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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.6 no.1 São Paulo  1995

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Trilha de formiga, senda de psicólogo e etólogo (meus caminhos e descaminhos no estudo do comportamento)1

 

Ant's trail, the course of a psychologist and ethologist

 

 

Walter Hugo de Andrade Cunha

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Este trabalho relata o caminho seguido pelo autor em sua investigação de certos comportamentos de aparência emocional em formigas, e a evolução de suas interpretações sobre esses fenômenos: a interpretação inicial, cognitivista, foi reformulada primeiramente em termos de condicionamento operante, o que se revelou improdutivo. Expõe a seguir como o autor descobre outras possibilidades de interpretação e propõe o conceito de um novo mecanismo de comportamento, adicional ao reflexo e ao padrão fixo de ação, e tão automaticamente desencadeado e filogeneticamente determinado quanto aqueles. Esta demonstração impõe uma reforma das concepções correntes a respeito da psicologia, da etologia e de suas relações, além de prover esta última disciplina com condições que lhe têm faltado para tornar-se uma ciência biológica completa do comportamento.

Descritores: Formigas. Modificação do comportamento. Análise do comportamento. Etologia. Behaviorismo. Psicologia comparada.


ABSTRACT

This paper reports the path that the author went through in the investigation of some apparently emotional behaviors in ants, and the evolution of his interpretations about these phenomena: an initial cognitive interpretation was replaced, firstly, by an operant conditioning approach, which proved to be improductive. The author relates how he came to the discovery of a new behavioral mechanism, complementary to reflexes and fixed action patterns, and equally automatic and philogenetically determined. This proposition imposes changes in the current conceptions of psychology, ethology and their mutual relationships, and endows ethology with the conditions it presently lacks in order to become a truly complete biological of behavior science.

Index Terms: Ants. Behavior modification. Behavioral assessment. Ethology. Behaviorism. Comparative psychology.


 

 

Por coincidência, foi num mesmo dia que um irmão e eu tivemos, lá por 1952 ou 1953, cada qual o encontro com os acontecimentos que iriam marcar definitivamente nosso futuro. Morávamos, ainda estudantes, em um quarto de pensão.

Meu irmão, prostrado na cama, meio de lado e meio de costas para uma parede, narrava-me, deprimido, como estava sendo expulso de um curso na carreira que abraçara por causa de uma trama de colegas em que fora, maldosamente, envolvido.

Atrás de meu irmão descia, pela parede, uma trilha de pequenas formigas vindas do forro de madeira. Passando por trás da cama, a trilha ia ao chão e, de lá, por uma perna de mesa acima, até uma lata de doce, aberta só Deus sabia quando. Meu irmão, enquanto narrava, pincelava, mecanicamente, com um dedo indicador, algumas formigas da trilha. Não pude, então, conter o espanto diante do que vi. A trilha, nas proximidades dos locais do esmagamento, havia entrado em polvorosa. Ainda distantes vários centímetros das esmagadas, as formigas vivas estacavam, agitando as antenas. Muitas, então, com um ou mais "solavancos" abruptos, despencavam ao solo. Outras voltavam, correndo, em trajetória ondulante, nalguns casos também caindo ou perdendo o rumo da rota coletiva. A trilha, até então linear e ordenada, se apresentava grandemente desordenada.

Chamei a atenção de meu irmão para esses acontecimentos, tanto por minha admiração como pela esperança de que pudessem momentaneamente proporcionar-lhe alívio. Meu irmão, porém, derrotado como estava pelo infausto dia, mal se dignou a olhar para as formigas, e nem mesmo pôde, mais tarde, lembrar-se de havê-las visto.

Retive o episódio vivamente na lembrança e devo tê-lo desfilado freqüentemente na mente em busca de explicação. De fato, o Prof. Dante Moreira Leite, por exemplo, contou, ao arguir-me na sessão pública de defesa de minha tese de doutorado, em 1967, que eu lhe mencionara, impressionado, o episódio das formigas, em uma de suas aulas já em 1955 ou 1956.

Acredito hoje - se bem que admitindo ser difícil recuperar, depois de cerca de quarenta anos, o que de fato aconteceu - que foi graças às aulas de psicologia social ministradas pela Professora Annita de Castilho e Marcondes Cabral que vim a intuir uma explicação para os acontecimentos citados que se aproximava de recuperar a impressão inicial que me haviam causado. Essa professora tratava, em seu curso, da teoria dos instintos de McDougall, segundo a qual cada instinto - ou seja, em sua definição, uma disposição inata para perceber e atuar de modo definido -, ao ser ativado, se acompanharia da emoção específica correspondente: o instinto da pugnacidade, da raiva; o de escape, do medo; e assim por diante. Juntamente com a teoria de McDougall, a professora expunha também ponderações sobre o tópico das emoções feitas pelos psicólogos da Gestalt, que eu admirava e de que ela era uma (se não a mais) destacada promotora em nosso meio.

A explicação que, parece-me, intuí para as perturbações notadas nas formigas, era que se tratava de uma perturbação emocional, a implicar algo assim como uma capacidade que essas formigas teriam de, avaliando o acontecimento à luz de sua experiência anterior e das alternativas de ação de que, segundo os gestaltistas, dispunham na situação, antecipar, no fado das companheiras, o próprio destino. Mas como pensar em emoção e em um papel importante da experiência subjetiva na determinação do comportamento no caso de uma criatura tão minúscula e aparentemente tão insignificante como a formiga, se o behaviorismo, tão notado por seu rigor demonstrativo e por sua objetividade, e, por isso mesmo, em maré montante de prestígio no panorama científico da época, os negava para o próprio ser humano, evolutivamente muito mais elevado e complexo? Não seriam, antes, as formigas simples "bestíolas de reflexos e instintos", conforme diziam zoólogos prestigiosos da época, e, portanto, não constituiriam aquelas perturbações meras reações forçadas, automáticas, a estímulos físico-químicos que se impingiriam a esses animais?

A questão veio assimilar-se, assim, para mim, a uma polêmica que me interessava vivamente durante toda a realização de meu curso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, e, depois dele, pelos anos afora: a que se travava, de um lado, entre as teorias elementaristas e mecânicas, como o behaviorismo, e logo mais também a etologia comparativa, e, de outro lado, as teorias dinâmicas e de campo, como a teoria da Gestalt e a de Kurt Lewin, na Alemanha, e a teoria cognitiva de Tolman, nos Estados Unidos.

Em 1957 fui convidado a acumular um trabalho de pesquisa sobre a validade das provas de seleção profissional de motorista de ônibus utilizadas na Companhia Municipal de Transportes Coletivos, em São Paulo (Cunha, 1965), com a de instrutor na Cadeira de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Na Cadeira, em 1959, fui instado a definir um tema para minha tese de doutorado em psicologia.

Influenciado pela obra de Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, lido na íntegra na tradução francesa já nos meus 18 anos de idade, obra essa que, acima de qualquer outra, me havia levado a cursar filosofia, escolhi como assunto de tese, com certa decepção, parece-me, de minha chefe, uma reflexão sobre o lugar da vontade na psicologia. Era, acredito, uma escolha infeliz, pois logo percebi ser o tema relacionado a uma dezena de outros conceitos, como impulso (drive), motivo, motivação, desejo, intenção, valor, incentivo etc. Penso que a decepção de minha chefe e orientadora provinha de que ela certamente teria preferido que eu optasse por algum tema predileto da teoria da Gestalt, mas, não sei bem como, devo tê-la persuadido de que o desenvolvimento do assunto escolhido não só preencheria alguma lacuna dessa teoria como lhe daria maior plausibilidade.

Minha responsabilidade para com o desenvolvimento do tema deve ter sido, por aí, aumentada, como aumentada se verificou minha ansiedade à medida que os meses iam passando sem que eu fizesse progredir o assunto. Vendo-me cada vez mais perdido num labirinto de conceitos vagos e de disputas, fui percebendo que o tema escolhido se prestaria melhor como assunto para um erudito em fim de carreira do que para uma tese de principiante.

