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Psicologia em Revista
Print version ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.3 Belo Horizonte Sept./Dec. 2020
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n3p901-920
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2020v26n3p901-920
Psicopatologia dos objetos transicionais: o olhar de Winnicott para a clínica das adicções
Transitional objects psychopathology: Winnicott's look at the addictions clinic
Psicopatología de los objetos transicionales: la mirada de Winnicott hacia la clínica de adicciones
Gustavo Chiesa Gouveia Nascimento1*; Márcia Aparecida Ferreira Oliveira**; Ricardo Henrique Soares***
Resumo
Este trabalho tem por objeto as contribuições de Donald W. Winnicott acerca do fenômeno das toxicomanias, com o objetivo de apontar os desafios dessa clínica em nossas instituições de saúde. É apresentada uma síntese construída com base no trabalho do autor Décio Gurfinkel acerca do estatuto psicopatológico das adicções, numa perspectiva psicanalítica, para, posteriormente, pensá-lo à luz dos conceitos do processo de maturação de Winnicott. Ao fim, são empregados os conceitos apresentados para problematizar o campo das práticas clínicas. O fenômeno da toxicomania é apontado como extravio dos fenômenos transicionais ante a falha da sustentação ambiental para as experiências de ilusão primária, colocando o foco do trabalho clínico junto a esses usuários na sustentação da própria relação de cuidado, espaço potencial fértil para o sonhar e o simbolismo que se encontram alienados do sujeito adicto. Coloca-se como desafio para as instituições o aspecto tóxico que podem ganhar essas relações.
Palavras-chave: Psicanálise. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Serviços de saúde mental.
Abstract
The contributions of Winnicott on the phenomenon of drug addiction are the object of this paper, being its aim to point out the challenges posed to this clinic in our health institutions. A synthesis from the work of Gurfinkel concerning the psychopathological status of addictions from a psychoanalytic point of view is discussed in accordance with the concepts of Winnicotts maturing period. At the end, the concepts presented are used to problematize the field of clinical practice. Drug addiction is pointed out as a misplacement of transitional phenomena before the failure of environmental support for the experiences of primary illusion. Thus, the clinical work focus with these patients is set on the support of the care relationship itself, a fertile potential space for dreaming and symbolism, from which the addicted subject is alienated. The toxic aspect that can permeate these relationships is a challenge posed to the health institutions.
Keywords: Psychoanalysis. Substance-related disorders. Mental health services.
Resumen
Este trabajo tiene como foco la contribución de Winnicott sobre el fenómeno de las toxicomanías, con el fin de señalar los retos de esta clínica en nuestras instituciones de salud. Se presenta una síntesis de la obra de Gurfinkel sobre el estatuto psicopatológico de las adicciones en una perspectiva psicoanalítica, para después, analizarlo a la luz de los conceptos del proceso de maduración de Winnicott. Al final, se utilizan los conceptos presentados para analizar el campo de las prácticas clínicas. El fenómeno de la toxicomanía es señalado como la pérdida de los fenómenos transicionales frente al fracaso del apoyo ambiental para las experiencias de ilusión primaria. Así, el foco del trabajo clínico junto a estos usuarios recae en el apoyo a su propia relación de cuidado, espacio potencial fértil para el sueño y el simbolismo de que están enajenados del sujeto adicto. Surge como un reto para las instituciones el aspecto tóxico que puede crearse en estas relaciones.
Palabras clave: Psicoanálisis. Trastornos relacionados con el uso de sustancias. Servicios de salud mental.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho nasce a partir de minha experiência como residente de Psicologia no Programa de Residência Multiprofissional em Álcool e Outras Drogas, da Escola de Enfermagem da USP, no período de 2015 a 2017. O campo de atuação profissional foi o CAPS AD III Centro, em São Paulo-SP
Dentro desse sensível campo de encontros, pude acompanhar as expectativas, vitórias, frustrações e embates que se desenrolam para aqueles que se colocam junto aos usuários, em busca da construção de outras trajetórias de vida, para além das ligações com as substâncias.
Sabemos que dos usuários de drogas muito se fala e pouco se escuta. O campo das dependências segue heterogêneo, muitas vezes palco de intensas disputas por um discurso hegemônico, marcado por polarizações que nos impedem de enxergar o usuário com quem nos encontramos (Conte, 2004).
É justamente sobre a difícil construção dessa clínica, sobre a difícil tarefa de seguir escutando o usuário de drogas que este trabalho pretende se debruçar. Como nos diria Campos (2014), é impossível praticar saúde pública sem o auxílio da clínica, sob o risco de que banalizemos a importância dos aspectos técnicos do trabalho, esvaziando-o de seu sentido social como valor de uso.
Se, por um lado, não problematizar a clínica no discurso sanitarista acarreta seus riscos, sabemos, por outro, que é importante discuti-la sem a perder de vista como prática social, de um sólido respaldo teórico, e não apenas como uma disciplina técnica.
A busca por fundamentações teóricas para o avanço e aprofundamento da Reforma Psiquiátrica não é uma questão de pouca importância. Ainda que sejam notáveis os avanços desde o lançamento de A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas (Ministério da Saúde, 2003), com a expansão gradual dos CAPS AD, CAPS AD III, bem como das unidades de acolhimento (Ministério da Saúde, 2015), evidenciando-se um esforço na construção de redes de cuidado que atendam o sujeito em suas necessidades integrais, a produção estritamente teórica, como diz Kinoshita (2016): "Para a reflexão crítica e replicação e expansão de novas experiências e para a formação de massa crítica de profissionais, tem sido limitada" (p. 107).
