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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
On-line version ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.15 no.2 Ribeirão Preto Apr./June 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.000431
ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.000431
Compartilhamento do cuidado na atenção psicossocial: percepção de trabalhadores e usuários
Intercambio de cuidados en atención psicosocial: percepción de trabajadores y usuarios
Rafael Pasche da SilveiraI; Daiana Foggiato de SiqueiraI; Amanda de Lemos MelloI; Fernanda de Almeida CunhaI; Marlene Gomes TerraI
IUniversidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: compreender a percepção de trabalhadores e usuários acerca do compartilhamento do cuidado ao egresso de uma Unidade de Internação Psicossocial com encaminhamento a um Centro de Atenção Psicossocial.
MÉTODO: pesquisa qualitativa, desenvolvida em uma Unidade de Internação Psicossocial e um Centro de Atenção Psicossocial. Os entrevistados foram 15 profissionais e 10 usuários.
RESULTADOS: evidenciou-se o encaminhamento e o acesso dos usuários aos serviços substitutivos e as orientações referente a alta hospitalar do usuário como desafios para o compartilhamento do cuidado. O acolhimento, a alta assistida e o vínculo com serviços substitutivos, apresentaram-se possibilidades para o compartilhamento do cuidado.
CONCLUSÃO: observa-se a importância de um cuidado pautado nos princípios de interdisciplinaridade, intersetorialidade e integralidade.
Descritores: Saúde Mental; Acesso aos Serviços de Saúde; Integralidade em Saúde; Ação Intersetorial.
RESUMEN
OBJETIVO: comprender la percepción de trabajadores y usuarios acerca del compartir el cuidado al egresado de una Unidad de Internación Psicosocial con encaminamiento a un Centro de Atención Psicosocial.
MÉTODO: la investigación cualitativa realizada en una Unidad de Hospitalización psicosocial y un Centro de Atención Psicosocial. Los encuestados fueron 15 profesionales y 10 usuarios.
RESULTADOS: se presentaron enrutamiento y fácil acceso a los servicios alternativos y directrices relacionadas con el usuario del hospital alto como retos para el intercambio de cuidado. Además, el anfitrión, asistido alto y el enlace con los servicios alternativos, se presenta posibilidades para el intercambio de cuidado.
CONCLUSIÓN: señala la importancia de un cuidado guiadas los principios de la interdisciplinario, intersectorial e integridad.
Descriptores: Salud Mental; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Integralidad en Salud; Acción Intersectorial.
Introdução
A proposta da Reforma Psiquiátrica busca estratégias para diminuir as internações psiquiátricas e suas ações são voltadas à atenção ao usuário. Dentre as propostas, tem-se o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o qual é um serviço de atenção primária e de portas abertas, um ambiente constituído de trabalhadores de diferentes núcleos e que oferece cuidados de enfermagem, terapia ocupacional, fisioterapia, psicologia, consultas médicas e serviço social. Além dos atendimentos específicos, existem diferentes oficinas e grupos, constituídos por meio das demandas dos usuários. Esse é o principal serviço de saúde mental de base territorial, tornando-se, assim, fundamental no compartilhamento de cuidado pautado na intersetorialidade(1).
A assistência aos usuários, conforme a Política Nacional de Humanização (PNH), pode ser constituída a partir da organização em redes de saúde mental, por meio do cuidado compartilhado. Constitui-se na produção de novos modos de cuidar e novas formas de organizar o trabalho coletivo para melhorar o trabalho em saúde. Assim, o compartilhamento do cuidado busca uma maior efetividade através da autonomia dos sujeitos envolvidos, fortalecendo responsabilidades compartilhadas nos processos de gerir e de cuidar(2).
A PNH tem procurado consolidar as Redes de Atenção à Saúde Mental pautadas nos princípios da intersetorialidade, integralidade do cuidado e interdisciplinaridade. Sendo que a intersetorialidade é a articulação entre os serviços de saúde e a sociedade. A integralidade diz respeito à garantia do direito de acesso a todas as esferas de atenção em saúde, desde ações assistenciais até atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde. E, tem-se a interdisciplinaridade como uma superação de pensamentos dicotômicos na assistência à saúde, contribuindo para o fortalecimento da interação entre especialidades(2-4).