Sem coragem de confessar a situação para a minha chefe, persisti em minhas leituras por vários meses ainda. Para espantar a frustração, freqüentemente me sentava ou deitava no quintal de casa, literalmente prostrado, onde certamente encontrava entretenimento e alívio na contemplação das formigas em sua faina diária. Num dia, a 18 de junho de 1960, mais exatamente, não sem uma ponta de remorso pela obrigação descuidada, resolvi rever com olhos críticos o comportamento da mesma espécie de formigas - Nylanderia fulva Mayr, 1862 - para com as companheiras esmagadas (eu não esqueceria mais nem o aspecto físico nem o modo característico de se comportar dessa formiga desde a primeira ocasião). Foi como quem ateia fogo a um rastilho de pólvora, pois não consegui mais frear-me daí para a frente.

Ao contrário das horas empregadas no antigo tema, as passadas com as formigas voavam, e delas me acercava sempre com ansiedade, senão com emoção - às vezes, até, com as têmporas latejando e o coração acelerado, como os de alguém que se preparasse para colher de uma janela cenas desvendadoras de uma trama de intriga e mistério.

A inspiração realmente parecia falar-me, pois, apenas um mês e meio mais tarde, eu já havia preenchido um caderno manuscrito com 131 páginas de observações, experimentos e roteiros de interpretação que teriam um lugar destacado em minha tese de doutorado, concluída seis anos mais tarde. Sugere-o também o fato de o próximo caderno para a investigação, aberto imediatamente em seguida, se iniciar com um manuscrito que continha, já, as principais justificativas que eu via então para realizar sobre o comportamento das formigas a minha tese em psicologia. Os promotores dessa ciência, como se sabe, costumam considerar que já têm no ser humano problemas e questões mais que suficientes com que se ocupar integralmente para precisar voltar sua atenção, sem boas justificações, também para os animais. Transcrevo, a seguir, em seu trecho mais importante, essa justificativa inédita, não só porque caracterizava bem a intenção de minha obra e me serviu de escora nas muitas ocasiões em que tive de defendê-la como algo pertinente à psicologia, como também porque a subscrevo quase na totalidade ainda hoje, passados, já, 42 anos desde que escrita:

É afortunado para nós, sem dúvida, que conheçamos muito mais acerca do homem que dos organismos infra-humanos, e que a psicologia do homem esteja nessa posição em que, conforme o diz Asch (1952), pode mais servir à psicologia animal do que ser por esta servida. Do ponto de vista do desenvolvimento da ciência, porém, não estou certo de ser isto uma vantagem ou desvantagem, pois não estou seguro de se, como se afirma, o conhecimento do menos complexo deve ser buscado antes do conhecimento do mais complexo. Devo também distinguir complexidade de um organismo de complexidade de uma questão de conhecimento, e embora eu não tenha dúvidas sobre a menor complexidade do organismo do invertebrado relativamente ao organismo humano, posso tê-las quando a ser o conhecimento psicológico do animal inferior menos complicado que o do homem, dada a posição especial deste no sistema de conhecimento e dada a natureza mesma do problema psicológico. Parece-me fora de dúvida, entretanto, que a psicologia animal pode trazer contribuições importantes à psicologia humana. Os estudos de Köhler sobre o comportamento inteligente dos chimpanzés certamente representaram um impulso para o estudo do comportamento inteligente em geral. Um experimento com aves pode não nos ensinar nada, diretamente, sobre o comportamento do homem, mas pode levar-nos a uma decisão entre princípios gerais conflitantes. É preciso não esquecer que a nossa ciência, antes de ser psicologia infra-humana ou humana, muito embora nos interessemos mais por esta, é primordialmente psicologia, é ciência fundamental, que visa à generalidade de seus conceitos.

Neste particular, ou seja, para uma decisão por concepções fundamentais, a psicologia infra-humana me parece bastante promissora, pois, se pudermos suspeitar que uma particular concepção é por demais simples e não faz justiça à complexidade do comportamento do animal inferior, com mais razão poderemos duvidar de sua validade quando aplicada a um comportamento de complexidade superior. Assim, por exemplo, e principalmente, há em psicologia duas concepções gerais do comportamento que merecem realce especial: a mecanística e a dinâmica. De modo sumariado e imperfeito, poderíamos dizer assim: pelo mecanicismo, o animal é concebido segundo o modelo 'máquina', cujas execuções são o que são porque os processos são regulados fatalmente por arranjos ou dispositivos constrangedores especiais; esses dispositivos, no animal, seriam representados por disposições anátomo-fisiológicas especiais; sobretudo, há a suposição de que o comportamento é no geral a ativação de músculos e glândulas por impulsos que atravessam caminhos nervosos conectados de maneira definida; novos comportamentos, diversos dos permitidos pelas conexões inatas, originais, só se poderiam estabelecer graças ao aparecimento de novas conexões, ou mudanças de condutividade. Esta concepção levou à visão do comportamento como uma série de reflexos, originais ou adquiridos (por condicionamento, em geral), segundo a fórmula E-R ou E-E'-R: como conseqüência, a tarefa de investigação em psicologia se resumiria no determinar as conexões entre um estímulo e a resposta correspondente. Na teoria dinâmica, por outro lado, os eventos de um sistema são encarados como resultantes de forças e condições em que estas atuam; as condições podem determinar os eventos em graus que podem variar de um máximo (como nas máquinas atuais) a um mínimo (caso em que os processos se distribuem a si mesmos, segundo certas leis físicas gerais). O resultado é que o sistema nervoso não será concebido como um padrão geométrico de condutores em conexão, mas antes como um meio que permite graus variados de intercomunicações; o comportamento será concebido como o resultado da organização a que a estimulação e outros fatores darão lugar no meio fisiológico; nos casos em que essa organização for mínima, o comportamento será o resultado de processos locais. Trata-se, portanto, de uma concepção que inclui o mecanicismo como um caso particular (o caso em que os fatores dinâmicos têm um mínimo de participação, e as condições restritivas, um máximo, na determinação dos processos). Em lugar da fórmula estímulo-reação, propõe-se, nesta teoria, a fórmula estímulo-organização-resposta, para a investigação psicológica (Cf. Köhler, 1929, Cap. 4º e 5º, especialmente páginas 68 e 96 e seg.; Koffka, 1935, Cap. 2º).

Embora eu desconhecesse ainda, por mais um ano ou dois, a existência da etologia, é importante assinalar que minha investigação tomou, desde o princípio, a orientação que caracterizava as pesquisas dessa ciência: a partir dos fatos para as teorias, ao invés da orientação oposta, tradicional em psicologia. Isso, também, parecia essencial para uma decisão com respeito à polêmica que me interessava.

Foi somente depois que obtive alguns achados intrigantes que me animei a relatá-los a minha chefe e orientadora. Entre esses achados estava o de que partes anatômicas diversas da formiga, a saber, abdome, tórax e cabeça, esmagadas sobre a trilha, ocasionavam, nessa ordem, perturbações de comportamento de dramaticidade crescente. Atribuí esse fato à ordem de preponderância dessas regiões corporais nas interações sociais, e, portanto, ao grau de familiaridade de que elas se revestiam para formigas intensamente sociais como era N. fulva. Essa interpretação se revelou apoiada por outras descobertas (por exemplo, achados relativos ao papel das regorgitações na vida social de várias espécies de formigas e o grau em que reagiam com perturbações a companheiras esmagadas, e achados relativos a intercorrelações entre categorias de dados - (Cf. Cunha, 1980, Cap. 3º, Tópico 2, e Cap. 5º). Estava, também, entre o relatado, o fato - que se revelaria adverso à teoria dos feromônios, conforme logo se verá - de que o esmagamento de companheiras, no todo ou em partes, fora da trilha, não provocava as mesmas reações dramáticas que a alteração sobre a trilha, mas, ao contrário, aproximação e exploração antenal, quando não indiferença. Ora, isso sugeria que, para as formigas, estar ou não a alteração em seu caminho era um determinante importante da maneira como lhe iriam reagir - aliás, conforme o fariam prever as considerações dos gestaltistas clássicos a respeito da emoção (Cf., p. ex., Koffka, 1935, Cap. 8º).

Minha chefe, ao contrário do que eu temia, ouviu meu relato com atenção, animando-me, mesmo, a prosseguir na investigação, mas, segundo entendi, como um projeto secundário.