Por essa razão, fez parte de meu trabalho constante, durante estes dois anos, a construção de um referencial teórico que desse sustentação à minha atuação clínico-institucional como psicólogo em um CAPS AD, referencial este que pude encontrar na psicanálise proposta por Donald W. Winnicott.
Este trabalho tem por objeto, portanto, as contribuições de Winnicott e de autores que se aproximam de suas construções teóricas acerca do fenômeno das adicções, com o objetivo de trazer um possível olhar sobre os desafios e sentidos dessa clínica em nossas instituições de saúde.
Para dar conta dessa tarefa, inicio este trabalho apresentando uma síntese construída a partir do trabalho de Gurfinkel, importante pesquisador da psicanálise das adicções. Inicialmente, é apresentada sua discussão acerca do estatuto psicopatológico das adicções em uma perspectiva psicanalítica e a mudança nos estudos da psicanálise das adicções, do enfoque da economia pulsional para os enfoques a partir das relações de objeto, profundamente marcados pelas contribuições da obra de Winnicott.
Posteriormente, o fenômeno das adicções é abordado com base nos conceitos de Winnicott acerca do processo de maturação e desenvolvimento da personalidade, apresentando um caminho possível para a compreensão desse fenômeno a partir da psicopatologia dos objetos transicionais proposta pelo autor.
Ao fim, utilizo-me dos conceitos apresentados e das contribuições de outros autores para trazer algumas breves reflexões sobre as implicações dessa construção teórica para o campo das práticas clínicas, trazendo, assim, algumas breves problematizações para o trabalho em nossas instituições de saúde.
2. PSICANÁLISE DAS ADICÇÕES: O ESTATUTO PSICOPATOLÓGICO DAS ADICÇÕES
Gurfinkel nos oferece um importante esboço da teoria psicanalítica das adicções. Para o autor, a despeito dos diferentes grupos de pacientes adictos que podemos encontrar em nossa clínica e das diversas estruturas clínicas propostas como estatuto clínico para o campo das adicções, é importante defender uma unidade que reúna as diferentes formas destas (Gurfinkel, 2011; Gurfinkel, & Sapientiae, 2007). Sobre essa unidade, propõe pensarmos a adicção como uma ação de caráter impulsivo e irrefreável que produz um estado de escravização diante do objeto e uma decorrente coisificação na qualidade das relações estabelecidas (Gurfinkel, 2011).
Segundo o autor, pode-se enxergar, no campo das toxicomanias, um parentesco importante com a clínica da perversão. O adicto trespassa o campo da fantasia e age diretamente na realidade material, o que implica, muitas vezes, em uma forte crise de confiança, conferindo ao usuário de drogas um aspecto de degradação do caráter, no sentido de uma deterioração vivenciada no campo relacional, e uma associação que se evidencia em muitos casos com a espiral dos atos e condutas antissociais (Gurfinkel, 2011).
Como será colocado posteriormente, essa crise de confiança adentra o campo transferencial e exige cuidado e atenção por parte dos que pretendem cuidar dessa população, gerando respostas reativas e defensivas por parte das equipes, identificando-se e reproduzindo, muitas vezes, na própria relação terapêutica, esse aspecto de deterioração da alteridade.
Na esteira dessa degradação do caráter, o autor enxerga nas toxicomanias uma semelhança importante com os objetos de fetiche e com a forma peculiar de relação com esses objetos. Nessas relações, observa-se uma inversão fundamental dos polos da relação sujeito-objeto conduzindo a uma escravização do primeiro pelo último. Quanto mais se aprofunda na relação adictiva, mais o sujeito vê-se alienado de sua liberdade de escolha entre usar ou não usar o objeto, assim como alienado da própria relação (Gurfinkel, & Sapientiae, 2007).
A palavra adictu já aponta para esse aspecto marcante da relação com o objeto que se estabelece no campo das adicções. Gurfinkel e Sapientiae (2007), descrevendo a etimologia, lembra-nos que o adictu era, na Roma antiga, a pessoa que se tornava escrava de um credor, como forma de pagamento de uma dívida que era incapaz de saldar. Interessante observar a semelhança com as construções míticas daqueles que vendiam sua alma para o diabo, tornando-se eternos devedores de um salvador traiçoeiro.
O aspecto da alienação na relação adictiva é notável, segundo nos propõe o autor. O sujeito apresenta-se como um sujeito-quase, incompleto e enfraquecido diante de um objeto todo-poderoso investido de poderes extremos e enigmáticos. É interessante sobre esse ponto notar a frequente relação que se faz do usuário de drogas como um morto-vivo e o importante papel que cumpre a cultura no fortalecimento desses estigmas, tanto do lugar impotente do usuário de drogas quanto na legitimação do mito de um objeto-droga investido de poderes sobrenaturais.
Nessa relação alienada, descreve a nós o autor, o objeto de escolha é investido de toda a libido narcísica e torna-se objeto indispensável ao gozo, apresentandose à maneira de uma nova necessidade comparável às necessidades das pulsões de autopreservação. O usuário sente fome por seu objeto escolhido e sente-se incompleto sem este.
