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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.4 no.1-2 São Paulo  1993

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Por uma história natural da memória

 

Towards a natural history of memory

 

 

César Ades

Departamento de Psicologia Experimental - Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

O estudo dos processos de memória, tais como se manifestam no comportamento dos animais em contextos ecológicos, constitui contrapartida essencial para as análises de laboratório. Permite conhecer a variabilidade dos desempenhos guiados pela memória e desvendar seus ajustamentos a pressões ambientais específicas. Aspectos da memória de eventos (Memória de tipo II, Sherry & Schacter, 1987) são aqui descritos, no caso (1) da orientação espacial, (2) da recuperação de alimento armazenado e (3) do reconhecimento de outros animais e da memória social em geral, sugerindo-se ser o funcionamento desta memória passível, como outras características comportamentais, de análise em termos de função adaptativa.

Descritores: Memória. Etologia animal. Aprendizagem animal. Comunicação animal.


ABSTRACT

The study of memory processes in natural contexts is an essential complement to laboratory studies. It allows us to assess the variability of memory-guided performance and to understand how such performance is adjusted to specific environmental demands. In this paper, I examine some aspects of event memory (System II, Sherry & Schacter, 1987) as manifested in (1) spatial orientation, (2) retrieval of hoarded food, (3) recognition of conspecifics and social memory in general. I argue that event memory can be submitted, as other behavioral features, to an analysis in terms of adaptive function.

Index terms: Memory. Animal ethology. Animal learning. Animal communication.


 

 

Os animais parecem dotados do conhecimento necessário acerca do mundo no qual devem se reproduzir e sobreviver; seu comportamento antecipa as condições externas e se organiza em função de uma informação que ultrapassa a diretamente acessível no ambiente. A questão é saber de onde provém este conhecimento.

Uma fonte de informação sobre os eventos externos, sempre ressaltada pela etologia, tem base na genética do organismo e origina-se nas vicissitudes de sua história seletiva. Usando uma metáfora informática, Campan e Breugnon (1989) a ela se referem como memória-restrita-à-leitura (Read-Only-Memory), uma memória de conteúdo herdado, resistente à experiência, capaz de controlar a orientação dos animais no meio ambiente.

Certas populações do pássaro canoro Sylvia atricapilla, oriundas da Europa Central, migram regularmente em direção à África, enquanto outras, situadas nas Ilhas de Cabo Verde, são sedentárias. Uma hipótese simples atribuiria a diferença de hábitos à influência direta do clima, mais ameno e constante nas Ilhas. Berthold e colaboradores (Berthold, 1991) mostraram, contudo, que a tendência a migrar, em A. atricapilla, está sob controle genético, quanto à época apropriada e quanto à direção de vôo. 40% dos híbridos do cruzamento de indivíduos migratórios com indivíduos não-migratórios manifestavam tendência para migrar, quando testados em condições de cativeiro: optavam pelo eixo nordeste-sudoeste de deslocamento, exatamente o do progenitor viajante. Híbridos de migrantes para sudoeste com migrantes para sudeste seguiam por uma direção intermediária. Qualquer que seja nossa posição acerca do conceito de instinto (a discussão a este respeito continuará por muito tempo), é difícil não supor que certos pássaros têm uma base para saber, de antemão, quando e para onde voar.

A memória-restrita-à-leitura certamente não dá conta de muitos dos comportamentos que podemos constatar, no campo, como no laboratório. Os animais nem sempre se guiam por um saber prévio, e nem sempre apenas por ele. Pretendo mostrar, nestas páginas, que a memória plástica, a memória dos eventos novos, constitui um componente básico do ajustamento ao meio, não apenas um acréscimo eventual ao modo pré-programado de agir.

Esta perspectiva exige uma mudança na maneira como encaramos a relação entre o comportamento e o ambiente. As abordagens naturalísticas tradicionais têm se contentado com descrições do desempenho que ressaltem invariantes - o modo como o ostraceiro coleta seu alimento, andando pela praia, as exibições do lagarto na época reprodutiva, as vocalizações do bugio, o comportamento ovipositor da rainha em abelhas indígenas, etc. Registros destes fixam o estado de equilíbrio da função comportamental, deixando de indicar o processo através do qual este equilíbrio foi conseguido, ou as variedades que ele pode assumir, se houver perturbação e mudança de circunstâncias.

Se abordarmos os comportamentos típicos da espécie de um ponto de vista não-essencialista, prestando atenção à sua dinâmica, nos surpreenderemos com a freqüência de casos em que a experiência passada participa da integração do desempenho. Desde que comecei a me preocupar pelo estudo da memória, encontro a cada instante indicações de que o animal adquire saber acerca de aspectos do ambiente e também de seus próprios atos. Convenço-me que está programado para registrar e conservar em forma codificada os eventos relevantes de seu campo comportamental.