Com pouco tempo, no entanto, o tema da vontade foi-se distanciando em minha preocupação, paradoxalmente, não de todo sem descoberta: ao contrário, com uma descoberta que justamente o desinteresse pelo tema parecia proporcionar: a de que a "vontade", pareceu-me então, com outros autores (p. ex., Lewin Apud Koffka, 1935, Cap. 9º), não era exatamente o mesmo que motivação, como eu havia pensado, mas, por vezes, até o seu contrário: uma espécie de esforço de autodomínio, de mobilização moral contra si próprio de que a gente lança mão como um último recurso desesperado para persistir nalguma tarefa precisamente quando a motivação intrínseca nos falece.

Tive de interromper minha pesquisa de setembro de 1960 a junho de 1961 para viajar aos Estados Unidos com esposa e filha. O objetivo da viagem era atender ao desejo de minha chefe no sentido de que eu cursasse, junto à Universidade de Kansas, em Lawrence, Kansas, então considerada reduto gestaltista, disciplinas de pós-graduação em psicologia experimental e preparar-me para, em minha volta, organizar um laboratório e encarregar-me da parte prática de uma disciplina com esse nome no Curso de Psicologia recém-criado em nossa Faculdade.

Sobrepondo-me moralmente, mas - hoje me parece - um tanto insensatamente, à tentação de realizar atividades no Departamento de Entomologia da Universidade de Kansas, limitei-me às tarefas a que fora destinado. As formigas, é certo, não desertaram minhas cogitações, tanto que consegui alguma bibliografia a seu respeito com o chefe daquele Departamento, o Prof. Charles D. Michener. Consegui, também, com a intermediação desse professor junto ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, a determinação taxonômica da espécie que eu vinha estudando, graças a espécimes que eu levara comigo. Um eminente gestaltista e cognitivista, o professor alemão Martin Scheerer, de quem fui aluno, chegou, poucos dias antes de sua morte, a entusiasmar-se com alguns de meus achados e dispor-se a orientar minha tese de doutorado a respeito.

Meu julgamento - certamente exagerado - a respeito da premência da Cadeira em minha volta, não me permitiu hesitar quanto ao regresso.

De volta ao Brasil, retomei imediatamente a investigação sobre as formigas, já então, decidido a transformá-la em tese de doutoramento. Uma conseqüência dessa atividade logo haveria, porém, de interromper minha ligação com o laboratório de psicologia experimental, que cheguei a montar para estudos de percepção e processos de aprendizagem, justamente um pouco depois que o Prof. Fred S. Keller, à revelia de minha chefe, houvesse sido trazido para a Faculdade pelo seu então diretor, o Prof. Paulo Sawaya, e houvesse também montado seu laboratório de análise experimental do comportamento, de influência enorme na futura psicologia do país. Em outubro de 1961, a Coordenação dos Professores do Curso de Psicologia, às voltas com a recusa do Prof. Keller de lecionar Psicologia Comparada, que ele alegava não ser de sua competência, resolveu incubir-me do ensino dessa disciplina por sugestão - pela qual jamais serei suficientemente grato - da Professora Maria de Lourdes de Oliveira Pavan, justamente por me saber estudando o comportamento de formigas.

Se exultei com a inesperada indicação foi porque representava a legitimação de meu tema preferido de pesquisa, além de que me dava o pretexto e a oportunidade por que tanto ansiava de estudar comportamento animal, embora implicando, também, no espaço de mais uns dois ou três anos, a transmissão de meu recém-montado laboratório de psicologia experimental a colegas. Já em 1962 lecionei, pela primeira vez, Psicologia Comparada, incluindo tanto a contribuição de psicólogos comparados como a de etólogos. E, em 25 de março de 1963, solicitei ao então diretor da Faculdade, Professor Mário Guimarães Ferri, verba para a construção, por um técnico ligado ao Instituto Biológico da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, de um sauveiro in vitro, a fim de ser usado na demonstração e observação de comportamentos instintivos e sociais complexos, conjugadamente com excursões ao campo, pelos alunos da nova disciplina. Esse formigueiro foi, infelizmente, tão mal construído, que me proporcionou, e a alguns de meus alunos na época mais chegados, como Luis Octávio de Seixas Queiroz, Cesar Ades e Arno Engelmann, inúmeros e nada leves problemas de manutenção (por vezes, encontrávamos, já na porta do laboratório, no prédio da Alameda Glette, a mais de uma dezena de metros do sauveiro, uma populosa trilha de formigas foragidas que tinham de ser recolhidas). De outro lado, esse sauveiro seria a origem do futuro laboratório de Psicologia Comparada que, com a mudança da Cadeira para a Cidade Universitária, e com meu doutoramento em Psicologia, viria a ser o talvez primeiro núcleo de ensino e formação pós-graduada em etologia e comportamento animal em nosso meio, se não na América Latina.

Revendo o caminho que segui em minha investigação do comportamento das formigas, penso hoje que não poderia ter procedido, do ponto de vista científico, mais acertadamente, embora, do ponto de vista de meu prestígio pessoal, de modo mais infortunado. É que tomei, nessa investigação, um caminho divergente ao que foi tomado nos Estados Unidos e na Europa mais ou menos no mesmo tempo (Cf. Cunha, 1980, "Posfácio"). Lá, fenômenos como os por mim estudados se tornaram conhecidos - a meu ver, inapropriadamente - como "reações de alarme", e foram atribuídos, graças à teoria dos liberadores sociais dos etólogos (Cf. Tinbergen, 1953), à ação de "feromônios" (substâncias químicas lançadas pelos indivíduos de determinadas espécies sociais - particularmente, espécies de formigas - no seu ambiente externo).

Diferentemente, fixei-me, primeiro, em uma tentativa de determinar os estímulos envolvidos nas reações das formigas, bem como as condições de sua eficácia. Em conseqüência, fui logo capaz de estabelecer experimentalmente que o feromônio, posto que atuante em certas condições, não era nem necessário nem suficiente para provocar as reações ditas "de alarme". Não era necessário porque as perturbações em causa podiam ser despertadas por muitos outros estímulos, inclusive fora da ordem dos chamados liberadores sociais. E não era suficiente, porque essas perturbações podiam, em certas condições, não surgir onde o feromônio estava indubitavelmente presente e atuante, como, por exemplo, quando o esmagamento de formigas, utilizado como alteração experimental e fonte de feromônios, era feito sobre um ponto em apenas um de dois ramos de uma trilha duplamente bifurcada. Havendo, portanto, no ambiente, um outro ramo de trilha livre e mnemicamente disponível às formigas, estas se transpunham para ele diretamente, sem erro de orientação e, mais, sem "reações de alarme" (Cf. Cunha, 1980, Cap. 1º, 2º e 4º).

Quais eram, então, os estímulos essencialmente conectados com as modificações de comportamento das formigas? Minha análise mostrou que a pergunta era, até, irrelevante, já que eles se mostravam praticamente infinitos em número, e abrangiam todas as modalidades de estimulação a que as formigas eram sensíveis. E mostrou, ainda, que a condição sine qua non para que esses estímulos provocassem as modificações de comportamento em causa era a de que incidissem em um ambiente ou partes de um ambiente com respeito ao qual as formigas estavam até então comportando-se de modo habitual ou prolongado, anteriormente. Para explicar os fenômenos, portanto, me pareceu (Cunha, 1980, p.106) necessário conceber o que decorreria para as formigas dessa exposição repetida ou prolongada. Influenciado pelo meu conhecimento da literatura psicológica, limitei-me, então, a calcar minha concepção desse evento central sobre a teoria que Tolman (1932, 1951) havia elaborado para os resultados de uma investigação que tinha vários pontos de contato com a minha e que dizia respeito ao comportamento do rato branco em labirintos. Essa concepção, apresentada por Tolman, continha a essência do que veio a ser conhecido como o behaviorismo propositivo e cognitivo, ou, também, signo-gestáltico, oferecido como uma alternativa importante ao behaviorismo de estímulo e resposta de Watson, Hull, Spence e outros (Cf. Hilgard & Marquis, 1958; Koch, 1959).

Segundo a concepção tolmaniana, o animal, ao ser confrontado com uma dada situação, sofreria modificações internas que o levariam a esperá-la e a preparar-se para agir diante dela posteriormente. A modificação de comportamento apresentada pelo animal diante de uma alteração de seu ambiente familiar indicaria, assim, que o animal não antecipava essa alteração, e não estava preparado para sua ocorrência. Na teoria de Tolman, tal representação central era denominada "expectativa cognitiva", e os aspectos esperados do meio, "discriminanda", "manipulanda" e "expectativas de meio-a-fim", conforme se referissem, respectivamente, a aspectos do meio esperados de natureza sensorial, motora ou de relações seqüenciais de estímulos no tempo ou no espaço. Essas expectativas seriam, ainda, conforme a sua origem, perceptuais, mnemônicas ou inferenciais.

