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Pensando familias
Print version ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre Jul./Dec. 2020
ARTIGOS
Como é ser pai numa família monoparental masculina?
What is it like to be a father in a male single parent family?
Miriam Tachibana1, I ; Guilherme Goulart de Rezende2, I
I Universidade Federal de Uberlândia
RESUMO
Embora a maioria das famílias monoparentais seja feminina, vê-se um incremento significativo de homens que vêm ocupando o lugar de genitor exclusivo junto aos filhos. Assim, esse estudo objetivou investigar a experiência de homens de famílias monoparentais masculinas. Para tanto, quatro pais foram entrevistados individualmente, sendo que, após a realização de cada entrevista, foi redigida uma narrativa transferencial, pelo entrevistador, sobre aquele encontro, incluindo suas impressões contratransferenciais. O conjunto das quatro narrativas foi analisado psicanaliticamente, à luz da Teoria dos Campos de Herrmann, sendo identificados os campos “Na tradição”, “Segunda chance” e “No improviso”. Observou-se que os participantes apresentavam manifestações ancoradas no imaginário patriarcal, mas experienciavam, de modo improvisadamente organizado, a possibilidade de serem pais melhores do que já haviam sido ou do que já haviam tido. Vê-se que a configuração familiar do tipo monoparental revela-se, por excelência, como um campo de investigação que viabiliza reflexões sobre a parentalidade na contemporaneidade.
Palavras-chave: Paternidade, Parentalidade, Família.
ABSTRACT
Although the majority of single-parent families is female, there is an increase in men who have been taking the place of exclusive parent. Thus, this study aimed to investigate the experience of men from male single parent families. Therefore, four parents were interviewed individually. After each interview, a transferential narrative was written by the interviewer, about that meeting, including his countertransference feelings. The set of the four narratives was analyzed psychoanalytically, with the Theory of the Fields of Herrmann. It was identified the fields “In tradition”, “Second chance” and “In improvisation”. It was observed that the participants had manifestations anchored in the patriarchal imaginary, but they experienced, in an improvised organized way, the possibility of being better parents than they had been or had ever had. In conclusion, the family configuration of the single parent type reveals itself, by excellence, as a field of investigation for the development of reflections on parenting in contemporary times.
Keywords: Paternity, Parenting, Family.
A configuração familiar em que há apenas um dos genitores presentes, responsabilizando-se sozinho pelos cuidados dos filhos, sempre existiu, devido a motivos variados, dentre os quais a gestação fora do matrimônio, viuvez, prisão, ida à guerra, emigração de apenas um dos genitores, separação conjugal, dentre outros (Hernández, 2013). Mas, apesar de não ser uma organização familiar recente, ela nos desperta a impressão de se tratar de um fenômeno da contemporaneidade. Isso pode ocorrer porque, até a recente instituição do divórcio, não havia tantos casos de famílias sendo conduzidas por apenas um dos genitores, tanto que, na atualidade, o divórcio tem sido o principal motivo para esse tipo de configuração familiar, em detrimento da viuvez, como ocorria outrora (Denardi & Bottoli, 2017).
Além disso, até há algumas décadas, esse tipo específico de dinâmica familiar não tinha qualquer visibilidade, não existindo sequer um termo específico para referir-se a ela (Hernández, 2013). Vale destacar, aliás, que, na literatura especializada, ainda não há um consenso acerca de qual seria o melhor termo para fazer alusão a esse grupo familiar. Vemos que o termo adotado, na maioria dos estudos (e por isso também assumido na presente investigação), tem sido “família monoparental”, que, como remonta Sousa (2008), foi cunhado na França, na década de 80, em um estudo do Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos. Tal terminologia faz referência e contraposição à “família biparental”, em que os dois genitores são juntos responsáveis pelos cuidados dos filhos (Hernández, 2013). Mas, em outros trabalhos sobre família monoparental, notamos que tem sido usado o termo “matrifocal” ou “patrifocal” (a depender se o genitor é a mãe ou o pai), como no caso do estudo de Abade e Romanelli (2018), ou, ainda, mononuclear (Isotton & Falcke, 2014).
Brullet et al. (2010), que adotam o termo “monoparentalidade”, entendem que, mesmo mediante a adoção dessa terminologia, seria necessário especificar se se trata de uma “família monoparental” ou de uma “casa monoparental”, para fazer distinção entre os casos em que só há efetivamente um genitor responsável daqueles em que, na verdade, a família é biparental, mas está dividida em duas casas, com um dos genitores apenas não residindo com os filhos. Vê-se, assim, que a presença/ausência do outro genitor configura-se como um outro ponto de discussão no bojo da literatura especializada. Notamos que há tanto a compreensão de que só pode ser considerada família monoparental quando há ausência total de um dos genitores quanto a concepção de que família monoparental seria toda família pós-divórcio até que ela transite, caso isso ocorra, para um modelo de família reconstituída (Isotton & Falcke, 2014).
Apesar da falta de consenso terminológico, bem como da dificuldade em classificar o que de fato corresponderia à uma família monoparental, vemos que essa organização familiar vem ganhando cada vez mais notoriedade, ao longo das décadas. Em 1988, ela foi reconhecida pela Constituição Federal Brasileira (Ried, 2011) e, desde então, vem sendo introduzida nas estatísticas do censo, tem suscitado a criação de subsídios específicos, tem ganhado notoriedade midiática... (Saramanch et al., 2016). Há o entendimento de que as conquistas não se restringiriam apenas às famílias monoparentais propriamente ditas, estendendo-se à sociedade de maneira geral, uma vez que nos desperta para o fato de que, no que diz respeito à família, não existe homogeneidade (Hernández, 2013). Em outras palavras, a família monoparental nos convoca a reconhecer que não há uma única constituição familiar, a despeito de sermos atravessados por uma concepção dominante de família: a mitificada família biparental organizada de forma heteropatriarcal.
