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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
On-line version ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.15 no.2 Ribeirão Preto Apr./June 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.000417
ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.000417
Percepções de vida e perspectivas de futuro de usuários de drogas: compreender para cuidar*
Percepciones de vida y perspectivas de futuro de usuarios de drogas: comprendier para cuidar
Laryssa InoueI; Luana Cristina BelliniI; Marcelle PaianoI; Maria do Carmo Lourenço HaddadI; Sonia Silva MarconI
IUniversidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: descrever as perspectivas de futuro de sujeitos que fazem uso abusivo de drogas e suas percepções sobre a vida antes e durante o tratamento para dependência química.
MÉTODO: pesquisa descritiva-exploratória qualitativa realizada no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas. Foram ouvidos 28 sujeitos utilizando grupo focal. Os relatos foram submetidos à Análise Temática.
RESULTADOS: emergiram três categorias: "O Viver inautêntico: percepções de vida antes do tratamento", "Reencontrando o caminho para o existir: percepções de vida durante o tratamento" e "Voltando a sonhar: perspectivas de futuro durante o tratamento".
CONSIDERAÇÕES FINAIS: para compreender esse cenário, é necessário intervir no problema de forma intersetorial incluindo não apenas os serviços de saúde, mas também as demais instituições.
Descritores: Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Terapêutica; Pesquisa Qualitativa; Diretivas Antecipadas; Enfermagem; Usuários de Drogas.
RESUMEN
OBJETIVO: describir las perspectivas de futuro de sujetos que hacen uso abusivo de drogas y sus percepciones sobre la vida antes y durante el tratamiento para la dependencia química.
MÉTODO: investigación descriptiva-exploratoria cualitativa realizada en el Centro de Atención Psicosocial - Alcohol y Drogas. Se escucharon 28 sujetos utilizando grupo focal. Los relatos se sometieron al análisis temático.
RESULTADOS: emergieron tres categorías: "El vivir inauténtico: percepciones de vida antes del tratamiento", "Reencontrando el camino para el existir: percepciones de vida durante el tratamiento" y "Volviendo a soñar: perspectivas de futuro durante el tratamiento".
CONSIDERACIONES FINALES: para comprender este escenario, es necesario intervenir en el problema de forma intersectorial incluyendo no sólo los servicios de salud, sino también las demás instituciones.
Descriptores: Trastornos Relacionados con Sustancias; Terapéutica; Investigación Cualitativa; Consumidores de Drogas; Directivas Anticipadas; Enfermería.
Introdução
O uso abusivo de drogas constitui-se em um importante agravo em saúde pública, pois acarreta implicações diretas sobre o cotidiano coletivo e individual dos envolvidos na problemática. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas, realizado pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), o uso de drogas tem prevalência de 6% na população adulta entre 15 e 64 anos de idade, sendo que de 0,3% a 0,9% da população mundial é considerada usuária problemática(1).
Esse comportamento gera prejuízos sociais e individuais que provocam, na vida do usuário e de sua família, disfunções agudas e crônicas na relação cotidiana. Ao considerar que essa condição afeta um número elevado de famílias, é importante pensar sobre o impacto destrutivo desta ocorrência frente ao crescimento individual e familiar do dependente químico, situação essa que acaba minimizando as oportunidades de construção de uma vida saudável(2).
Estudos demonstram vários fatores intrínsecos e extrínsecos que podem levar ao início do consumo de drogas, dentre eles, as condições sociais são um forte indicador, pois levam ao ciclo de exclusão social, configurando-se como uma porta de entrada para o uso abusivo de drogas(3). Uma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) mostra que oito em cada dez usuários regulares de crack são negros e oito em cada dez não chegaram ao Ensino Médio. Somam-se a esses outros indicadores de vulnerabilidade social, como viver em situação de rua, ter passagem pelo sistema prisional, ter baixa renda, entre outros. Já as mulheres têm o mesmo padrão de vulnerabilidade social, com o agravante de histórico de violência sexual. Dessa forma, o uso de drogas se adapta, geralmente, às características de cada contexto(4-6).
