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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.5 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2005

 

SEÇÃO TEMÁTICA: PSICOLOGIA JURÍDICA

 

Infância: discursos de proteção, práticas de exclusão

 

Infancy: discourses of protection, practices of exclusion

 

 

Maria Lívia do Nascimento* I; Estela Scheinvar** II

I Universidade Federal Fluminense
II Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute a produção histórica de alguns dos chamados equipamentos sociais de proteção à infância, problematizando os contextos políticos nos quais eles emergem. As análises se fundamentam em experiências desenvolvidas pelas autoras em Juizados da Infância e da Juventude e em Conselhos Tutelares, permitindo pensar instituições sociais como infância, assistência, família, dentre outras. As discussões presentes no texto apontam que a relação de tutela e as políticas de proteção, muitas vezes, resultam em práticas de exclusão e não na garantia dos direitos conquistados e estabelecidos em lei. Dessa forma, faz-se necessário pensar os modos de funcionamento das relações de proteção voltadas aos setores infanto-juvenis, trazendo para o debate sua produção histórico-política.

Palavras-chave: Infância, Proteção, Exclusão.


ABSTRACT

The present article discusses the historical production of some of the called children’s protection social equipment, problematizing the political contexts in which they emerge. The analyses are based on experiences developed by the authors in Children and Youth Judgements and in the Tutelary Councils. These experiences take the authors to question social institutions as infancy, assistance, family, youth, in between others. The debates present in this text point out that the tutelary relation, as well as the protection policies many times result into practices of exclusion, not necessarily guaranteeing the rights conquered and established in law. Therefor, it is necessary to think and analyse the historical way that protection relationships involving infancy and youth have been produced.

Keywords: Infancy, Protection, Exclusion.


 

 

Ao pensarmos a questão dos direitos da criança e do adolescente brasileiros, dois conceitos devem ser necessariamente discutidos: o de exclusão social e o de proteção. Ambos presentes nas concepções e nas práticas dos equipamentos de assistência e proteção social estruturados ao longo do século XX. No presente artigo, a proteção será pensada em relação à exclusão social e aos equipamentos sociais da justiça da infância e da juventude, trazendo experiências de trabalho junto a Juizados e outras entidades de atendimento.
A idéia do que vem sendo chamado "proteção à infância e à juventude" tem se remetido a dois âmbitos: ao da “bondade” e ao da competência técnica. Experiências desenvolvidas em Juizados da Infância e da Juventude, escolas de Ensino Fundamental e outros estabelecimentos1 obrigam a uma leitura mais apurada das práticas e dos discursos relativos aos direitos da criança e do adolescente. A intervenção em áreas de atuação direta com esta população oferece uma sustentação empírica à análise de relações generalizadas através de conceitos e categorias históricas, tais como proteção e exclusão. Nesse sentido, inúmeras questões podem ser problematizadas, como nos casos do binômio exclusão/inclusão social, da legislação específica para esta faixa etária e seu aparato jurídico ou, ainda, da relação assistência/tutela/abandono. O recorte que se faz aqui, embora por vezes possa referenciar cada uma destas vertentes, privilegiará apenas algumas delas. Para tanto, a proteção será pensada em relação à exclusão social e aos equipamentos sociais da Justiça da Infância e da Juventude, trazendo experiências de trabalho junto a Juizados e outras entidades de atendimento.

Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA2 prescrever a descentralização da estrutura política desta área, através de conselhos de direitos da criança e do adolescente, o Juizado da Infância e da Juventude ainda é tido, pela população de maneira geral, como o lugar por excelência da defesa dos direitos de crianças e jovens, pautando sua prática em uma noção de proteção. Por outro lado e simultaneamente, está localizado em cenários de coerção. No primeiro caso, é associado ao espaço das soluções: resolve, encaminha, adapta, pune "os maus", ampara "os bons", enfim "protege". No segundo, é visto como órgão repressor que ameaça, produz medo, representa a autoridade, normatiza, ou seja, exerce um poder coercitivo.