Na esteira desse processo, o autor identifica um processo de perversão do funcionamento pulsional, em uma espécie de biologização das pulsões, em que os objetos de desejo se coisificam como objetos necessários para sua sobrevivência, distanciando-se das criações psicossexuais, do campo do desejo e do sonho. Na toxicomania e nas adicções em geral, o ato surgiria sem seu sentido dramático, acompanhado apenas da repetição compulsiva que o anime (Gurfinkel, 2011).
Por essa razão ainda, Gurfinkel (2011) coloca as adicções no campo de uma patologia do agir, em que se apresenta um agir impulsivo e esvaziado da expressividade característica do gesto humano. O agir que a solução adictiva nos propõem é de pura descarga, em que predomina a cena atual em detrimento das cenas infantis recalcadas.
Dessa forma, conclui que, quanto mais se aprofunda a relação adictiva, mais nos distanciamos do campo do simbolismo e mais nos aproximamos de um campo arcaico do arco-reflexo em que tensão acumulada é tensão a ser descarregada. O sujeito alienar-se-ia cada vez mais, e o mundo e as relações ficariam cada vez mais coisificados. Se, por um lado, um objeto é investido de um novo status, por outro, as outras relações se coisificam, tornando-se, muitas vezes, coadjuvantes ou meros meios a partir dos quais o sujeito sustenta sua relação com o objeto droga.
O ato repetitivo conduz o sujeito a uma automação, que não pode ser interrompida ou modificada, a menos que se faça muito esforço no sentido contrário, outro aspecto que, segundo o autor, domina o campo transferencial no trabalho com pacientes toxicômanos, deixando perplexos e com a constante sensação de que faltam as ferramentas necessárias para se empenhar na tarefa aqueles que cuidam dos usuários os quais se encontram nessa forma de relação.
O simbolismo falta, e o afeto fica interrompido, conferindo um aspecto tóxico à relação. A fissura é transferida para aqueles mesmos que cuidam. Posteriormente, aprofundar-nos-emos nessa questão.
Essa deterioração do campo simbólico ante o objeto é descrita ainda como um colapso do campo do sonho (Gurfinkel, 2011). No sonhar, dá-se uma aproximação da fantasia com o Ego, enquanto, na dissociação da saída adictiva, o Ego se enfraquece e, como defesa, apela-se para as viagens às realidades paralelas dissociadas, das quais o sujeito extrai para si sempre muito pouco.
É notável, nesse ponto, a semelhança proposta por Gurfinkel (2011) também das toxicomanias com o ciclo maníaco-depressivo em que o uso se dá na tentativa de anular a dor do Eu derivada de sentimentos de impotência e inferioridade, gerando uma vivência artificial e dissociada de onipotência e invulnerabilidade. O sujeito não guarda nada da experiência, diferente do usuário habituado, que pode até ter um uso frequente e intenso, mas em que o narcisismo e o desejo seguem preservados e para o qual o objeto pode significar uma ampliação dos espaços do sonhar.
Dessa forma, o autor nos descreve o fenômeno das adicções como uma ação de caráter impulsivo e irrefreável, constituída em uma inversão dos polos da relação sujeito-objeto, produzindo um estado de escravização do primeiro pelo último e uma decorrente coisificação na qualidade das relações estabelecidas, bem como no simbolismo e na própria vida pulsional de uma forma geral (Gurfinkel, 2011).
Ora, mas, em uma perspectiva psicanalítica, qual seria a etiologia de um fenômeno como esse? Com base em uma dimensão histórico-conceitual, podemos enxergar, em certos estudos psicanalíticos sobre as adicções, uma passagem paulatina das abordagens centradas no instrumental da teoria das pulsões, a partir do modelo da perversão e do fetichismo, para uma ênfase cada vez maior no campo das psicopatologias dos objetos transicionais, influenciada pelas contribuições trazidas na obra de Winnicott (Gurfinkel, & Sapientiae, 2007).
Ora, se o toxicômano nos sugere um aspecto de degradação do caráter, podemos supor que teria sofrido, ele próprio, uma falha na sustentação da confiabilidade no ambiente e na relação com o outro, que teria conduzido a essa deterioração no campo relacional?
3. PSICOPATOLOGIA DOS FENÔMENOS TRANSICIONAIS: UM OLHAR PARA AS TOXICOMANIAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE OBJETO
Esta hipótese foi proposta, pela primeira vez, na obra de Winnicott, no caso do menino dos cordões, em que descreve um extravio no uso de um objeto transicional que é pervertido, adquirindo um aspecto de objeto de fetiche. Sobre esse mesmo caso, em notas posteriores, Winnicott (1975b) revela que o menino em questão teria desenvolvido uma adicção por drogas e deixa a inquietante pergunta: "Um investigador que efetuasse um estudo desse caso de vício em drogas daria a devida consideração à psicopatologia manifestada na área dos fenômenos transicionais?" (p. 37).
Winnicott propõe, originalmente, a partir de suas observações do processo de maturação no bebê, que, entre as primeiras satisfações autoeróticas e a ligação a um primeiro objeto reconhecido como não eu, surge uma área intermediária da experiência que denomina objeto transicional ou fenômenos transicionais.
Esses objetos ou experiências, que serão tanto encontradas quanto criadas, ganharão importância vital para a criança, constituindo-se como uma importante defesa contra as ansiedades e uma experiência necessária para o início de um relacionamento entre a criança e o mundo.
