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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p112-125 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p112-125

 

Capitalismo e trabalho: relações de precarização na pós-modernidade

 

Capitalism and work: relations of precarity in postmodernity

 

Capitalismo y trabajo: relaciones de precarización en la posmodernidad

 

 

Katsumi Taís Takaki*; Carla Sabrina Xavier Antloga**

 

 


Resumo

Este artigo tem por objetivo discutir os avanços e as contradições do sistema capitalista, tendo por referência as mudanças ocorridas na sociedade após a crise do feudalismo. Trata-se de um estudo teórico, com análise crítica do desenvolvimento do capitalismo e da noção de progresso da humanidade, realizado por meio de revisão narrativa da literatura. Considera-se que tal progresso se deu mediante práticas de dominação e exclusão, tendo o surgimento de estratificações sociais intensificado a precarização das relações, inclusive no âmbito do trabalho. O controle sobre o corpo, os ritmos e a produtividade, até então herdados do contexto fabril, tornam-se insuficientes e inauguram uma fase de apropriação da subjetividade e dos afetos. Dessa forma, a noção de liberdade de escolha revela-se verdadeiramente frágil e alienada em uma sociedade do consumo, realidade também manifesta nas relações estabelecidas entre o trabalhador e a organização.

Palavras-chave: Capitalismo. Trabalho. Precarização.


Abstract

The aim of this article is to discuss the advances and contradictions of the capitalist system, using the changes that took place in society after the crisis of feudalism as a reference. As a theoretical study carried out through literature narrative review, it presents a critical analysis of capitalism development and the belief in the progress of mankind. It is considered that such progress has occurred through practices of domination and exclusion, with the emergence of social stratification which intensified the precariousness of relations, including the labour sphere. The control over body, rhythms and productivity, so far inherited from the factory context, becomes insufficient, and inaugurates a stage of appropriation of subjectivity and affection. Therefore, the notion of freedom of choice proves to be truly fragile and alienated in a consumer society, a patent reality in the relations settled among the worker and the organization.

Keywords: Capitalism. Work. Precariousness.


Resumen

Este artículo tiene por objetivo analizar los avances y contradicciones del sistema capitalista, utilizando como referencia los cambios vividos por la sociedad post crisis del feudalismo. Se trata de un estudio teórico con análisis crítico del desarrollo del capitalismo y de la noción de progreso de la humanidad, realizado a través de una revisión narrativa de la literatura. Se considera que tal progreso ocurrió mediante conductas de dominación y exclusión, habiendo el surgimiento de las estratificaciones sociales, intensificando la precarización de las relaciones, incluso en el ámbito del trabajo. El control sobre el cuerpo, los ritmos y la productividad, hasta entonces heredado del contexto fabril, se vuelve insuficiente y se inaugura una fase de apropiación de la subjetividad y de los afectos. Así, la noción de libertad de elección en una sociedad de consumo se muestra verdaderamente débil y enajenada, realidad que también se manifiesta en las relaciones establecidas entre el trabajador y la organización.

Palabras clave: Capitalismo. Trabajo. Precarización.


1. INTRODUÇÃO

Estudar a história da humanidade implica, necessariamente, estudar a relação dos sujeitos com o trabalho. As formas de interação social, sua natureza e respectivas finalidades evoluíram desde as comunidades primitivas até os dias atuais, conforme os sujeitos dominaram instrumentos e desenvolveram técnicas para transformar o mundo por meio de suas ações. A metamorfose que permeia a civilização traz consigo a noção de progresso, conceito intimamente relacionado ao avanço da ciência e da tecnologia, visando ao conhecimento contínuo sobre os recursos da natureza e novas formas de controle e exploração.

O discurso do progresso busca amparo em uma racionalidade que justifica suas práticas em prol do desenvolvimento econômico e social. Entretanto esse progresso se dá com base nas mazelas da dominação e da exclusão, com predominância da desigualdade e da supremacia de uma ínfima parcela da população sobre a outra. Na sociedade capitalista, por vezes, a dominação não se revela em sua forma verdadeira e direta, protegendo seu anonimato por meio do manto da racionalidade (Dupas, 2007). O progresso científico e técnico alavancou a produção de bens de consumo e assegurou ganhos à qualidade de vida do sujeito moderno.