Mas se, por um lado, a família monoparental pode ser considerada uma transgressão ao ideal tradicional de família, revelando que não há um modelo universal, por outro, vemos que ela tem sido debatida, no interior da comunidade científica, de modo ainda reducionista. Afinal, embora existam famílias monoparentais femininas e masculinas, parece haver uma feminização da monoparentalidade (Hernández & Pérez, 2014), com os estudos dedicando-se sobretudo às famílias monoparentais femininas (Ried & Pereira, 2017). Trata-se de algo que Di Nella et al. (2017) ouviram inclusive de seus participantes, homens de famílias monoparentais masculinas, que reclamavam do fato de ser dado maior enfoque à monomarentalidade, isto é, à monoparentalidade feminina.
É facilmente compreensível porque os estudiosos têm se debruçado mais às famílias monoparentais femininas, uma vez que elas se apresentam de modo mais frequente em relação às masculinas (Soria, 2019). Observamos, entretanto, no mundo, em especial na última década, que as famílias monoparentais masculinas vêm crescendo num ritmo superior às monoparentais femininas (Hernández, 2013). Entendemos assim que estudos dedicados aos pais de famílias monoparentais masculinas seriam valiosos, principalmente quando confrontamos esse crescimento com o fato de que os estudos sobre paternidade, de maneira geral, seguem em menor número, quando comparados aos dedicados à maternidade (Vieira et al., 2014). Ademais, observamos que, nos estudos sobre o pós-divórcio, o enfoque segue sendo dado à ausência do pai, a partir da lógica de que a guarda das crianças fica com a mãe (Abade & Romanelli, 2018; Brullet et al., 2010). Mediante o exposto, no presente trabalho, objetivamos investigar a experiência de homens, que, juntamente de seus filhos, configuram famílias monoparentais masculinas.
Método
Após a aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética de Pesquisa envolvendo seres humanos (CAAE: 86418518.5.0000.5152), buscamos a participação de homens que atendessem aos seguintes critérios de inclusão: 1) tivessem pelo menos 18 anos de idade; 2) residissem com os filhos menores de idade; e 3) fossem solteiros (de modo que não houvesse uma companheira que se ocupasse, juntamente a ele, dos cuidados parentais da criança). Não elencamos variados critérios de exclusão, uma vez que, como se trata de um coletivo que corresponde a uma minoria social, isso poderia tornar a captação de participantes ainda mais complexa (Ruiz et al., 2016).
Ainda assim, entendemos que foi difícil encontrar participantes para esse estudo, tanto que, ao final de nove meses, conseguimos apenas quatro deles, através da técnica bola de neve, que consiste numa estratégia metodológica em que os participantes são contatados a partir de indicações de conhecidos dos pesquisadores, bem como de conhecidos dos próprios participantes (Vinuto, 2014). Apesar de nossa preocupação com o fato de a investigação contar com apenas quatro participantes, vemos, na literatura nacional, que os estudos empíricos desenvolvidos, na última década, com homens de família monoparental masculina, também contaram com poucos participantes, oscilando entre estudos de caso com um único participante (Ribeiro et al., 2011; Ried & Pereira, 2012) e estudos com três a cinco homens (Abade & Romanelli, 2018; Denardi & Bottoli, 2017; Flores & Kruel, 2013; Isotton & Falcke, 2014).
Dentre os quatro homens que colaboraram com esse estudo, as idades variaram de 50 a 65 anos, sendo que todos estavam separados, em relação às mães de seus filhos, não estando, na ocasião da entrevista, em algum relacionamento amoroso. Cada um dos pais encontrava-se responsável por apenas uma criança, cuja idade variou entre oito e 12 anos. Todos eles trabalhavam e se encontravam numa situação econômica correspondente à classe média baixa ou à classe média.
A fim de atingir o objetivo proposto, foram realizadas entrevistas individuais, que poderiam ocorrer na residência dos participantes, se assim preferissem, ou em uma das salas de atendimento da clínica-escola do Instituto de Psicologia da universidade em que esse estudo foi desenvolvido3. As entrevistas foram conduzidas segundo o método investigativo psicanalítico. Assim, compreendendo que, caso adotássemos um roteiro de perguntas, os participantes, tendo as suas falas dirigidas, seriam furtados de apresentarem uma comunicação mais significativa, foi adotada a técnica da associação livre.
Após a realização de cada entrevista, o pesquisador que a conduziu se encarregava de redigir um texto, em que descrevia não apenas as falas e atos dos participantes, mas, também, as suas impressões contratransferenciais. Esse tipo especial de escrita tem sido denominado de narrativa transferencial (Aiello-Vaisberg et al., 2009) e tem sido amplamente utilizado em pesquisas psicanalíticas, que tanto valorizam a pessoalidade do pesquisador na produção do conhecimento científico. Em seguida, o conjunto das quatro narrativas transferenciais, derivadas das quatro entrevistas realizadas, foi analisado psicanaliticamente, de modo que o método psicanalítico sustentou essa investigação não apenas na condução das entrevistas e na redação dos textos derivados das entrevistas, mas, também, na consideração do material propriamente dito.
