma pesquisa mais recente, na qual foram coletados dados de 36.929 crianças e adolescentes acolhidos.

Neste trabalho também se abordará a pobreza como fenômeno estrutural inerente ao modo de sociabilidade capitalista, para tentar demonstrar parte dos seus efeitos nas políticas sociais. Além disso, aponta-se sua capacidade de gerar sofrimento ético-político, cercear a autonomia e as potencialidades das famílias. Também sob essa ótica, ponderar-se-á sobre alguns desafios para a atuação dos psicólogos no SAICA.

O acolhimento institucional é uma medida de proteção criada para promover a integridade física e emocional de crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados e precisam ser afastados de sua família, a fim de serem protegidos até que haja condições adequadas para seu retorno à família de origem ou inclusão em família substituta. Essa é uma medida extrema de proteção especial, a ser empregada em última instância, quando já se esgotaram todos os outros recursos. É também de caráter provisório, não devendo se estender por mais de dois anos. A aplicação dessa medida fica a cargo do Poder Judiciário, mas também pode ser aplicada pelo Conselho Tutelar (Lei nº 8.069/1990).

1. Existem diversos tipos de Serviços de Acolhimento Institucional (SAI), entre eles, os SAICA.1 O surgimento dos SAICA tal como os existentes nos dias de hoje é fruto de novas reordenações políticas e de movimentos populares que criticavam o modelo assistencial promovido por orfanatos e instituições similares. Essa reordenação teve início na Constituição da República Federal do Brasil, em 1988, ano em que começaram a se delinear novas perspectivas sobre crianças e adolescentes, cujo marco foi a assinatura, em 1990, do Estatuto da Crianças e do Adolescentes (ECA). Por essa nova perspectiva, crianças e adolescentes começaram a ser vistos como portadores de direitos que deviam ser garantidos e zelados pelo Estado (Ayres, Coutinho, Sá, & Albernaz, 2010; Rizzini & Rizzini, 2004; Souza & Cunha, 2011).

Essas novas mudanças preveem que sejam priorizados a preservação e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, bem como o atendimento personalizado e em pequenos grupos (para retificar o modelo das grandes instituições de outrora, com o intuito de garantir maior atenção a cada caso). Além disso, preconiza-se o não desmembramento de grupos de irmãos e também a integração com a comunidade de origem, para romper com a lógica asilar. Assim, as instituições de acolhimento devem priorizar o contato com atividades na comunidade de origem do indivíduo acolhido, favorecer e estimular a autonomia e os vínculos familiares, com vista a sanar a violação de direito que gerou o acolhimento e proporcionar, tão logo seja possível, a reinserção familiar. Isso implica que o foco do trabalho desses serviços não deve ficar restrito apenas ao adolescente ou à criança acolhida, mas também deve se estender à família, colocando-a igualmente como alvo do trabalho (Lei nº 8.069/1990; Brasil, 2009).

Como é possível observar, o acolhimento institucional é regido por uma série de diretrizes fundamentadas em parâmetros legais e técnicos. As mudanças políticas e legais engendradas pelo ECA fizeram com que as famílias começassem a ter sua conduta avaliada e, nos casos de desacordo com as normas legais preestabelecidas, sanções começariam a ser aplicadas, entre as quais, em último caso, acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Isso trouxe um novo olhar sobre o papel desempenhado pelas famílias na criação dos filhos e gerou novas formas de responsabilização (Moreira, Bedran, & Carellos, 2011). Contudo não se pode perder de vista que as condutas das famílias também estão sujeitas à influência de fatores externos como a pobreza. Nesse sentido, o Estado também pode ter parte da responsabilidade pelos acolhimentos que realiza.

Desse modo, cabe ressaltar que 43,4% das crianças e adolescentes entre 0 e 14 vivem em situação de pobreza (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018). Esse é um dado alarmante, ainda mais quando se considera que a pessoa pobre é mais vulnerável às mazelas sociais, como a humilhação social e a desumanização (Gonçalves Filho, 1998). Além disso, ela está mais sujeita a variadas formas de violência, como a policial (Coimbra, 2001). Ou seja, a pobreza está associada à uma condição de classe, portanto restringe as possibilidades concretas do sujeito e limita a liberdade de escolha. Como afirmam Sawaia e Silva (2019), a pobreza "nos submete à moradia indigna, à educação sem qualidade, ao imobilismo urbano, à exploração do trabalho" (p. 40).

