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Psicologia USP
On-line version ISSN 1678-5177
Psicol. USP vol.4 no.1-2 São Paulo 1993
ARTIGOS ORIGINAIS
A pesquisa em memória social
Research on social memory
Ecléa Bosi
Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo
RESUMO
O artigo propõe uma reflexão sobre a pesquisa em psicologia social da memória, tanto do ponto de vista da orientação geral quanto das táticas particulares de investigação. As bases teóricas são a teoria da Gestalt e a filosofia bergsoniana do tempo. Os processos memorativos são relacionados a campos de significação na vida do sujeito que recorda. O artigo aborda a influência dos grupos sociais na formação das lembranças.
Descritores: Memória. Métodos de pesquisa. Autobiografia. Psicologia Social.
ABSTRACT
A reflexion on the research on the psychology of social memory is proposed, both from the point of view of general orientation and from that of individual tactics of investigation. The theoretical bases are Gestalt theory and the Bergsonian philosophy of time. The memorative processes are related to 'fields of significance' in the life of the subject who remembers. The influence of social groups on the formation of memories is discussed.
Index terms: Memory. Research method. Autobiography. Social psychology.
O interesse em sondar as formas da memória social, despertado nos anos 70, tornou-se intenso nas ciências humanas e isso nos dá o que pensar.
Será o resgate da memória como que uma História alternativa? Ou será um método diverso de abordar a História, que complementa as fontes escritas?
Logo de início o pesquisador deve enfrentar o fato de que uma história de vida, ou mil histórias de vida jamais substituirão um conceito ou uma teoria da História.
Depoimentos colhidos, por mais ricos que sejam, não podem tomar o lugar de uma teoria totalizante que elucide estruturas e transformações econômicas, ou que explique um processo social, uma revolução política.
Muito mais que qualquer outra fonte, o depoimento oral ou escrito necessita esforço de sistematização e claras coordenadas interpretativas.
Registrando as lembranças da minha cidade, procurei recolher aquela evocação disciplinada que chamei memória-trabalho, tão diversa da livre rememoração1.
Tento aqui discutir problemas relativos à pesquisa buscando responder algumas das muitas questões que ela tem suscitado.
* * *
Quando se pergunta pelo método de um trabalho científico a resposta tem de ser procurada em, pelo menos, dois níveis:
I. A orientação geral da pesquisa, "tendência teórica" que guiou a hipótese inicial até a interpretação final dos dados colhidos.
II. A técnica particular da pesquisa, o procedimento.
É claro que esses dois níveis se cruzam na mente do estudioso que sempre reflete enquanto observa ou colhe dados, pois a tarefa do conhecimento não se cumpre sem a escolha do campo de significação e sem a inserção das informações obtidas nesse campo.
Desde o passo inicial, no encaminhar de uma simples questão, já se revela a filosofia que subjaz ao trabalho.
O ideal sempre é que o intérprete seja a mesma pessoa que proceda à colheita de dados.
Findo o trabalho, este não pode ser submetido a exame ou desmontado como a engrenagem de um relógio, mas podem-se rememorar os caminhos trilhados para auxílio dos futuros investigadores.
Em todo o meu trabalho sobre memória e. sociedade operou como um modelo exemplar de conhecimento psicológico o pressuposto mais geral da Teoria Gestáltica, aquele que enlaça estruturalmente as formas de comportamento a complexos vivos de significação. O princípio fundamental de que existem CAMPOS DE SENTIDO não só no psiquismo individual - como o demonstram os estudos célebres de Koffka e Wertheimer sobre percepção de objetos - mas também na rede interpessoal de que são exemplo as experiências do espaço social topológico de Lewin.
Não fui em vão aluna de D. Annita Marcondes Cabral, bebendo a teoria da Gestalt em suas aulas e, mais tarde, Bergson, autor com que ela iniciava sua pós-graduação.
Mas é preciso convir que essa orientação, embora me desse o suporte genérico das noções de campo significativo ou de totalidade, não esgotava as possibilidades de uma área como memória social.
O objeto a ser compreendido está constituído de substrato móvel e fluido, o tempo; não o tempo abstrato da Física Matemática, mas o tempo concreto e qualificado das lembranças. Precisava apreender em primeiro lugar uma totalidade de sentido em curso (e que não sofre, sem violência, a metáfora lewiniana do espaço) embora sempre me fosse inspiradora a hipótese gestáltica das configurações.