Nessa perspectiva, o usuário, progressivamente, perde o interesse em outras áreas que não as drogas, perdendo o controle sobre suas decisões, e passa a dedicar seus esforços somente à manutenção da dependência química. É nesse ponto que, após a descoberta da dependência pela família, os conflitos latentes eclodem e prejudicam a convivência com o núcleo de socialização primária do indivíduo que, cada vez mais, se envolve com a dependência e, como em um círculo vicioso, compromete drasticamente a construção do seu futuro(7).
Nesse contexto, faz-se necessário refletir sobre o modo como esses sujeitos percebem sua vida, a fim de identificar pontos-chave para a tomada de decisão na construção de estratégias que possam favorecer a adesão ao tratamento frente à dependência química e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida dos usuários e familiares.
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi descrever as perspectivas de futuro de sujeitos que fazem uso abusivo de drogas e suas percepções sobre a vida antes e durante o tratamento para a dependência química.
Método
Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, de natureza qualitativa, realizado no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPS-ad) de Maringá-PR. Implantado em 2002, o CAPS-ad desenvolve grupos de acolhimento, psicoterapia individual e coletiva, oficinas terapêuticas, terapia ocupacional e consultas individuais com psiquiatra, psicólogo e enfermeiro.
Todos os 28 informantes do estudo frequentavam as reuniões dos três grupos coordenados pela psicóloga as quais ocorriam às terças, quartas e quintas-feiras no período vespertino.
A técnica de coleta de dados escolhida foi o grupo focal. Define-se grupo focal como "método de pesquisa qualitativa que pode ser utilizado no entendimento de como se formam as diferentes percepções acerca de um fato". O propósito do grupo focal é a realização de uma entrevista com um coletivo de pessoas, com o objetivo de coletar os dados a partir da interação dos sujeitos, com base em um tema específico, por meio de tópicos fornecidos pelo pesquisador(8). Os três grupos terapêuticos da psicóloga do CAPS-ad foram utilizados para a coleta de dados e aconteceram às terças e às quartas-feiras, no período noturno, e às quintas-feiras, no período matutino. Foram necessários dois encontros na terça e na quarta-feiras e um encontro na quinta-feira. Todos os encontros aconteceram em uma sala nas dependências do CAPS-ad, de forma a garantir o sigilo das informações, com a duração de uma hora.
A equipe de trabalho que conduziu os cinco grupos focais foi composta de três pessoas — um coordenador, um relator e um observador. O coordenador do grupo focal foi a pesquisadora em todos os encontros. Pretendia-se realizar apenas um grupo focal por grupo terapêutico, no entanto, não foi possível abranger todos os tópicos do guia de temas, que continha oito questões norteadoras, em apenas um encontro, para atingir o objetivo proposto.
No primeiro encontro de cada grupo focal, informaram-se os objetivos da pesquisa e fez-se a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em seguida, os participantes preencheram um formulário com os dados sociodemográficos para a caracterização dos sujeitos e foram auxiliados pela equipe de pesquisa quando necessário.
O guia de temas do grupo focal foi composto pelas seguintes questões: "Como é ser um usuário de drogas?"; "Fale sobre a descoberta do uso de drogas pela sua família: quais foram os sentimentos deles e os seus?"; "Como é estar em tratamento?"; "Fale sobre as reações da comunidade em relação ao seu uso de drogas"; "Depois que você começou o tratamento aqui no CAPS-ad, fale sobre o seu relacionamento com sua família, comunidade e trabalho"; "O que acha importante para recuperar a vida que tinha antes de usar drogas?"; "O que vai ajudá-lo a se manter abstinente e mudar de hábitos?"; "Fale sobre o futuro: quais seus planos e perspectivas?".
Os relatos foram gravados e transcritos na íntegra, a fim de se preservar o conteúdo das falas, e, posteriormente, submetidos à Análise Temática de Conteúdo, composta por três etapas. Na primeira, a pré-análise, foram realizadas três leituras sucessivas das entrevistas com o intuito de operacionalizar e sistematizar os dados. Assim, na primeira leitura, foram grifados os pontos de interesse(9).