Dessa maneira, através da adoção da técnica da atenção flutuante, as quatro narrativas transferenciais foram lidas e re-lidas, mediante a suspensão temporária de julgamentos e de conteúdos teóricos pré-existentes (Roudinesco & Plon, 1998), a fim de compreendermos interpretativamente as manifestações dos participantes. Nessa etapa, fizemos uso da Teoria dos Campos do psicanalista brasileiro Fábio Hermann, segundo a qual o campo se caracteriza como uma organização de regras inconscientes em ação, ou seja, como aquilo que produz o sentido das manifestações humanas (Hermann, 2007). A partir dessa compreensão de que os campos habitados pelo indivíduo influenciam em sua maneira de representar a realidade, determinando as suas ações em cima dessa realidade (Herrmann & Herrmann, 2012), buscamos identificar os campos que estariam atravessando o coletivo de participantes, de modo a ser possível compreendermos como se dá a experiência de ser o genitor numa família monoparental masculina.
Resultados e Discussão
A partir da análise psicanalítica das narrativas transferenciais derivadas das quatro entrevistas, foi possível identificar três campos, intitulados “Ainda na tradição”, “Segunda chance” e “No improviso”.
Campo “Ainda na tradição”
Esse campo refere-se ao conjunto de manifestações, por parte dos entrevistados, que revelavam um imaginário bastante ancorado nos ideais tradicionais. Assim, a despeito dos participantes terem constituído uma família monoparental masculina, rompendo com o estereótipo cultural de que a mãe seria a melhor cuidadora para os filhos, foram encontradas manifestações atravessadas por um imaginário conservador de família. O campo “Ainda na tradição” fica evidente a partir do fato de que, dentre os quatro entrevistados, três deles só ficaram com a guarda da criança após ser constatada a impossibilidade dela ficar sob a tutela da mãe: nos casos dos participantes B. e C., de início, as crianças ficaram sob responsabilidade de suas mães, constituindo famílias monoparentais femininas; e, no caso do participante D., a criança só ficou com ele porque foi a mãe quem decidiu ir embora e optou por não levar a criança consigo, à revelia inicial desse participante.
Embora pudéssemos fazer uso do material relativo a qualquer um dos três participantes citados anteriormente, focalizaremos, para ilustrar esse campo, num trecho da narrativa transferencial derivada da entrevista com o participante B. Consideramos que ele se trata de um caso emblemático desse campo:
Logo no início da entrevista, o participante B. me contou4 que havia sido casado duas vezes. Na ocasião de seu primeiro divórcio, B. saiu de casa, deixando sua primeira esposa e os três filhos que tiveram, juntos, na casa onde moravam. Ele diz que esse foi o momento mais difícil de sua vida, pois foi morar de favor na casa de sua irmã e foi a primeira vez que ficara sem automóvel. Ele relata inclusive que era por isso que entendia que não dava para seus filhos virem morar com ele, fazendo-se necessário que, primeiramente, ele se reorganizasse financeiramente. B. conta que ficava preocupado, entretanto, porque notava que, com a sua ausência em casa, os filhos começaram a ficar sem tantos limites, já que a mãe se mostrava bastante permissiva na criação deles. Assim, as crianças não estudavam, acordavam e dormiam em qualquer horário, dentre outros. Em relação ao segundo casamento, B. relata que, novamente, na ocasião do divórcio, saiu de casa, deixando sua ex-esposa e a filha que eles tiveram juntos. Comovido, o participante diz que, na ocasião, a menina pediu para ficar com ele e que, apesar de sua ex-esposa ter crises psiquiátricas, nas quais ela se revelava de modo bastante agressivo, ele entendia que isso não era motivo suficiente para a filha não querer ficar com a mãe. O participante diz, em tom de lamento: “A guarda dela acabou vindo parar para mim após uma das crises da minha ex-esposa, em que ela colocou em risco a própria vida e a de nossa filha. Foi algo muito doloroso para todos nós”. O participante B. me explica que, depois disso, lutou com todas as forças na justiça para obter a guarda da filha.
Vemos, a partir dessa vinheta, que, na ocasião do segundo divórcio, apesar do participante B. estar a par da condição de maior fragilidade emocional de sua ex-esposa e de sua filha ter lhe pedido para ficar com ele, ainda assim ele acreditou que o melhor seria mãe e filha permanecerem juntas. Essa lógica - a de inicialmente insistir na monoparentalidade feminina pós-divórcio -, foi igualmente encontrada em outras pesquisas empíricas que foram realizadas junto a famílias monoparentais masculinas, dentre as quais destacamos as de Ried e Pereira (2017), Sousa (2008) e Vieira e Sousa (2010). Isso inclusive justificaria porque há mais famílias monoparentais femininas do que masculinas.