Na saúde, dirá Winnicott, vai se dar uma ampliação gradual do âmbito de interesses para além desses fenômenos, que se tornarão a base da experiência do viver criativo, possibilitando, pela via da transicionalidade, o uso de diferentes objetos como forma de mediar a sempre tensa relação com a realidade (Winnicott, 1975a).
O autor, no entanto, faz um alerta: "A necessidade de um objeto específico ou de um padrão de comportamento que começou em data muito primitiva pode reaparecer numa idade posterior, quando a privação ameaça" (Winnicott, 1975b, p. 17).
Na perspectiva winnicottiana, esse processo de desenvolvimento emocional em direção aos fenômenos transicionais se dá a partir de uma adaptação ativa do ambiente às necessidades do bebê. Num primeiro momento, propõe que essa adaptação deve ser quase completa, de forma que o bebê possa experimentar a ilusão de onipotência do controle sobre o ambiente. Essa adaptação deve diminuir gradativamente de acordo com a crescente capacidade deste de tolerar o fracasso de seus cuidadores e sua própria frustração.
No momento de dependência absoluta, dirá: "A mãe coloca o seio real exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo. E no momento exato" (Winnicott, 1975b, p. 26). Trata-se de uma experiência de criatividade à qual Winnicott dará o nome de ilusão primária, e que colocará os fenômenos transicionais nessa região paradoxal entre algo que foi encontrado e, ao mesmo tempo, criado.
Esse objeto criado ilusoriamente, que, para Winnicott, vai ser chamado objeto interno, guarda relação com o objeto externo (seio real), e encontra-se sobre o controle mágico do bebê, sendo a base da experiência de integração do self que poderá tolerar as futuras experiências de desilusão que se darão a partir da desadaptação progressiva do ambiente a suas necessidades.
O objeto transicional, portanto, dá forma à área da ilusão primária, colocando-a sobre um objeto, e permitindo, portanto, que essa experiência ilusória se coloque em relação, gradativamente se ampliando em direção ao viver criativo. Assim, Winnicott propõe que uma parte da experiência ilusória sobreviverá às experiências posteriores de desilusão, aspecto da realidade, ficando guardadas nessa experiência de compartilhamento característica das relações humanas.
O autor, dessa forma, coloca em jogo o importante papel que o ambiente exerce para a construção internalizada dos objetos no sujeito, que serão a base a partir da qual surgirão os objetos ou fenômenos transicionais que, por sua vez, permitirão ingressar o sujeito em um mundo de relações compartilhadas.
Winnicott (1975b) afirma:
O bebê pode empregar um objeto transicional quando o objeto interno está vivo, é real e suficientemente bom (não demasiadamente persecutório). Mas este objeto interno depende, para conservar estas qualidades, da existência, da vivacidade e do comportamento do objeto externo (seio, figura materna ou, genericamente, cuidado ambiental). A maldade ou falhas neste último conduz, indiretamente, à morte ou à qualidade persecutória do objeto interno. Após a falha do objeto externo persistir, o objeto interno deixa de ter sentido para o bebê, e então e só então também o objeto transicional torna-se sem sentido (p. 45).
Ou seja, se, por um lado, o sucesso do ambiente permite ao sujeito o ingresso na experiência humana do viver criativo, por outro, a falha desastrosa e recorrente deste levará o sujeito a uma experiência de perda de sentido e desintegração, colocando em risco a experiência de continuidade do self. Resta ao sujeito defender-se dessa desintegração, caso seja capaz, uma vez que o ambiente do qual dependia não o foi.
Kupermann, Paulo e Freudiana (2008), comentando Winnicott, dizem:
O bebê que precisa estar atento demais ao ambiente termina, em busca de controle, mimetizando os adultos à sua volta e construindo um falso self protetor com base na submissão, comprometendo o seu viver criativo e acarretando o sentimento de "inutilidade" ou de "irrealidade" sobre o qual a clínica quer intervir (p. 85).
Aqui está a origem do que Winnicott chama falso self e que será fundamental para entendermos a experiência de falta de sentido intensamente presente no campo das adicções. O self verdadeiro, em que se encontra o gesto criativo, fica oculto, e o que aparece na relação é um protótipo de self, submisso, que surge como defesa de um ambiente ameaçador (Winnicott, 2000a).
Essa falha desastrosa do ambiente no momento de dependência absoluta será, para Winnicott, a origem de todas as psicopatologias, especialmente dos casos clínicos de sujeitos severamente traumatizados em que não se encontra uma constituição narcísica integrada, como nos sugerem as toxicomanias.
Diz Winnicott (1975b):
Neste ponto, meu tema se amplia para o do brincar, da criatividade e apreciação artística, do sentimento religioso, do sonhar, e também do fetichismo, do mentir e do furtar, a origem e a perda do sentimento afetuoso, o vício em drogas, o talismã dos rituais obsessivos, etc. (p. 19).
Partindo dessa perspectiva, a hipótese seria a de que o adicto, ele próprio, teria sofrido em algum momento remoto de sua vida, que se reatualiza quando a privação ameaça, uma falha de confiabilidade e de sustentação para o qual a defesa possível foi a solução adictiva, ou seja, a perversão do uso de um objeto em um objeto fetichizado, como negação da falta e criação de um universo paralelo, ao qual o objeto droga serve tão adequadamente, por um lado, negando a falta através de seu efeito euforizante, por outro, engendrando realidades paralelas dissociadas. No caso do menino dos cordões, essa hipótese fica muito bem representada (Winnicott, 1975b).