O compartilhamento do cuidado pautado nesses princípios pode ser compreendido como uma estratégia para a redução da fragmentação do cuidado a partir das conexões existentes dentro de uma rede de saúde. Também, possibilita às equipes integrar os diferentes saberes e transcender a assistência para além das doenças. Os trabalhadores e gestores, desse modo, possuem um papel fundamental na construção de um serviço de saúde mental que permita o desenvolvimento do cuidado compartilhado(5).
Conhecendo o contexto de mudança no cuidado de saúde mental por meio da história e os serviços que atuam na rede de cuidado, questiona-se: como ocorre o compartilhamento do cuidado ao usuário egresso de uma unidade de internação psiquiátrica com encaminhamento a um CAPS? Justifica-se a relevância deste estudo perante a vivência de residentes multiprofissionais inseridos em uma Unidade de Internação Psicossocial (UIP) de um Hospital de Ensino.
Nesse local, observou-se a reinternação de usuários em um curto prazo de tempo, corroborando com estudos que apontam para o fenômeno intitulado "porta giratória". Esse fenômeno ocorre a partir da admissão e readmissão frequente dos usuários em unidades de internação psicossociais, sendo um ponto preocupante e que reflete falhas no cuidado compartilhado(6-7). Diante disso, tem-se como objetivo compreender a percepção de trabalhadores e usuários acerca do compartilhamento do cuidado ao egresso de uma Unidade de Internação Psicossocial com encaminhamento a um Centro de Atenção Psicossocial.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, a qual valoriza a vivência das relações e os significados que os indivíduos atribuem a determinados fenômenos(8). Teve-se como cenário dois serviços da rede de saúde mental de um município no interior do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, os quais atendem pessoas com transtorno mental. Esses serviços foram a UIP de um Hospital de Ensino de grande porte e um CAPS II. Esse último é um dos quatro existentes no município, sendo o único que atende pacientes adultos com transtornos psiquiátricos.
Os participantes da pesquisa foram usuários egressos da UIP com encaminhamento ao CAPS II e trabalhadores da saúde de ambos os serviços. Quanto aos usuários, foram convidados aqueles encaminhados ao CAPS no período de janeiro de 2015 a janeiro de 2016, a partir da consulta dos registros de alta hospitalar da UIP. Assim, teve-se como critério de inclusão homens e/ou mulheres egressos da UIP do referido hospital que receberam encaminhamento para o CAPS, com tratamento regular ou irregular no serviço. E, como critério de exclusão, os usuários que estivessem sob o efeito de alguma medicação no momento da entrevista ou que estivessem com dificuldade de comunicação. O convite ocorreu a partir de um contato prévio via telefone ou encontro no CAPS.
Em relação aos trabalhadores de saúde, foram convidados aqueles que atuam na UIP, que participam da alta dos usuários e os trabalhadores do CAPS que realizam o acolhimento dos usuários egressos da referida unidade. Os critérios de inclusão foram trabalhadores da área da saúde de nível médio e superior, que atuam permanentemente nos referidos serviços (Médicos, Enfermeiros, Assistentes Sociais, Terapeutas Ocupacionais, Psicólogos, Técnicos de Enfermagem) e os residentes dos Programas de Residência Médica e Multiprofissional em Saúde (Enfermagem, Terapia Ocupacional, Serviço Social). E, como critério de exclusão, trabalhadores em licença de qualquer natureza ou em período de férias no período da coleta de dados. Assim, o corpus do estudo foi composto por oito trabalhadores do hospital universitário, sete trabalhadores do CAPS e dez usuários que passaram por uma internação psiquiátrica e foram encaminhados ao CAPS.
A produção dos dados ocorreu no período de junho a agosto de 2016, por meio de entrevistas semiestruturadas, as quais foram gravadas com um gravador digital e posteriormente transcritas pelo pesquisador principal. As entrevistas tiveram duração de vinte a trinta e cinco minutos, sendo realizadas em salas de atendimento dos referidos serviços. Referente às perguntas disparadoras das entrevistas, foram aos trabalhadores da UIP: "como você realiza o encaminhamento do usuário egresso da unidade psiquiátrica para o CAPS?"; aos trabalhadores do CAPS: "como é realizado o acolhimento no CAPS do usuário que recebeu alta da unidade de internação psiquiátrica?"; e aos usuários: "como foi para você receber alta hospitalar e ser encaminhado ao CAPS?". A coleta encerrou quando houve a saturação dos dados, ou seja, as informações começaram a se repetir(9).
