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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.17 no.2 Ribeirão Preto Apr./June 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.000166 

EDITORIAL

 

Efeitos da Covid-19 na saúde mental: resgatando a dignidade humana pelo afeto*

 

 

Andrés Eduardo Aguirre AntúnezI,II,III

IUniversidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica, São Paulo, SP, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, Pró-Reitoria de Graduação, Escritório de Saúde Mental, São Paulo, SP, Brasil
IIIUniversidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Instituto de Psiquiatria, São Paulo, SP, Brasil

Autor Correpondente

 

 

 

Antes da pandemia Covid-19 nos deparávamos no meio universitário com constantes pedidos de ajuda de estudantes com transtornos psiquiátricos como os de ansiedade, depressão, transtornos bipolares, obsessivo-compulsivos, esquizofrenia, etc. e sofrimentos emocionais, como medos, temores, angústias, solidão, desamparo, problemas existenciais, sentimento de desenraizamento, desespero. Em março de 2020 as atividades presenciais da Universidade de São Paulo foram suspensas dada a pandemia, mas atividades remotas permitiram que a instituição não parasse e seguisse sua ação no ensino, na pesquisa e nos atendimentos psicológicos.

A pandemia Covid-19 gera um fator de estresse sem precedentes e uma necessidade de apoiar pacientes com doenças mentais graves, pois é difícil manter hábitos saudáveis como dieta e atividade física, autocontrole de condições crônicas de saúde mental e física. O aumento de ansiedade e de depressão pode gerar risco de solidão e isolamento em população mais vulnerável e também em profissionais de saúde, ainda mais se a pandemia for de longa duração(1). Diante desse cenário, pesquisadores recomendam o trabalho multidisciplinar com alto investimento em pesquisa(2) e ação coordenada(3), que atentem às consequências para grupos vulneráveis.

Alguns efeitos da Covid-19 que impactam a saúde mental(4): medo de se contaminar e contaminar outros desencadeando reações agudas de estresse; necessidade de quarentena, mudança de rotina e confinamento culminam em sentimento de desamparo, tédio, ansiedade, angústia, irritabilidade e raiva pela perda da liberdade; luto, depressão diante das mortes sem os rituais de despedida podem aumentar o risco de suicídio; aqueles admitidos em UTI poderão desenvolver futuramente depressão grave, transtorno de estresse pós-traumático e outras condições psiquiátricas; e as perdas econômicas e de emprego podem transformar estresses agudos em crônicos, aumentando o risco para transtornos mentais. Quando a angústia ou a depressão é incontrolável, ou impacta outros aspectos da vida, como a função familiar ou profissional, é necessário buscar ajuda profissional.

A partir do projeto sobre o suicídio em estudantes universitários: estudo clínico e fenomenológico de orientação, prevenção e terapêutica (FAPESP), construímos nos acolhimentos e Rodas de Conversas, presenciais e virtuais, no Escritório de Saúde Mental da Pró-Reitoria de Graduação da USP um conhecimento fruto de vivências compartilhadas com a comunidade. Nessa experiência acolhemos a complexidade humana: a dor, a angústia, o medo, o desespero, o luto, a esperança e a falta dela, o diferente, o cansaço, a desmotivação. Diante de uma sociedade cuja comunicação virtual e tecnológica predomina, refletimos sobre a importância de uma educação básica que inclua a finitude (a morte), a frustração e o luto como processos inerentes à vida que precisam ser dialogados e cuidados em interlocução com profissionais de saúde para que amadureçam personalidades, bem como a dimensão espiritual, fortalecendo o combate à situação de crise sanitária.

Perspectivas inovadora, interdisciplinar e internacional são bem-vindas. A Filosofia nos ajuda a ampliar reflexões, pois é uma ciência que trata do amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância(5). Temos a cultura científica e a humanística e nelas duas importantes disciplinas, a psicologia e a psicopatologia, que se referem ao humano e as patologias do psíquico e ambas não podem ser abandonadas totalmente às ciências naturais, sendo oportuno, de fato, assumir uma atitude crítica em relação a cada posição reducionista do ser humano a um de seus aspectos(6).