Em outras palavras, a pobreza pode levar famílias ao limite e potencializar situações de violação de direitos de crianças e adolescentes, por isso ela é um fenômeno multifacetado que não pode ser compreendido apenas pela via econômica, mas também por sua dimensão psicossocial.

2. A PRODUÇÃO DA POBREZA E O PAPEL DAS POLÍTICAS SOCIAIS

A pobreza não é apenas fruto da falta de políticas públicas de combate à desigualdade social. Também não tem sua origem fincada em traços de personalidade ou ausência de força de vontade, como pregam os ideais liberais obcecados pelo individualismo e pelo mito da meritocracia (Euzébios Filho & Guzzo, 2006). Tampouco tem a ver somente com a corrupção dos governos, como se querem fazer crer os discursos hegemônicos contra a corrupção, mas é, antes de tudo, uma condição necessária para o próprio funcionamento do capitalismo. Desde Marx (1995), fica claro que o sistema capitalista somente se mantém com um desnível fundamental na distribuição das riquezas produzidas pelo trabalho, pois "a produção de riqueza é social, ou seja, a classe trabalhadora vende sua força de trabalho e produz riqueza. Mas essa riqueza socialmente produzida é apropriada individualmente, ou seja, é apropriada e acumulada por poucos" (Boschetti, 2019, p. 46).

Aliás, para Marx (1995), a função do Estado seria garantir a hegemonia da classe dominante. Desse modo, é preciso compreender que a pobreza não é apenas um meio de exclusão, mas está integrada ao sistema e cumpre uma determinada função; ela é uma forma de inclusão perversa que insere as pessoas em lugares diferentes do "circuito reprodutivo das atividades econômicas", sendo que a assimetria social faz com que a grande maioria não possa gozar de privilégios e é obrigada a enfrentar restrições materiais, sociais, simbólicas, etc. (Sawaia, 2001a, p. 8). É somente assim que pode haver concentração de renda.

Em outras palavras, a acumulação de riquezas somente se faz sobre o desmantelamento social; ela é "estrutural" e intrínseca ao capitalismo (Boschetti, 2019, p. 47). Isso faz com que as mazelas infligidas às pessoas pobres seja um problema ético-político que tem origem nas injustiças sociais que atravessam todas as relações sociais (Sawaia, 2001b; Sawaia & Silva, 2019).

Assim, não cabe a uma política social ou um conjunto de legislações erradicar a pobreza, uma vez que ela se torna uma peça basilar de toda sociedade de classe e é necessária para o funcionamento do capitalismo. Logo, o Estado capitalista produz a pobreza, e as políticas sociais, na verdade, tentam mantê-la sobre controle e amenizar os conflitos sociais. Então não é possível erradicar a pobreza se não se superarem as condições de exploração que são a base de funcionamento do sistema capitalista (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Porém é necessário salientar que todas as iniciativas voltadas para fortalecer direitos sociais são extremamente desejáveis e que, embora limitadas, as políticas sociais continuam importantes, pois garantem algum enfrentamento das desigualdades sociais. Ademais, as políticas sociais podem ir se tornando cada vez mais efetivas à proporção que deixarem de cumprir apenas função paliativa e promoverem mais direitos sociais para as classes populares.

3. A PROBLEMÁTICA DA POBREZA E DOS MOTIVOS DE ACOLHIMENTO NOS SAICA

Olhando para as duas pesquisas, é possível identificar concepções distintas da pobreza a partir do peso que conferem a esse fenômeno nos motivos de acolhimento. Um dos pontos primordiais apontados pela pesquisa realizada pelo IPEA e publicada em 2004 foi que o principal motivo de acolhimento de crianças e adolescentes era, até então, causado pela carência de recursos materiais da família, com uma frequência de 24,1% de todos os casos acolhidos. Em seguida, vinha o abandono de pais ou responsáveis, como 18,8% dos casos. Outros motivos também foram apresentados, tais como violência doméstica, 11,6% dependência química dos pais ou responsáveis, 11,3% vivência de rua, 7% orfandade, 5,2% prisão dos pais ou responsáveis, 3,5% e, por fim, abuso sexual cometido por pais ou responsáveis, 3,3% (IPEA, 2004).