O fato de eu dizer, mais acima, que minha explicação foi calcada sobre a de Tolman vem de que, influído também, e grandemente, pela teoria gestáltica, bem como por outras concepções correntes na época, procedi a uma série de adaptações, nem sempre felizes, na teoria tolmaniana, para poder aplicá-la aos fatos obtidos.

Acredito hoje que a adesão referida acima teve efeitos contraditórios. Por uns pontos - ao levar-me a explicitar as expectativas cognitivas que estariam implícitas nos vários experimentos e observações da pesquisa - me fez ganhar consciência sobre possíveis determinantes do comportamento, sobretudo no ambiente prévio das formigas, que ainda não tinham sido objeto de minha atenção até o momento. No entanto, por outros pontos essa adesão não me trouxe um progresso real, quando não me deu apenas uma impressão ilusória de progresso. De fato, no tocante a descobrir novas relações entre os fatos e promover descobertas, mais aplicáveis mesmo se revelaram certos conceitos gestálticos, como as leis da organização perceptual em figura e fundo, a doutrina da reação emocional como dependente do "caráter fisionômico" dos objetos de um campo perceptual em sua relação com as características da ação ( ou propósito) em desenvolvimento (Koffka, 1928, 1935). A rigor, parece-me hoje, ainda, em retrospectiva, que a maior parte das descobertas de minha pesquisa decorreram menos da interpretação geral adotada que da orientação naturalística e da intuição originais que presidiram a investigação. Julgando meu procedimento hoje, acredito que minha adesão à teoria cognitiva de Tolman, posto que compreensível na época, não fornece uma explicação aceitável dos fatos.

Efetivamente, a explicação tolmaniana não esclarece por que antecipar ou esperar uma dada situação é importante para o comportamento que será posteriormente apresentado. A teoria simplesmente nos diz que tal comportamento supõe as expectativas correspondentes, como, aliás, podemos experimentar quando agimos conscientemente. A vista de um grampeador a que estendemos a mão nos faz, por exemplo, antecipar um frio em contato com a mão logo mais, assim como um objeto de certo peso. A experiência poderá revelar-nos que, se o grampeador tiver sido trocado sem que o soubéssemos por um objeto de isopor de cor e forma semelhantes, o soltaremos abruptamente assim que o pegarmos e levantarmos. De fato, não antecipávamos tal objeto, nem nos preparávamos para ele, mas como a antecipação-preparação produziu o comportamento que foi encontrado? A teoria não o mostra, conforme já o apontara Guthrie (1935). De outro lado, a teoria explica demasiado, ao fazer supor que a troca de uma provisão por outra mais dileta provocará uma ruptura no comportamento das formigas, o que, na verdade, não acontece.

Ademais, a teoria de Tolman, tal como a vejo atualmente, faz supor, freqüentemente, por assim dizer, um maquinário muito complicado por trás do comportamento, desnecessariamente. Ela parece tirar sua plausibilidade do fato de que recorre à fenomenologia que acompanha os atos conscientemente realizados pelo ser humano e de aplicá-la analogicamente aos animais. O defeito desse procedimento está menos na analogia antropomórfica - a mecanomórfica não é menos analogia, e não mais justificável - mas no fato de que os fenômenos vividos internamente devem também, como o comportamento, ser explicados: um ponto em que concordo com Skinner (1969). O conceito de "expectativa", por exemplo, me parece poder ser entendido como se referindo a uma reintegração (por exemplo, de um gol a ser marcado numa partida de futebol) na iminência de ser verificada ou infirmada, e que cresce ou diminui na medida em que a série de reintegrações (ver mais adiante sobre esse conceito) a que pertence vai sendo confirmada ou não confirmada (digamos, com o assédio ou, então, afrouxamento do assédio ao baluarte adversário).

Já no primeiro semestre de 1967, por haver terminado a redação de minha tese e dever defendê-la dentro de meses, fui levado a assumir um lugar no recém-criado Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social e Experimental, na Faculdade. A primeira disciplina que lecionei nesse curso foi "Instinto", seguida logo mais de "Estudo Naturalístico do Comportamento Animal" e de "Sociedades Animais". Já na Cidade Universitária, consegui montar, em torno de um sauveiro artificial, um laboratório maior e mais equipado, inclusive com estereomicroscópios e instrumentos de iluminação para a pesquisa e o treino prático na observação do comportamento segundo princípios etológicos, mas utilizando, agora, peixes, aranhas e pequenos sauveiros iniciais estabelecidos em cilindros de vidro segundo nova técnica por mim desenvolvida e aprimorada com a ajuda de Fernando J. Leite Ribeiro, utilizando içás capturadas no vôo nupcial. Comecei, então, a orientar pesquisas de bolsistas com o patrocínio valioso da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pesquisas essas que originariam as primeiras dissertações de Mestrado e teses de Doutorado especificamente de comportamento animal em nossa Universidade.

Ao mesmo tempo, julgando-me, pela pesquisa realizada, na posse de dados que constituíam uma dificuldade insuperável para o behaviorismo, procurei interessar os colegas que ingressavam2 na Cadeira (então já se transformando em Departamento) por essa época a examiná-los. É que eles haviam sido treinados no já citado laboratório do Prof. Fred S. Keller em Análise Experimental do Comportamento, um movimento que, preservando a noção de laço associativo S-R dentro de uma concepção mais flexível e sofisticada de estímulo, parecia mais capaz que o antigo behaviorismo de lidar com situações complexas. Não consegui que os examinassem, certamente porque tinham suas próprias prioridades de estudo. No entanto, intrigou-me a confiança, senão mesmo a certeza, que, a priori, esses colegas, assim como o Prof. Shermann, então substituindo o Prof. Keller, demonstravam nas idéias do movimento que abraçavam quanto a poder explicá-los satisfatoriamente.

O que eu pretendia se tornasse um desafio para eles acabou, por aí, tornando-se um desafio para mim mesmo. Solicitei a alguns dentre eles que me indicassem, então, o que de melhor consideravam existir dentro do movimento da análise experimental do comportamento e que eu devesse ler, e pus-me a estudar as obras indicadas.

Concluída a leitura, pus-me a verificar se poderia, com as novas idéias obtidas, reinterpretar satisfatoriamente minhas descobertas com as formigas. Para minha surpresa, a reinterpretação em causa se verificou possível: as modificações de comportamento, antes atribuídas a uma discrepância, provocada por uma súbita alteração na situação, entre o que as formigas haviam-se acostumado a esperar e o que efetivamente passavam a encontrar, podiam ser encaradas como devidas à supressão ou alteração das propriedades discriminativas e reforçadoras condicionadas dos estímulos encontrados pela formiga no trajeto ou no corpo das companheiras. Tais propriedades, por sua vez, resultariam de processos anteriores de condicionamento do comportamento graças ao fortalecimento operante das respostas das formigas provido pelos objetos reforçadores terminais do trajeto, ou seja, o ninho e provisões.

Essa reinterpretação se verificava, de outro lado, mais econômica que a adotada na primeira formulação da tese, pela simplicidade dos conceitos explicativos usados e também porque, sendo vasada na linguagem do positivismo e do mecanicismo, dispensava defesas contra as acusações de mentalismo e antropomorfismo comumente feitas às interpretações cognitivistas aplicadas a animais.

Julgando essa maior economia da mais nova interpretação uma superioridade inegável, e sem esperar para ver se ela se acompanharia, também, de vantagens na descoberta de novos fatos, mas, antes, dando-a por certa, pus-me a reformular a minha tese, "não com remorso ou pesar, mas, ao contrário, com a ufania dos neófitos e convertidos" (Cunha, 1980, p.378). Novamente, portanto, me desencaminhei, e, pela segunda vez, pelo mesmo motivo: colher, por assim dizer, numa bandeja em que me era oferecida, uma interpretação achada já pronta, e não pelo caminho penoso de examinar judiciosamente os fatos obtidos na pesquisa para formular, a partir desse exame mesmo, a interpretação que requeriam.