Conhecer o animal na natureza vai além de catalogar suas respostas típicas, envolve verificar o modo como adquire e manipula a informação. Uma abordagem promissora, que eu denominei psicoetológica (Ades, 1986, 1987), situa-se na confluência entre a preocupação pela adaptação do comportamento e o interesse pela análise dos processos causais. Propõe que a memória e, de modo geral, os processos cognitivos sejam analisados dentro de um contexto ecologicamente relevante, na "espontaneidade" de seu surgimento, de uma forma que permita a aplicação do pensamento funcional (Kamil, 1987; Kummer, Dasser & Hoyningen-Huene, 1990).

Multiplicam-se as pesquisas a respeito do modo como a realidade externa é representada pelo animal, tornando-o capaz de prever eventos e de preparar-se para a ação. Retorna-se aos primórdios, à época em que Darwin e darwinistas acumulavam relatos que indicavam a existência de "poderes mentais" em animais. Em bases mais firmes, reinaugura-se uma etologia dos processos cognitivos (Cheney & Seyfarth, 1990a; Bekoff & Jamieson, 1990).

Ao invés de propor um modelo de funcionamento dos sistemas de memória animal (não chego a tal temeridade) pretendo, neste artigo, fornecer alguns exemplos de como certa memória - a memória de eventos - atua em condições ecológicas. O artigo representa o primeiro esboço para uma história natural da memória.

 

A memória de eventos

Há consenso quanto ao fato de a memória ser composta por vários sistemas ou módulos, dotados cada um de regras específicas de funcionamento e de um campo específico de atuação. Uma dos sistemas de memória, que chamarei memória de hábitos (Sistema I de Memória, Sherry & Schacter, 1987; e outros), está envolvido na aquisição de habilidades, na melhoria progressiva do desempenho motor, no condicionamento operante. Um esquilo que nunca tenha aberto uma avelã gastará um tempo enorme roendo-a de todos os lados, desordenadamente. Com a prática, acabará descobrindo a solução simplificada de partir a casca em dois, com uma dentada só, incorporando este procedimento ao seu repertório permanente de comportamento (Eibl-Eibesfeldt, 1975). A memória do hábito desenvolve-se em condições de repetição, e depende, segundo Sherry e Schacter (1987), "da detecção e da preservação da invariância ao longo dos episódios" (p.448).

À memória do hábito, contrapõe-se a memória de eventos (Sistema II, Sherry & Schacter, 1987, memória episódica, Tulving, 1984) que tem a ver com a preservação da informação adquirida perceptualmente, em sua variedade e especificidade. É a memória dos eventos particulares, das localizações, das seqüências de resposta executadas previamente, das interações sociais. Forma-se por simples exposição aos estímulos apropriados, às vezes de forma imediata, é específica e datada. A função desta memória seria, segundo Sherry e Schacter (1987), "manter os pormenores contextuais que tornam únicas certas experiências do indivíduo" (p.448). Ela se apresenta como substituta da percepção imediata, e funciona aparentemente da mesma maneira que esta.

A memória de eventos não tem recebido a atenção devida, na história da pesquisa sobre aprendizagem animal (Tolman é a exceção honrosa), em parte por não ter sido reconhecida como forma autônoma de controle do comportamento, em parte por ter prevalecido durante tanto tempo a confusão entre a aprendizagem e sua expressão no comportamento manifesto. Algo na idéia de uma aquisição de experiência por mero contato, por simples interação com o ambiente, contrapunha-se ao pensamento associacionista e ao operacionismo dominantes. Vejo ao contrário esta capacidade de o organismo reter a informação como uma forma primordial de ajustamento do comportamento, talvez a base para o surgimento de formas mais especializadas, como o condicionamento pavloviano e operante.

Quando a uma rã (Rana pipiens) se apresenta, em rápida aproximação, um cartão preto de um certo tamanho, a rã, sensatamente, pula em fuga do lado oposto ao da chegada do estímulo ameaçador. Por automática que seja, a resposta leva em conta aspectos contextuais: se existir um obstáculo (um anteparo, por exemplo) do lado ou à frente da rã, ela o levará em conta, desviando o pulo.

Ingle e colaboradores (Ingle & Hoff, 1990) mostram que a rã se lembra dos obstáculos. Durante um certo tempo (que pode durar até 60 segundos) após a remoção da barreira, a rã continua a direcionar seu pulo como se esta ainda estivesse presente. Se ela for girada de um certo ângulo, passivamente, após ter tomado conhecimento da barreira, ela não fugirá levando em conta a posição retiniana do objeto, mas a sua posição real, em termos das coordenadas espaciais mais abrangentes.

O comportamento da rã ganha sentido se entendermos que a experiência inicial com a barreira foi codificada e deixou um traço, mais ou menos lábil, no sistema nervoso. O pulo da rã é um comportamento típico da espécie que incorpora a experiência passada em sua causação: a memória ganha, com este e muitos outros casos, o status de conceito etológico básico.

 

Orientar-se

O refugio, o campo de coleta ou caça, o local para atividades reprodutivas, são locais diferenciados para os quais é importante que o animal possa voltar, depois de afastamentos eventuais. A capacidade de reter aspectos da experiência e, de usá-los, depois, como guias de trajetória, é crucial: reduz o tempo e esforço gastos em busca aleatória, diminui a probabilidade de encontros com predadores, libera o animal para outras atividades vitais. Não é de estranhar tenha esta capacidade sido selecionada em tantas espécies, em cada qual de acordo com os aspectos ecológicos relevantes.