Esses dados, logo de início, apontam uma divergência entre o que está estipulado na lei e o que é feito na prática dessas instituições. O artigo 23 do ECA estipula que a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para que a criança ou o adolescente sejam retirados do seio familiar e encaminhados a serviços de acolhimento. Nesses casos, a criança ou o adolescente devem ser mantidos em sua família, que deverá ser inserida e beneficiada por programas sociais de auxílio de renda (Lei nº 8.069/1990).

Isso mostra a possibilidade de acolhimentos ligados à pobreza, contudo, como aponta a própria pesquisa realizada pelo IPEA, o problema pode ser ainda mais abrangente, pois, se forem considerados os motivos relacionados à pobreza familiar, ela se torna responsável por 52% dos acolhimentos. Esse dado provém da soma dos principais motivos que levam crianças e adolescentes a serem abrigados: carência de recursos materiais da família, 24,1% abandono de pais ou responsáveis, 18,8% vivência de rua, 7% e a exploração no trabalho e, ou, mendicância, 1,8% (IPEA, 2004).

Como se vê, dentro dessa perspectiva, a pobreza vigora como o grande fator causador dos acolhimentos. Isso provavelmente ocorre devido à dificuldade de separar os fatores financeiros das formas de violência cometidas pela família, indicando que esses fatores são causa dos problemas apresentados.

Embora não possamos negar que os fatores financeiros sejam articuladores que podem potencializar ou agravar situações de violação de direitos, não é possível dizer que eles sejam causas exclusivas de violência, haja vista que violências contra crianças e adolescentes ocorrem em todas as camadas sociais.

Apesar disso, essa estatística de 52% não pode ser desconsiderada, pois há o risco de generalização ao se afirmar o contrário, que a pobreza não tem nenhuma influência sobre as violações de direitos. Dessa forma, seriam anulados fatores sociais em nome da singularidade dos pais ou responsáveis, e não se pode deixar de considerar que, apesar da pobreza não poder ser considerada uma condição intrínseca para as violações de direitos, é sempre possível que ela possa potencializá-las ao instaurar sofrimento "ético-político", levando famílias ao limite, dado os sofrimentos que gera, por exemplo, a "dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor" (Sawaia, 2001b, p. 104).

Desconsiderar o sofrimento ético-político pode fazer com que apenas a família seja responsabilizada nos acolhimentos gerados por questões financeiras e o Estado seja absolvido tanto de sua função de promover políticas públicas quanto na estruturação da pobreza. Tal responsabilidade recai, então, exclusivamente sobre as famílias:

Procuramos apontar a elisão do processo de exclusão ao qual elas se encontram submetidas, o que possibilita que o Estado seja desresponsabilizado perante essas práticas e que as famílias sejam culpabilizadas. Não obstante, faz-se necessário problematizar as implicações no plano subjetivo dessas condições sociais e econômicas e dos discursos que não responsabilizam o Estado pela situação de pobreza e desemprego vivenciada por amplos setores da população. No geral, atribui-se ao Estado papel de benemerência quando elabora políticas públicas e constrói instituições voltadas ao cuidado da infância abandonada, bem como, atribui-se às familiar – e particularmente às mães – o estigma de irresponsáveis e incapazes de cuidar e manter sua prole. A pergunta recai sobre as incidências desse contexto social, econômico e cultural na constituição subjetiva (Cintra & Souza, 2010, p. 817).

Já na pesquisa realizada pela Fiocruz, publicada em 2013, os principais motivos que levam ao acolhimento são a negligência (33,2%), o abandono (18,5%) e a dependência química ou alcoólica dos pais (17,7%). No entender dos pesquisadores, a negligência se caracteriza pelas omissões dos pais ou responsáveis em atender às necessidades básicas para que a criança ou o adolescente possa se desenvolver física, emocional e socialmente. O abandono seria uma forma mais grave de negligência e tem a ver com ausências dos pais. Para eles, negligência e o abandono têm a ver com escolha e não com falta de possibilidades (Assis & Farias, 2013).