Evidentemente que esse campo “Ainda na tradição”, que atravessava os participantes, determinando que eles acreditassem que os pais só deveriam assumir o lugar de cuidadores primários dos filhos diante da impossibilidade das mães de fazerem isso, repousa no fato de a sociedade estar toda organizada para que os homens se acomodem em participar na criação dos filhos na forma de ajuda (Duque, 2010). Colcerniani (2010), após entrevistar oito juízes de Direito, que atuam em Varas da Família, constatou que, a despeito do direito à igualdade entre os sexos ser assegurado constitucionalmente, as decisões judiciais tendiam a favorecer as mães, com os juízes sendo atravessados pela crença de que o homem, comparado à mulher, seria menos capaz de cuidar de uma criança. Antela e Barreto (2010), por sua vez, realizaram uma pesquisa com homens que faziam parte de famílias monoparentais masculinas de camadas bastante desfavorecidas e que reclamavam do fato da titularidade do Programa Bolsa Família ser da mãe. Isso porque alguns deles não recebiam com facilidade o repasse do valor da bolsa, por parte de suas ex-esposas, e, também porque, a partir da determinação de que o subsídio só pode ser retirado por uma mulher, acabava se dando a naturalização da mulher como a responsável pela família.
A partir daí, é possível pensarmos que três dos quatro participantes desse estudo insistiram, de início, para que seus filhos ficassem sob a tutela de suas ex-mulheres, não constituindo de saída, com eles, uma família monoparental masculina, em função desse imaginário social patriarcal que nega o pai enquanto principal figura de cuidado. Alguns estudos têm inclusive indicado que, nos casos excepcionais em que o homem decide pedir a guarda do filho, ele o faz em função da idade e do sexo do filho: os homens parecem se sentir mais confortáveis para solicitar a guarda do filho quando ele é mais velho e se trata de um menino (Colcerniani, 2010; Denardi & Bottoli, 2017; Hernández & Pérez, 2014; Soria, 2019;). Tratam-se de fatores que, se refletirmos bem, também estariam ancorados nesse ideal social conservador, com os pais sentindo-se mais seguros para assumirem filhos mais velhos (que supostamente precisariam de menos cuidados do que crianças menores), que sejam do sexo masculino (partindo da lógica de que um homem não seria capaz de cuidar suficientemente bem de alguém do sexo oposto). Fazendo uma ponte dessa discussão com a vinheta referente à entrevista com o participante B., seria possível levantarmos a dúvida se ele teria insistido tanto para que a sua filha permanecesse com a mãe em decorrência dela ser menina.
Ainda em cima do trecho de narrativa transferencial derivada da entrevista com o participante B., encontramos outras manifestações associadas a um imaginário mais tradicionalista, para além da lógica já discutida de que a constituição de uma família monoparental masculina só se dá se a feminina não for possível. Dentre elas, vale destacar a crença de que uma criança criada apenas pela mãe tende a não ter limites, bem como a compreensão de que a função paterna equivale a prover condições financeiras.
Em relação à primeira delas, embora ela não apareça tão claramente, é possível depreendermos que o participante B. a manifesta quando traz, na entrevista, que começou a notar que seus filhos do primeiro casamento começaram a ter uma vida mais desregrada, com a mãe não impondo horários, por exemplo, para acordarem e dormirem. Sabemos que, ao mesmo tempo em que o pai é associado àquele que brinca e que leva os filhos a lugares públicos, ele também é visto como um símbolo de autoridade, tanto que Cúnico e Arpini (2010), que realizaram entrevistas com 10 mulheres de famílias monoparentais femininas, observaram, em seus discursos, o pesar por não poderem contar com a dimensão da autoridade tradicionalmente conferida ao masculino. Desde essa perspectiva, estaria B. nos comunicando, nas entrelinhas, que, sem ele figurando enquanto o chefe de família, aos moldes de uma família patriarcal, não havia alguém capaz de cumprir com a função de impor limites?
No que tange à associação entre a figura paterna e a provisão financeira, ela fica clara nas falas do participante B. sobre a sua preocupação em deixar a casa para suas ex-esposas e filhos, optando por deixar-lhes com o conforto material, bem como em sua compreensão de que só poderia ficar com seus três filhos do primeiro casamento após organizar-se financeiramente, voltando, em especial, a ter carro. Vários pesquisadores, dentre os quais podemos destacar Flores e Kruel (2013), Ruíz et al. (2016) e Vieira e Souza (2010), ao entrevistarem homens que compunham famílias monoparentais masculinas, observaram igualmente que eles manifestavam preocupação, sobretudo, em prover economicamente a família, deixando, em algumas situações, o convívio com os filhos em segundo plano. Abade e Romanelli (2018), que entrevistaram cinco pais de famílias monoparentais masculinas, notaram, ademais, que, mesmo diante de dificuldades financeiras, nenhum dos entrevistados solicitou pensão alimentícia às mães das crianças, entendendo que era função deles serem os provedores de suas casas.
Vale ressaltar que, apesar de estarmos associando a preocupação dos participantes com questões financeiras à tradicional divisão sexual do trabalho, com os homens identificando-se mais com o trabalho produtivo, enquanto as mulheres se encarregariam do trabalho reprodutivo (Duque, 2010), observamos que mulheres que lideram famílias monoparentais femininas também são atravessadas pela inquietação com questões financeiras. Isso pôde ser observado nas pesquisas de Cúnico e Arpini (2014), bem como na de Escamilla, et al. (2013), cujas participantes demonstraram intensa preocupação em serem demitidas, já que elas e os filhos dependentes ficariam sem qualquer meio de subsistência. A partir daí seria possível pensarmos criticamente que a preocupação de nossos participantes com a questão financeira não decorreria exclusivamente do fato de serem homens e a masculinidade, em nossa sociedade, estar ligada à provisão financeira, mas, sim, de uma inquietação que tocaria qualquer chefe de família de família monoparental, seja ele homem ou mulher. Afinal, liderar uma família monoparental equivaleria a ter que suprir sozinho as necessidades econômicas e afetivas da família. Segundo esse prisma, a preocupação de nossos participantes com o dinheiro estaria mais ligada ao excesso de exigências quando há um único adulto gestando as responsabilidades familiares, uma vez que vivemos em uma sociedade organizada ao redor do trabalho produtivo (que exige ampla disponibilidade de horário), que pode acabar inviabilizando que o mesmo indivíduo, cujo tempo está dominado pela produção, se dedique às tarefas de criação dos filhos (Saramanch et. al, 2016). Nesse sentido, surge a seguinte dúvida: será que estamos vivendo num mundo em que apenas o modelo de biparentalidade atenderia “adequadamente”?