Portanto, proteção e coerção, noções que podem parecer opostas, estão associadas nas práticas dos estabelecimentos de assistência à criança e ao adolescente. Tais práticas, tradicionalmente situadas no âmbito da filantropia, são vistas apenas pelo seu lado de amparo. No entanto, quando circunscritas a contextos histórico-políticos concretos adquirem outras dimensões. Desconsidera-se, ao referir-se à filantropia, que por um lado, sua produção acompanha o que Ariès (1978) chama de “sentimento de infância”, entendido como uma produção histórica e não como um sentimento natural do homem e que, por outro, este sentimento se dá no contexto da afirmação da sociedade burguesa. As conotações relativas à infância serão diferenciadas, de acordo com as diferenças sócio-econômicas dos sujeitos. As práticas de proteção são produzidas historicamente e, nesta medida, localizadas de acordo com a época e a forma que adotam. Portanto, tal produção pode referir-se a dois processos: o de definição da infância e o de afirmação da sociedade de classes.

 

INFÂNCIA, FAMÍLIA E PROTEÇÃO NO CONTEXTO LIBERAL

Ao pensarmos a emergência do conceito de infância, que data do século XVI, vemos que ele vai se definindo no contexto da afirmação de uma sociedade disciplinarizadora, tendo como dispositivo fundamental a educação religiosa. A ênfase nesta camada da população é tão importante que o poder eclesiástico - à época dominante - configura a infância como “um catecumenato privilegiado” (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992). Na medida em que a produção da infância se dá em uma sociedade excludente, o tratamento à população é diferenciado de acordo com os seus recursos materiais. Assim, obedecendo aos princípios da sociedade de classes, a catequese terá propostas e práticas diferenciadas, de acordo com a população à qual se destina. Dessa maneira, a formação da criança variará em função da condição de classe de sua família, sendo que uma família com posses se caracterizará por uma relação pedagógica que a capacita para exercer funções de mando, ao passo que os pobres dependerão dos espaços públicos, que por séculos se restringiam a instituições totalitárias, nas quais eram preparados para servir. Embora de forma distinta e com outros matizes, percebe-se que, de alguma maneira, estas diferenças permanecem cinco séculos depois.

Um dos traços distintivos da educação entre crianças de diferentes classes sociais é que as mais abastadas têm as condições necessárias para serem educadas ao lado dos pais, tendo a relação familiar como referência. Já as famílias mais pobres, com maior freqüência, são objeto de intervenções que, longe de protegê-las, as desqualificam. A intervenção governamental na família pobre se dá através da proteção filantrópica, que educa no sentido de sua imediata inserção no processo produtivo, ao contrário das famílias de maiores recursos materiais, cuja educação tem diversos sentidos tais como o lúdico, o psicomotor, o da afirmação afetiva, antes de preocupar-se com a entrada no mercado de trabalho. Nessa medida, dar proteção aos pobres é fazê-los trabalhar.

Ao localizar a proteção no campo de ação da filantropia, entende-se que esta deve se pautar no campo da “boa vontade" e não da ação pública. Além do mais, a abordagem filantrópica se dá de forma individualizada, como se as demandas fossem particulares. O particular, neste contexto, é entendido como a culpabilização individual pelas condições de vida das pessoas às quais se socorre e não como problemas coletivos, produzidos histórica e socialmente. A individualização das condições de vida é fruto da transformação da vida comunitária em espaço privado, sustentado por saberes específicos. A técnica se difunde como fundamento das relações. No trabalho, o domínio de conhecimentos técnico-especializados prevalece, embora as bases teóricas em que se sustentam tais saberes sejam patrimônios de elites. A divisão social do trabalho em manual e intelectual e a organização social que diferencia famílias de maior poder aquisitivo e autônomas das pobres e sob a proteção pública são dois aspectos que emergem no processo de privatização. A privatização operada pelo avanço da sociedade capitalista se dá em todos os sentidos. Não apenas é privatizado o produto do trabalho, como também o saber, a convivência, a família, e nela a infância. Para lidar com os espaços de forma privada é criada uma rede de especialistas que difundirão os saberes considerados corretos e verdadeiros aos quais os sujeitos deverão enquadrar-se.