Em alguns casos, a aquisição de informação se dá de modo precoce e duradouro. Um exemplo inevitável é o da volta do salmão ao riacho natal para reproduzir-se, depois de longa temporada no mar. É impressionante a capacidade de discriminação dos peixes, que localizam seu riacho, no meio de muitos outros, muito semelhantes. Hasler e Larsen, da Universidade de Wisconsin, demonstraram que o retorno é guiado por estímulos olfativos típicos, oriundos de plantas e rochas da beira do riacho: o salmão os aprende ao nadar na água doce, quando muito jovem, e lhes é tão sensível que os reconhece mesmo quando diluídos milhões de vezes (Donaldson & Joyner, 1983).

Nordeng fez o seguinte experimento para mostrar que existe uma espécie de estampagem, no salmão, ao cheiro de indivíduos aparentados. Criou salmões, desde o ovo, longe do rio Salangen, onde tinham sido capturados seus pais. Apesar de privados de qualquer contato com o cheiro típico do rio, quando soltos, voltavam com precisão ao território natal, atraídos provavelmente por um feromônio (Long, 1991).

A aprendizagem precoce está na base do comportamento de orientação do passarinho migratório Passerina cyanea, que passa o inverno na América Central e regiões adjacentes, e o verão, na região leste dos Estados Unidos. Num estudo agora clássico, Emlen (1975) demonstrou que P. cyanea, que voa à noite durante o percurso migratório, se orienta usando padrões de estrelas como referência. Emlen colocava os animais, em gaiolas, no meio de um planetário onde podia simular diversos céus noturnos. Verificou que os filhotes aprendem a distinguir a direção Norte-Sul observando a rotação das estrelas, durante a noite. Se esta rotação, que, normalmente, se dá em torno da estrela polar era produzida, no planetário, em torno da estrela Betelgeuse, os pássaros criados nesta condição orientavam-se mais tarde a partir de Betelgeuse.

Salmões e pássaros ilustram um dos princípios da memória de eventos, tal como se manifesta na vida natural: a seletividade. Da miríade de estímulos aos quais estão expostos, os animais captam e guardam na memória apenas alguns, especialmente relevantes. Inspirando-me no conceito lorenziano clássico de Mecanismo Liberador Inato (que controlaria a reação estereotipada a estímulos imediatos) eu sugeri que haveria um Mecanismo Mnêmico Seletivo, encarregado de determinar a entrada de informação em arquivos mnêmicos. Mas somente o avanço da análise experimental, especialmente na área neurofisiológica, dirá se este conceito tem mais do que um valor metafórico.

Um exemplo bom de como a memória espacial funciona, por " computação interna", é o da orientação espacial por integração de caminho ou dead reckoning. Animais em exploração do ambiente seguem muitas vezes trajetórias complexas, com pontos de inflexão, voltas e reviravoltas; contudo, ao voltarem ao ninho ou à toca, correm praticamente em linha reta, mesmo quando lhes falta um marco ambiental a tomar como referência. Houve combinação aditiva de sinais de deslocamentos lineares e angulares, a integração dos muitos trajetos parciais que compuseram a ida, resultando no desempenho unitário e eficiente da volta.

Cataglyphis bicolor, a formiga do deserto estudada por Wehner e Srinivasan (1981), quando transportada de um ponto do ambiente onde estava forrageando para outro ponto distante, conserva aproximadamente, na trajetória de retorno, o ângulo que originalmente a levaria de volta ao ninho. Anda em linha reta pela distância adequada e, chegando perto da posição onde deveria estar o ninho, começa a procurar por ele, em andanças circulares de raio cada vez maior. O que é notável é que sua busca se organize em torno da localização (virtual) do centro, para a qual vai de vez em quando, por trajetos diretos, usando sua capacidade de integração de caminho.

Na teoria de Thinus-Blanc (1991), as regras combinatórias internas assumem importância primordial na memória espacial. O cérebro não armazenaria infinitas versões de determinada situação, mas sim uma série de informações básicas, elementares, que se combinariam, em níveis diversos, de acordo com as exigências do momento. Produto de uma organização de elementos, e moduladas pelas condições presentes, as representações de memória teriam, enquanto tais, uma existência instrumental, efêmera. Desvanecer-se-iam, terminada a tarefa. A memória, nesta interessante concepção, torna-se mais do que um dispositivo de repetição da informação: está dotada de flexibilidade, transforma-se no momento do uso, assumindo formas variáveis em integração com a informação presente.

 

Reencontrar o alimento armazenado

O guardar e comer depois é uma estratégia freqüente de forrageamento. Ocorre em animais que armazenam quantidades, às vezes enormes, de alimento em seu ninho como o hamster (Cromberg, 1988), e em outros, os scatter hoarders, que espalham sua reserva de alimento em vários lugares. Destes, os mais estudados foram espécies de pássaros (Hitchcock & Sherry, 1990; Shettleworth & Krebs, 1982; Vander Wall, 1982) e de mamíferos (Jacobs, 1992; Vander Wall, 1991). O espalhamento coloca uma tarefa para o armazenador: a de reencontrar seus esconderijos, e isto, antes de terem sido pilhados por outros animais, da mesma ou de outras espécies.