Há uma diferença entre as duas pesquisas e, diferente da pesquisa realizada pelo IPEA, esta, mais recente, não associa o abandono ou a negligência a questões financeiras:

Merece leitura cuidadosa o conceito de negligência que aparece nos prontuários das crianças e adolescentes que estão nos SAI. Diversos autores ressaltam a dificuldade de definir esse tipo de violência cuja interpretação é marcada por forte carga subjetiva do profissional que os acolhe, muitas vezes confundindo negligência dos familiares com situação de pobreza (Assis & Farias, 2013, p. 177).

O que se pode observar a partir da visão dos autores é que a pobreza poderia confundir o olhar profissional a respeito da negligência e do abandono, atenuando a omissão dos pais. Embora isso seja verdade, a generalização desses fatores faz com que esse tipo de leitura não leve em consideração fatores sociais que podem estar por trás da omissão dos pais, sobretudo nos casos em que esta pode ser reflexo de suas condições socioeconômicas. Ou seja, analisam, nesses casos de negligência e abandono, a pobreza somente pela ótica de carência de recursos e deixam de considerá-la como um fenômeno complexo que diz também das mazelas humanas e dos sofrimentos perpetrados por essa condição.

Nesse sentido, é importante considerar que os dados obtidos com essa nova pesquisa também mostram que 8,5% dos casos de acolhimento ocorrem diretamente por conta da pobreza das famílias. Em um primeiro momento, é uma estatística melhor do que os 24,1% apresentado pela pesquisa do IPEA. Contudo, a pesquisa do IPEA apresentava ainda a possibilidade de que a pobreza também estivesse por trás de outros motivos de acolhimento, tais como o abandono de pais ou responsáveis, a vivência de rua, a exploração no trabalho e a mendicância que, somados, apontavam 52% dos motivos que levavam crianças e adolescentes aos SAICA. Isso não ocorre na pesquisa atual, que não credita a nenhum desses motivos a possibilidade de que eles possam ocorrer devido a fatores de ordem financeira, mas apenas pela omissão dos pais (Assis & Farias, 2013; IPEA, 2004).

Como se vê, as duas pesquisas apresentam interpretações literalmente opostas sobre o peso da pobreza nos motivos que levam ao acolhimento institucional. Contudo é interessante notar que, em outro momento, ao falar sobre os casos que excedem o limite máximo de dois anos de acolhimento (30,4% de todos os casos acolhidos), diz-se o seguinte:

Existe descompasso entre a consciência da necessidade do acolhimento pelo menor tempo possível e sua real efetivação. Tal situação é motivada por vários problemas: condições socioeconômicas precárias das famílias; falta de programas e ações que favoreçam a reintegração familiar; e por uma distorção do próprio papel do SAI. Ao ocupar o espaço deixado pela insuficiência de programas que atendam as famílias em situação de vulnerabilidade social, o abrigo se torna uma forma de política pública, muito valorizada pelas famílias por proporcionar estudos, disciplina, lazer e atendimento médico dos quais seus filhos estavam excluídos (Assis & Farias, 2013, p. 216).

Parece inegável que todos esses problemas destacados acima estão, de uma forma ou de outra, ligados a fatores financeiros e à falibilidade do Estado. O fato de as famílias valorizarem e procurarem nos SAICA formas de proporcionar estudos, disciplina, lazer e atendimento médico para seus filhos aponta a existência de vínculos familiares e mostra o desamparo econômico no qual vivem. Que os SAICA distorçam seu papel e assumam uma responsabilidade que não lhes cabe também pouco importa visto que as condições socioeconômicas precárias das famílias falam, por si mesmas, de casos de inabilidade do Estado em proporcionar os meios para que as famílias tenham condições mínimas de subsistência. Do mesmo modo, a falta de programas e ações que favoreçam a reintegração familiar mostra que se lida com famílias pobres, pois do contrário, elas poderiam buscar reaver a guarda dos filhos por meio de recursos próprios.

Em outras palavras, essa situação pode denunciar que algumas famílias somente conseguem acesso a algumas políticas públicas quando perdem a guarda dos seus filhos para o Estado. Não se pode esquecer também que muitos acolhimentos ocorrem justamente porque o Estado não foi efetivo ou não cumpriu sua função antes de crianças e adolescentes terem sido retirados de suas famílias e encaminhados para os SAICA.