Para a análise dos dados, utilizou-se a Análise Temática seguindo a Proposta Operativa(8), que se caracteriza por dois níveis de interpretação. O primeiro, momento interpretativo, consiste no contexto histórico do grupo social em questão. O segundo momento interpretativo representa a convergência com os fatos empíricos, é o momento em que se encontram nos relatos dos informantes o sentido e as interpretações. Para operacionalizar esse segundo momento foram seguidos os passos: ordenação dos dados; leitura horizontal e exaustiva dos textos; análise final e relatório, o qual finaliza a apresentação dos resultados da pesquisa.
Foram respeitados os aspectos éticos que envolvem seres humanos conforme a Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(10). Para manter o sigilo dos entrevistados, os trabalhadores e usuários foram, respectivamente, identificados pelas letras T (trabalhadores) e U (usuários), seguidas pelo número correspondente à ordem das entrevistas. A pesquisa foi Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o Parecer Nº 1.538.373/2016.
Resultados
A partir da análise dos depoimentos foram construídas duas categorias, as quais estão inter-relacionadas: Desafios para o compartilhamento do cuidado e Possibilidades para o compartilhamento do cuidado, conforme Figura 1.
Desafios para o compartilhamento do cuidado
No encaminhamento do usuário na alta hospitalar para os serviços na rede de saúde mental, evidenciou-se que nem todos os trabalhadores participam desse processo. Para tanto, os que realizam o encaminhamento, este acontece por meio de ofícios contendo explicações gerais sobre o usuário. Na verdade, nós não chegamos a realizar esse encaminhamento. Não chegamos a ter esse contato com a rede. (T5); Eu estava no hospital lá e a doutora me chamou e me deu alta. (U2); É um documento, não chega a ser uma referência e contra referência. Mas é via um ofício, um documento, explicando a patologia, as medicações em uso e solicitando o acompanhamento médico lá [...] Os pacientes perdem as folhas, às vezes. (T7); Eu vim aqui e falei que estava internado, mostrei o papel da alta pra eles. (U3).
Alguns trabalhadores acreditam que não é suficiente o encaminhamento por meio de um ofício e procuram fazer o contato via telefone. No entanto, os usuários apontam que não recebem orientações referentes ao serviço substitutivo na sua alta hospitalar. Eu acho importante continuar acompanhando, via contato telefônico[...] e, às vezes, quando eu acho necessário, importante... a gente manda por escrito um documento, mas normalmente é por telefone. (T4); Temos uma crítica teórica sobre a burocratização do sistema de encaminhamentos, onde você só dá um papel e diz para o paciente ir para tal lugar em tal endereço. Isso torna o contato mais formalizado, não tão eficiente segundo as críticas que a gente vê. A gente tenta resolver isso através de um contato mais pessoal, mais profissional de referência. (T6); Não! Não recebi nada, eu só pensava que poderia ser bom para mim vir para um serviço assim. (U7); Não me lembro de nenhuma orientação. Eles me orientaram aqui no CAPS mesmo. (U10).
Os trabalhadores relatam sobre como os serviços deveriam desenvolver a atenção à saúde mental, sendo que para estes o sucesso do tratamento dos usuários está diretamente ligado à rede que dá suporte. Para tanto, reconhecem as fragilidades que os serviços estão expostos referentes ao acesso no serviço substitutivo. Isso é questão de intersetorialidade, que é o que a gente quer, que os serviços estejam se comunicando, saber o que o outro já fez, saber quem está acompanhando [...]. Eu normalmente consigo me comunicar com o CAPS, mas eu acho que eles não têm perna para realizar tudo que seria necessário porque seriam muitos os usuários. A rede também, às vezes, não consegue dar conta, é toda uma questão de uma assistência social precária no município. (T4); Tem esses outros empecilhos todos para assegurar o encaminhamento e essas outras coisas, dificuldade de acesso, as questões socioeconômicas, não aceitação do tratamento [...] muitos de nossos pacientes não têm condições de acesso ao serviço pela pobreza, pelos lugares onde moram, pela precariedade de transportes, enfim, várias situações de dificuldade social para acessar o serviço. (T6).