Campo “Segunda chance”
Esse campo refere-se à regra lógico-emocional de que ser pai numa família monoparental masculina equivale a experienciar uma segunda chance em relação à paternidade. Assim se, no campo anterior, foram identificadas produções imaginativas ancoradas em um imaginário conservador, no campo vigente, foram encontradas manifestações de que ser o genitor principal dos filhos configura-se como oportunidade de “redenção”, viabilizando a possibilidade de ser um pai melhor, sejam em relação ao pai que já foi, seja em relação ao pai que se teve. Embora todos os participantes estivessem atravessados por esse segundo campo, elegemos aqui o trecho de narrativa transferencial referente à entrevista com o participante C. para ilustrar esse movimento de segunda chance em relação aos filhos:
O participante C. me explicou que fora casado durante muitos anos e que, dessa união, teve dois filhos. Entretanto, após sua esposa descobrir que estava sendo traída por ele e que inclusive ele havia engravidado a amante, eles se divorciaram. C. diz que foi um período muito difícil, em que ele acabou ficando depressivo e perdendo o emprego, o que inclusive fez com que ele se mudasse de cidade, atrás de trabalho. O participante então narra que, passado um tempo, começou a relacionar-se com uma mulher casada, com quem ele acabou tendo dois filhos. As crianças, entretanto, não foram reconhecidas por ele, ficando a cargo da mãe delas e de seu marido. C. segue, ao longo da entrevista, mais focando em relatar-me suas dificuldades em arrumar um bom emprego, mostrando-me o quanto a sua identidade enquanto profissional parecia lhe desafiar mais do que o lugar de pai. Até que, num determinado ponto de sua narrativa, o participante diz que uma instituição de acolhimento entrara em contato com ele para dizer-lhe que, em função de maus-tratos, seus dois filhos mais novos haviam sido acolhidos e que existia uma expectativa da rede de que ele, enquanto pai consanguíneo, ficasse com a guarda das crianças. O participante me diz que, a partir daí, começou a realizar visitas, na instituição, e que logo obteve a guarda do filho mais velho, de oito anos. O de quatro anos, entretanto, ele não obtivera ainda, pois ele faltara em algumas visitas à instituição, por conta de emprego, e a instituição ficara receosa se de fato C. teria condições de assumi-lo também. Antes de encerrarmos a entrevista, o participante comentou que, apesar das dificuldades financeiras terem ficado maiores com a “chegada” do filho de oito anos, ele estava adorando conseguir acompanhar a infância de um de seus filhos, já que não o fizera com seus três primeiros filhos, que atualmente já são adultos.
A partir desse material, vemos que o participante C., até assumir a guarda de seu filho de oito anos, tivera uma relação com todos os seus filhos mais distanciada, tanto que, em determinado momento da entrevista, ele para de falar das crianças e focaliza mais em sua luta para conquistar estabilidade profissional. Desse modo, C. nos mostra o quanto ele correspondeu ao estereótipo de pai mais ausente, tão apontado nos estudos dedicados ao lugar do pai no pós-divórcio (Contreras-Antolínez et al., 2018; Oliveira & Crepaldi, 2018). E, talvez, se não fosse pelo fato de os profissionais da instituição de acolhimento terem realizado uma busca ativa para que as crianças ficassem com o pai consanguíneo, o participante C. teria permanecido nesse lugar mais distanciado. Vale aqui inclusive refletir o quanto a sua indisponibilidade de visitar o filho de quatro anos na instituição, o que acabou inviabilizando que ele também pegasse a sua guarda, possa ser um indicador de sua incapacidade psíquica de se ver, num só tempo, sendo o genitor principal de duas crianças, quando, até então, tinha cinco filhos com quem pouco convivia. É válido, entretanto, que, em meio aos conflitos emocionais envolvidos, que seguramente ultrapassam a mera questão financeira aludida pelo participante C., ele vinha experienciando uma segunda chance enquanto pai, podendo, como ele próprio disse ao fim da entrevista, cuidar de um dos seus filhos como ele jamais fora capaz de fazer.