Nessa medida, lidar com a infância passa a ser “coisa de especialistas”. A relação pedagógica e médica, a organização familiar, a moradia estão enquadradas em normas e modelos difundidos por especialistas, através de dispositivos disciplinares produzidos a partir do século XVI. Modelos que reforçam o caráter privado da relação familiar e, dessa forma, reafirmam seu distanciamento do âmbito público, espaço que anteriormente definia as práticas sociais através das rotinas comunitárias. A relação pública da família fica confinada a espaços localizados e institucionalizados, sem interferir diretamente na vida política. Nesse sentido, a família emerge como um território privado, íntimo, com atribuições no seu interior e explicitamente excluída do “mundo da política”. A correlação entre família e política se produz através de dispositivos disciplinares, localizados no âmbito da “proteção”. Retira-se a proteção do contexto histórico no qual emerge e se conferem à família atribuições políticas disciplinares essenciais à organização social, negando sua participação direta e cotidiana no âmbito da política pública.

Contudo, se a proteção for percebida enquanto um processo histórico excludente, seja em sua dimensão geral, que produz a dicotomia público e privado, ou através de estratégias de afirmação de uma sociedade de classes, a responsabilidade por sua execução não se limitará ao voluntarismo "do bem", mas ao compromisso político com um projeto que reverta as condições de exclusão. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se reconhece a filantropia como a forma mais difundida de oferecer “proteção”, é inquestionável a função do Estado moderno nessa tarefa. Quando a “boa vontade” não corresponde às demandas dos "necessitados", é consensual a responsabilização do Estado. Nele, as formas através das quais se oferece “proteção social” são organizadas pelo governo, por práticas específicas para exercer e manter o poder.

O “governo” como questão social e política emerge no século XVI, com a disseminação de grupos sociais que, obrigados a migrar para sobreviver, rompem com a tradicional estabilidade de seus assentamentos. Na sociedade moderna, o deslocamento e a migração são elementos do cotidiano. Ao se perderem os laços comunitários tradicionais de educação dos jovens, a relação com a criança também se vê implicada entre as práticas de governo. Esta é situada no âmbito da pedagogia que, por sua vez, sempre esteve implicada na família, no governo da família, cujo sentido é o governo através da família (DONZELOT, 1980). Assim, é associada a um processo político determinado, onde sua intervenção passa a ser decisiva para a manutenção da ordem, a partir da qual o exercício de poder se preserva. Dessa forma, a família moderna está diretamente associada ao contexto político de governo.

O governo é uma prática concreta apoiada em aparelhos, equipamentos, instituições, procedimentos, que permitem o exercício de uma forma específica de poder. Tem por alvo a população à qual se remete a partir de relações de controle, dita de “segurança”, como ocorre no caso do aparelho judiciário.
A segurança social, portanto, é um instrumento do poder que indica maior autonomia dos indivíduos, embora, paradoxalmente, implique em maior dependência. O discurso da sociedade liberal se dá no sentido de garantir a “liberdade” de cada indivíduo. Ao mesmo tempo, essa liberdade está condicionada à capacidade de se enquadrar na estrutura econômica e nos modelos sociais. Capacidade que esbarra nas contradições da sociedade capitalista, sustentada na especulação do mercado, onde uma das mercadorias é a força de trabalho. Portanto, segurança social, no sentido de oferecer independência ao cidadão, apenas opera para quem já está inserido em uma estrutura econômica determinada. Do contrário, a dependência operará por outras vias, que no Brasil se localizam nas políticas de assistência social. Como assinala Foucault (s.d., p. 212), “observa-se um efeito de dependência por integração e um efeito de dependência por marginalização ou exclusão”.

 

PROTEÇÃO E EXCLUSÃO: PROXIMIDADES

A política social é convocada a penetrar com ênfase em situações de exclusão social. No entanto, como aponta Robert Castel (1996), a noção de exclusão social vem sendo utilizada de maneira muito inflacionada e heterogênea. Tornou-se de tal maneira massificada que está completamente indefinida, cobrindo realidades por demais díspares3. O exemplo é do próprio Castel, que discute o fato de tanto um trabalhador desempregado quanto um jovem morador de periferia envolvido em delitos penais serem considerados “excluídos", embora tenham vivido diferentes trajetórias e correspondam a realidades diversas.