Na segunda etapa, os dados foram organizados de acordo com o objetivo, sendo constituída a codificação do conteúdo. Nessa fase, realizou-se a categorização do material, transformando-se os dados brutos em dados organizados por meio de agrupamentos e associações que respondem ao objetivo do estudo, surgindo, assim, as categorias.
Na terceira e última etapa, foi realizada a análise de conteúdo temática propriamente dita, caracterizada pela inferência dos dados, relacionando-os com os encontrados na literatura. Em decorrência desse processo, emergiram três categorias: "O viver inautêntico: percepções de vida do tratamento", "Reencontrando o caminho para o existir: percepções de vida durante o tratamento" e "Voltando a sonhar: perspectivas de futuro durante o tratamento".
O desenvolvimento do estudo ocorreu em conformidade com o preconizado pela Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, e seu projeto foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Maringá (Parecer número 67292/2012). Os sujeitos da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias.
Resultados
Inicialmente, fez-se uma descrição dos sujeitos entrevistados para identificar o contexto em que o estudo foi construído: todos os entrevistados eram homens, na faixa etária entre 26 a 64 anos, e 14 tinham o Ensino Fundamental incompleto.
Nos discursos, podem-se identificar três categorias empíricas, que serão apresentadas mais detalhadamente a seguir.
O viver inautêntico: percepções de vida antes do tratamento
O uso de drogas de abuso produz muitas perdas ao usuário, à sua família e à sociedade, fazendo emergir a necessidade de o profissional de saúde identificar e compreender o quanto esses fatos podem influenciar no processo de recuperação desses sujeitos. Esse aspecto pode ser demonstrado por meio dos depoimentos, quando eles relatam os danos causados em suas vidas após iniciarem o uso de drogas [...] Você perde muito o valor da vida, também o conceito das outras pessoas [...] você perde totalmente a vergonha. E também perante a sociedade, você é considerado como um irresponsável. Além de dar trabalho para família, dá trabalho para firma, se torna um peso morto para sociedade. Você não gera frutos para sociedade [...]. É um poço sem fundo, tem uma hora que não tem mais nada. (José)
Os entrevistados percebem que, antes de realizar o tratamento para a dependência química, seu cotidiano era permeado de sentimento de perda de referência frente à própria vida, com a ausência de conceitos e valores, fazendo com que se sentissem um peso para a sociedade e a família sem, ao menos, saber quem eram perante a vida e a si mesmos, pois não se reconheciam mais como um indivíduo que necessitava de cuidado e compreensão. Esse sentimento pode tornar-se um agravante para a dependência de drogas porquanto a baixa autoestima e a ausência de valores morais são consideradas fatores de risco grave para quem faz uso abusivo de drogas.
Outra percepção identificada consiste nos frequentes esquecimentos. Os depoentes relataram que, no período em que estavam sob o efeito de droga, sua vida era semelhante a um livro com páginas em branco, sem uma história de vida escrita nele ou lembranças quanto a esse período. Tais relatos demonstraram alto teor de sentimento de tristeza e de arrependimento, quando expostos, denotando, assim, um viver inautêntico frente à condição de dependente químico. [...] O uso de drogas simplesmente é assim: se você começou a usar com 13 anos, digamos assim, ali é um livro. Até ali, você tinha uma história de vida; a hora que você começa a usar a droga, aquelas páginas ficam em branco. Se você um dia conseguir parar, aí você vê. Porque, na verdade, a gente não se conhece [...] esquece quem era você (Teodoro). [...] esses anos que eu fiz uso de drogas, muita coisa eu nem lembro o que aconteceu. Você não lembra da sua vida (Juscelino).