Na recuperação dos itens escondidos, um armazenador poderia valer-se de estratégias diretas, como a captação do cheiro ou de outros sinais emanados do alimento, a procura de locais preferidos para o armazenamento, o seguimento de uma rota pré-estabelecida de busca, isso sem contar o ensaio-e-erro randômico, uma solução deveras pouco econômica. Poderia também, o que foi confirmado em muitos casos, usar sua memória espacial.

Por que memória? Uma representação mental é um guia mais rápido e eficiente quando os marcos ambientais não se destacam perceptualmente, quando não são fáceis de acessar, durante a busca. Permite que marcos arbitrários, de definição própria ao indivíduo, sejam registrados, um modo interessante de diminuir a probabilidade de roubo por parte de outros indivíduos. A memória possui seu nicho nas estratégias adaptativas, é passível de seleção, por variar entre indivíduos e por otimizar aspectos da tarefa essencial de forragear.

Os pássaros corvídeos Nucifraga caryocatactes e Nucifraga columbiana são especialistas no transporte e no armazenamento: possuem uma bolsa sublingual onde cabe uma porção de sementes, análoga à bolsa bucal de outro animal armazenador, o hamster. Também parecem especialistas de memória. No outono, coletam as sementes que servirão de alimento, a eles e aos filhotes, durante o inverno e a primavera. A quantidade armazenada é enorme, como o são também os locais de esconderijos: estima-se que um único espécime de N. columbiana (Clark's nutcracker) possa esconder até 33.000 sementes, em grupinhos de 6 a 8, no chão; e um único indivíduo de N. caryocatactes até 100.000 (Vander Wall & Balda, 1981).

A taxa de acerto, tal como observada no campo, é bastante alta, mesmo depois de passados intervalos de tempo consideráveis. Vander Wall e Hutchings (1983) relatam 44% de acerto de N. columbiana, oito meses após o armazenamento! Estudos de laboratório, nesta espécie e em outras, são conclusivos quanto ao papel da memória: nem uma busca por ensaio-e-erro, nem uma procura por esconderijos preferenciais, nem regras sistemáticas de procura e de recuperação, explicam totalmente o desempenho. A orientação depende mesmo de uma informação mnêmica.

A eliminação das dicas diretas é um controle experimental essencial. Jacobs (1992) soltou 8 ratos cangurus Dipodomys merriami (uma espécie de deserto que costuma espalhar esconderijos de grãos pelo seu território) numa arena em que podiam armazenar sementes de girassol em recipientes com areia. Depois, retirou o conteúdo de metade dos esconderijos, verificando que os animais, mesmo na ausência do alimento, exploravam os locais apropriados. Ratos sem experiência de armazenagem tinham muito mais baixa sua taxa de acerto.

Sherry, Krebs e Cowie (1981) lançaram mão de um expediente engenhoso para demonstrar a influência da memória, na recuperação de sementes pelo pássaro Parus palustris. Como outros pássaros, os parídeos têm um campo visual quase totalmente monocular, isto é, a informação colhida por um dos olhos não é transferida para o outro. Deixaram Sherry e colaboradores que os animais escondessem o alimento usando um tapa-olho, colocado apenas de um lado. Na fase de recuperação, o tapa-olho podia estar do mesmo lado (tendo o animal acesso ao traço de memória) ou do lado oposto (havendo perda de acesso à informação mnêmica, mas não, evidentemente, à informação ambiental direta).

Se a recuperação se baseasse apenas em "buscar as sementes em locais preferidos", não deveria haver prejuízo, na segunda condição. Um olho vale bem o outro, para perceber os detalhes do ambiente. Mas não, o nível de acerto não ultrapassava o acaso. Na primeira condição, o desempenho foi tão bom quanto em animais normais. O reencontro preciso dos esconderijos depende portanto da aquisição, retenção e disponibilidade da informação visual; esses resultados constituem um argumento muito forte a favor da tese da memória espacial.

Será a memória de animais como o nutcracker, uma memória especial, envolvendo processos diferentes que a tornem tão eficiente e segura? O debate entre os que defendem uma concepção geral da aprendizagem e da memória e os que, influenciados pelo pensamento ecológico, querem supor que aprendizagem e memória são habilidades selecionadas, próprias de um determinado relacionamento organismo-ambiente, continua aceso, como tive a oportunidade de constatar, em Bruxelas, por ocasião do XXV Congresso Internacional de Psicologia. Patricia Couvillon relatou experimentos feitos com M.E. Bitterman, e defendeu uma posição generalista:

mais de uma década de estudos comparativos sistemáticos com abelhas - animais geralmente tidos como proporcionando exemplos bastante claros de especialização adaptativa - demonstrou que nelas existem fenômenos de aprendizagem bem conhecidos através de estudos com outros animais, nunca trouxe nenhuma indicação de processos únicos (trecho do resumo do trabalho de Bitterman, 1992, p.422, apresentado por Couvillon; grifo meu).