A concepção moderna do termo “excluído” remete a meados da década de 60, quando este conceito começa a se fazer presente em publicações francesas sobre "desadaptados sociais" (inválidos, velhos, deficientes físicos e mentais). Entretanto, se consolida enquanto um novo sentido, onde excluídos são "aqueles que manifestam uma incapacidade de viver como todo mundo", a partir da obra de René Lenoir (1974) "Os Excluídos". Esta visão expressa uma concepção social baseada em modelos, a partir da qual quem não se enquadra torna-se um "excluído social". Tal ótica, que desconsidera a multiplicidade das formas de existência, impõe modos de ser distanciados das condições concretas necessárias à sua realização. Estabelece-se, assim, o binômio exclusão/inclusão de forma dicotômica e intransigente.

Os debates sobre exclusão têm se aproximado daqueles que discutem a questão social, a função do emprego, o desemprego e suas conseqüências. Ou seja, esta noção, atualmente, está profundamente ligada à sociedade que tem o trabalho e sua decorrente proteção como forma de estabilidade social4. Porém, tratando-se do capitalismo, no qual o desemprego não é um acaso, mas uma forma através da qual esse sistema se estruturou, a “proteção” no sentido da “integração” implica em práticas concretas, limitadas em relação ao discurso que se prega. Sabe-se de sobra que a capacidade de integração ao sistema produtivo de forma ativa é limitada, pelo que as políticas de proteção se orientam a contornar algumas situações limites, sem a menor pretensão de reverter o quadro estrutural que produziu a exclusão social. A expansão da proteção pública ocorre na medida em que as situações de exclusão advindas dos processos de industrialização capitalista se generalizam, repercutindo na capacidade de suporte das redes sociais primárias como a família e a comunidade.

Por isto, quando as políticas se autodenominam de “reintegração social”, partem do suposto que em algum momento os setores excluídos participaram da estrutura econômica que regula a seguridade social e que hão de tornar a integrá-las. Premissa nitidamente falsa, segundo a experiência dos equipamentos sociais que prestam serviços de proteção à criança e ao adolescente no Brasil. Na medida em que objetivamente as condições materiais não se transformam, as políticas de proteção propostas pelos governos brasileiros, incapacitadas de integrar os jovens ou suas famílias a um mercado de trabalho excludente, quando operam, o fazem através de práticas de controle disciplinar.

Seguindo nesta direção, pode-se dizer que os equipamentos sociais, especificamente no que diz respeito a crianças e jovens pauperizados, atendem uma parcela da população excluída da escola, do modelo de família instituído, dos padrões de consumo, de atividades lúdicas previamente definidas, do sistema de saúde, enfim de um modelo do mundo do trabalho.

Assim, conviria lembrar que, ao se afirmar que existe uma criança excluída, está pressuposto que existe uma que está incluída, chegando-se à binarização inclusão/exclusão. Por este modo de pensar, a criança dita excluída é alvo de programas de inclusão, onde ela e sua família são tomadas como um problema, justificando-se a intervenção de especialistas e a existência de agentes e programas de integração social. Tal é o caso dos programas de bolsa-escola, cesta básica, tíquete de leite etc. Tornam-se então presentes nos projetos políticos, invadem a mídia, conquistam a cena pública, produzem especialismos a partir de uma qualificação negativa, que designa a falta em comparação a um modelo de infância ideal. A razão disto está precisamente no fato dos "traços constitutivos das situações de exclusão não se encontrarem nas situações em si mesmas" (CASTEL, 1997, p.19), mas na crença de um afastamento de condições “ideais” de vida. Daí nascem as propostas de reabilitação, com uma visão de amparo transitório, na medida em que se enfrenta a situação de exclusão como uma crise passageira e pontual. Ao considerar o processo de exclusão como uma crise, são estabelecidas ações fragmentadas, como se a exclusão fosse produzida por um fator que, ao ser abordado, a contornaria. Dessa forma, existe a expectativa de que tais ações sejam definitivas, que revertam, de fato, situações de exclusão.