No caso em questão, Winnicott nos apresenta um menino de 7 anos que vinha desenvolvendo uma série de sintomas, entre eles o uso obsessivo de cordões, que começava a ganhar características peculiares e perigosas.
O autor associa, então, essa obsessão por cordões a um temor pela separação com a mãe, que, por suas características depressivas, em diversas situações, ficava afastada da relação com o filho, quando então o uso desses cordões se intensificava. O autor sugere que a mãe abordasse a questão com o filho e, após algumas conversas em que se pôde iniciar um trabalho de elaboração das situações de separação, o sintoma teria desaparecido.
Posteriormente, os sintomas retornam, uma vez que as problemáticas familiares e a depressão da mãe perduraram e o menino em questão veio a desenvolver, na adolescência, novos vícios, especialmente em drogas.
Retornando à teoria winnicottiana do desenvolvimento, o autor afirma que a criança pode aguentar apenas uma quantidade da ausência do objeto externo, dependendo de seu grau de maturação, mantendo viva a representação interna.
Passada essa quantidade, o objeto se esmaece, e os fenômenos transicionais perderiam seu sentido, ameaçando gravemente a experiência de continuidade e o self. Winnicott coloca que, imediatamente antes dessa perda de sentido, o objeto é hiperinvestido como forma de negação da ameaça (Winnicott, 1975b).
Diante da ameaça da perda de sua mãe, o objeto cordão, que antes teria a função de representar a união/comunicação com a mãe, passa a se modificar como forma de negação da separação, sendo seu uso exacerbado um indicador dessa insegurança ante a ameaça de aniquilamento.
Winnicott nos diz que, como negação, o cordão perde seu sentido simbólico da relação, tornando-se uma coisa em si, com propriedades perigosas que precisam ser dominadas, e que teria sido possível lidar com esse uso enquanto ainda existia a esperança na reparação de seu sentido. Do contrário, segundo o autor, surgiria um estado de coisas muito mais complexo de lidar em razão dos ganhos secundários oriundos da perícia que se desenvolveria neste uso (Winnicott, 1975b). Pensemos, aqui, no prazer relatado por nossos pacientes pelas habilidades desenvolvidas nos rituais de consumo de suas substâncias de escolha.
No caso descrito, portanto, a relação com o cordão se coisifica, assim como nas toxicomanias em que o uso de uma substância perde sua dimensão expressiva e seu sentido simbólico, ficando restrito ao próprio domínio do ato e das características do objeto em si.
Dessa forma, Winnicott nos oferece um importante modelo a partir do qual vemos o surgimento de um objeto hiperinvestido de características mágicas, dissociando-se de seu sentido expressivo e tornando-se uma coisa em si, garantindo a integridade do self ante uma ameaça de aniquilamento e iminência de colapso de sentido.
Se, na dependência primária, a do bebê ante sua mãe, não há sobrevivência do sujeito sem a realidade do objeto externo, a defesa em questão garantiria uma integridade reativa do self a partir de uma respiração artificial sobre o objeto.
Nesse sentido, fazendo um paralelo com as toxicomanias, podemos dizer que o uso de uma substância específica surgiria como defesa diante da perda de sentido de estar no mundo, advinda da ameaça ao self oriunda da falha ambiental em dar sustentação às experiências de ilusão primária necessárias para o ingresso nos fenômenos transicionais.
Nesse ponto, surge um aspecto interessante. Se usualmente a figura do usuário de drogas é associada a uma figura destrutiva, associando-se o uso a um desejo de morte, o que essa formulação nos mostra é justamente o oposto. O que estaria em jogo nesse uso seria uma esperança, em maior ou menor grau presente, em recobrar o sentido perdido, ainda que por uma negação da própria perda.
McDougall (1996) corrobora fortemente essa formulação. A autora coloca a solução adictiva como uma tentativa de cura ante a estados psíquicos ameaçadores em que o uso exacerbado de um objeto específico busca suprir uma função materna que o sujeito é incapaz de proporcionar a si mesmo. Trata-se, segundo a autora, de uma tentativa de recobrar uma maternagem perdida.
A partir da teoria das psicopatologias dos objetos transicionais, portanto, o fenômeno da adicção será colocado como um extravio na área dos fenômenos transicionais, decorrente de uma falha na sustentação ambiental na dependência primária, colocando a continuidade do self em um estado de ameaça, em que o uso exacerbado de um objeto surge reativamente como defesa na tentativa de simular um objeto vivo com o qual o sujeito possa se relacionar e a partir do qual encontre uma experiência alimentadora de sentido.
O objeto torna-se, portanto, a base de sustentação para a experiência de ser do sujeito, ganhando o status psíquico de um fator constitucional, tal qual seria a experiência originária de satisfação no bebê. É por essa razão que se assemelha a uma nova necessidade comparável às necessidades das pulsões de autopreservação. A memória do encontro com o objeto se transforma em uma espécie de gozo inaugural, a partir do qual o sujeito vai se ancorar (Gurfinkel, 2011; Gurfinkel, & Sapientiae, 2007).
Ora, se os fenômenos transicionais são responsáveis por introduzir o sujeito no mundo das relações, é essa falha, a degradação do campo relacional, que tanto é apontada, no campo das toxicomanias, muitas vezes de maneira taxativa, como uma falha de caráter. Basta vermos a força dos modelos de cuidado baseados na ideia de uma regeneração moral, retomando, muitas vezes, práticas que nos lembram as antigas práticas manicomiais aplicadas aos loucos e desajustados de toda ordem (Kinoshita, 2016).