Resultou, porém, na submissão intensiva a aparelhos e tecnologias, o que, se por um lado, possibilita uma vivência de liberdade aparentemente irrestrita, por outro, permite o controle massivo de tempos e movimentos dos sujeitos. Diante do exposto, este artigo tem por objetivo discutir os avanços e contradições do sistema capitalista e seus consequentes impactos na relação sujeito-trabalho, partindo das mudanças ocorridas na sociedade após a crise do feudalismo.

A proposta deste estudo se baseia em uma revisão narrativa de literatura. De acordo com Elias et al. (2012), Rother (2007) e Vosgerau e Romanowski (2014), a revisão narrativa é uma técnica pela qual os autores podem realizar análise e interpretações críticas com maior liberdade e amplitude, de maneira a enunciar o "estado da arte" de um determinado assunto, sob um ponto de vista teórico ou contextual. Para Rother (2007), revisões narrativas não precisam necessariamente se atrelar à necessidade de informar as fontes dos dados usados ou à metodologia para a busca das referências, nem os critérios utilizados na avaliação e seleção dos trabalhos consultados.

Para Amboni (2010), na sociedade medieval, a produção da vida material se deu por meio da organização do processo produtivo. A interação social estava baseada em laços de juramento e fidelidade, marcada pela supremacia de uma parte privilegiada da população que detinha o domínio das terras e dos meios de produção. A hierarquia entre as classes era estabelecida não apenas pela posse de propriedades, mas sobretudo pela verticalização de relações, em que a violência já imperava como expressão de poder. Tais acontecimentos permaneceriam habituais e se fortaleceriam no novo sistema econômico que entraria em vigor.

Segundo Federici (2017), a transição do feudalismo para o capitalismo ocasionou não somente a expropriação da terra, mas, sobretudo, o agravamento das diferenças sociais e a fragilização das relações coletivas. No feudo, o trabalho realizado visava à subsistência, e a divisão da organização do trabalho entre homens e mulheres priorizava o uso dos recursos naturais para a manutenção familiar. Com o desenvolvimento do capitalismo, estabeleceu-se nova divisão do trabalho: aumento do trabalho individual e a produção de excedentes, com geração de lucro, modificando a relação do campesinato com a natureza e entre si.

Marx (2013), contudo, aponta que a concentração de mercadorias em si não gera relação direta com o lucro, sendo necessário o processo de transformação da mercadoria em capital. Esse processo é estabelecido por meio de uma relação desigual entre diferentes possuidores de mercadorias: de um lado, encontram-se os detentores do dinheiro, dos meios de produção e de subsistência; de outro, os trabalhadores livres e vendedores de trabalho. Assim, a existência de uma massa de trabalhadores desprovida de meios de trabalho é condição essencial para o desenvolvimento do capitalismo nas sociedades ocidentais, condição essa decorrente da decomposição da estrutura econômica da sociedade feudal.

Ao processo de acúmulo de capital por meio de mão de obra explorável dá-se o nome de "acumulação primitiva". Entretanto a acumulação primitiva não se limita a isso, mas, como argumenta Federici (2017), refere-se especialmente a diferenças, hierarquias e desigualdades que, uma vez acumuladas, promovem a separação dos trabalhadores e sua alienação, inclusive de si mesmos. A concentração de diferenças aliada à dominação de classe seria constitutiva do proletariado moderno, desestruturando possíveis laços entre os trabalhadores.

A acumulação primitiva desempenhou papel fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, gerando condições prévias à sua consolidação, por meio de processos históricos que inauguram as relações sociais capitalistas (Levien, 2014). Trata-se de um acontecimento introdutório, responsável por uma intensa e violenta expropriação da produção rural e familiar, isolando o acesso do trabalhador aos meios de produção. Ocorreram mudanças na relação com a terra, com os meios que permitiam a subsistência humana pelo trabalho na propriedade familiar, inaugurando um novo sistema de relação com o trabalho e entre os próprios sujeitos.