As práticas de proteção apenas intervêm institucionalmente, seja nos setores produtivos através de institutos de benefícios específicos para trabalhadores ou nos equipamentos sociais para excluídos. Assim, para ser assistido, é condição básica estar integrado ou incluído em alguma dessas redes. A “reintegração social” é relacionada a equipamentos sociais, cujas práticas tornam falacioso propugnar a independência dos assistidos. Dessa forma, os equipamentos para os excluídos, longe de oferecer condições de independência, os controla e os torna dependentes.

A proteção, no caso dos adultos, está localizada nas políticas de seguridade social e, no caso da criança e do adolescente, opera através do conceito de tutela. Tais relações são definidas em lei, onde o nível de abstração se distancia da concretude das práticas cotidianas. A proteção é uma referência a uma formação política pautada em modelos hegemônicos, a uma sociedade “cientificamente planejada”, em que cada movimento, cada comportamento é enquadrado em padrões tecnicamente regulados. Um ato de amor pode ser interpretado como uma ameaça social, assim como relações que coloquem em risco a vida de outrem podem ser definidas como adequadas. Tal é o caso das mães enquadradas como negligentes ao deixarem seus filhos em abrigos para poderem trabalhar. Isto, sob certas concepções, é um traço de desafeto e irresponsabilidade, chegando-se ao cúmulo de puni-las, limitando intencionalmente as visitas aos filhos abrigados. Ao mesmo tempo, são inúmeros os casos de mães acusadas de desafeto por deixarem os filhos sozinhos em casa quando vão trabalhar, já que não têm outro lugar onde possam deixá-los e o sustento da família é garantido unicamente pelo seu trabalho. Não há o que dizer sobre aquelas que, ao não terem suporte para cuidar de seus filhos, se vêm impossibilitadas de acessar o mercado de trabalho.

A leitura de práticas cotidianas desse tipo passa, na maioria das vezes, pelo crivo de enunciados formais e hegemônicos que desconsideram a construção das relações. A ordem legal se baseia em parâmetros de normalidade, que não apenas desconhecem outras formas de vida, mas as destroem, na medida em que a leitura que se faz destes parâmetros é circunscrita a um só modelo.

No Brasil, a distância entre a formulação política e a realidade é abismal e até contraditória. A administração da política de proteção social acompanha as formas autoritárias dos governos que, longe de buscar uma aproximação dos setores que demandam formas de proteção, faz uso político de sua implementação em benefício próprio. Assim, independentemente dos princípios legais específicos, a proteção social foi sendo entregue a setores econômicos e políticos lucrativos, de tal forma que os setores emergentes tomassem conta dos espaços, deixando os setores mais pauperizados cada vez mais excluídos. O único recurso para reivindicar um serviço é o lobby junto às elites; uma forma política corporativa, que cada vez mais inviabiliza a penetração nos espaços políticos e sociais5. Em vez de se discutir esta área democraticamente, buscam-se alianças particulares que garantam de forma individual e interesseira o acesso aos equipamentos sociais.

Nos equipamentos sociais se inscreve uma modalidade do poder sustentada na disciplina. O poder disciplinar, segundo Foucault, implica em um conjunto de instrumentos, técnicas, procedimentos, assumidos pelos equipamentos sociais que objetivam vigiar e controlar. Esta prática se desenvolve tanto por aqueles que têm função coercitiva, como é o caso da Justiça, como por aqueles onde é mais velada a relação disciplinar, como no caso da escola e do atendimento à saúde. Todos eles funcionam pela vigilância, que no Brasil é controlada pelas elites políticas.

A produção da proteção enquanto dispositivo de preservação de modelos hegemônicos emerge no contexto de debates políticos e sociais. Embora predominem certos modelos sociais, as formulações políticas não são homogêneas. Expressam movimentos, opções e forças que disputam espaços de poder. Nesse sentido, às leis cabem diversas interpretações que se enfrentam através de práticas cotidianas nos espaços do poder, como nos equipamentos sociais, por exemplo. O trabalho institucional através de equipes técnicas e da discussão junto aos diretamente implicados contribui com reflexões sobre as propostas de intervenção. Por oposição, a centralização; na figura de um Juiz, de um diretor ou de outros especialistas; dos destinos da população investe em relações autoritárias, contrárias ao ideal democrático. O autoritarismo, que na área social tem seu traço mais marcante no paternalismo com que se desenvolvem as práticas de proteção, impede a ampliação dos mecanismos e das formas de proteção social, na medida em que permanecem encurraladas nos interesses e nas concepções particulares dos gestores públicos e privados. As gestões tendem a ser pautadas na verticalidade da doação caritativa, que é uma ação dirigida, que limita um movimento espontâneo e impede processos reivindicativos.