A vergonha e o sentimento de inferioridade se fazem presentes frente a uma vida sem sentido na qual, mais uma vez, o sujeito se encontra em uma condição de autoexclusão, frente à sociedade, por não se sentir digno de compartilhar dos mesmos direitos que os demais. Nesse contexto, o afastamento familiar e social torna-se cada vez mais forte, reforçando o sentimento de inexistência e inferioridade frente à sociedade e à família. [...] eu andei perdendo tudo. Perdi minha família, [...] a confiança do pessoal, da minha família, eu andava só para trás, eu me sentia, assim, um zero à esquerda (Pedro). [...] Eu tinha vergonha de mim mesmo quando morava na rua, quando eu estava naquela vida louca. Porque eu passava pelas pessoas bem arrumadas eu abaixava a minha cabeça, porque eu não tinha coragem de olhar no olho daquelas pessoas. Eu estava arruinado (Getúlio).
Reencontrando o caminho para o existir: percepções de vida durante o tratamento
Vale ressaltar os pontos de diferenciação, frente a essa percepção, quando esses sujeitos estão em tratamento para se reabilitar da dependência química. Os dados, agrupados nessa categoria, possibilitaram a compreensão das perdas relativas à dependência de drogas e a necessidade de o usuário reconstruir sua vida por meio do tratamento em saúde no CAPS-ad. [...] Hoje, eu conheço um pouco as minhas limitações; às vezes, eu posso dar uma caidinha, mas o tratamento me ajuda a fazer o que eu tenho que fazer. [...] Então, hoje, eu não tenho vergonha de quem eu sou e do que fui na minha vida; sabe, cara, sou feliz, sobrevivi. Quantos que não sobreviveram, sobrevivi e sou muito feliz por isso (Getúlio). [...] é como se você viesse aqui e recarregasse as baterias para você encarar lá fora, que lá fora você vê de tudo [...] o tratamento faz a gente não observar aquilo (droga), olhar e passar batido, pois há coisas mais importantes que aquilo (vida). Então, eu penso que você consegue não expulsar eles (pensamentos voltados para o uso de drogas), mas consegue lidar, deixar eles aqui no cantinho, falar: "não vou usar esse pensamento" (Juscelino).
Como evidenciado nas falas, os depoentes refletem sobre suas vidas enquanto estão em tratamento para a dependência química e reconhecem que, por meio da terapêutica, ocorre o reencontro com seu existir e, ao citarem não mais ter vergonha do que são e por "reabastecerem as energias" para vivenciar o cotidiano, deixam transparecer o orgulho de estarem vencendo a batalha contra a dependência.
Esse sentimento pode atuar como coadjuvante na continuidade do tratamento e abstinência porque faz com que esses indivíduos se sintam novamente respeitados por eles mesmos e reinseridos nos contextos familiar e social, como deixa claro o relato de Alfredo. [...] É legal que, quando você chega em casa, você é respeitado. Você não chega com abstinência, você chega lúcido, numa boa. A mulher mesmo, o pessoal de manhã cedo fala "bom dia"; antes, não iriam falar bom dia para mim (Alfredo).
Voltando a sonhar: perspectivas de futuro durante o tratamento
O compromisso com o tratamento evidencia a crença no serviço e nos profissionais da saúde como instrumentos que podem ajudá-lo na reconstrução de sua vida e na readequação de sua identidade como uma pessoa melhor e, inclusive, ser motivo de orgulho e aceitação na família e na sociedade. Thomaz, por exemplo, enfatiza que, por meio do CAPS-ad, poderá ser alguém que tem valor perante a vida e com condições de construir e oferecer um futuro mais promissor aos seus entes queridos. [...] eu tenho sonhos, projetos, planos [...] por isso que eu estou aqui com o compromisso. Eu não quero chegar numa idade e decepcionar as minhas filhas que estão crescendo; estou aqui porque preciso [...] Eu luto comigo todos os dias. Eu não estou me escondendo atrás de uma droga (Thomaz).