Dessa forma, a consequente proletarização dos camponeses proveu a ascensão da burguesia, cujo acúmulo de capital se deu por meio de atos sangrentos, de dominação e escravização. A partir de então, os camponeses, "expropriados, passam a ser possuidores de uma única mercadoria - sua força de trabalho. Proletarizados, são convertidos em trabalhadores assalariados, simples operadores dos instrumentos de produção que não mais lhes pertencem" (Teixeira, & Sousa, 1985, p. 65). Antes da expropriação de suas propriedades, a relação do campesinato com a terra ocorria de forma direta, por meio da autonomia e da economia familiar. Na proletarização, a natureza ativa típica do trabalho camponês seria substituída pela submissão a novas regras de controle e produtividade. Nesse contexto, a precarização era até então fortemente marcada pelas péssimas condições de trabalho nas fábricas, tais como as longas e exaustivas jornadas de trabalho, mas que logo alcançaria outros níveis e características.

2. AS DIFERENTES FORMAS DE DOMINAÇÃO

O domínio da força de trabalho da classe trabalhadora pelos donos do capital seria apenas o início de uma série de apropriações: da subjetividade, de direitos e de laços de solidariedade. A precarização do trabalho ganha novos formatos e revela sua face de forma sutil, sedutora e, consequentemente, perversa. O controle sobre o corpo, os ritmos e as cadências se tornam insuficientes diante da exigência do sistema. É preciso mais. Nesse sistema, ideias, sonhos e afetos também seguem a lógica de produção e comércio fabril: a expectativa de rentabilidade diante de todo e qualquer produto fabricado. Desse modo, a criação de um novo produto jamais é aleatória, sendo voltada para a maximização do lucro e fidelização das pessoas.

O capitalismo propaga um ideal de sucesso, felicidade, completude. Os sujeitos são diariamente expostos a ideias e produtos que estimulam seus sentidos, chamando-os constantemente a consumir e a experimentar o novo. A idealização de uma felicidade plena e, principalmente, acessível instaura um movimento pela maximização do prazer e anulação de vivências desprazerosas. Mas nada está garantido: o prazer alcançado é momentâneo, numa espécie de "obsolescência programada", com início e fim cuidadosamente planejados para que a manutenção do sistema seja viabilizada. Há um dualismo na engrenagem atrelado à relação de produção e consumo: garantia parcial de prazer e felicidade, cumprindo simultaneamente parte das expectativas do cliente e o foco na continuidade de um potencial consumo futuro.

A instabilidade é característica marcante da Pós-Modernidade. Noções de tempo e espaço passam a ser relativizadas e ganham nova constituição, principalmente com o advento da globalização e os avanços das tecnologias de informação e comunicação. A fluidez da vida contemporânea alcançou também os laços sociais, com margem ao individualismo e à competitividade. No caso do mundo do trabalho, a mutabilidade típica da Pós-Modernidade se traduz nos conceitos de flexibilidade ou flexibilização, que, segundo Antunes (2015), "se expressa na diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força de trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural" (p. 412).

Esse cenário é reflexo de uma política neoliberal, cujos pressupostos baseiam-se na mínima intervenção do Estado na economia e na autorregulação do mercado. A autorregulação, porém, não se restringe à dimensão político-econômica e se propaga para o campo privado, nas relações interpessoais, socioprofissionais e na família. Não há tempo a perder: espaços para troca, discussão e compartilhamento tornam-se superficiais, apesar de superestimulados. A prevalência de interesses, tempo e capital investidos volta-se para cada sujeito individualmente, de forma análoga ao que ocorre no âmbito empresarial. Com base nessa lógica, os trabalhadores passam a ser percebidos como "empreendedores de si mesmos", sendo não apenas os principais interessados em aumentar suas estimativas de lucro como também os principais responsáveis por efetivá-las.