Dirá Winnicott (1975b): "Não há possibilidade alguma de um bebê progredir do princípio de prazer para o princípio de realidade ou no sentido, e para além dela, da identificação primária, a menos que exista uma mãe suficientemente boa" (p. 25). A mãe suficientemente boa é a figura de cuidado que efetuará a adaptação ativa às necessidades do bebê, permitindo as experiências de ilusão primárias e construindo o palco para as futuras e também fundamentais experiências de desilusão. O que isso nos lembra é que o reconhecimento da alteridade e, portanto, da dívida com o outro depende do sucesso dessa travessia transicional.
Retomando a etimologia trazida anteriormente, o adicto que denuncia uma falha nesse processo, investindo o objeto da tarefa de produzir essa sustentação ambiental que falhou e que, portanto, não veio a ser introjetada, está diante de uma dívida que é incapaz de saldar, por um lado, porque não pode reconhecê-la claramente, e, por outro, porque carece dos "recursos" para tal, ficando escravo e eterno devedor de seu credor.
Partindo dessa formulação teórica, poderíamos dizer que uma demanda geral do campo das toxicomanias será o de recobrar o sentido perdido da relação. O toxicômano está em busca de se relacionar, busca na droga uma experiência por meio da qual possa ter recobrada sua ligação com o mundo e com os outros, assim como nos diria Thimoty Leary: "Ligue-se, sintonize-se, caia fora!".1
Podemos aprofundar essa questão se olharmos para as contribuições trazidas por Winnicott acerca do campo do brincar. O autor afirma que é no brincar que a criança (e, posteriormente, o adulto) pode fruir toda a sua capacidade criativa, na qual está presente a experiência de um viver pleno de sentido (Winnicott, 1975c, 1975d).
Dirá o autor (Winnicott, 1975a):
É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo e todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação (p. 95).
Aqui surge um aspecto interessante da concepção psicopatológica winnicottiana, que coloca nos sujeitos submissos à realidade um estado patológico tão ou mais grave do que os sujeitos que a recusam por completo, permanecendo isolados em suas construções subjetivas, enxergando, por outro lado, mais esperança nos sujeitos que nos agridem como forma de ver recobrado o cuidado que o ambiente falhou em lhes dar (Winnicott, 1984).
Essa formulação ganha especial relevância no campo das adicções, em que se associa, muitas vezes, o uso de drogas com o circuito dos atos antissociais e delinquentes, gerando resistências por parte dos cuidadores e das instituições.
Aqueles que já tiveram contato com essa clínica vão se lembrar da quantidade de energia empregada pelas equipes, ainda que para se defender, especialmente com esses casos em que se encontram presentes atos antissociais, enquanto que os usuários dóceis seguem invisíveis e ainda mais distantes de nosso cuidado.
O brincar é, portanto, para Winnicott, aspecto fundamental do viver saudável, sendo não apenas um recurso terapêutico valioso a ser usado, mas algo que carrega um valor em si para o sujeito. Mas o brincar não é uma experiência natural, ou seja, que se dará naturalmente no processo de maturação. Segundo o autor, essa é uma difícil operação, que só pode surgir caso se tenha sucesso na travessia dos fenômenos transicionais.
Winnicott propõe que o brincar só pode acontecer nesse espaço intermediário da transicionalidade e coloca como lugar teórico para o brincar o espaço potencial, um playground intermediário entre mãe e bebê que, por sua vez, somente poderá existir caso exista confiança suficiente oriunda das experiências de ilusão primária e onipotência (Winnicott, 1975d).
Se, no entanto, não se oferecer ao bebê oportunidades suficientes para a ilusão primária, se não puder confiar suficientemente para que possa ingressar nesse espaço potencial, não existirá o brincar e, consequentemente, não existirão vínculos com a herança cultural.
Um novo elemento pode agora ser adicionado. Para o autor, não apenas a capacidade de comunicação e ligação surge do brincar, mas também a capacidade de estar só, sendo esta, para Winnicott, um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento emocional. É só na presença de alguém que confia e que justifica a confiança que a criança pode estar só (Winnicott, 1983).
Mas, assim como o brincar, nos diz o autor, essa capacidade depende da existência de um objeto bom na realidade psíquica do indivíduo, que o faça sentirse confiante quanto ao presente e ao futuro, dando-lhe uma autossuficiência para viver temporariamente descansado e contente, mesmo na ausência de outros objetos ou estímulos externos.
Winnicott (1983) afirma:
Maturidade e capacidade de ficar só significam que o indivíduo teve oportunidade através da maternidade suficientemente boa de construir uma crença num ambiente benigno. Essa crença se constrói através da repetição de gratificações instintivas satisfatórias (p. 34).
Ora, agora a fala de Thimoty Leary pode fazer mais sentido do que nunca! O que o adicto procura é uma capacidade de ligar-se e desligar-se com o mundo, busca na substância uma forma de modular sua ligação com o mundo, de poder fruir sua criatividade nesse campo intermediário da experiência cultural em que se dão as relações, no qual nossas vidas podem ser plenas de sentido e sem o qual estaremos fadados a um sentimento de submissão e isolamento.