Desse modo, o fato de os SAICA serem usados para suprir as situações de vulnerabilidade social é mais um indicador dos problemas socioeconômicos enfrentados pelas famílias que, sem recursos, são obrigadas a entregar, ou deixar de reaver, a guarda dos filhos para que o Estado promova o acesso à saúde, educação, lazer e cumpra a função que elas não estão em condições de exercer.

Isso mostra que, se o intuito do Estado é administrar a pobreza e não o de erradicá-la, ele está falhando também nisso, e as consequências da sua falibilidade nesses casos podem ser severas. Autores como Cintra e Souza (2010) discutem que se as instituições recebem acolhimentos é porque as famílias foram consideradas incapazes de realizar os cuidados mínimos previstos em lei, o que alimenta a lógica da institucionalização de crianças e adolescentes, já que se cria assim a imagem de família desestruturada, bem como a ideia do SAICA como alternativa possível para se resolver o problema.

Um detalhe crucial a respeito dessas elucubrações sobre o tempo de acolhimento e os motivos que o prorrogaram é que isso mostra um contrassenso desta última pesquisa. Como se viu, ela afirma, em determinado momento, que 8,5% das crianças e adolescentes foram acolhidos por fatores ligados à carência de recursos da família, mas afirma posteriormente que 30,4% dessas mesmas crianças e adolescentes enfrentam problemas para retornar para suas famílias, ficando institucionalizados por mais de dois anos por conta de dificuldades que, como se discutiu, estão relacionadas justamente aos fatores socioeconômicos enfrentados pelas famílias. Isso demonstra que é um equívoco não se considerar que a pobreza possa estar por trás de diversos motivos de acolhimento, responsabilizando-se, dessa forma, apenas as famílias, sem que se faça uma leitura mais abrangente que inclua fatores sociais e econômicos, e abranja também as omissões do Estado na oferta de políticas públicas eficientes e seu papel na produção da pobreza.

4. PAPEL E DESAFIOS PARA O PSICÓLOGO NO SAICA

Talvez não seja acidental, mas estrutural, que as famílias sejam amplamente responsabilizadas pelas situações de violações de direitos provocadas pela pobreza, pois é funcional para as sociedades capitalistas que a culpa pela pobreza (e todos impactos que ela pode causar) recaia unicamente sobre o indivíduo e não sobre o sistema que produziu vulnerabilidades sociais. Isso é consequência do papel desempenhado pela ideologia liberal, que escamoteia as mazelas sociais para responsabilizar o indivíduo por seus problemas e por sua condição, para não ter de fazer justiça social (Guareschi, 2001).

Seja qual for o caso, por tudo o que foi discutido até aqui, fica claro que o contexto social tem influência sobre as condutas familiares e esse cenário traz novos desafios para a atuação do psicólogo, já que reforça a necessidade de que sua práxis esteja atenta aos fenômenos sociais de produção da pobreza e de reprodução de mecanismos de dominação. Porém, historicamente, a Psicologia, como saber e práxis, esteve concatenada com a manutenção das relações de poder, pois o campo restrito da clínica fez com que a Psicologia estivesse apartada da realidade social e alheia às necessidades da população, o que promoveu uma práxis descontextualizada e reducionista da complexidade dos problemas sociais e individualizou problemas coletivos. O que fez com que, na prática, a atuação psicológica nas políticas de assistência social sofresse com a possibilidade de uma atuação de cunho moral e fiscalizador (Euzébios Filho, 2017; Freitas & Guareschi, 2014).

Esses debates acerca da práxis psicológica dentro da assistência social vêm ganhando cada vez mais espaço e têm se tornado uma questão amplamente divulgada e debatida nos mais diversos campos teóricos, o que, inclusive, tem fundamentado a produção de documentos que tratam das diretrizes para uma atuação concatenada ao cenário político e social.

Entre esses documentos, dois foram separados para discussão. O primeiro é as Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (Brasil, 2009) e trata especificamente do trabalho do psicólogo nesses serviços. Salienta, entre outros, a importância de preservar e fortalecer os vínculos familiares e comunitários das crianças e dos adolescentes acolhidos, e é preciso acompanhar tanto eles quanto suas famílias para potencializar autonomia e zelar pela garantia de direitos. Nessa empreitada é imprescindível a articulação intersetorial com outros serviços do SUAS, do SUS e do sistema educacional e jurídico, além de um trabalho alinhado com os educadores do SAICA, para os quais o psicólogo deve inclusive proporcionar capacitações regulares. É desnecessário dizer que é vetado o atendimento psicológico individual, embora possa se fazer escutas pontuais, assembleias, e encaminhar crianças, adolescentes e suas famílias para atendimento psicológico em outros serviços.