No mundo do trabalho, contudo, a autorregulação se revela sob diferentes perspectivas. Em um cenário de desemprego, por exemplo, os sujeitos precisam buscar formas alternativas de reinserção no mercado de trabalho para se manter e sobreviver no sistema. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017), houve aumento expressivo da taxa de desocupação no País, que passou de 11,5% em 2016 para 12,7% em 2017, sendo classificada como a maior da série histórica da pesquisa. A população considerada desocupada integra a população economicamente ativa (PEA), compreendendo os brasileiros com potencial de mão de obra, disposição para trabalhar e providência efetiva na busca por emprego, mas que, no determinado período de referência, não tinham trabalho.

Atualmente, a força de trabalho no Brasil alcança o total de 103,9 milhões de pessoas, um aumento de 1,7 milhão em relação a 2016. Porém o número se deve majoritariamente ao aumento da desocupação, visto que a taxa de ocupação no período passado permaneceu praticamente estável, ao passo que a desocupação cresceu 1,5 milhão.

Apesar da incontestável veracidade dos dados, as intensas e constantes mudanças geradas pelo sistema capitalista são responsáveis pelo surgimento de uma nova classe de trabalhadores, caracterizada pela precarização e informalidade do trabalho. Na prática, isso se reflete no aumento do trabalho parcial, subcontratado e precarizado. Assim, "Contratos temporários, sem estabilidade, sem registro em carteira, dentro ou fora do espaço produtivo das empresas, quer em atividades mais instáveis ou temporárias, quando não na condição de desempregado, passam a compor a nova realidade dos trabalhadores" (Antunes, 2011, p. 408).

3. EMPREENDER PARA "SOBRE-VIVER"

Cenários de crise econômica favorecem a intensificação na taxa de empreendedorismo inicial (ou seja, negócios que são abertos, mas que não necessariamente permanecerão ativos), particularmente em decorrência da limitada oferta de emprego e a necessidade de renda para a sobrevivência e o consumo (Machado, Cruz, Chinelato, & Silva, 2015). Consequentemente, a redução da presença do Estado na geração de novos empregos proporciona maior responsabilização dos trabalhadores para se manterem inseridos no mercado de trabalho.

De certo modo, o incentivo do Estado ao empreendedorismo pode resultar na proliferação de discursos que favoreçam a "desconstrução do desemprego enquanto categoria legítima" (Salgado, 2012, p. 138). O enaltecimento do empreendedorismo como solução possível ante o desemprego pode disseminar falsa percepção de oportunidades de renda, instigando a justificativa de que a condição fundamental para se ter emprego está vinculada, majoritariamente, à vontade e ao querer. Diante desse cenário, cabe ao Estado

Diminuir burocracias, minimizar custos de formalização, estimular o "crédito amigo" e oferecer formação técnico-empresarial; aos sujeitos, empreender formalmente, pagando seus impostos e, de preferência, gerando os empregos que a sociedade, conjuntamente, foi incapaz de fazer (Salgado, 2012, p. 138).

A oportunidade de emprego, entretanto, não alcança a totalidade dos brasileiros, o que se traduz em altos índices de desocupação no País, conforme apresentado previamente. Nas organizações, em especial as pertencentes à iniciativa privada, o receio do desemprego diante da crise econômica cria um ambiente de pânico, insegurança e angústia entre os sujeitos. O silêncio se instaura assim como a desconfiança e a competitividade. Diante disso, a autorregulação se torna conceito insuficiente para representar a natureza dessas relações e seus efeitos, atenuando o impacto na subjetividade.

Como conceito representativo, o termo autogestão mostra-se mais fidedigno e apropriado. Segundo Gaulejac (2007), a gestão gerencialista produz a rentabilização do sujeito, o qual se torna gestor de si mesmo, com definição de metas e avaliação do desempenho. Contudo a problemática não se resume a um acréscimo ao número de tarefas a serem cumpridas pelo trabalhador. A nova incumbência demanda ser, simultaneamente, mentor e algoz de si mesmo, dinâmica que tende a aumentar a autorresponsabilização pelos processos do trabalho, sejam eles promotores de sucesso ou fracasso.