4. SENTIDOS DO CUIDADO: PROBLEMATIZAÇÕES PARA A CLÍNICA
O fenômeno da adicção será colocado, portanto, como um extravio na área dos fenômenos transicionais, decorrente de uma falha da sustentação ambiental na dependência primária, pondo a continuidade do self em ameaça. O uso exacerbado do objeto-droga surgiria reativamente como defesa na tentativa de simular um objeto vivo com o qual o sujeito possa se relacionar e a partir do qual encontre uma experiência alimentadora de sentido.
Essa afirmação coloca nosso trabalho junto a esses usuários no campo das relações, não apenas na transformação da relação com o objeto-droga, enxergada apenas como sintoma da falha da sustentação nas próprias relações vivenciadas para fora do encontro com o objeto, mas na sustentação dentro da própria relação de cuidado, desse espaço potencial, terreno fértil para o sonhar e o simbolismo que se encontram alienados do sujeito quanto mais se aprofunda a relação adictiva. Poderíamos dizer, portanto, que é importante antes de qualquer elaboração, uma focalização da própria relação intersubjetiva.
Retomando Winnicott (1975d):
A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é (p. 59).
Ora, se estamos dizendo que, na toxicomania, perdeu-se (ou nunca se teve) a confiança e o relaxamento necessários no ambiente para que se possa fruir toda a potência criativa, por meio da via da transicionalidade, construir esse espaço potencial no encontro com esses sujeitos será um primeiro e fundamental desafio, sem o qual não poderemos sanar a sede de ilusão, ilusão primária, que nossos usuários nos trazem. Esse espaço não é tanto o espaço físico do CAPS, mas o espaço na relação, a partir do qual, se houver a confiança necessária, o sujeito poderá descobrir sua potência criativa, brincar de se inventar e se reinventar.
Nesse ponto, nossa reflexão encontra-se fortuitamente com as reflexões acumuladas pela noção de redução de danos proposta por Conte (2004) e Lancetti (2015; 2016) e com o conceito de reabilitação psicossocial de Saraceno (1999), aqui pensados em sua afirmação paradigmática de compromisso clínico-político com a ampliação dos espaços de vida e de potência para além da mitigação dos riscos e danos envolvidos em certa forma de uso de substância ou de certa condição de sofrimento psíquico.
Portanto, será fundamentalmente nas vicissitudes do jogo transferencial, neste campo do sensível, que atravessa o encontro clínico, que se desenvolverá qualquer trabalho possível, campo transferencial este que nos traz uma série de desafios (Kupermann, Paulo, & Freudiana, 2008).
O principal deles talvez seja a crise de confiança que adentra a relação terapêutica a que se refere Gurfinkel (2011), mantendo-nos permanentemente magnetizados pelo suposto poder mágico da substância, impedindo-nos, muitas vezes, de escutar o sujeito para além dessa relação, exigindo cuidado constante das equipes, para que não se encerre o afeto na desconfiança e no ódio produzido pelo ciclo repetitivo e pelo enfraquecimento do sujeito ante o suposto poder mágico da substância.
Lancetti (2015) chama de contrafissura esse fenômeno que atinge aqueles que se debruçam sobre os adictos, fenômeno este que existe para muito além da relação transferencial do encontro clínico, mas que atravessa todo discurso social, desde nossas compreensões teóricas até nossa formulação de políticas, e se manifesta por construções reducionistas tomadas pelo desejo de resolver imediatamente, e de modo simplificado, um problema de tamanha complexidade, assim como pelo foco na substância em vez de no sujeito.
Para o autor, em resposta à contrafissura, é necessário ao profissional da saúde que cuidará desses usuários uma enorme plasticidade psíquica e o que chamará de um forte atletismo afetivo. Essa disposição afetiva será fundamental para lidar com a angústia diante da repetição dos múltiplos sentimentos presentes no ciclo adictivo tanto para o usuário quanto para aqueles que dele cuidam.
Diz Lancetti (2015):
O conceito de atletismo afetivo nos remete ao corpo do terapeuta. Ele, em primeiro lugar, busca curiosamente o corpo de seu interlocutor, se aproxima, escuta, olha, toca [...] e uma vez iniciada essa relação se dispõe às mais diferentes reações: de desconfiança, de amor, de ódio ou busca de uso, de dependência e de autonomia (p. 63).
Ora, o sujeito que se encontra conosco também desconfia. A desconfiança deve ser pensada assim, como uma das reações possíveis para o encontro, uma reação que deve ser acolhida e não retaliada. Nesse sentido, a desconfiança não pode servir para que paremos de escutar, mas talvez, radicalmente o contrário, para sabermos que ainda não tivemos sucesso em dar a sustentação necessária para que o sujeito possa se apresentar em outras disposições.
A desconfiança pode nos servir como um lembrete de que há algo a mais para surgir nesse sujeito com quem nos encontramos, algo além dos discursos encerrados na droga, um a mais possivelmente desconfiado, também com razão, pois fala das falhas de que foi vítima. Será fundamental, portanto, estarmos devidamente preparados para sustentar o sujeito em sua complexidade quando este tiver a confiança necessária para se apresentar.
Retomando a questão da dívida que o adicto é incapaz de reconhecer e de saldar em razão de sua falha na travessia da transicionalidade, a pergunta em questão é: poderíamos nós, profissionais da saúde, cobrar também?