O tratamento também foi descrito como tendo potencial para promover a reconciliação, a união familiar e a felicidade em decorrência do viver em família e sem a droga. O que eu quero para o meu futuro é cuidar dos meus filhos, amar eles o máximo que eu puder, o meu cachorro também, ficar com a minha mulher, e ser o mais feliz que puder. Já sou, mas vou continuar sendo sempre. Eu acho que isso, para minha vida, já está bom. Eu quero ficar velhinho junto com a minha mulher (Getúlio).
Por meio da manutenção do tratamento, os participantes acreditam ser possível conquistar o respeito e aceitação por parte da família e da sociedade. Deixam transparecer que o cuidado ofertado no CAPS-ad imprime força na reconstrução de sonhos e novos "caminhos de vida". Isso pode ser constatado quando, ao se referirem à perspectiva de futuro, citam o desejo de melhorar de vida, de ter um trabalho. Ah, os planos agora é pegar firme no trabalho e andar para frente, guardar um dinheirinho, ver se dou uma melhorada na minha casa e crescer para frente (...) pensando futuramente em coisas boas (Pedro). Eu penso para o futuro, já estou com isso em mente já, isso aí eu pensava antes, mesmo quando eu estava no uso, já pensava. Só que eu nunca tive forças para correr atrás e agora, no momento que eu estou livre, estou com mais forças e mais vontade para correr atrás do que eu tenho vontade, que é abrir uma firma, abrir meu próprio escritório (Tiradentes).
Os objetivos concretos de reconstrução da caminhada profissional fazem parte dos planos futuros dos indivíduos em tratamento para a dependência química e de seus familiares. Porém, o que chama a atenção, em alguns discursos, são o medo e a insegurança frente à possibilidade de fracasso em decorrência da história pregressa da dependência de drogas, como evidenciam as falas a seguir. Então, eu tenho muita vontade de mudar minha vida, fiquei pensando, eu vou fazer uma faculdade. Daí eu fiquei pensando, com medo, com insegurança de não conseguir, porque eu fico pensando: "será que morreu muitos neurônios?" [...] então, é essa insegurança minha que está me matando. Eu sei que vai dar trabalho, mas eu vou tentar (Juscelino). Eu sempre tive vontade de montar um depósito de calçados para eu revender, mas eu me quebrei, não tinha onde me apegar [...]. Hoje, estou sobrevivendo por enquanto, mas ainda tenho essa esperança de conseguir (Laurindo).
Discussão
A dependência de drogas possui uma rede complexa de transformações na vida dos usuários, dos familiares e da comunidade. Embora as alterações histórico-culturais e as inovações no campo da saúde mental tenham sido marcantes nos últimos anos, as concepções e modelos da abordagem prática não têm avançado significativamente e requerem estudos e reflexões relacionados às formas de compreender mais profundamente o dependente químico a fim de se proporem estratégias mais assertivas e resolutivas de cuidado em saúde(10).
Assim, a reestruturação do modelo de assistência em saúde mental tem como um dos eixos de cuidado a reinserção social dos usuários de forma integrada ao meio cultural e à comunidade de que fazem parte, cumprindo os pressupostos norteados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica no Brasil e contribuindo com o enfrentamento dos desafios impostos para a recuperação do indivíduo(11).
O sentimento de desestruturação social, que permeia o cotidiano de quem abusa de álcool e drogas, pode ser um fator agravante para a continuação da dependência. Isto porque esse sujeito não consegue visualizar, sem a ajuda de profissionais qualificados, a verdadeira essência do seu viver, dificultando a reconstrução de seus valores para reformular seu existir.
Nesse sentido, os serviços de reabilitação psicossocial, como o CAPS-ad, desenvolvem ações que contribuem para a independência do usuário frente à vida, favorecendo a reinserção dos indivíduos no território por meio da ampliação das redes social e cultural que os cercam. Para tanto, faz-se necessário construir espaços que possibilitem a inclusão social dos usuários por meio de ações que incitem a reflexão, a educação em saúde e a redução do consumo de drogas(11-12). Construir tal rede coloca em evidência a importância de um relacionamento de confiança entre profissionais e usuários. Isto é possível por meio de estratégias de cuidado e da reconstrução de conceitos morais, sociais e familiares deturpados pela dependência química. Com isso, na visão dos trabalhadores, pode-se preparar estes indivíduos para a reintegração à sociedade(13-14).