Possibilidades para o compartilhamento do cuidado
O acolhimento no CAPS, onde o usuário acessa o serviço em que foi encaminhado, é uma possibilidade de continuidade na atenção ao usuário dos serviços de saúde mental, bem como a alta assistida. Fui muito bem recebido, fui bem tratado, bem reconhecido, o que foi importante para mim. Me senti melhor. Eu fui bem recebida, ela explicou bastante coisa sobre a doença, me disse que era uma vida normal sendo medicada, trabalhando o psicológico, que eu ia conseguir cuidar da minha família de novo. (U2); Para mim foi uma coisa boa, excelente! Eu estava num momento que mesmo saindo do hospital, eu não fiquei em um momento bom. Da maneira que eles me acolheram, me surpreendeu! Porque eu nunca imaginei que seria tão bem recebida. (U7); Em alguns casos excepcionais, já fizemos alta assistida, que alguém daqui levava o usuário até o CAPS, num dia que fosse combinado com o CAPS para que garantisse que esse paciente fosse ao menos ao acolhimento[...]. Fazíamos visitas semanais ao CAPS levando alguns pacientes internados que nós achávamos que poderiam ser encaminhados ao CAPS, era uma maneira de já, durante a internação, ele conhecer o CAPS. (T6); Além de relatarem que foram bem acolhidos, demonstram a importância do serviço para eles e a relação estabelecida com a equipe. O pessoal estava ansioso, preocupado comigo. Sempre que eu apronto as minhas o pessoal fica preocupado: "quanto tempo tu não vem aqui no CAPS, tu estava doente?". É aquele carinho, aquele aconchego sabe? "Tu tens que vir nos grupos, tem que participar mais" é um negócio bem legal. (U1); A fisioterapeuta conversa muito comigo, ela diz assim: "não é só um profissional que ajuda, tem os grupos que ajudam, tem que participar". Então, eu venho na segunda, terça e quinta. (U4); Eu, me sinto acolhida. Se eu estou com vontade de chorar, eu vou ali e converso com a psicóloga. Ela acha uma sala nem que seja, um cantinho no pátio para conversar, para me abraçar. (U8).
Discussão
Na busca por um cuidado compartilhado, o trabalho em saúde mental é permeado pela intersetorialidade, entendida como a articulação integrada dos serviços que compõem essa rede. O usuário pode ser visto como um sujeito que necessita ser reconhecido dentro da sociedade e tem suas demandas contempladas pelas redes e políticas sociais, superando uma lógica fragmentada das questões sociais(11).
A atenção psicossocial é composta por um processo social, complexo na constituição de seu modelo de cuidado. Envolve a participação do usuário, revisão de conceitos relacionados às práticas de serviços e trabalhadores, destacando a importância do cuidado humanizado e do diálogo intersetorial em saúde mental(12).
Assim, para trabalhar em uma mudança do paradigma de um cuidado fragmentado na área da saúde é pertinente conhecer os serviços que compõem a rede de saúde mental. Com vistas a operacionalizar o encaminhamento entre os pontos dessa rede, é necessário atentar para o diálogo intersetorial(13). Atualmente, a saúde mental tem desafios importantes, como a articulação com a rede de urgência e emergência, comunicação e trabalho com a atenção básica, qualificação e expansão de serviços de base territorial e intersetorialidade nas ações de saúde mental(14).
Os próprios usuários reconhecem a qualidade dos serviços de saúde mental que acessam. Apontam que os mesmos têm falhas que comprometem o tratamento e podem levar a uma internação psiquiátrica. Sem esquecer o quadro atual de dificuldades relacionadas à gestão, encaminhamento dos usuários, reinternações em hospitais, alta demanda de usuários e trabalhadores sem qualificação na área da saúde mental(13,15).