Vale ressaltar que, dentro desse campo, deparamo-nos com manifestações associadas a um movimento de superação que tinha a ver não apenas com a tentativa de vir a ser um melhor pai do que jamais havia sido, mas também, com a possibilidade de vir a ser um pai superior ao que havia tido. Essa questão fica evidente, por exemplo, no trecho de narrativa interativa derivada da entrevista com o participante A.:
O participante A. me contou que, quando ele conheceu a mãe de seu filho, ela já tinha um filho de outro relacionamento fortuito. Como, em pouco tempo, eles já estavam os três morando juntos, ele diz que acabou tornando-se pai do enteado, embora, em vários momentos, se segurasse para não se intrometer demais na criação que a sua esposa dava à criança, que ele sentia ser liberal demais, por entender que ele não era de fato o pai. A. chega inclusive a contar que ele só foi mais incisivo quando o enteado, ao adolescer, começou a se envolver com drogas e ele entendeu que se fazia necessário que ele interviesse mais, forçando o enteado a romper com certas amizades. Mais para frente da entrevista, o participante me conta que, como ele queria muito ter um filho dele, insistiu muito para que a esposa tivesse mais um filho, o que ela não queria. Mas, dada à insistência dele, ela acabou engravidando e tendo um menino. A. explica que, nessa segunda vez, ele já se liberou para se dedicar maximamente aos cuidados do filho, tanto que, quando o casal resolveu se separar, a criança, que na ocasião tinha oito anos, não hesitou em querer ficar sob a tutela do pai, assim como o enteado de A., o que de fato ocorreu. Antes que a entrevista se encerrasse, perguntei-lhe sobre a sua família de origem, o que deixou o participante visivelmente desconfortável. Ele me contou brevemente que não fora criado pelos próprios pais, pois não conhecera o seu pai (com quem sua mãe tivera um relacionamento casual) e sua mãe, que era usuária de drogas e moradora de rua, havia delegado os cuidados dele aos seus tios.
A partir dessa vinheta, observamos não apenas que o participante A. quis ser, para o seu filho consanguíneo, um pai mais dedicado do que ele sentira que fora para o seu enteado - até porque ele não se sentia suficientemente autorizado para intervir na criação de sua ex-esposa junto a ele -, mas, principalmente, em comparação com os pais que ele teve. Seria possível dizermos que o envolvimento de sua mãe com as drogas e a preocupação de A. de que seu enteado não se tornasse usuário delas simbolizariam maximamente essa tentativa de fazer algo melhor, na atualidade, em relação ao que fora vivido no passado, aos moldes de uma segunda chance.
Assim, apesar de sabermos que existe uma transmissão psíquica no que diz respeito ao lugar do pai, com os homens espelhando-se em seus próprios pais para se constituírem enquanto pais (Ruiz et al., 2016), vemos, no que diz respeito aos nossos entrevistados, que tal transmissão deu-se no sentido de revelar, aos participantes, como eles não deveriam ser enquanto pais, mais do que no de lhes influenciar em como deveriam ser. Rodas et al. (2016), assim como Souza e Sanguinet (2012), que entrevistaram homens de família monoparental masculina, notaram igualmente essa lógica, em seus participantes: o de não adotar o mesmo modelo deixado pelos pais.
Essa preocupação em não reeditar o modelo parental recebido, tendo a chance de ser para o filho um pai melhor do que o próprio pai que se teve, foi observada não apenas no que diz respeito às questões de ordem mais “traumática”, como a dependência química citada previamente, mas inclusive na oferta de um cuidado mais afetuoso enquanto pai. Essa questão pode ser ilustrada claramente através de novo trecho de narrativa transferencial, dessa vez referente à entrevista com o participante B.:
O participante B. já havia me contado que, quando ele saía sozinho com a sua filha, na época em que ela ainda era pequena, era comum mulheres lhe questionarem onde estava a mãe, alegando que, se a criança precisasse de mamadeira ou de troca de fraldas, ela não poderia contar com a presença materna. B. diz que sempre argumentava tranquilamente, mas que estranhava o questionamento das pessoas a respeito de seus cuidados. Quando lhe perguntei de onde ele achava que vinha essa dimensão tão cuidadosa dele, ele associou à sua família de origem, composta por seus pais, ele e mais quatro irmãs. Explicou que ele acreditava que esse seu lado mais afetuoso decorria do fato dele ter se desenvolvido rodeado de mulheres, o que inclusive deixava o seu pai bastante preocupado, com receio de que ele se tornasse homossexual.
Selecionamos esse material, num primeiro momento, porque, apesar do participante B. não ter discorrido sobre o seu pai como uma figura menos afetuosa, fica implícito, em sua fala, que assim ele seria, já que seu pai confundia sensibilidade à feminilidade e homossexualidade e já que o participante associou a sua maior capacidade de expressar-se afetivamente às suas irmãs e mãe. Assim, trata-se de um material que ilustra esse movimento de superação do participante, em relação à criação mais tradicionalista por parte de seu pai. Ainda em cima dessa vinheta, vemos também o participante nos revelando, de modo sutil, a opressão que sofreu, por parte de seu pai e de outras pessoas de fora da família, mergulhadas no imaginário binário de que haveria aspectos do feminino, que seriam opostamente distintos aos do masculino (Ried, 2011). Afinal, em sua fala, ele nos comunica as expectativas dos outros de que ele não fosse muito emotivo ou muito investido nos cuidados de criança, caso contrário, isso afetaria a sua imagem de virilidade (Soria, 2019). Desde essa perspectiva, como apontam Ruiz et al. (2016), estaríamos diante de um imaginário social em que, ao mesmo tempo em que o homem é visto como tendo uma série de privilégios em relação à mulher, ele parece estar aprisionado num lugar em que a sua afetividade deve ser sabotada. A desigualdade seria, assim, prejudicial não apenas para as mulheres, como tem sido debatido tão abertamente, mas também para os homens?