A questão é saber em que sentido tomar a unicidade dos processos de aprendizagem e memória encontrados em diversos animais. A maioria dos estudos comparativos recentes não chega a demonstrar diferenças radicais entre a maneira como, por exemplo, um molusco e um mamífero adquirem um comportamento através de condicionamento pavloviano ou através de aprendizagem instrumental (Domjan, 1987). Hilton e Krebs (1990) compararam espécies de pássaros armazenadoras de alimento a outras não-armazenadoras (todas do gênero Parus), numa tarefa de memória, partindo da hipótese de que seria diferente o grau de retenção de cada qual. Esperavam, obviamente, que as armazenadoras superassem as outras na capacidade retentiva, mas os resultados, nos quais não apareceu tal diferença, frustraram suas expectativas. " Será que o armazenamento de alimento conta como uma memória espacial especializada?" perguntam.

Pesquisas recentes, relatadas durante o XXIII Congresso Internacional de Etologia, em Torremolinos, Espanha (Sherry, 1993), reforçam minha disposição em responder de forma positiva. Em sua palestra, Sherry se preocupou com o modo pelo qual condições ecológicas e os ajustamentos comportamentais a elas se refletem em diferenças estruturais no sistema nervoso, mais especificamente, no hipocampo, uma região envolvida com a memória espacial. Uma comparação entre aves armazenadoras de alimento e aves de espécies aparentadas, porém não dadas ao armazenamento, revela ser o volume do hipocampo maior nas primeiras (a partir de um índice volume do hipocampo/volume do telencéfalo). Diferenças no uso do espaço também se correlacionam com o tamanho do hipocampo. Os machos de um pequeno roedor polígano (meadow vole) costumam ter um território maior do que o das fêmeas, o que possivelmente signifique uma necessidade maior de captação e manutenção de informação espacial. Nesta espécie, mas não em pine voles, uma espécie próxima em que não existem diferenças territoriais de gênero, os machos dispõem de um hipocampo mais volumoso. Abre-se uma interessante e promissora convergência entre a história natural e a neuro-ciência que, seguindo Sherry, poderia ser chamada de "ecologia do cérebro".

Um processo de memória, mesmo que não possa ser entendido como único, no sentido de regido por princípios radicalmente novos, pode ser único na maneira como se ajusta às condições específicas de habitat. Todos os pássaros têm penas, é indiscutível, mas não as usam todos do mesmo jeito (tiro este argumento do texto muito estimulante de Kamil, 1987). Uma gaivotinha herring gull reage seletivamente ao bico amarelo, manchado de vermelho, da mãe ou do pai. A especialização de seu desempenho talvez não se dê a nível dos princípios básicos de percepção, mas a nível da modulação de seu uso. A memória, do mesmo jeito, se encontra ajustada às condições específicas em que é chamada a atuar: não capta, indiscriminadamente, qualquer evento, e não conserva, pela mesma duração, todas as informações registradas. Lembrar-se do grão é essencial para o nutcracker, lembrar-se da rotação das estrelas o é para o passarinho migrante; confundir o nível de discurso a respeito de unicidade é como confundir estrelas e sementes.

 

Reconhecer o outro animal

A memória e a cognição foram, tradicionalmente, encaradas do ponto de vista do conhecimento das coisas: caminhos, fontes de alimento, manipulação de objetos, uso de instrumentos, etc. É isto que fiz, na seção precedente do artigo. Mas o outro, o conspecífico, também é objeto de conhecimento. Uma nova perspectiva, decorrente em grande medida dos estudos sobre organização social de primatas, re-situa a atividade cognitiva em seu contexto social.

Num primeiro momento, postula-se que, do mesmo modo como um animal forma representações do ambiente, inclusive das partes que não estão ao alcance imediato dos sentidos, ele forma representações dos animais com os quais entra em contato, a partir de uma experiência acumulada de interações. Indo mais além, há quem defenda o ponto de vista de que o social é o próprio berço da cognição, a circunstância sem a qual ela não poderia ter alcançado seus níveis mais complexos. Deslocar-se no ambiente das alianças, das posições de dominância, das partilhas e da cooperação pode ser uma tarefa mais exigente do que deslocar-se no ambiente geográfico e um contexto privilegiado para a seleção de estratégias cognitivas.

O interesse pela cognição social foi estimulado pelas idéias da ecologia comportamental sobre consangüinidade e elos sociais. Hamilton (1964) e Trivers (1971) nos levaram a repensar a possibilidade de cooperação ou tolerância entre indivíduos em termos de distância genética e de benefícios indiretos decorrentes de uma ação concertada e de regras de simetria social. Tornou-se muito relevante para o pesquisador (mas certamente não tanto quanto para os próprios animais) saber quem é parente de quem, quem é familiar para quem e como estes relacionamentos são conhecidos pelos indivíduos.