Outras pesquisas demonstram que a presença de amigos e parceiros afetivos são estímulos para a redução do uso de drogas, pois, na maioria dos casos, a relação familiar está fragilizada em decorrência das situações conflituosas ocasionadas pelo abuso. Os fatores relatados como favoráveis à adesão ao tratamento e busca por qualidade de vida se referem à constituição de uma nova rede de relações que contribuem com a reconstrução da autopercepção frente à sua condição no mundo(15-16).
Reconhecer os usuários como pessoas que se sentem inexistentes e indignas é imprescindível para a assistência integral nos casos de dependência química. Cabe aos profissionais de saúde, principalmente ao enfermeiro, pelo convívio contínuo com essas pessoas, nos diversos serviços de saúde, ajudá-las a reconstruir sua identidade como alguém que pode e merece viver um existir pleno de realizações e alegrias, fazendo com que reconheçam seu valor perante a vida.
A questão da dependência de drogas exige mais reflexões em relação às formas de cuidado. É importante, por exemplo, que os profissionais tentem compreender, de forma isenta de julgamentos, a pessoa que recorre às drogas. Que considerem o entendimento que ela tem da sociedade, da família e de si própria, e a função que a droga desempenha em seu íntimo, objetivando suas ações para além da abstinência, por meio da melhoria da assistência prestada no enfrentamento dos problemas associados à drogadição(17).
Ao considerar o quanto o CAPS-ad pode contribuir para o desenvolvimento da autoestima dos drogaditos, é imprescindível que os profissionais de saúde abandonem a concepção hegemônica acerca do fenômeno da dependência química, redirecionando seu modo de intervenção. Isto porque a intervenção, via de regra, centraliza suas ações na noção de doença e tem, como meta, a abstinência, mas não considera o contexto dos indivíduos e de suas famílias, operando por meio de dispositivos morais que não valorizam os sentimentos desses sujeitos que necessitam de cuidado e nem a produção social em torno do abuso de drogas(18).
Perceber o reencontro desses sujeitos como membros de uma comunidade social e/ou familiar deve ser valorizado nos serviços de reabilitação psicossocial a fim de contribuir para o sucesso do tratamento e a reconstrução da vida desses indivíduos. Para tanto, discute-se a importância de correlacionar os sentimentos, percepções de vida e futuro, frente à sua nova condição, no intuito de quebrar o saber racional e moralista perante o abuso de drogas, reformulando as ações de cuidado com metas eficazes na manutenção do tratamento(18-19).
Pelos resultados desta pesquisa, pode-se perceber que essas pessoas buscam ajuda no tratamento para a reconstrução de suas vidas, edificando o seu existir como sujeito que tem valor perante a sociedade e reassumindo seus conceitos e vínculos perdidos com a dependência química. Qualquer trabalho desenvolvido no campo da dependência envolvendo prevenção, educação e tratamento, sob a perspectiva crítica e de qualidade de vida, requer a ausência de preconceitos e estigmas que contribuam para aumentar a exclusão social e podem conduzir o profissional a ações equivocadas que não favorecem o enfrentamento da problemática.
O cuidado direcionado para a reabilitação exige práticas que vão além da capacidade técnica, pois estas necessitam da presença de uma dimensão humana, com compromisso ético-político que visa à valorização da vida e à construção de uma sociedade mais igualitária na qual se busca a inclusão social daqueles que sofrem com a dependência de drogas(17).
O passado construído frente à dependência química não pode ser apagado, mas seu futuro pode ser remodelado com ações no presente, demonstrando que a luta contra as drogas é diária e a idealização de um futuro melhor está diretamente relacionada à reconstrução lenta e progressiva da confiança dos membros da família e da sociedade, o que é reforçado quando as pessoas em tratamento intentam um futuro melhor para si e sua família onde a droga não estará presente.