Apesar de esse documento desenhar um novo modo de atuação para o psicólogo, a crítica dos mecanismos de opressão social ainda é incipiente, pois aponta um quadro de funções, mas não há embate com as injustiças sociais que permeiam o serviço. Essa discussão nos leva ao segundo documento, Nota técnica com parâmetros para atuação das(os) profissionais de Psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2016). Aqui aparece de forma mais clara o intuito de promover "reflexão, intervenção e análise crítica" das práticas psicológicas no SUAS. Os parâmetros desenvolvidos no documento dizem da necessidade de o psicólogo questionar as relações de poder envoltas em sua prática e no entorno de seu trabalho, para traçar, junto ao usuário, estratégias de empoderamento que provoquem pensamento crítico e promovam ação social em prol dos direitos humanos. Cabe também ao psicólogo participar ativamente dos movimentos sociais (CFP, 2016, p. 9).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ECA preconiza que não é aceitável que haja acolhimento por conta da falta de recursos materiais das famílias, mas, mesmo assim, eles ocorrem, o que faz deste um fator importante a ser destacado. Seria papel do Estado promover e garantir recursos para que as famílias não fiquem desamparadas e tenham o mínimo de estrutura para cuidar de seus filhos. No entanto, como se discutiu ao longo do trabalho, a pobreza é estrutural nas sociedades de classe, logo as políticas sociais não teriam como eliminá-la, mas apenas atenuar parte de seus efeitos negativos, e mesmo nisso o Estado falha.

Nesse sentido, a existência de acolhimento devido à carência de recursos familiares se torna algo perverso, pois desconsidera a responsabilidade do Estado na produção da pobreza e na falta de políticas públicas efetivas e faz com que, nesses casos, somente as famílias sejam responsabilizadas. Isso pode ajudar a criar ou reforçar a imagem de família desestruturada e concomitantemente promover, de modo genérico, as práticas de acolhimento. E vale lembrar que separar famílias sem uma necessidade real viola o direito à convivência familiar e comunitária proposto pelo ECA.

O que não quer dizer que, dentro do microcosmo do trabalho no SAICA, o psicólogo não possa fazer um bom trabalho técnico e resolver ao menos em partes os problemas que se apresentam, mesmo porque os acolhimentos não ocorrem apenas pela pobreza (e mesmo nos casos em que ocorrem) pode ser possível atuar, minimizando parte de seus efeitos deletérios e potencializar práticas de cuidado de si e do outro, além de lutar pelos direitos das famílias e das crianças e adolescentes. No entanto não se deve perder de vista que a práxis psicológica no SUAS não se resume apenas a atribuições técnicas, mas deve também levar em consideração o horizonte ético-político de enfrentamento das desigualdades sociais (CFP, 2016).

Mas, mesmo com esse olhar crítico, ainda é incerta, dentro das sociedades de classe, o quão efetivas podem ser as práticas psicológicas no combate à produção da pobreza e reprodução dos mecanismos de opressão e dominação que afligem e criminalizam as famílias pobres. Porém, quanto mais a Psicologia estiver articulada aos movimentos sociais e pautas reivindicatórias, mais ela ampliará sua capacidade de atuação sobre as desigualdades sociais, que podem potencializar situações de violação de direitos de crianças e adolescentes e também fazer com que as famílias pobres sejam amplamente responsabilizadas por qualquer violação de direito e se tornem alvo de políticas arbitrárias do Estado.