Reconhecimento individual. Os animais ganham em reconhecer, em sua individualidade, os outros com os quais têm contato repetido. Poupam exibições de ameaça ou lutas de fato; estabelecem "pactos" de não-agressão ou de tolerância, adquirindo posições estáveis dentro do grupo; formam elos de "amizade" macho/fêmea que podem dar origem a uma prioridade de acasalamento; direcionam o cuidado materno ou paterno de forma apropriada; e exercem atos de cooperação quando há uma expectativa de reciprocidade. E muitas outras coisas ainda.

Mostrou-se, em muitos estudos, como indivíduos se comportam em relação a indivíduos familiares, às vezes, como adquirem informação social. Pouco se sabe, contudo, a respeito de um eventual esquecimento social. Num estudo recente, os pesquisadores húngaros Miklósi, Haller e Csányi (1992) testaram a memória de peixes-paraíso (Macropodus opercularis) numa mini situação social. Os peixes machos tinham a oportunidade de entrar em contato, uns com os outros, aos pares, em encontros de uma hora. M. opercularis é uma espécie altamente territorial e, nos encontros, havia exibições agonísticas e até confrontos mais concretos, mas sem que os animais se machucassem. Alguns pares tinham novo encontro, um dia depois do primeiro; outros, uma semana depois.

No teste a curto prazo, a luta diminuía sensivelmente, os animais ameaçavam-se menos, as exibições de por a cabeça contra a cabeça ou a cauda do oponente diminuíam, assim como a tendência de se prenderem pela boca (mouth lock).No teste a longo prazo, a briga tinha a mesma intensidade do encontro inicial, o que sugere que os indivíduos tinham se esquecido um ao outro. Segundo Miklósi, Haller e Csányi (1992) haveria, durante a interação entre os peixes, a formação de um traço de memória que inibiria as agressões posteriores: a memória tornaria mais rápida e manteria mais estável a hierarquia social de M. opercularis, um animal de hábitos sociais.

É o esquecimento do outro, enquanto indivíduo, uma feição corriqueira do processo social, em grupos vivendo naturalmente? Não há dados experimentais ou de observação suficientes para avaliar esta hipótese. Acredito contudo que se aprende e se esquece constantemente dentro de um grupo: não está apenas em jogo reconhecer o outro indivíduo, mas ter expectativas a respeito de suas disposições comportamentais momentâneas. Retomo este ponto mais adiante.

Pássaros territoriais podem poupar bastante energia se souberem reconhecer quais são seus vizinhos, e qual o perigo que cada um deles representa em termos de eventual invasão. Quando são canoros, dispõem de um estímulo discriminativo muito conveniente, que é o canto do outro macho. Mas tudo depende da riqueza e variabilidade deste canto. Mostrou-se que o reconhecimento individual é melhor em espécies com repertórios médios (6 a 20 tipos de canto) do que em espécies com repertórios amplos (20 a 200 tipos de canto): a capacidade de memória talvez estabeleça um limite (constraint) para a representação individualizada. A necessidade de haver reconhecimento individual poderia até atuar como força evolutiva limitante sobre o tamanho dos repertórios de determinadas espécies (Irwin, 1988).

Stoddard, Beecher, Horning e Campbell (1991) estudaram o reconhecimento individual no pardal Melospiza melodia, uma espécie em que machos competem fortemente por espaço. Neste sistema competitivo, haveria vantagem, do ponto de vista do dono de um território, em distinguir um vizinho "estável" - portanto, não ameaçador - de um estranho e mesmo de um vizinho "instável", capaz de tentar a invasão. Playbacks do canto de vizinhos e de estranhos foram apresentados, a cada residente, (1) na fronteira com o território ocupado por aquele vizinho particular, (2) numa outra localização de fronteira, (3) no centro do território. Como seria de se esperar, o pássaro residente reagiu mais fortemente ao canto do estranho, em qualquer das fronteiras, e mais ao canto do vizinho quando este canto surgia longe do local esperado. A intensidade da defesa era indiferenciada e muito alta, como seria de se esperar, quando o canto rival surgia no centro do território. Os resultados apontam para a existência, em M. melodia, de uma capacidade considerável de memorizar informação social.

A memória do comportamento do outro animal. Há grupos enormes de animais, cardumes, manadas, etc. em que o reconhecimento individual não é nem possível, nem necessário. A presença perceptual dos outros garante a coesão, tudo parece dar-se no plano do imediato. Em grupos de tamanho restrito, onde corre viva e repetida interação, a integração, ao contrário, passa a depender da história de contatos prévios.

Reconhecer o outro animal como co-participante não representa, nestes grupos, problema cognitivo, a distinção entre "familiar" e "não-familiar", básica e simples, é reforçada através da experiência repetida de encontros. Mais complexo é o reconhecimento do que o outro animal fez; é lembrar-se de suas exibições de ameaça ou apaziguamento, de seus comportamentos dirigidos, das reações que, em relação a ele, tiveram outros membros do grupo. O tamanho dos caninos que um babuino Hamadryas papio exibe durante as disputas de acasalamento é uma informação preciosa para outros machos que decidam ou não, posteriormente, enfrentá-lo.