A perspicácia das organizações ante esse modelo ocorre em diferentes vias. Primeiramente, a figura do chefe não é mais designada por uma pessoa específica, um único superior hierárquico demandante a quem se deve reportar. Na gestão gerencialista, pode-se afirmar que a chefia é descentralizada, apesar da manutenção da estrutura hierárquica entre cargos. Os próprios trabalhadores, juntamente com os demais colegas, dividem entre si a responsabilidade pela cobrança, alcance e superação das metas. As demandas surgem de fontes diferentes, mas, no fim, sempre convergem para os trabalhadores em termos individuais.

4. A HEGEMONIA DA ORGANIZAÇÃO

O modelo em questão é extremamente vantajoso para a organização. Instaura-se, no ambiente de trabalho, a cultura do medo e percepção de rivalidade, em um momento que seria propício para a manifestação de solidariedade e união contra um sistema que aliena e oprime. Contudo, cinicamente, não parecem existir arbitrariedades na gestão gerencialista: o incentivo ao desempenho total e à competitividade arruínam as possibilidades de questionar a realidade e refletir sobre as violências diárias. Assim, alienados, os trabalhadores passam a crer que eles têm poder para resolver, por si, questões que são socialmente muito mais complexas. Aparentemente, ninguém manda, ninguém obedece: faz-se o que quer porque se quer.

O fato de não entrar em contato com as contradições da organização do trabalho causa um misto de confusão e autoculpabilização. Além de ter de dar conta das demandas impostas pela organização, cabe ainda ao trabalhador a responsabilização pelos erros e divergências que eventualmente ocorram no decorrer do processo. Tal omissão organizacional revela o gerenciamento como mecanismo de poder entre o capital e o trabalho, com propósito de promover a adesão dos trabalhadores às imposições da empresa (Gaulejac, 2007).

Segundo Bendassolli (2009), a gestão gerencialista se utiliza de mecanismos de sedução que visam à captura e fidelização do trabalhador. O discurso propagado vincula o comprometimento do sujeito à promessa de reconhecimento e futuras oportunidades de carreira. Tais processos são conhecidos como fetiches da gestão e se caracterizam como verdades absolutas que revelam o alcance do poder da organização. Dissemina-se que o esforço e a sobrecarga física e psíquica serão posteriormente recompensados, o que traz sensação de justiça e pertencimento aos trabalhadores.

A visibilidade e o possível reconhecimento conferem caráter de importância ao impactar a identidade de cada sujeito. No entanto, quando a promessa do discurso organizacional não se cumpre, instaura-se a sensação de desconforto e mal-estar coletivos. As promoções são postergadas ou, quando ocorrem, dão-se por meio de processos velados e não democráticos. Por vezes, processos seletivos internos são realizados com caráter meramente burocrático, uma vez que os critérios mínimos para inscrição vetam a participação da maioria dos interessados no cargo. Ocorrem para justificar o injustificável, a escolha de candidatos por afinidade pessoal ou "apadrinhamento político", desconsiderando critérios baseados na competência e no perfil técnico.

Esse cenário se agrava em ambientes rígidos e com pouco incentivo à comunicação entre os trabalhadores, onde impera o silêncio e a competitividade. A não circulação da palavra no coletivo pode promover um estranhamento no trabalhador, ao isolar suas percepções e afetos diante da realidade à sua volta. Apesar do constrangimento geral, ele pode ser vivido individualmente caso não haja reconhecimento social da causa, o que ocorre por meio da fala, das trocas, das experiências vividas coletivamente. Assim, a falta de respostas claras e coerentes pode encontrar no sujeito um espaço propício para fomentar a autoculpabilização. Na tentativa de sanar essa angústia, pode ocorrer um movimento de encontrar em si próprio a justificativa para o não cumprimento da promessa organizacional. Busca-se justificar o injustificável.

5. A SEDUÇÃO DE UM (DIS)CURSO

Perceber-se capturado pelo discurso organizacional implica árduo trabalho psíquico. Demanda o reconhecimento da própria fragilidade, da incompletude e de sua impotência. É reconhecer-se ludibriado em um mundo imprevisível e sedutor, onde não há possibilidade de se prever garantias. É constatar a hegemonia da organização e as diferentes faces de precarização do trabalho às quais se está submetido para, assim, descortinar a alienação do próprio desejo. Perceber-se alienado diz respeito não apenas à relação sujeito-organização, exigindo sobretudo a reflexão acerca dos modos de ser e agir no mundo. Porém se trata de um processo que requer tempo e, sobretudo, disposição afetiva, o que pode gerar resistências e perpetuar a alienação.