 

ESTABELECIMENTOS DE PROTEÇÃO E SEUS ESPECIALISTAS

O relato de uma história vivida em um Juizado do interior do Estado do Rio de Janeiro pode bem ilustrar a dimensão da engrenagem de proteção, dependência e disciplinarização produzida pelas práticas de estabelecimentos desse tipo.

Ao ser chamada para levar sua filha de pouco mais de cinco anos ao Juizado, a mãe se apresenta no local. Lá deixa a criança na sala de espera indicada e retorna para casa. Ao final do expediente, um funcionário, preocupado com o choro da criança, a encaminha para a psicóloga, que se surpreende com a presença daquela figura desconhecida. Após buscar informações sobre a menina, a psicóloga descobre seu endereço e a acompanha até sua casa, para saber o porquê do abandono. Lá chegando, encontra a mãe convicta de ter agido corretamente, já que acatou a autoridade. Segundo sua explicação apenas atendeu a uma demanda do "Juiz". Justifica que foi ao Juizado e lá deixou sua filha, conforme entendeu que deveria fazer quando lhe disseram para levar a menina a uma determinada sala. Relata, ainda, que perante a surpresa da vizinhança por ter retornado sem a filha, ela, muito segura, explicou a todos ter deixado a criança com o "Juiz".

Este caso aponta para a relação de poder inquestionável na qual se fundam as práticas dos equipamentos sociais. Saber-se abraçada pelo manto do Juiz conforta uma mãe em conflitos, independentemente do rumo que se dê ao caso. O poder disciplinar age através do seqüestro dos corpos. O reconhecimento do poder totalitário do Juiz é o reconhecimento da "incapacidade" da mãe. A mãe sequer pensa na possibilidade de influir no encaminhamento que será dado ao caso da filha. Ela não só se sabe incompetente para isto - embora em todos os âmbitos da vida cotidiana lhe seja cobrada competência para cuidar de sua família - como tampouco imagina que possa haver um debate em torno do caso. O Juiz, que “justo é”, saberá "naturalmente" o que fazer. Nesse momento, a mãe acredita que, ao deixar a filha no Juizado, a deixa sob uma proteção superior, reconhecendo nesse momento sua desqualificação para participar dos destinos de sua família.

As relações sociais que se dão no espaço da sociedade disciplinar fazem com que a própria mãe perceba sua relação familiar como um compromisso social no qual sua competência é a virtude que pode trazer "bons resultados". Desta maneira, os conflitos familiares são vividos de forma individualizada, em função da capacidade interna da família - particularmente dos chefes de família - de resolvê-los. A transferência do conflito para o âmbito público, através do encaminhamento deste a estabelecimentos de assistência ou ao Juizado, não é vista como um esforço para buscar novos recursos perante as demandas da família, mas como uma desqualificação desta. Tal análise tem se evidenciado na pesquisa histórica que vem sendo realizada pelo PIVETES em arquivos de Juizados da Infância e da Juventude. Segundo os dados coletados, as mães buscam o juizado como último recurso, quando se esgotam suas possibilidades de permanecer com os filhos. Nesses casos, a prática tradicional sempre foi solicitar a internação, embora a forma como isto ocorresse implicasse na perda de poderes destas mães em relação a suas famílias. O Juiz passa a deter o poder sobre as crianças. Não se registram processos nos quais a mãe aponte suas dificuldades, solicitando apoio antes que a situação chegue ao limite de ter que abandonar os filhos ou que o Juizado interfira, evitando esta medida radical. O próprio Juizado não oferece outras opções que a substituição da tutela. Essa prática é, pois, totalitária.