A flexibilidade do sistema social depende da flexibilidade das representações que são geradas, a cada momento, no fluxo da interação; seu equilíbrio, da permanência de algumas destas representações. A ação concertada decorre, como em qualquer uso da memória, de um ajuste entre uma expectativa, fruto de experiência, e as condições presentes.

Quando as leoas do Parque Nacional de Etosha, na Namíbia, caçam de modo cooperativo, elas entram em formação. Algumas dentre elas atuam como " alas": se espalham, cercam as presas, as empurram para dentro do espaço controlado. Outras permanecem no centro, esperando a chegada das presas para dominá-las. O tipo de esforço dispendido é diferente, umas correm muito, as outras adotam uma posição menos ativa, na tocaia, mas, em compensação, são responsáveis por lidar com presas às vezes muito grandes e vigorosas.

Stander (1992) mostra ser sistemática a divisão de tarefas, cada leoa assumindo, repetidamente, a mesma posição, dentre as "batedoras" ou das " abatedoras" de seu grupo, como obedecendo a um papel. Manifestam-se, na escolha de posições, representações sociais flexíveis, os animais levando em conta, não apenas as características do episódio particular de caça (tamanho e número das presas, acidentes do terreno, número de leoas participando do ataque, etc.), mas a disposição espacial de uns em relação aos outros. Assim, as leoas 34 e 39, sempre que caçavam juntas, coordenavam seus movimentos de maneira a deixar a presa entre si, se fugisse de uma delas, caia nas garras da outra; os papéis assumidos pela leoa 40 eram diferentes, dependendo de se presente ou ausente a leoa 34. O ajuste social das posições resulta, segundo Stander, em maior eficiência de caça. Talvez não signifique, como queria Griffin (1984), que leões tenham consciência e intencionalidade, há aqui uma questão epistemológica espinhosa na qual não vou me embrenhar: mas certamente implica a presença de mecanismos de memória.

Uma série de relatos e experimentos, alguns bastante intrigantes, revelam que primatas formam representações acerca dos relacionamentos sociais existentes em seu grupo, às vezes captando-os a partir de rápidos contatos. Babuínos machos (Papio cynocephalus hamadryas) precisam constantemente defender as fêmeas de seu grupo do assédio de outros machos, mas a competição obedece a uma espécie de regra de precedência que Kummer e colaboradores foram os primeiros a desvendar. Se um macho perceber interação entre uma fêmea e o macho ao qual está associada, desiste de tentar conquistá-la, este "respeito da posse" manifestando-se mesmo em machos dominantes (Kummer, Götz & Angst, 1974). Um babuíno talvez possa até avaliar o grau de preferência que a fêmea tem pelo rival: quanto maior esta preferência, maior a inibição da conquista, pelo menos em machos de baixo ou médio ranking; os machos dominantes, no estudo de Bachmann e Kummer (1980) ao qual estou me referindo, desafiavam o rival, qualquer que fosse o apego da fêmea por ele.

É necessário distinguir vários níveis do conhecimento social. Num dos extremos, e é este aspecto que tem atraído mais a atenção, está o conhecimento mais ou menos estável, que serve de referência duradoura para o comportamento. Uma mãe vervet (Cercopithecus aethiops), por exemplo, reconhece a vocalização de seu filhote, reagindo mais intensamente a um playback dos gritos do filhote do que outras fêmeas (Cheney & Seyfarth, 1990b). Pode-se supor que um modelo da vocalização do filhote esteja armazenado na memória a longo prazo da mãe; também neste tipo de memória devem estar preservadas representações acerca das posições de dominância, dos laços de familiaridade e de parentesco, etc.

Em outro extremo, estão informações mais voláteis, acerca dos eventos que se sucedem nas trocas comportamentais diárias, exigindo ajustamentos momentâneos, sujeitas muitas vezes a esquecimento rápido. Ao lado de estruturas cognitivas cuja permanência corresponde à permanência dos eventos sociais que codificam, cabe reservar um lugar para processos de registro e uso de informação a curto prazo, que surgem e se desvanecem ao sabor das circunstâncias, dentro do modelo de uma memória operacional (working memory).

O seguinte episódio (Cheney & Seyfarth, 1990b) capta a imbricação de níveis diferentes de controle mnêmico.

Os macacos vervet tinham abandonado a árvore de dormida para coletar comida no chão. Enquanto comiam os adultos, os juvenis brincavam num arbusto, não muito longe. Macauley, filho de uma fêmea de baixo ranking social, atacou e derrubou Carlyle, a filha juvenil da fêmea de mais alto ranking. Carlyle gritou, afugentou Macauley e foi depois alimentar-se perto da mãe. A luta, contudo, parece que não tinha passado despercebida. Vinte minutos depois, Shelley, a irmã de Carlyle,aproximou-se de Austen, irmã de Macauley e, sem provacação, a mordeu na cauda (p. 167-8).