Campo “No improviso”
Esse terceiro campo refere-se ao conjunto de manifestações dos participantes que revelam os modos de organização adotados para fazerem frente à ausência materna. Nesse sentido, observamos tanto o apelo à rede de apoio externa quanto à exigência de que os filhos menos dependentes sejam ainda mais emancipados. Para ilustrar, apresentamos um trecho da narrativa interativa referente à entrevista com o participante D.:
O participante D. me contou, logo no início da entrevista, que tinha dois filhos, cada um de um relacionamento diferente. Explicou que se casou quando tinha 28 anos de idade e logo teve uma filha. Na ocasião do divórcio, a despeito de sua filha ter pedido para ficar com ele, ele decidiu deixá-la com a mãe. Ele conta que foi morar com seus pais nesse período, mas que jamais faltara com suas obrigações de pai, enfatizando que a pensão que ele pagava estava sempre em dia. Muitos anos depois, o participante acabou se relacionando com outra mulher, bem mais nova do que ele, com quem teve um segundo filho, apesar dele inicialmente não desejar mais ser pai. Quando sua segunda esposa decidiu dele se separar, disse-lhe que não iria levar a criança consigo, pois entendia que não tinha condições para cuidar dela. Nessa hora, o participante diz que foi um choque, pois imaginava que o menino, na ocasião com quatro anos, ficaria com ela. Ele conta que foi um período muito complicado, de instabilidade emocional e financeira, mas, que, atualmente, a vida está mais organizada. Ele explica que conta muito com a ajuda de seus próprios pais, que moram a um quarteirão de sua casa, e que ficam com frequência com a criança, para ele. Ele também conta que, recentemente, sua primeira esposa faleceu e, com isso, sua primeira filha (que até então residia com ela), que atualmente tem 19 anos, está também morando com ele e ajudando-o em casa.
A partir desse material, observamos que, apesar do participante D. ser o genitor principal responsável pelo filho caçula, que atualmente tem oito anos, conta com a ajuda de seus próprios pais, bem como de sua filha mais velha. Em pesquisas nacionais realizadas com pais de famílias monoparentais masculinas, dentre as quais destacamos as de Souza e Sanguinet (2012), Flores e Kruel (2013) e Abade e Romanelli (2018), foi igualmente notado que os entrevistados recebiam ajuda frequente, geralmente proveniente da própria família de origem, o que faria com que a família monoparental se constituísse, de certo modo, como uma família trigeracional, como destaca Fajardo (2015), já que as crianças passariam bastante tempo sendo cuidadas pelos avós.
Segundo Duque (2010), entretanto, nas camadas mais elevadas, o que se observa é que o excesso relativo à sobrecarga vivida pelo genitor da família monoparental tem sido transferido para empregadas, e não tanto para os pais da família de origem. Mas, independentemente se o ponto de apoio é algum profissional ou algum familiar, Abade e Romanelli (2018) problematizam que, em geral, trata-se de mulheres e, a partir daí, levantam a dúvida se isso mais uma vez não denotaria o imaginário conservador de que a função de cuidado seria naturalmente feminina, com o homem se mostrando incapaz de cuidar. Flores e Kruel (2013), entretanto, revelam que a ajuda de figuras femininas parece ser necessária não apenas aos homens, mas, também, às mulheres que lideram famílias monoparentais. De fato, Saramanch et al. (2016), que aplicaram um questionário em 300 mulheres espanholas que chefiavam famílias monoparentais, observaram que as respondentes contavam com uma rede de apoio majoritariamente feminina, que, no entanto, se revelava insuficiente, a seu ver, pois as pessoas só as ajudavam em casos radicais, como, por exemplo, nos casos de enfermidade, reproduzindo um imaginário de nuclearização que responsabiliza as próprias famílias a cuidarem das pessoas que integram aqueles núcleos.
Independentemente se a rede de apoio se mostra ou não suficiente, a necessidade dessa rede, por parte do genitor responsável pela família monoparental, seja ele homem ou mulher, seria tão universal que, na literatura especializada, há inclusive um termo para referir-se a essa configuração em que o genitor convive com familiares ou profissionais que o ajudam em seu cotidiano. O termo, segundo Hernández (2013), seria caso monoparental “complexo”, para fazer distinção dos casos simples, em que não há a convivência desse núcleo monoparental com outras pessoas (Soria, 2019).
Conforme dito previamente, além de termos observado, em nossos entrevistados, a busca por suporte fora do núcleo monoparental, notamos também uma outra estratégia adotada por eles, na reorganização de seu grupo familiar, mas, dessa vez, mais endógena: a estratégia de exigir que os filhos atuem de forma mais autônoma, assumindo responsabilidades tanto quanto um adulto. Essa dinâmica se faria presente quanto mais velho fosse o filho. No caso da vinheta apresentada, vemos que o participante D. esperava que a sua filha primogênita, que contava com o apoio dele após a morte de sua mãe, cumprisse, em contrapartida, com a função de substituir o genitor ausente em relação ao filho caçula.
Essa expectativa de que os filhos ajudem nas tarefas domésticas, que observamos também nas entrevistas dos participantes A. e B., cujos filhos tinham 12 anos de idade, foi igualmente notada em outros estudos dedicados a famílias monoparentais, sejam elas masculinas ou femininas (Fajardo, 2015; Ribeiro et al., 2011; Ried & Pereira, 2012;). Rodas et al. (2016) descrevem que, quando os filhos são pequenos, os pais acabam não tendo condições de se reorganizar, diante da ausência materna, desse modo; mas, uma vez que eles já são maiores, os pais tendem a exigir (mais do que exigiriam se estivessem num contexto de biparentalidade) que os filhos entrem na distribuição das tarefas domésticas, tendo que, por exemplo, fazer a própria comida ou arrumar a casa. Trata-se de um fenômeno que, segundo esses autores, tem sido denominado de “parentalização” do filho.