Recorri por isso à doutrina bergsoniana da memória que é, fundamentalmente, uma doutrina psicológica pois parte da experiência individual do perceber e do lembrar.
Bergson, que escreveu antes dos gestaltistas (Wertheimer só aparecerá em 1912), fez uma crítica do atomismo psicofísico e falou em " círculos da memória" e em " fluxo da consciência", certamente influenciado por William James.
Sua distinção entre memória pura e memória-hábito é preciosa porque abre caminho para enfrentar o problema-chave da socialização da memória, ainda que seu interesse estivesse mais na energia espiritual autônoma, como vitalista que era.
O real - bloco contínuo de diferenciações temporais - tem que ser visto através das modificações de uma consciência vivendo os diversos ritmos da duração.
Se o tempo é a essência do psíquico, a ciência o espacializa e reduz o movente ao imóvel. O fato da consciência é movente.
A estrutura do comportamento é uma relação entre a consciência e o mundo, jamais cortada por pontos finais. Sendo um traço de união entre o que foi e o que será, é antes de tudo memória.
A Duração (durée) é o tempo vivido, o tempo do espírito anterior às divisões da percepção.
A divisibilidade é uma operação da percepção utilitária sobre a matéria contínua. Nós só intuimos a duração quando pomos de lado o prático-utilitário.
Para Bergson, mais vale intui-la; quem define já corre o perigo de espacializar o que é, por sua natureza, tempo.
Nem é necessário defini-la: quando compreendemos já estamos dentro do objeto a conhecer.
O papel da consciência é ligar com o fio da memória as apreensões instantâneas do real. A memória contrai numa intuição única passado presente em momentos da duração.
No processo de socialização tem lugar a memória-hábito, repetição do mesmo esforço, adestramento cultural.
No outro polo, a lembrança pura traz à tona da consciência um momento único, singular, irreversível, da vida.
Dessa breve evocação bergsoniana fique-nos a idéia da Memória como atividade do espírito, não repositório de lembranças. Ela é, segundo o filósofo, " a conservação do espírito pelo espírito".
* * *
No entanto, seria preciso encontrar uma orientação teórica que ancorasse o fluxo infinito da memória em certos quadros de referência sociais e historicamente determinados que são também campos de significação não estáticos.
Aqui vali-me da Psicologia Social clássica e da linha durkheimiana francesa através da "memória coletiva" estudada por Maurice Halbwachs. Dediquei minha tese a esse professor de Psicologia Social que morreu em 1945 no campo de Buchenwald.
A Memória, é sim um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo.
O tempo não flui uniformemente, o homem tornou o tempo humano em cada sociedade. Cada classe o vive diferentemente, assim como cada pessoa.
Existe a noite serena da criança, a noite profunda e breve do trabalhador, a noite infinita do doente, a noite pontilhada do perseguido.
É verdade, porém, que nossos ritmos temporais foram subjugados pela sociedade industrial, que dobrou a tempo a seu ritmo," racionalizando" as horas de vida. É o tempo da mercadoria na consciência humana, esmagando o tempo da amizade, o familiar, o religioso... A memória os reconquista na medida em que é um trabalho sobre o tempo, abarcando também esses tempos marginais e perdidos na vertigem mercantil.
Tal como o tempo social acaba engolindo o individual, a percepção coletiva abrange a pessoal, dela tira sua substância singular e a estereotipa num caminho sem volta.
Só os artistas podem remontar a trajetória e recompor o contorno borrado das imagens, devolvendo-nos sua nitidez.
Mas a rigor, a apreensão plena do tempo passado é impossível, como o é a apreensão de toda a alteridade.
A passagem pela sociologia da memória é esclarecedora na hora de entender o porquê de alguns recordadores fixarem melhor suas experiências de infância do que da vida adulta.
A comunidade familiar ou grupai exerce uma função de apoio como testemunha e intérprete daquelas experiências. O conjunto das lembranças é também uma construção social do grupo em que a pessoa vive e onde coexistem elementos de escolha e rejeição em relação ao que será lembrado.
É claro que essa descoberta pode ser retomada em termos de "formações ideológicas" que reagrupam e interpretam num sentido ou em outro as lembranças individuais.