Dessa forma, estratégias defensivas são construídas para suportar as pressões e o sofrimento psíquico. Mendes (1995) define as estratégias defensivas como sendo um processo mental em que o trabalhador busca modificar e minimizar a percepção da realidade promotora de sofrimento e adoecimento. Trata-se de um mecanismo de proteção do psiquismo do sujeito, sendo a negação e a racionalização suas formas mais frequentes. Contudo, a desapropriação do próprio afeto e da condição de sofrimento favorecem a alienação, o que se torna um empecilho para se pensar e promover mudanças efetivas na organização (Dejours, 1997).

Dentre as muitas formas de promover a alienação dos sujeitos, destaca-se a sedução organizacional. Vieira (2014) aponta que a sedução organizacional ocorre indiretamente, por meio de discursos obscuros e subentendidos, de insinuações em espaços velados. Complementa que a "organização sedutora propõe um jogo, uma fantasia, na qual os indivíduos são levados a crer que somente alguns privilegiados podem fazer parte desse grupo" (Vieira, 2014, p. 199). Não há contenção de esforços para se fazer pertencer a esse seleto grupo, especialmente em um contexto de crise política, econômica e social vivida em nível mundial. A sedução é instrumento da ideologia gerencialista, revelando-se um mecanismo de poder indispensável para seu funcionamento.

Nesse contexto, os trabalhadores são induzidos a acreditar no poder de decisão sobre as próprias escolhas, o que conferiria traços de autonomia e singularidade. Porém é esse o momento em que a sutileza do discurso organizacional sedutor revela sua perversão: incutir nos trabalhadores a crença de que suas escolhas lhes pertencem. Trata-se, na verdade, de uma dominação sem precedentes. Cria-se um contexto fantasioso onde a força de trabalho seria fornecida em caráter voluntário, segundo as vontades e interesses do sujeito. Na realidade, ocorre, contudo, uma fusão entre os ideais da organização e o ideal do sujeito.

O modelo de produção disseminado pelo capitalismo modificou as formas como os sujeitos se relacionam entre si e consigo mesmos. O estímulo ao consumo exacerbado somado à imposição dos padrões sociais a serem alcançados revela a supremacia do capital em detrimento do humano, do social. Nesse sentido, o novo funcionamento da sociedade baseia-se na transformação dos sujeitos em mercadoria (Bauman, 2008). A subjetividade é capturada de forma a atender às demandas de produtividade e desempenho total, o que acarreta sobrecarga, isolamento e percepção de onipotência. A autogestão revela novamente sua face no esforço ilimitável para satisfazer as exigências de um mercado cada vez mais utilitarista e opressor.

Os limites entre os objetos de consumo e seus consumidores tornam-se tênues e inexistentes, na prática. Na sociedade de consumidores, o consumismo torna-se elemento central, sendo que "ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria rentável" (Bauman, 2008, p. 20). Reduzir o sujeito à condição de simples mercadoria favorece a irrestrita instrumentalização das relações sociais, sobretudo em contextos de trabalho, fragilizando a existência de laços entre os trabalhadores.

Segundo Seligmann-Silva (2011), a precarização nas condições de trabalho são reflexo de uma crise macro, de ordem social e mundial. A principal classe afetada é composta pelos mais pobres, de menor escolaridade e baixa qualificação, além das mulheres. A sobrecarga de trabalho, com jornadas extensas, oportunidades desiguais e falta de reconhecimento prejudicam a saúde geral e, particularmente, a mental. Logo se pode afirmar que, no fim, a sociedade capitalista alcançou progresso?

Apesar da inegável contribuição do capitalismo para o desenvolvimento da sociedade moderna, principalmente do ponto de vista econômico e tecnológico, não é possível minorar suas contradições. A geração de riquezas com distribuição desigual intensificou a precarização dos trabalhadores, a partir de então providos exclusivamente de sua força de trabalho após a desapropriação de terras ocorrida com a crise do feudalismo.