Na verdade, creio que não era tão surpreendente que essa outra interpretação parecesse explicar os fatos tão bem quanto a primeira interpretação adotada, já que, no fundo, apenas substitui a suposição de um mundo não observado por um outro do mesmo gênero: associações de eventos internos devidos a eventos passados, os quais apenas parecem mais objetivos que os supostos na primeira interpretação porque, conforme o apontou Bolles (1972), o "estímulo" e a "resposta" internos supostos no laço associativo preservam uma maior semelhança sintática, mas não semântica, com os estímulos e respostas realmente observados do que o fazem os conceitos cognitivos.

Embora essa nova interpretação me levasse, nos dois ou três anos em que adotada, a apurar a descrição dos fatos observados, não resultou, ao contrário do que eu esperava, em aumento de produtividade: ao contrário, "fez-me a tal ponto perder contato com a formiga e sua psicologia que minha criatividade anterior, exceto por alguns achados novos de pouca relevância, praticamente cessou" (Cunha, 1980, p.378). Com efeito, a maior parte de minhas observações girou, então, sobre a conseqüência de fazer variar a quantidade e qualidade de provisão sobre o comportamento das formigas numa trilha. Por outro lado, enquanto aderi a essa interpretação, não fui capaz de perceber alguns pontos importantes dos fatos aos quais seu desajuste era gritante (Cf. Cunha, 1985, 1989).

A meu ver, várias razões contribuem para o fracasso da "análise experimental do comportamento" fundada por Skinner em promover a nova e fundamental psicologia científica que seus partidários esperavam que ela viesse a ser.

Uma delas, é a falta de uma concepção adequada do comportamento, o que a impede de lidar efetivamente com as operações de demanda (em meus termos: comportamentos) que têm fases internas ou que são internas, subjetivas3.

Outra é uma concepção inadequada da história como podendo ser feita apenas pelos eventos dispostos desde o exterior do organismo e sem a participação deste (daí, a negligência tanto dos mecanismos etológicos como da historialidade4, o papel em definir sua própria situação, do organismo), ou com uma participação que o reduz a mero objeto influenciado.

Outra é a visão simplista da causação como envolvendo apenas os efeitos da estimulação.

Talvez como resultado de tudo isso, um grande defeito, se não o maior, do movimento, é que tende a fazer o estudioso considerar que já não é mais preciso investigar para efetuar descobertas. Sob sua influência, o cientista tende a pensar que a descoberta realmente importante - a das contingências de reforçamento - já foi feita, e que, em psicologia, se trata apenas de aplicá-la e de descobrir, quando muito, pormenores ou especificações da "grande lei" descoberta, o que não é verdade.

As descobertas realmente importantes que me sucederam desde então ocorreram antes pela aplicação da observação naturalística - adotada, já, desde o começo da minha investigação sobre as formigas - ao comportamento de vários outros artrópodes: outras espécies de formigas, mantódeos, homópteros, vespas, aranhas etc. Foi sobretudo nesses anos, de 1968 em diante, que adquiri alguma habilidade na arte de comparar, identificar, descrever e analisar causalmente os padrões de comportamento, e transmiti-la, através de um curso pós-graduado de observação em nosso laboratório de psicologia comparada, a vários de meus alunos, muitos deles recrutados, então, já também em outras instituições dentro e fora da Universidade de São Paulo.

Com o tempo, grande parte de meus dados e reflexões acerca de vários assuntos de pesquisa etológica foi originando projetos de investigação mais específicos de meus orientandos e se foi, por fim, incorporando às teses por eles produzidas. Curiosamente, em cerca de vinte anos dedicados à orientação de trabalhos de investigação, apenas os dados de minha pesquisa favorita, sobre as perturbações das formigas, permaneceram, por assim dizer, incomunicáveis com as pesquisas de meus alunos, não obstante figurassem vez por outra nalguma disciplina de pós-graduação. A razão para isso, creio, foi não só minha insatisfação com as duas interpretações já adotadas para esses dados como também o fato de eu não encontrar, até por volta de 1983, dentro da etologia e da psicologia tradicionais, nenhuma interpretação alternativa que pudesse substituí-las com vantagem. Na verdade, dir-se-ia até que esses dados e o conjunto da etologia conflitavam a ponto de parecerem pertencentes a domínios para sempre separados e inconciliáveis.

No entanto, como entender que os fatos de natureza etológica e os de natureza psicológica podiam, no caso de certas espécies, ser encontrados no mesmo animal individual? Esse impasse me arrastou, por uns dois ou três anos, a uma crise intelectual com reflexos ou nuances, por vezes existenciais.

De fato, a qual desses fatos deveria eu atribuir realidade e a qual o caráter de ilusório? Ou haveria, melhor, alguma concepção capaz de acomodá-los simultaneamente? Eu não conseguiria imaginar qual poderia ser ela.

Foi só em 1977 que comecei a atinar com um começo de solução para o impasse. Ocorreu-me que, para estabelecer com precisão as diferenças entre o comportamento etológico geralmente admitido e o comportamento da forma que eu havia encontrado na pesquisa das formigas eu deveria observar um sistema orgânico que exibisse, inegavelmente, comportamento, mas de que não houvesse sentido dizer que possuía psicologia. Lembrei-me de que tal condição poderia ser preenchida por um sistema orgânico parcial que exibisse comportamento, como seria o caso com um coração mantido a pulsar em preparação fisiológica, ou com o rabo recém-destacado, por autotonia, de lagartixas. Observei, então, atentamente o rabo autotomizado de algumas lagartixas caseiras da espécie Hemidactylus mabouia Moreau de Jonnes, 1818, popularmente conhecida como osga, com vistas a verificar como era o seu comportamento, inclusive estimulando-o no decorrer do processo.

Tal observação mostrou que o rabo autotomizado e ainda vivo da osga não só respondia de modos variados, qualitativa e intensivamente, a estímulos, mas que também o fazia espontaneamente em seu comportamento e, até, de modo propositado. Isso porque usava as suas diversas partes - base, meio, e ápice - alternativamente e de modo aleatório para criar uma impressão de variabilidade que o fazia parecer um animal "vivo" e completo, enquanto a parte realmente importante da lagartixa se retirava sorrateiramente da cena. Minha análise revelou que a diferença básica entre esse sistema orgânico parcial e o organismo como um todo de que se costuma dizer que tem psicologia é que o primeiro não era capaz de modificar sua estratégia de ação de acordo com a estimulação recebida, ou seja, de se beneficiar de sua experiência individual para estabelecer novos objetivos, como, por exemplo, o de parecer morto e evitar assim que eu continuasse a estimulá-lo.

Esses achados foram a base para minha proposição e começo de demonstração segundo as quais o comportamento podia ser organizado de dois modos radicalmente diferentes: de um modo estrutural ou arquitetônico (mediado por disposições anátomo-fisiológicas pré-programadas filogeneticamente), como era o caso com os reflexos e padrões fixos de ação; e de um modo funcional (mediado por efeitos de experiência individual) (Cunha, 1981).

Uma importante diferença entre os dois modos de organização está na forma de relacionamento do organismo com os estímulos do ambiente. No modo de organização estrutural certos estímulos eliciam ou desencadeiam uma ação reflexa ou um padrão fixo ao atuarem sobre mecanismos neurofisiológicos de resposta programados filogeneticamente, desde que assim o favoreça o estado momentâneo desses mecanismos. Tais reações foram ditas "balísticas" por Bindra pelo fato de não serem guiadas continuamente, depois de disparadas, pelos estímulos do meio ambiente. Mas, e no modo de organização funcional, como é o relacionamento da ação com os estímulos do meio? Dizer que é mediada pela experiência individual, apenas, sem mostrar como, não basta. De outro lado, é preciso mostrar que ele também implica um mecanismo programado filogeneticamente.

Um reexame mais detido dos fatos obtidos em minha investigação sobre as formigas, feito a partir de 1984, me permitiu indicar como se dava esse relacionamento e, inclusive, formular, com base nessa indicação, novos princípios interpretativos em substituição aos até então empregados no campo da psicologia. Permitiu-me, também, reinterpretar as relações entre esta ciência e a etologia (Cf. Cunha, 1985, 1986, 1989). É o que exporei em seguida.