Winnicott (1975c) nos diz:
O absurdo organizado já constitui uma defesa, tal como o caos organizado é uma negação do caos. O terapeuta que não consegue receber esta comunicação, empenha-se numa tentativa vã de descobrir alguma organização no absurdo, em consequência de que o paciente abandona a área do absurdo, devido à desesperança de comunicá-lo. Uma oportunidade de repouso foi perdida, devido à necessidade que o terapeuta teve de encontrar sentido onde este não existe. O paciente não pôde repousar, devido a um fracasso das provisões ambientais que desfez o sentimento de confiança (p. 82).
Se não desejarmos, mais uma vez, fazer nossos pacientes submissos a um mundo incapaz de reconhecê-los e aceitá-los em seus aspectos mais rudimentares, devemos, portanto, ser capazes de receber os absurdos que poderão surgir assim que o sujeito confiar o suficiente para se apresentar.
Sobre esse ponto, Winnicott traz outra contribuição importante e lembra-nos de que esses tipos de pacientes representam sempre uma pesada carga emocional para aqueles que deles cuidam, de forma que devemos estar profundamente conscientes desses afetos sobre o risco de eles se tornarem os determinantes da forma como esses pacientes serão tratados (Winnicott, 2000b).
Diz o autor:
Se for inevitável que ao analista sejam atribuídos sentimentos brutais, é melhor que ele esteja consciente e prevenido, pois lhe será necessário tolerar que o coloquem neste lugar. Acima de tudo ele não deve negar o ódio que realmente existe dentro de si. O ódio que é legítimo nesse contexto deve ser percebido claramente, e mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura interpretação (Winnicott, 2000b, p. 279).
Ou seja, é necessário permanecer escutando diante das dúvidas e dos embates que surgirão sempre que a confiança e a constância de um objeto, nós terapeutas, tiver de ser testada, em busca de construir a confiança necessária para que o sujeito possa se apresentar para além da droga. Se assim o fizermos, poderemos tirar algum proveito da desconfiança, nem a negando, numa espécie de defesa maníaca, nem a assumindo como impossibilidade da relação, mas, talvez, numa atitude sincera, compartilhando-a com o sujeito quando o momento for oportuno (Winnicott, 1975e; Winnicott, 1984).
Por fim, retomando Clare Winnicott, no prefácio do livro Privação e delinquência:
A questão prática é como manter um ambiente que seja suficientemente humano, e suficientemente forte, para conter os que prestam assistência e aos destituídos e delinquentes, que precisam desesperadamente de cuidados e de pertencimento, mas fazem o possível para destruí-los quando os encontram (Winnicott, 1984, p. 16).
Seguir escutando o usuário de drogas em suas repetições não é fácil. Exigirá de nós, profissionais da saúde, uma enorme plasticidade psíquica para que não nos encerremos no aspecto tóxico que pode ganhar uma relação em que se encontra presente tamanha deterioração do campo simbólico e uma disposição afetiva intensa para sobreviver às idas e vindas e aos embates, às vezes violentos, que se colocam para aqueles que pretendem cuidar dessa população em busca, fundamentalmente, de um lugar na relação.
Por outro lado, se não apostarmos nos sujeitos e permanecermos, nós também, fissurados na droga, dificilmente conseguiremos ofertar um espaço potente para que nossos usuários possam surgir para além desse objeto supostamente todopoderoso em que suas subjetividades se restringem.
REFERÊNCIAS
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Texto recebido em 19 de abril de 2017 e aprovado para publicação em 6 de setembro de 2018.
*Mestre em Psicologia Clínica pelo IP USP e especialista em Saúde Mental com foco em álcool e drogas pela EE USP, psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro do grupo de pesquisa Cligiap (Clínica de Grupos e Instituições: Abordagem Psicanalítica) e da Abramd Clínica (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas), psicanalista e grupalista em consultório particular, membro do ambulatório Promud (Programa da Mulher Dependente Química), do IPq HC FM USP, e analista institucional em diferentes contextos. Endereço: Rua Oscar Freire, 1707, ap. 51, São Paulo-SP, Brasil. CEP 05409-011. Telefone: (11) 97394-9449.E-mail: gustavocgn@gmail.com.
**Pós-doutorado em Ciências Sociais pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestra em Psicologia Social pela PUC-SP, graduada em Enfermagem pela Faculdade Don Domênico, professora sênior livre-docente no Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e professora visitante no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem/Cuidado, Educação e Trabalho em Enfermagem e Saúde/Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Endereço: Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419, São Paulo-SP, Brasil. CEP: 05403-000. Telefone: (11) 99761-5301.E-mail: marciaap@usp.br.
***Doutor e mestre em Ciências - Área de Concentração: Cuidado em Saúde, pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, especialista em Psicologia Clínica pelo Centro de Estudos Psicanalíticos, graduado em Psicologia pela Universidade Cruzeiro do Sul, bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, servidor público no Tribunal de Justiça de São Paulo e pesquisador do Grupo de Estudos em Álcool e Outras Drogas (CNPq), realizando estudos acerca das políticas e práticas em saúde mental. Endereço: Praça Doutor João Mendes, s/nº, 3º andar, São Paulo-SP, Brasil. CEP: 01501-900. Telefone: (11) 99902-4030.E-mail: rhssoares@hotmail.com.
1Frase célebre atribuída ao Timothy Francis Leary, Ph.D., professor de Harvard, psicólogo, neurocientista e escritor. Ficou famoso como um proponente dos benefícios terapêuticos e espirituais do LSD.