Estudo com jovens usuários de crack mostrou que, no momento em que eles eram convidados a falar sobre suas vivências frente à dependência química, também puderam perceber outros contextos, o que lhes despertava o reconhecimento das suas próprias histórias, possibilitando identificar suas potencialidades em tais situações. Enquanto contavam suas experiências, tinham a oportunidade de elaborar as situações vividas por meio do vínculo de confiança construído entre os profissionais e usuários do serviço, dando novos significados à sua condição de existir, permitindo a edificação de perspectivas futuras por meio da visualização de projetos de vida para os próximos cinco anos, incluindo seus sonhos e desejos nessa projeção(20).
Usuários de drogas em tratamento e seus familiares travam grandes lutas contra a dependência química, principalmente frente aos sentimentos de incerteza e insegurança em relação ao futuro. Reconhecem que precisam, constantemente, "remar contra as correntezas" do medo, do desconhecido e dos próprios valores e crenças para conseguir permanecer na luta contra a dependência química e, assim, conquistarem melhores condições de vida(21-22).
Assim, as únicas limitações do estudo foram a dificuldade que se teve em voltar ao tópico de discussão, em alguns momentos, quando alguns dos sujeitos iniciavam euforicamente a descrição de um evento vivido contando, em detalhes, os acontecimentos, sendo difícil interrompê-los. Grandes dispersões do tema aconteceram três vezes, sendo necessária a intervenção da pesquisadora para que o guia de temas fosse retomado.
Nesse sentido, ressalta-se a importância deste estudo quando se busca identificar a percepção de vida desses sujeitos e, com ela, reconhecer pontos de vulnerabilidade para recaídas. Acredita-se, portanto, que o profissional de saúde deve trabalhar sentimentos de toda ordem, tendo como foco o cuidado humano e integral em saúde, a fim de ajudar estas pessoas a reconstruírem suas vidas e a sonharem com o futuro, podendo contribuir para o sucesso dessas ações por ter, como legado, o cuidado holístico e acolhedor frente àqueles que necessitam de ajuda, sendo ela um instrumento importante de reabilitação e reinserção desses sujeitos, tanto familiar, quanto socialmente, quebrando as barreiras do preconceito mediante o cuidado em saúde.
Considerações Finais
Neste estudo, constatou-se que os sujeitos dependentes de drogas percebem sua vida como inautêntica enquanto não aderem ao tratamento, vislumbrando-se como pessoas sem valores frente à família e à sociedade e, por causa do abuso, acabam sendo delas excluídos. Desta maneira, após a adesão terapêutica, passam a buscar formas de reconstruir seu caminho, compreendendo as perdas que a droga acarretou e encontrando, no cuidado, um instrumento valioso para a reconstrução do seu existir, pois, nele, reelaboram sonhos futuros como a aceitação familiar e social.
Portanto, para compreender esse cenário tão complexo, que diz respeito à percepção de vida e às perspectivas de futuro das pessoas que abusam de drogas, faz-se necessário intervir no problema de forma intersetorial, incluindo não apenas os serviços de saúde, mas, também, as demais instituições – universidades e setores de pesquisa – que busquem desmistificar o estereótipo do dependente químico como alguém sem solução a fim de se estabelecer uma rede complexa de acolhimento e cuidado.
Presume-se, considerando os aspectos e dados aqui apresentados, que alguns pontos na construção do cuidado em saúde podem ser contemplados na abordagem relativa à dependência química, como a possibilidade de se trabalhar, junto ao usuário e à sua família, valorizando os aspectos de organização das atividades do cotidiano, as estratégias de enfrentamento de situações de conflito e o manejo dos próprios sentimentos.
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Recebido: 11.09.2017
Aceito: 03.12.2018
Autor correspondente:
Luana Cristina Bellini
E-mail: luana.bellini@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8460-1177 https://orcid.org/0000-0001-8460-1177
* Artigo extraído de dissertação de mestrado "Sentimentos e perspectivas de futuro de usuários de substâncias psicoativas em tratamento em Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas", apresentada à Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.