Importante reconhecer que na base da cultura humanística, das ciências biológicas e exatas, se encontra o ser humano e sua dignidade. Ciência significa saber e não pode ser reduzida ao paradigma das ciências naturais, físicas e orgânicas, pois temos as ciências humanas, cujo mistério do ser humano não será jamais explicado, mas sim compreendido, respeitado e tolerado. Assim, poderemos ajudar os outros em sua integridade e complexidade, não excluindo, mas trabalhando em integração e parceria.

Vivemos um momento ímpar na história da humanidade, no qual precisaríamos unir forças e competências, para juntos auxiliarmos a humanidade e a sociedade, admitindo os limites e alcances de cada disciplina, acolhendo o diferente, o estranho, o outro, diminuindo todo preconceito e estigma pessoal e social.

Nós, seres humanos, não somos robôs ou máquinas passivamente determinadas. Somos afetados pelos outros e pela vida que habita em nós. Em afeto nasço com outrem(7). Ser afetado não é uma fragilidade ou negatividade, mas é antes a possibilidade de uma relação. No afeto encontramos a força e o dinamismo da renovação da cultura, nas suas múltiplas dimensões: econômica, política, estética, todas elas profundamente afetadas por esta crise universal.

Para combater parte das dificuldades decorrentes da pandemia é útil buscar aqueles que sentimos, intuitivamente, poderem nos ajudar, pois, procurar auxílio é um gesto de sabedoria, cuja ação amplia a compreensão, a elaboração e a busca por um novo sentido para a vida. A experiência cotidiana no acolhimento a estudantes da Universidade de São Paulo nos mostra que eles querem expressar seus sentimentos sem serem julgados, sem preconceitos, moralismos, de modo que anseiam encontrar relações que devolvam a eles um sentimento de pertencimento ao mundo humano e poder assim resgatar sua dignidade e esperanças pelo afeto e reconhecimento mútuo.

Os jovens anseiam serem conhecidos, saindo do isolamento, timidez e controlar suas ansiedades e tristezas. O cuidado pedagógico e pessoal é vital em sua formação universitária e humana, mas clamam por certa continuidade de cuidados e reconhecimento de sua importância pessoal e comunitária. É preciso acreditar na potência da relação compreensiva, sensível e interessada pelo outro, pois uma relação significativa gera marcas na vida do jovem adulto, mostrando que o principal antídoto para combater os efeitos psíquicos da pandemia é a relação interpessoal equilibrada, solidária e verdadeiramente interessada por nosso semelhante, confiante em sua capacidade de resiliência e enfrentamento.

 

Referências

1. Druss BG. Addressing the COVID-19 Pandemic in Populations With Serious Mental Illness. JAMA Psychiatry. 2020;77(9):891-2. doi: http://dx.doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2020.0894        [ Links ]

2. Holmes EA, O'Connor RC, Perry VH, Tracey I, Wessely S, Arseneault L, et al. Multidisciplinary research priorities for the COVID-19 pandemic: a call for action for mental health science. Lancet Psychiatry. 2020;7(6):547-60. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30168-1        [ Links ]

3. Leshner AL. Target student mental well-being. Science. 2021 Jan 22;371(6527):325. doi: http://dx.doi.org/10.1126/science.abg5770        [ Links ]

4. Mari JJ, Oquendo MA. Mental health consequences of COVID-19: the next global pandemic. Trends Psychiatry Psychother. 2020 Sep [cited 2021 Feb 11];42(3):219-20. doi: https://doi.org/10.1590/2237-6089-2020-0081        [ Links ]

5. Houaiss A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva; 2001        [ Links ]

6. Ales Bello A. O sentido do humano entre fenomenologia, psicologia e psicopatologia. São Paulo: Paulus; 2019. 187 p        [ Links ]

7. Martins F. Estátuas de anjos: para uma fenomenologia da vida e da clínica. Lisboa: Colibri; 2017. 138 p.         [ Links ]

 

 

Autor correpondente:
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
E-mail: antunez@usp.br

 

 

* Apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, Processo nº 18/19520-8 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo nº 302417/2018-4, Brasil.

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