Ao decidir estudar o comportamento de algum animal, o estudioso já o encontra, invariavelmente, engajado em alguma atividade. Parece-me óbvio, assim, que não precisamos de uma explicação para o fato da atividade, mas, sim, para a mudança de atividade e para a orientação que ela toma. Hebb (1949) já dizia que a noção de motivação era dispensável para explicar porque um organismo é ativo - ele é ativo naturalmente - mas útil para explicar a direção dessa atividade. Concordo com Hebb e apenas acrescento que a noção de causa é correlata à de mudança. Não se precisa da noção de causa para explicar o que não muda: uma atividade permanece como é (em seu estado e orientação) em virtude de inércia, ou seja, das causas e condições que a fazem surgir como mudança de outra atividade (Cf. Cunha, 1980, p.22).

Minhas observações mostravam que qualquer alteração que eu fizesse no ambiente normal em que as formigas vinham se comportando encontrava esses insetos empenhados em alguma atividade: provisionamento da colônia, construção ou reconstrução do formigueiro, remoção de formas imaturas da colônia de um local para outro etc. Acredito que se pode supor que cada atividade constitui uma forma de processo de concretização de demanda e que, sendo um fato que os organismos animais estão sempre em atividade, mesmo que essa atividade seja simplesmente "descansar", "dormir" ou "não fazer nada", eles estão, também, sempre em processo de concretização de uma ou mais demandas. Pode-se, freqüentemente, fazer uma atividade dar lugar a outra, e pode-se freqüentemente constatar que certas atividades são executadas em prioridade a outras alterando-se o ambiente em que uma determinada atividade se processa. Assim, por exemplo, desmanchando-se parcialmente o formigueiro geralmente se provoca a interrupção de atividades de provisionamento da colônia e o aparecimento, em substituição, de atividades de reparação do ninho; a exposição de pupas, larvas e ovos geralmente interrompe tanto o provisionamento como a reconstrução do ninho e leva ao recolhimento dessas formas imaturas ao ninho. Etc.

Num experimento típico, as formigas vinham-se, primeiramente, locomovendo entre um ninho e um alimento, e vice-versa, engajadas no provisionamento da colônia, quando uma alteração qualquer - a colocação de um objeto, a incidência de um foco de luz ou de uma sombra, a passagem do dedo ou o esmagamento de uma ou mais companheiras - era praticada num determinado ponto da trilha. Tipicamente, à alteração se seguiam modificações de comportamento (basicamente, na forma de escape ou exploração, forma essa que não é meu propósito considerar aqui) por parte das formigas que se encontravam nas imediações. Com a passagem do tempo, e se as formigas permanecessem na trilha, ainda que passando pela região alterada com um desvio em sua trajetória, as modificações de comportamento iam amainando progressivamente até que, por fim, cessavam. No entanto, outras observações mostravam que essa alteração já não podia ser suprimida daí por diante sem que novas modificações de comportamento, semelhantes às primeiras, tornassem a ocorrer, para depois, novamente, também amainarem, por sua vez e, por fim, cessarem.

Tomados em seu conjunto, esses fatos revelam o fenômeno que denominei (Cunha, 1985, 1986) ajustamento funcional, regulativo ou psicológico do organismo a seus ambientes. De fato, parece-me que é somente porque um organismo se ajusta à presença de alguma coisa existente fora dele - no sentido de que sofre mudanças relativamente a essa coisa - que ele pode tanto deixar de reagir com modificações de comportamento à continuada presença dela como também reagir à sua ausência ou supressão, posteriormente. Esse ajustamento é semelhante ao que se nota noutros domínios da biologia, por exemplo, quando um animal de região temperada adquire pelagem protetora contra o frio antes da chegada do inverno. Se o inverno se revelar anomalamente quente, o animal se encontrará inadaptado para ele por causa de sua pelagem. Ambas as formas de ajustamento, estrutural e funcional, são fenômenos que afetarão o relacionamento posterior do animal com o seu ambiente.

Se o comportamento perturbado amaina com a repetição de uma alteração no ambiente, é que cada alteração modifica o organismo de tal maneira que cada nova alteração se tornará menor, em seu efeito, até um ponto em que uma alteração deixa de ser alteração. O mecanismo de ajustamento terá, então, convertido uma mudança dentro de uma série de mudanças em não-mudança. Uma não-mudança, agora, é que poderá vir a constituir uma mudança. Ora, para que isso aconteça, é preciso que o organismo reaja, não diretamente à interferência no ambiente, mas à relação de semelhança e de diferença que ela guarda com a situação prevalecente até então. A condição para que ocorra uma modificação de comportamento será, assim, uma alteração em algum aspecto do ambiente ao qual o organismo está ajustado, e não, simplesmente, uma alteração no ambiente. Sendo assim, é claro que esse organismo deixa de ser simplesmente acionado desde o exterior por estímulos do ambiente: ele passa, por sua exposição prévia a ambientes diferentes e pelas marcas por estes deixadas, também a influir no modo como poderá ser afetado pelos estímulos do ambiente posteriormente. Ambiente e organismo psicológico - isto é, organismo de comportamento afetável por sua experiência individual (nem todo organismo o é) - deixarão, por aí, de ser entidades independentes e atuantes desde fora uma sobre a outra, para constituírem um sistema de transformações solidárias. Não se poderá mais determinar o efeito de um ambiente sobre tal organismo só pelas características intrínsecas desse ambiente ou só pelas propriedades de construção que esse organismo tem em comum com os demais membros de sua espécie. A pergunta "que é tal organismo?" deverá passar a ser respondida em parte assim: "num sentido, ele é o que dele fizeram seus ambientes no passado." E a pergunta "que é este particular ambiente para ele?" deve ser em parte respondida assim: "num sentido, aquilo em que, por sua história, o organismo o transformou." Isto é patente quando se observam, por exemplo, um indígena e um citadino, primeiro, em seus ambientes característicos, e depois, cada qual no ambiente do outro. Um organismo psicológico é, não só histórico, no sentido de determinado por condições antecedentes, como também o que se poderia dizer, tomando um termo emprestado a Heidegger (1952), "historial", no sentido de instituidor, por seu passado, de suas condições.

O ajustamento é, por assim dizer, um desfazimento do efeito alterador de comportamento de uma alteração do ambiente. No entanto, não é só um ajustamento o que acontece no encontro de um organismo psicológico com um ambiente. Ocorre que o organismo também será marcado em seus próprios termos com as marcas específicas desse ambiente, que se lhe tornará, então, daí por diante, ad-inerente. Um exemplo da presença de um ambiente ad-inerente em um comportamento posterior me parece, nesta conexão, oportuno.

Utilizando um alimento a certa distância de um ninho de N. fulva Mayr, 1862, estabeleci uma trilha. Por um dos experimentos que fiz, depois de formada a trilha, passei a soprar sobre as formigas de modo o mais possível constante. Registrei, para fins de análise, se se verificavam as seguintes modificações no comportamento das formigas: se pausavam e, em caso afirmativo, se prosseguiam ou se retornavam em sua marcha. Os resultados foram analisados em função dos seguintes parâmetros: a distância a que a formiga soprada estava do ninho ou da provisão, a direção da marcha e o tempo transcorrido desde o começo do experimento. Os resultados mostraram que: I) praticamente apenas as formigas que estavam indo para a provisão (57% dentre elas) retornavam, embora todas pausassem. As que se dirigiam para o ninho pausavam brevemente e, em sua grande maioria (98,6%) prosseguiam em sua marcha; II) o retorno sob o sopro era tanto mais tendente a ocorrer quanto menos a formiga já havia andado numa dada direção e III) os primeiros sopros tinham um efeito maior em fazer as formigas retornarem do que os últimos para cada ponto de operação. Igualmente, a incidência de retornos era maior para os pontos da trilha estimulados mais cedo do que para os pontos estimulados mais tarde.