No caso da recordação de acontecimentos políticos que escutei (revoluções, crises, figuras notáveis...) essa fusão ou aglutinação de lembranças factuais e valores ideológicos está muito presente. Estudei longamente como a lembrança se corporifica levando em conta a localização de classes e a profissão do sujeito. Nesse contexto, a marginalidade política a que se relegam os estratos pobres da população é causadora do espantoso vazio memorativo do brasileiro.
Notável também é a gama de matizes da lembrança vinculada ao trabalho, próxima ou distante da produção material que opera no interior da matéria recordada.
* * *
Todas essas considerações respondem à questão do método, entendida em senso lato como orientação teórica.
Resumindo:
há um pressuposto tácito de que existem campos de significação na vida subjetiva e na vida inter-subjetiva; hipótese que devo à teoria da Gestalt;
há um embasamento bergsoniano que encarece a dimensão temporal inerente à memória (E porque não buscar a fonte hegeliana para a qual o passado concentrado no presente é que cria a natureza humana?);
há o momento propriamente psico-social lastreado na pesquisa e inspirado em Halbwachs e outros autores que acentua as relações com a família, o grupo cultural, a classe, a comunidade - momento que se dá abertamente na hora da interpretação;
há enfim o suporte da teoria da ideologia, que busquei em Benjamin e Adorno, pensadores dialéticos que, como se sabe, são extremamente sensíveis à complexidade dos fenômenos psicológicos;
No tocante às técnicas de pesquisa, estas devem ser adequadas ao objeto: é a lei de ouro. Não conheço outra.
O objeto visado era memória como totalização? Vamos dar ao sujeito a possibilidade de lembrar como evocação sistemática.
Daí decorre um dilema de metodologia enquanto técnica: questionário fechado ou explorações abertas? A segunda técnica provoca um estilo de resposta mais adequado à autobiografia, que é o estilo narrativo.
Em termos acadêmicos de técnica de pesquisa, na verdade se combinam bem os procedimentos de história de vida e perguntas exploratórias desde que deixem ao recordador a liberdade de encadear e compor, à sua vontade, os momentos do seu passado.
Aqui se revela a mestria do pesquisador: uma pergunta traz em seu bojo a gênese da interpretação final; é uma verdade que não se pode negar. E no entanto a liberdade do depoimento deve ser respeitada a qualquer preço. É um problema sério de ética da pesquisa.
Se a memória é, não passividade, mas forma organizadora, é importante respeitar os caminhos que os recordadores vão abrindo na sua evocação porque são o mapa afetivo e intelectual da sua experiência e da experiência do seu grupo - no caso, até mesmo da sua cidade, a São Paulo dos primeiros decênios do século XX - que é justamente o quadro espaço-temporal comum daqueles que entrevistei.
Quanto mais o pesquisador entra em contacto com o contexto histórico preciso onde viveram seus depoentes, cotejando e cruzando informações e lembranças de várias pessoas, mais vai-se configurando a seus olhos a imagem do campo de significações já pré-formada nos depoimentos.
Para os depoimentos que são autobiografias vale considerar que estas são, além de testemunho histórico, a evolução da pessoa no tempo.
Segundo Angyal nos seus Fundamentos para uma ciência da personalidade, um estudo em corte transversal da personalidade deixa muitos vazios. Somente através de estudo biográfico perceberíamos a pessoa historicamente. Pode-se então tentar reconstruir uma sucessão de constelações compreensíveis que conduzem ao estado e situação atual da pessoa.
A própria pessoa vê sua vida - ou procura vê-la - como uma configuração, com um sentido.
Eis aí conciliadas uma teoria do tempo e a Gestalt.
Finalmente, confirmando por outras vertentes essa tese, um historiador de ideologias como Lucien Goldmann insistiu muito na pertinência de " totalidades histórico-culturais " significativas, escorando-se também em categorias de classe ou de estrato social.
Num trabalho sobre a história de São Paulo construído através da memória de seus velhos, a noção de "momentos histórico-culturais" com sua dinâmica ideológica (e contra-ideológica peculiar) poderia sempre ser um fio condutor na hora da interpretação. Mas isso está apenas no horizonte final da tese.
O miolo é psico-social, imanente ao texto dos recordadores.
1 Ecléa Bosi, Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 3a edição, 1994. [ Links ]