Weissmann (2008), que realizou atendimentos clínicos psicanalíticos com quatro famílias monoparentais femininas, entende que esse tipo de organização pode, no entanto, trazer danos psíquicos para os integrantes do núcleo familiar. Isso porque, em meio a essa dinâmica em que os filhos adolescentes são convocados a agirem de modo adulto para anular a ausência de um dos genitores, parece emergir uma dinâmica de indiferenciação entre as gerações, de modo que mãe e filho, integrantes de duas gerações distintas, acabam se apresentando como se estivessem todos num mesmo nível.
A essa constatação sobre possíveis conflitos psíquicos que podem atravessar a família monoparental, somam-se várias outras encontradas na literatura especializada. Ruiz et al. (2016) apontam que, além das famílias monoparentais apresentarem maior probabilidade de enfrentarem dificuldades financeiras, elas também teriam maiores chances de apresentar sintomas depressivos e ansiógenos, dada a impossibilidade de compartilhar o cuidado alternadamente com o outro, como ocorre nas famílias biparentais. Cúnico e Arpini (2014) também identificaram que não raro os genitores de famílias monoparentais são atravessados por sentimento de incompletude, lamentando implicitamente por não terem conquistado a família biparental tão idealizada.
No presente estudo, a despeito dos participantes terem discorridos sobre dificuldades e preocupações em relação as suas famílias monoparentais, não nos deparamos, entretanto, com questões que nos dessem margem para que pensássemos estarmos diante de algum grupo familiar adoecido. Pelo contrário, como apresentado nesse campo “No improviso”, observamos que nossos participantes, por meio da rede de apoio ou da maior cooperação dos filhos maiores, vêm tentando se reorganizar para encontrar um equilíbrio e seguir funcionando, revelando-se como um sistema vivo e potente (Contreras-Antolínez et al., 2018). Evidentemente, não estamos aqui afirmando, de modo ingênuo, que a falta da figura materna não era sentida por eles, mas, sim, apontando que não necessariamente essa ausência tornava esses grupos familiares, de saída, disfuncionais. Trata-se de uma reflexão que se encontra alinhada à Brullet et al. (2010) e Di Nella et al. (2014), que denunciam uma tendência, por parte da comunidade científica, de compreender problematicamente qualquer grupo familiar que não corresponda à unidade nuclear biparental, heterossexual e estável, tida socialmente como o modelo ideal de boa família.
Considerações Finais
A partir desse estudo, foi possível observarmos que, atravessados pelo campo “Na tradição”, o coletivo investigado manifestou produções imaginativas mais ancoradas num imaginário conservador. Apesar disso, vimos como, em meio à sociedade patriarcal que ainda nos sustenta, os participantes parecem estar dando conta de cumprir uma função paterna subversiva à tradicional, mergulhados no campo “Segunda chance”, constituindo, com seus filhos, uma família improvisada, porém organizada, tal como observado no campo “No improviso”.
Uma das limitações desse estudo seguramente repousa no fato dele ter sido desenvolvido contando com apenas quatro participantes, o que parece ser uma realidade das pesquisas empíricas junto a famílias monoparentais masculinas. Entendemos, entretanto, que foi possível aprofundarmo-nos nos casos encontrados, contando não apenas com o subsídio da escuta interpretativa psicanalítica, mas, também, com a interlocução com os estudos já publicados acerca das famílias monoparentais. Em relação a isso, aliás, foi possível constatarmos, através do diálogo com os trabalhos dedicados a famílias monoparentais femininas, que as famílias monoparentais masculinas e femininas parecem atravessar inquietações similares, como a preocupação com a renda familiar e a necessidade de rede de apoio. Isso nos permite refletir que, talvez, essas famílias que são conduzidas prioritariamente por um único genitor seriam aquelas que, por excelência, nos demonstrariam que, no que tange aos cuidados dedicados aos filhos, não haveria funções exclusivamente maternas e paternas, mas, sim, funções parentais, que poderiam ser sustentadas independentemente do gênero do genitor. A partir daí, encerramos esse estudo indicando a importância de mais pesquisas dedicadas a essa configuração familiar peculiar, que nos convoca a rever os mitos sobre a condição do pai e da mãe, descortinando a possibilidade de, na sociedade atual, caminharmos rumo à uma concepção de parentalidade menos dissociada.
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Endereço para correspondência
Miriam Tachibana
E-mail: mirita@ufu.br
mirita@uol.com.br
Enviado em: 17/04/2020
1ª revisão em: 30/06/2020
2ª revisão em: 04/09/2020
Aceito em: 16/12/2020
1 Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Pós-doutora em Psicologia clínica pela Universidade de São Paulo. Doutora em Psicologia pela Université Charles de Gaulle Lille 3 e pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mestre em Psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Psicóloga graduada na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
2 Graduando em Psicologia na Universidade Federal de Uberlândia.
3 Vale destacar que, no momento em que os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, foi lhes explicitado que, caso ficassem mobilizados emocionalmente com as entrevistas, a eles seria prestada atenção psicológica gratuita na referida clínica-escola, em termos de cuidados éticos.
4 Nos trechos de narrativa transferencial, será adotada a primeira pessoa do singular, uma vez que apenas um dos autores se ocupou de realizar as entrevistas e de escrever as narrativas derivadas delas.