Esses resultados revelaram que o mesmo sopro, fisicamente considerado, não era um estímulo único nem para a mesma formiga nem para formigas diferentes, pois as afetava diferentemente em função de sua posição e direção com respeito aos pólos (ninho e alimento) do deslocamento. Na verdade, um sopro nem mesmo era, a rigor, um estímulo, no sentido de correlato necessário de uma resposta, porque não era bem a ele que as formigas reagiam, mas sim à alteração de uma situação que revelava ter elementos que nem sequer se podia dizer que fossem estimulantes no momento da reação. De fato, esse era o caso de "direção", "distância" e, também, muitas vezes, até do ninho e da provisão, os quais, freqüentemente, estavam muito afastados da formiga para poder estimulá-la. Cada formiga, também, como um sistema de resposta, era evidentemente uma entidade dinâmica, já que sua tendência de resposta variava de momento a momento conforme sua posição e orientação dentro da trilha. Todos esses aspectos que distinguiam a situação de comportamento da situação objetiva de estímulos eram, sem dúvida, trazidos para a situação pelo fato de que as formigas os haviam encontrado em seus comportamentos passados e eles se haviam de alguma forma ad-inerido a elas.

Essa será, então, uma importante diferença entre um sistema orgânico parcial como o rabo da osga e um sistema orgânico capaz de psicologia: este incorporará, em seus termos, os efeitos de seus ambientes prévios na forma de ajustamentos a alterações do meio interferentes com seus processos de concretização de demanda e, também, na forma de ambientes ad-inerentes, isto é, de ambientes que marcaram o organismo com suas marcas específicas nos termos de que esse organismo é, por sua complexidade (por exemplo, sensorial e mnêmica) capaz de ser marcado. Parece-me que é a isso, e às conseqüências disso, que se refere o conceito tradicional de "mente". O rabo recém-autotomizado da lagartixa está para o animal dotado de psicologia como um simples corpo vivo está para uma unidade corpo-mente, ou seja, corpo com ambientes passados passíveis de se tornarem presentes por ajustamento e ad-inerência.

De que modo o ajustamento a aspectos alterados de um ambiente faz com que esses aspectos deixem de provocar modificações de comportamento e passem ao mesmo tempo a ser essenciais para o restabelecimento do relacionamento anterior do organismo para com seu meio, na forma como era antes da alteração?

Pelos experimentos feitos se vê que o fato de as formigas se tornarem ajustadas a uma alteração no seu ambiente as torna, igualmente, desajustadas para a ausência dessa alteração. Ora, que é estar ajustado à presença de algo que, conforme se indicou, implica em estar desajustado para a ausência desse algo? É, na presença de uma parte inalterada do ambiente, estar preparado (ou pré-disparado) e regulado para a ocorrência desse algo, e agir para com esse algo antes mesmo de o haver encontrado (portanto, ainda em sua ausência) como se já estivesse presente e verificado. Esse fato de estar lançado, dada uma parte sensorialmente atuante do ambiente, para outra sua parte ainda não verificada presente, e acompanhante regular ou constante da primeira parte mencionada no passado, quando num processo de concretização de demanda, é o que entendo por inércia do comportamento. E esse fenômeno de retrazer à existência, dada uma parte sensorialmente verificada de um ambiente, outra parte desse ambiente ainda ausente (fenômeno esse possibilitado pelo ajustamento do organismo ao meio e da ad-inerência deste ao organismo) é o que denomino reintegração do ambiente de ajustamento.

Para perceber que as formigas realmente exibem esses outros fenômenos é preciso observar o que acontece quando já estão ajustadas a um dado ambiente que contém habitualmente determinada alteração, digamos, um objeto odorífero, quando esse objeto é subitamente retirado. Elas se comportam para com o ambiente exatamente como o faziam, até o ponto onde o objeto seria encontrado. Nesse ponto, elas interrompem seu caminhar e exibem modificações de comportamento (geralmente, pausa, agitação de antenas voltadas para o objeto e desvio de cerca de meio a um centímetro para fora da trilha). Um aspecto do ambiente anterior ausente está, portanto, nesse local, ligado à interrupção do comportamento. No entanto, não o estaria se o objeto nunca tivesse estado presente, anteriormente. Logo, não é ao objeto ou à sua ausência que as formigas reagem com modificações de comportamento, mas à discrepância que essa presença ou ausência criou com respeito a uma situação na qual as formigas vinham se comportando habitualmente, e a cujos aspectos já se haviam ajustado. Isso mostra que o comportamento até então não era eliciado (expulsado) ou desencadeado ponto por ponto pelos estímulos do ambiente presente, mas era um comportamento para com uma situação anterior que os estímulos da situação presente reintegravam e só enquanto a reintegravam. Pode-se até dizer que a congruência entre uma parcela de um ambiente presente com um ambiente passado constitui um estímulo-signo supra-específico ou até supra-filético para a liberação de um comportamento psicologicamente mediado relacionado a uma demanda dominante no organismo no momento considerado. Com efeito, parece-me razoável admitir, com Lorenz (1955), que nossa responsabilidade, ou a de nosso sistema nervoso central, como também a de outros animais, não é pela produção ou pelo desencadeamento da ação, mas a de mantê-la sob inibição até que um estímulo-signo apropriado seja apresentado, desde que o organismo esteja sob condições de motivação adequadas.

Olhado do ponto de vista dos estímulos atuantes sobre a organização anátomo-fisiológica do organismo no momento considerado, o comportamento psicologicamente mediado tem a aparência de gratuito e arbitrário. Isso é assim porque a função desses estímulos, conforme o mostra a análise realizada, não é eliciar o comportamento ponto por ponto, mas, ao contrário, ir reintegrando sucessivamente as partes de um ambiente passado que, libertando o comportamento da ação dos estímulos presentes, vai guiando ou monitorando o organismo passo a passo in advance aos estímulos apresentados, até um objetivo demandado. A função destes últimos estímulos é, pois, vindos como vêm após o comportamento, oferecer verificação e apoio ao organismo que se pré-lança, soltando-se da inibição em que se vinha mantendo, a aspectos reintegrados sucessivos de seus ambientes passados. Na medida em que a situação passada é preditiva da situação presente em sua totalidade, será também de valor preditivo do futuro ainda não encontrado, e o uso do passado reintegrado constituirá um importante recurso adaptativo, adicional aos do reflexo e do padrão fixo de ação, posto a serviço da sobrevivência do organismo que acaso o tenha evolvido em sua filogênese.

Será este comportamento psicologicamente mediado - que, conforme se viu, difere do padrão fixo e do reflexo pela forma como se relaciona com os estímulos presentes no ambiente, - ele próprio, em sua constituição ou forma, um comportamento diferente desses outros comportamentos? Parece-me que não. Os elementos motores do comportamento psicologicamente mediado são os mesmos dos demais comportamentos. Andar, comer, prender com as mandíbulas, para uma formiga, são formas de ação determinadas pela construção anátomo-fisiológica do animal. Parece-me que a determinação psicológica não se faz alterando a forma do padrão motor, mas, sim, influindo na orientação e na ocasião em que ele é realizado. Assim, por exemplo, há uma clara preferência das formigas por rotas habituais e por rotas curtas relativamente a rotas infamiliares e rotas longas. Ao dirigir-se a provisões, o que há de psicológico no comportamento das formigas não está no modo de andar nem no modo de sugar o alimento, mas, digamos, no fato de orientar a marcha por um caminho demarcado (ao longo de paredes, por exemplo), ou de levar a marcha a ser feita quando a lâmpada que o observador costuma usar para observá-las está acesa num canto do ambiente, para onde elas, então, se dirigem.

Dos dois modos de organização do comportamento mencionados, a etologia tem reconhecido e, na verdade, até demonstrado admiravelmente, apenas o modo aqui denominado arquitetônico ou estrutural. Baerends (1959, 1972, 1976a, 1976b) denominou-o também "arquitetônico" ou ainda - de um modo que conflitará com a nomenclatura aqui escolhida - "funcional". Mas esta última terminologia foi por ele adotada apenas porque esse modo de organização era visto como ligado às funções biológicas (ingestiva, eliminativa, reprodutiva, de defesa etc.) da espécie, e não porque suposto influído pela experiência individual: muito pelo contrário.

A que se deve essa dificuldade de reconhecimento de um modo de organização mediado pela experiência individual pelos etólogos? Deve-se, a meu ver, ao fato de a etologia abrigar desnecessariamente em sua orientação atitudes adversas ao reconhecimento e ao estudo do papel determinante da experiência individual no comportamento. Essas atitudes decorreram de vieses de sua fase formativa, e foram fortalecidas, posteriormente, pelos êxitos pelos quais a etologia veio a ser reconhecida.