A expropriação dos trabalhadores livres e vendedores de trabalho, porém, como cunhado por Marx, também alcançaria a subjetividade e o desejo dos sujeitos. A necessidade de manutenção ou aquisição de emprego em cenário de crise político-econômica revela a predominância da autogestão, a qual também se mostra no discurso de estímulo ao empreendedorismo.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O almejado (ou seria algemado?) progresso científico e tecnológico favoreceu o acesso a conhecimentos até então inimagináveis e impossíveis à humanidade. Porém, não foi acompanhado pela democratização das oportunidades e melhoria das condições de vida em nível macro. Pelo contrário, houve um agravamento das desigualdades e da exploração, além de uma percepção errônea sobre liberdade.

O capitalismo proporcionou ao sujeito contemporâneo o trabalho assalariado, a propriedade privada, a possibilidade de lucro e de poder de compra. Mas não garantiu a liberdade. Em uma sociedade fortemente pautada no consumismo, a liberdade é item do tipo "tem, mas acabou": vendável, mas indisponível e ilusório. Os poderes do capitalismo e do discurso organizacional revelam sua supremacia ao instigar nos sujeitos valores normatizados, verdades absolutas.

Diante desse cenário, a noção de liberdade implica reconhecer primeiramente a alienação do próprio afeto, do próprio desejo. É perceber-se capturado e impotente, em desvantagem à força opressora do sistema. Segundo Federici (2017), o capitalismo estratificou as diferenças, aprofundando diferenças de classe, gênero, idade e raça. Contudo a alienação é fenômeno comum a todos, ainda que em diferentes níveis, e desnuda o cenário de intensa precarização vivida por parte significativa dos trabalhadores. Mesmo assim, apesar das controvérsias e da conjuntura atual, em que se sobressaem a indiferença e o individualismo, a coletividade não foi integralmente desfeita.

Se, por um lado, podem-se apontar agravos nas condições e relações de trabalho como fruto da precarização na Pós-Modernidade, por outro, a amplitude de seus efeitos tem potencial para unir uma classe que se depara com experiências semelhantes. Soluções possíveis que visem à emancipação dos e pelos sujeitos precisam (e podem) ser construídas coletivamente, com vias à reflexão e à mobilização subjetiva. Assim, torna-se imprescindível à emancipação a reapropriação de si, de seu corpo, de sua subjetividade outrora apoderados.

As intensas e permanentes mudanças provocadas pelo capitalismo no mundo do trabalho exigem, portanto, olhar acurado sobre o fenômeno da precarização. Antes, na fase inaugural desse sistema, os trabalhadores se submetiam a longas e exaustivas jornadas nas fábricas. As novas e sutis faces da precarização acompanharam o avanço do capitalismo ao longo do tempo, pelo mundo, e, hoje, estão presentes de diferentes formas, tais como na gestão gerencialista, no discurso sedutor das organizações e na flexibilização.

Diante da complexidade e relevância do tema, sugere-se a continuidade de estudos na área e que considerem, particularmente, as novas configurações da precarização do trabalho. Para melhor compreender os impactos das contínuas transformações na saúde dos trabalhadores, são necessárias pesquisas que contemplem não somente as novas modalidades de trabalho parcial, subcontratado e precarizado como também as problemáticas de gênero e raça.

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Texto recebido em 29 de março de 2019 e aprovado para publicação em 25 de agosto de 2020.

 

 

* Mestra em Psicologia Clínica e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (PPG PsiCC/PCL/IP/UnB).E-mail: takaki.katsumi@gmail.com.
**Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, com ênfase em Qualidade de Vida no Trabalho pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília (PSTO-UnB). E-mail: antlogacarla@gmail.com. Endereço: Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia - Departamento de Psicologia Clínica. Campus Universitário Darcy Ribeiro - Instituto de Psicologia, sala A1 115/6 - Asa Norte, Brasília-DF, Brasil. CEP: 70910-900.

 

 

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