1. INTRODUÇÃO

Assis, S. G. & Farias, L. O. P. F. (2013). Levantamento nacional das crianças e adolescentes em serviço de acolhimento. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Ayres, L. S. M., Coutinho, A. P. C., Sá, D. A., & Albernaz, T. (2010). Abrigo e abrigados: construções e desconstruções de um estigma. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 420-433.         [ Links ]

Boschetti, I. S. (2019). Crise do capital e agravamento da desigualdade social no Brasil. In G. Toassa, & T. M. C. S. Souza, D. J. S. Rodrigures (Org.), Psicologia sócio-histórica e desigualdade social: do pensamento à práxis. (pp. 45- 60). Goiânia: Imprensa Universitária.         [ Links ]

Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social. Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. (2009). Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes.         [ Links ]

Cintra, A. L. & Souza, M. (2010). Institucionalização de crianças: leituras sobre a produção da exclusão infantil, da instituição de acolhimento e da prática de atendimento. Revista Mal-Estar e Subjetividade, 10(3), 809-833.         [ Links ]

Coimbra, C. (2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, Niterói: Intertexto.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das (os) profissionais de Psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Brasília: CFP.         [ Links ]

Euzébios Filho, A. (2017). Psicologias para além do consultório e a questão social no Brasil: desafios para a crítica em tempos de neoliberalismo. In: A. Euzébios Filho (Org.), Psicologia(s) para além do consultório: reflexões e contextos de atuação. (pp. 15-34). Curitiba: Juruá.         [ Links ]

Euzébios Filho, A. & Guzzo, R. S. L. (2006). Fatores de risco e proteção: percepção de crianças e adolescentes. Temas em Psicologia, 14(2), 125-141.         [ Links ]

Freitas, C. R. & Guareschi, P. A. (2014). A assistência social no Brasil e os usuários: possibilidades e contradições. Diálogo, 25, 145-160.         [ Links ]

Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação social: um problema político em Psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11-67.         [ Links ]

Guareschi, P. A. (2001). Pressupostos psicossociais da exclusão: competividade e culpabilização. In B. B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. (pp. 141-156) (2a ed.). Goiânia: Imprensa Universitária.         [ Links ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2018). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE.         [ Links ]

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2004). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: IPEA.         [ Links ]

Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (2016, 13 julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.         [ Links ]

Marx, K. (1995). Glosas críticas ao artigo "O rei da Prússia e a reforma social": de um Prussiano. I. Tonet (Trad.). Revista Práxis, 5, 68-91.         [ Links ]

Moreira, M. I. C., Bedran, P. M. & Carellos, S. M. S. D. (2011). A família contemporânea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianças: desafios éticos. Psicologia em Revista, 17(1), 28-37.         [ Links ]

Rizzini, I. & Rizzini, I. (2004). A institucionalização de crianças no Brasil: percursos histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio.         [ Links ]

Sawaia, B. B. (2001a). Introdução: exclusão ou inclusão perversa? In B. B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. (pp. 7-15). (2a ed.). Goiânia: Imprensa Universitária.         [ Links ]

Sawaia, B. B. (2001b). O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In B. B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. (pp. 97-118). (2a ed.). Goiânia: Imprensa Universitária.         [ Links ]

Sawaia, B. B., & Silva, D. N. H. (2019). A subjetividade revolucionária: questões psicossociais em contexto de desigualdade social. In G. Toassa, T. M. C. S. Souza, & D. J. S. Rodrigues (Org.), Psicologia sócio-histórica e desigualdade social: do pensamento à práxis. (pp. 23-44). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Souza, F. H. O. & Cunha, E. L. (2011). A esperança na família: uma leitura psicanalítica do acolhimento institucional. Revista Epos, 2(2), 1-18.         [ Links ]

Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26, 9-24.         [ Links ]

 

 

*Mestrando no Departamento de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Trabalho na Universidade de São Paulo (USP), especialista em Psicanálise: Teoria e Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Campus Poços de Caldas, psicólogo graduado pela mesma instituição.
**Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas), graduado em Psicologia pela mesma instituição, professor assistente doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho.
1É importante salientar que houve mudanças que provocaram alterações legais e documentais nos termos utilizados para determinar o que é SAICA. O termo SAICA foi se consolidando conforme os SAI começam a atender também idosos, moradores de rua, etc. Assim, o que hoje se chama de SAICA já foi chamado apenas de SAI e, antes, de abrigo. É possível ver isso na citação dos autores e das pesquisas utilizadas neste trabalho. No entanto, em todos os casos, discute-se apenas sobre os serviços de acolhimento institucional que trabalham com crianças e adolescentes. Desse modo, quando se diz SAI ou abrigo, está se falando de SAICA.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License