Neste episódio maquiavélico, estão em jogo representações estáveis, na ótica (inferida) de Shelley, como "Carlyle é meu irmão", e "Austen é irmã de Macauley". Há, de outro lado, uma representação localizada, que poderia, em linguagem humana, ser traduzida por "Macauley atacou Carlyle". Provavelmente tenha vigência menor e seja suplantada por outras, no fluxo das trocas comportamentais. Ela é mais representativa de uma memória de eventos.

 

O impacto mnêmico sobre o receptor como critério na seleção natural de sinais

Tratei, até agora, da memória enquanto ferramenta adaptativa. Espero ter mostrado que há condições ecológicas em que registrar e recuperar informação constitui uma vantagem em relação à reatividade imediata a estímulos presentes. Falta ainda indicar como esta capacidade de memória pode atuar, já não mais como processo selecionado, mas como critério de seleção, numa perspectiva evolutiva.

Esta idéia, que pode de início parecer surpreendente, foi discutida num artigo notável de Guilford e Dawkins (1991), em Animal Behaviour. Analisando a comunicação animal, estes pesquisadores ingleses distinguem, em qualquer sinal, um componente estratégico que teria a ver com sua função biológica, e se expressaria em termos dos ganhos em aptidão reprodutiva que decorrem de seu uso; de um componente tático, relacionado à eficácia com a qual o sinal é transmitido, com a qual atinge o animal ao qual é destinado, e com a qual consegue influenciar o comportamento deste. O componente tático envolve, evidentemente, a psicologia do receptor, seus mecanismos sensoriais, e sua capacidade de memorização.

As manchas coloridas, parecendo ovos, na nadadeira caudal de um peixe ciclídeo macho, funcionam como chamadas para outros machos e provavelmente tenham sido selecionadas em função de seu poder de atrair a atenção; as manchas em forma de olhos na cauda do pavão "atraem inexoravelmente o olhar da fêmea porque ela não pode normalmente se dar ao luxo de ignorar objetos que se pareçam com olhos" (Guilford & Dawkins, 1991, p.4); a vocalização potente do muriqui, seus "relinchos" têm eficiência na medida em que capazes de atingir, por entre as árvores da floresta, a audição de outros muriquis. Muitos exemplos poderiam ainda ser dados de como o sinal incorpora características que o tornam apropriado ao aparelho perceptual do outro.

Poder-se-ia dizer, do mesmo modo, que os sinais são planejados de modo a garantir sua permanência na lembrança do receptor. Além de detectável e discriminável, um sinal deve ser memorável. As fêmeas em fase de acasalamento nem sempre aceitam o primeiro macho encontrado. Elas podem expor-se a vários, escolhendo o que evidencia melhores características, dentre os critérios reprodutivos e de cuidado paterno. Neste processo de escolha, as características do display do macho serão importantes, não apenas se atraírem a atenção da fêmea, mas se permacerem na memória dela, influenciando uma decisão posterior.

Guilford e Dawkins (1991) apontam, como elementos do sinal que aumentam sua memorabilidade, o contraste, cores e formas específicas, a novidade. Sugerem que certas exibições teriam por função potenciar a aprendizagem ou memorização de outros aspectos do comportamento ou da anatomia do emissor. Faltam quase que absolutamente estudos experimentais que lidem, especificamente, com a questão da memória do sinal, e é uma tentação retomar uma situação etológica clássica (como a da alimentação dos filhotes de gaivota) ou qualquer sistema comportamental que se preste a ser modelo, visando entender os processos de memória neles envolvidos. Assim, poder-se-ia dar uma base mais firme para a hipótese, também tentadora, de que a capacidade de memória do receptor atuou como critério seletivo, na evolução da comunicação.

 

A memória e o Umwelt dos animais

A que se parece o mundo de um animal? O que é ser como um morcego, ou um cachorro, ou um golfinho? Von Uexkull (1933), que, há muitos anos, permitiu-se especular a respeito, propôs que se considerasse que cada espécie (e, por que não, cada indivíduo ?) vive num mundo próprio, ou Umwelt, definido em termos de suas capacidades sensoriais e de suas estratégias de modificação ativa do ambiente.

Não me agrada muito a idéia, implícita na proposta de Von Uexkull, de multiplicar mundos próprios, até o limite filosófico do subjetivismo e da perda de contato com uma realidade abrangente única. Inclino-me mais a assumir a posição realista, que também foi a de Lorenz (1973) e que fundamenta uma epistemologia evolutiva, segundo a qual existe uma realidade externa à consciência, dentro da qual, em função de sua história, cada organismo ou espécie recorta seus sistemas de ação.

O animal não vive num mundo de dados imediatos, de qualidades sensoriais enquanto tais, mas num mundo interpretado a partir de informação suplementar - seja a trazida da longa história evolutiva, a memória-restrita-à-leitura de que falam Campan e Breugnon (1989), seja a que se constitui, cumulativamente, na história mais breve porém significativa do indivíduo.

O Umwelt ou mundo-próprio do animal é produto de uma construção ontogenética, a curto ou longo prazo, a partir dos estímulos e eventos encontrados. Representa, mais do que um conjunto de significados fixos, uma integração temporal da experiência.

 

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