Efetivamente, leio em artigo de um dos mais eminentes promotores da etologia, Baerends (1975), mas também noutros textos de etólogos importantes (p. ex., Tinbergen, 1951; Fabricius, 1961; Eibl-Eibesfeldt, 1970) que a etologia nasceu na Europa aí por volta de 1930 como um ramo da zoologia em reação a uma psicologia que estava tentando incorporar fenômenos mentais ou subjetivos como fatores causais na explicação do comportamento animal. A etologia considerou tais tentativas (de psicólogos como Bierens de Haan, Buytendjik, McDougall, Russell etc.) como especulativas e antropomórficas, e em desacordo com as regras metodológicas (sic) seguidas nas ciências naturais. As tentativas de explicar os fenômenos deveriam fazer uso de dados que pudessem ser estabelecidos objetivamente e que, de preferência, também pudessem ser medidos. Também deveriam utilizar hipóteses que pudessem ser testadas mediante coleta de dados por meio de observações e experimentos. Esse conjunto de afirmações fortes e proscritivo de uma ordem determinada de fatores causais é uma das expressões que toma aquilo que denomino o viés da objetividade da etologia. Além de limitar as regiões da realidade onde se poderá procurar as causas dos fenômenos estudados, esse viés terá também outras conseqüências para a etologia: por exemplo, na escolha de seus aliados. É o que revela o trecho seguinte do artigo (Baerends, 1975, p.938): "Os etólogos compartilham essa atitude com os 'behavioristas'". Nenhuma outra corrente de psicologia é citada, certamente por não partilhar desse viés de objetividade. (Cf. Cunha, 1981, p.1585, acerca de como essa aliança contribuiu para reforçar o crédito do behaviorismo S-R em sua luta contra o behaviorismo cognitivo, em psicologia).

Na verdade, os etólogos chegam a admitir que fenômenos mentais, ou subjetivos, possam, com certas cautelas, ser considerados como podendo ter um papel central na determinação do comportamento humano; não o admitem, porém, no caso do animal, por não poderem se comunicar efetivamente com ele por meio da linguagem, como o podem com os seres humanos, e por "não se poder introspeccionar dentro do animal" (Tinbergen, 1971). O estranho é que os etólogos certamente não ignoram que há, nas ciências naturais, e até na etologia, outros meios além da observação direta do fenômeno para constatar a sua existência onde não pode ser observado, tanto que consideram perfeitas as explicações que admitem como fatores causais algo como "um sistema de 'drives' interligados" dentro do animal a "subjazer a organização manifesta do comportamento" (Baerends, 1976b).

Conjugando seu treino zoológico com seu anti-subjetivismo da origem, os etólogos tiveram êxito em desenvolver a investigação do comportamento justamente em áreas desprezadas e até negadas pelos psicólogos ao tempo em que a etologia fez sua aparição. Esse desenvolvimento abrangeu o estudo naturalístico e comparativo do comportamento de várias espécies animais, a descoberta do padrão fixo de ação, a demonstração, por Lorenz, das diferenças desse padrão com respeito ao reflexo - desmentindo, assim, o movimento anti-instinto que grassou na psicologia entre 1920 e 1940 - e, ainda, a formulação, por Lorenz, de um mecanismo de ciência natural (o "mecanismo desencadeador inato") para explicá-lo (Cf. Cunha, 1983).

Tal êxito da etologia parece dar mais peso às críticas que os etólogos têm feito até ao ramo da psicologia com o qual mostram maior afinidade, o behaviorismo, pelo que alegam ser uma pobreza de objetivos e estreiteza de pontos de vista. Segundo essas críticas (Baerends, 1975), os behavioristas dão ênfase excessiva ao estudo de processos de aprendizagem e empregam animais em suas investigações, não por interesse genuíno neles, mas por motivos éticos ou técnicos, ao não poderem empregar diretamente seres humanos em suas experimentações. A etologia, ao contrário, teria interesse genuíno nos animais e nas suas relações com o ambiente, e, "como outros campos da biologia, levanta questões acerca da causação, da ontogênese, da função, no sentido de valor de sobrevivência, e da evolução do fenômeno estudado."

Realmente, como várias dessas afirmações dir-se-iam fundadas, me parece necessário reconhecer que a etologia, dada a maior amplitude de seu escopo e maior proporcionalidade de suas ênfases, em comparação com a psicologia, está hoje numa posição mais adequada que esta outra ciência, conquanto mais nova que ela, para reivindicar para si o direito de ser considerada como a ciência biológica mais geral do comportamento. No entanto, não virá ao menos uma parte dessa aparente altanaria dos etólogos para com a psicologia, ainda, de seu viés anti-psicológico de origem e da sua incapacidade para observar, graças a esse viés, suas próprias deficiências? De fato, como ciência biológica mais geral do comportamento, penso que a etologia requer a contribuição de várias outras disciplinas científicas. Entre estas, dada a demonstração contida no presente trabalho, de uma organização funcional do comportamento em adição à modalidade estrutural já reconhecida pelos etólogos, ela requer, como um de seus sub-domínios especiais, também a contribuição da psicologia, tanto animal como humana.

É tempo, conseqüentemente, de a etologia admitir que as críticas que dirige à psicologia científica atingem a própria etologia como um bumerangue, e que precisa vencer o "viés de objetividade" de sua fase formativa, que a tem levado, ainda hoje, desnecessariamente, a desprezar a determinação do comportamento por fatores de experiência individual, ou, como ela prefere, em tom pejorativo, fatores subjetivos ou mentais. Certamente é a permanência ainda hoje desse viés que a faz conceber o mental como se fosse um fantasma na máquina, e não como algo tão natural e tão trivial como memória ou registro de eventos do ambiente, que se encontra até nas coisas inertes como um arame que manifesta maior facilidade para se dobrar num ponto onde já tenha sido anteriormente dobrado.

Dizer que um fenômeno é mental, segundo entendo, é dizer que ele é relativo a uma memória individual. A psicologia é a ciência que diz respeito ao mental nesse sentido e, como tal, nada avessa à fisiologia: ao contrário, assim como a organização estrutural supõe uma herança da experiência da espécie, e uma fisiologia capaz de carregá-la e representá-la, o funcional também supõe uma fisiologia especialmente evolvida por certas espécies animais para lidar com a experiência individual, e, portanto, um mecanismo filogeneticamente pré-programado como o há para outras funções orgânicas. O comportamento, conforme penso, é sempre produto de memória: memória da espécie e, onde o animal também é psicológico - isto é, um organismo evolvido com recursos adicionais para lidar adaptativamente com sua experiência individual - também memória individual. As duas formas de organização de comportamento apontadas neste escrito, a estrutural e a funcional, são expressões dessas duas fontes de informação que determinam o comportamento. Cabe à etologia, vencendo os vieses de sua fase formativa, lidar igualmente com ambas para vir a tornar-se efetivamente uma ciência biológica completa do comportamento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Adaptação de texto originalmente publicado nos Anais do Encontro Anual de Etologia, 1990.
2 Sobretudo, Rodolfo Azzi, Maria Amélia Mattos, Dora S. Fix Ventura e, principalmente, Carolina Martuscelli Bori, de quem eu havia sido aluno na própria Cadeira, e que me proporcionou importante incentivo e orientação numa pesquisa (Cunha, 1967, inédito) que realizei sobre o teste de personalidade de Karen Machover, quando trabalhando no Departamento de Psicotécnica da Companhia Municipal de Transportes Coletivos.
3 Esse impedimento me parece conseqüência de um viés ambientalista e situacionista que leva o estudioso freqüentemente a conceber a realidade interna com as características que sua ótica teria preferido antes que com as características que ela na verdade tem. Não admira que, dessa forma, o estudioso muitas vezes se contradiga. Assim, Skinner (1969), por exemplo, ao lidar com o fato de que o ser humano se declara possuidor de pensamento, chegou ao ponto de considerar esse pensamento como comportamento tão diminuto e fraquinho que não pode ser observado desde o exterior. No entanto, a comunidade verbal, segundo esse autor, deve ser suficientemente perspicaz para prover o reforçamento necessário desse comportamento para poder levar o Sujeito a discriminá-lo em si próprio!
4 Na edição francesa de Heidegger (1967), Gilbert Kahn traduziu geschichtlich por "historial" quando o contexto induzia à significação "criador de história". Adotamos o mesmo critério para evitar o sentido determinístico de "historicidade".