Esses aspectos corroboram com os resultados evidenciados neste estudo, no que se refere aos desafios no encaminhamento dos usuários aos serviços substitutivos. A exemplo desses desafios, tem-se a falha no encaminhamento, que pode ser devido às diferenças entre os modelos de cuidado. Por um lado, tem-se a unidade hospitalar com foco no tratamento medicamentoso e, por outro lado, o serviço substitutivo, como o CAPS, com vistas ao cuidado integral e em base territorial(16).
O modelo de atenção público de saúde é dividido em níveis de complexidade dos seus serviços. Como principal porta de entrada no sistema, tem-se a atenção básica, sendo uma orientadora dos serviços, que realiza o encaminhamento para outros níveis de complexidade. A atenção secundária é constituída por procedimentos de médio custo, com serviços que abrangem, prioritariamente, unidades ambulatoriais e serviços substitutivos, como os CAPS. E a atenção terciária corresponde aos procedimentos de alto custo, sendo constituída por unidades hospitalares, compreendendo as UIPs. Nessa perspectiva, é constituída uma hierarquização composta por atenção primária, atenção secundária e terciária(17).
Dessa forma, na busca por estratégias de cuidado compartilhado, é inevitável destacar a importância das relações entre os modelos de cuidado no contexto da saúde mental. Contudo, ainda é um desafio articular o cuidado entre diferentes níveis de complexidade, sendo necessário o fortalecimento e a sistematização da conexão entre os serviços para que exista o compartilhamento de cuidado(18).
Mesmo com diferenças entre os cuidados prestados, a comunicação entre os serviços deve existir, seja por meio telefônico, via ofício, digital ou pessoal. Entretanto, essa ação não deve ser de forma isolada, o usuário necessita ser orientado e acompanhado até a chegada no serviço que foi encaminhado, oportunizando a manutenção e otimização das práticas de cuidado de seu tratamento(17).
O encaminhamento após a alta hospitalar é o momento no qual o usuário recebe informações sobre os cuidados no pós-alta. Assim, os profissionais necessitam conhecer as expectativas e preocupações do usuário, bem como o serviço em que está sendo realizado o encaminhamento. Diante do exposto, tem-se um processo de alta hospitalar, o qual precisa estar pautado no tratamento integral, intersetorial e interdisciplinar, com vistas a ofertar suporte ao usuário dentro de uma rede de cuidados.
No entanto, ainda existem redes de saúde que, por vezes, são rizomáticas, ou seja, uma rede sem pontos de entrada ou saída definidos, constituindo um fluxo confuso(12). Dentro desse fluxo, como frutos do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, pautados pelo processo de desinstitucionalização dos usuários, têm-se os serviços substitutivos, entre eles CAPS, Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), Lares Abrigados, Centros de Convivência, Hospitais-dia e as Cooperativas, dentre outros. Estes são serviços voltados para além do tratamento, envolvem um assistir em saúde mental com base na promoção da saúde e bem-estar dos usuários(6).
O CAPS é serviço de base territorial, orientado por um olhar ampliado sobre o contexto no qual o usuário está inserido, isso implica em ir além do espaço geográfico, reconhecendo as individualidades de cada usuário. Assim, entende-se que o cuidado integral poderá ser fortalecido a partir do estímulo à interação entre todos os sujeitos envolvidos na atenção à pessoa com transtorno mental(18). O trabalho no território possibilita um acompanhamento da realidade vivenciada pelo usuário, contribui para a construção de um cuidado que entenda as dificuldades do cotidiano desse sujeito, podendo ser criada uma prática de cuidado que se adapte à individualidade de cada um.
No CAPS, o acolhimento, vínculo e corresponsabilização pelo outro são requisitos fundamentais para a organização da assistência à saúde. Estes constroem laços afetivos, confiança, respeito e compartilhamento de saberes entre usuário, familiares e trabalhadores(13).
Pensando no atendimento integral aos usuários, ressalta-se a importância do acolhimento nos serviços de saúde mental, este se propondo a uma "materilização" de um encontro entre usuário e serviço(16). Para que o fluxo à pessoa com transtorno mental na rede ocorra de forma eficaz, faz-se necessário realizar o encaminhamento aos serviços substitutivos durante a alta hospitalar, sendo que esse aspecto é fundamental para a vinculação do usuário aos serviços/trabalhadores.
As taxas de reinternação têm sido utilizadas como indicadores da qualidade do cuidado prestado em saúde mental. Estas, além de trazerem dados da realidade na qual o usuário está inserido, expõem características do suporte prestado pela rede de saúde mental perante as singularidades dos usuários(15).
No tratamento em saúde mental é comum a reinternação em hospitais, isso pode ocorrer por alguns fatores. Dentre estes, pode-se citar a não adesão aos serviços substitutivos ou por um tratamento irregular. Como estratégia para superar essa dificuldade, tem-se o projeto de alta assistida(19). Através desse projeto, busca-se assegurar um tratamento extra-hospitalar revertendo o processo de exclusão social de usuários que saem de uma internação. É realizado um trabalho com pacientes e familiares do usuário, promovendo contato com os mesmos após a alta, sendo realizadas orientações sobre medicação e comprometimento com o tratamento, além de acompanhar o usuário até o serviço de referência, buscando o comprometimento do gestor com o tratamento do usuário encaminhado, ajudando, assim, na construção do vínculo com o serviço.
Em relação à vinculação do usuário aos serviços substitutivos de saúde mental, este pode estar diretamente ligado à percepção que o usuário tem do serviço e do tratamento recebido naquele ambiente. Desde seu acolhimento no serviço até o início de sua inclusão nas atividades, as relações intersubjetivas estabelecidas entre usuários e trabalhadores são fundamentais em um cuidado integral(20).
A partir da interação entre usuário e demais sujeitos envolvidos no cuidado, a constituição de vínculo facilita a adesão do usuário no serviço substitutivo, o qual pode ser favorecido por meio de ações interdisciplinares. Estas podem fortalecer o compartilhamento do cuidado entre os profissionais por meio de trocas de saberes que visem facilitar a construção de um encaminhamento adequado dentro da rede de cuidado(4).
Tem-se, a partir das ações interdisciplinares, a possibilidade de emancipar o usuário diante da sua real necessidade. E isso pode acontecer por meio de ações planejadas de maneira compartilhada com os usuários e profissionais de diferentes áreas. Então, cria-se uma rede de interdependência e corresponsabilização no cuidado com vistas ao atendimento integral e trabalho em rede(4).
Para alcançar resultados na área da saúde mental e consolidar as redes de atenção pautadas nos princípios da intersetorialidade, integralidade do cuidado e interdisciplinaridade, é importante a ruptura do modelo assistencial tradicional. A articulação entre os serviços e profissionais precisa ocorrer de maneira estruturada, em que os diferentes setores possam se comunicar, refletir e pensar no compartilhamento do cuidado.
Considerações Finais
A pesquisa possibilitou conhecer as percepções de usuários e trabalhadores sobre o compartilhamento do cuidado dentro da rede de saúde mental de um município do estado do Rio Grande do Sul. Evidenciou-se que existem desafios na rede de saúde mental, como as orientações aos usuários, encaminhamento e acesso aos serviços substitutivos. Além dos desafios, conheceu-se as possibilidades para efetivação do compartilhamento do cuidado, as quais se referem ao acolhimento, alta assistida e vínculo dos usuários aos serviços substitutivos.
Aponta-se como estratégia para o compartilhamento do cuidado nas redes de atenção à saúde mental os princípios como a intersetorialidade, integralidade do cuidado e interdisciplinaridade. Assim, tem-se um cuidado que pode auxiliar nas conexões dos serviços a fim de reduzir a fragmentação da assistência, possibilitando uma rede de saúde articulada e consolidada. Para tanto, é necessário que os trabalhadores e gestores dos serviços se tornem corresponsáveis pelo compartilhamento do cuidado por meio do comprometimento do encaminhamento pós-alta hospitalar e acolhimento nos serviços referenciados.
A presente pesquisa apresenta como limitação o estudo ser constituído em uma microrregião, portanto esses dados não são generalizados. Ademais, espera-se que a mesma venha a contribuir com a reflexão do paradigma psicossocial na constituição do cuidado compartilhado em saúde mental entre a rede hospitalar e a extra-hospitalar.
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Recebido: 17.10.2017
Aceito: 07.12.2018
Autor correspondente:
Daiana Foggiato de Siqueira
E-mail: daianasiqueira@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-8592-379X