Dentre outros equipamentos sociais que se ocupam da população pobre, o Juizado de Menores surge, no início do século, a partir das preocupações do higienismo, movimento pautado na vigilância e na disciplina. Preocupados com as crianças que perambulavam abandonadas pelas ruas e com o aumento da criminalidade infantil, os juristas da época preconizavam dois tipos de discurso: por um lado a defesa da criança que deveria ser protegida e por outro, a idéia de que a sociedade deveria se prevenir contra o perigo eminente da delinqüência infanto-juvenil. Ou seja, no bojo das práticas de prevenção, o Juizado surge como uma medida saneadora de uma disfunção. Assim, historicamente, tem como uma de suas funções atenuar situações de exclusão e como outra, resguardar a ordem.

Estabelece-se aí uma primeira lógica: exclusão como produtora de equipamentos de assistência e proteção. Entretanto, uma outra vem se construindo e pode ser facilmente identificada no espaço do Juizado. O fato de estar sendo protegido funciona como uma reafirmação da exclusão. A exemplo do caso relatado anteriormente, as pessoas que procuram o juizado pouco se reconhecem dentro desse estabelecimento. Ignoram seus direitos, sentem-se coagidas diante da autoridade e ao mesmo tempo dependentes dela. A política que consiste em proteger confere um status social degradante àqueles que pretende ajudar, estigmatizando-os e produzindo/reproduzindo um total descrédito em suas condições de agir autonomamente. Isto é construído pela impossibilidade de separar os dois âmbitos de intervenção do Juizado: a proteção dos chamados carentes e a proteção da ordem. A ação protetora é uma ação preventiva contra os necessitados, na medida em que estes são do interesse público quando ameaçam o espaço privado. Neste caso, estar sob condições de proteção está associado a ser uma ameaça à ordem.

As famílias que chegam ao Juizado, lugar de proteção, se vêm presas num emaranhado de normas e percursos estranhos a seus modos de vida e são chamadas a neles se enquadrarem. Dessa forma, reafirma-se a exclusão por desqualificação da diferença, por afirmação de formas hegemônicas de existência, pela imposição de práticas definidas a partir de modelos instituídos.

Os discursos cotidianos reafirmam o caráter múltiplo do processo de exclusão social que produz equipamentos de assistência. A presença de equipes técnicas constituídas por profissionais de diferentes formações instrumentaliza a tecnologia do poder instituído. Os discursos oficiais e as regras funcionais, fundamentadas nas diferentes áreas de conhecimento, são apresentados de forma coesa. A preservação de modelos hegemônicos prevalece, esvaecendo os esforços para produzir novos territórios. A própria lei é polêmica. A ela cabem diversas interpretações a partir das quais encaminhamentos, os mais variados, podem ser pensados, em função das condições concretas de cada caso e dos equipamentos disponíveis.

Historicamente, os especialistas emergem enquanto exércitos autorizados pelo saber escolar, atuando a partir da desqualificação dos não legitimados pela academia. Ivan Illich (1977) denuncia o poder que exercem os especialistas ao definirem as necessidades humanas e a controlá-las. É este exército de notáveis que estabelece o que é uma omissão, quais os omissos e em que momento cabe “protegê-los”. Da mesma forma, as práticas de proteção não são discutidas com os definidos como carentes; são pré-determinadas com base em modelos de normalidade. O poder de sua intervenção nos equipamentos sociais está dado por saberes técnicos, fundados em modelos que se propõem a enquadrar os definidos como carentes.

A intervenção dos especialistas se dá de forma radical. As situações em que se exerce a proteção tendem a se repetir sistematicamente, por tratar-se de casos em sua maioria reconhecidos tanto por suas causas como pelas formas que adotam. A política de proteção é uma opção política; não é a única forma possível nem é uma prática acidental. A intervenção acontece de forma loteada pelos diversos saberes especializados. Cada um diagnostica e faz um encaminhamento em seu domínio, tornando a relação social que foi definida como “problemática”, “irregular” ou “carente”, uma colagem na qual os sujeitos não se reconhecem, estranham o contexto em que foram enquadrados, onde sua vida não faz sentido, não é mais sua vida. Vê-se obrigado, então, a curvar-se perante a incapacidade de auto-regular-se.

As práticas institucionalizadas produzem a demanda de controle social. O poder plenipotente dos especialistas se sustenta na produção do incapaz, imprimindo nos sujeitos a condição de “carente”. Nesse território, o especialista se limita ao lugar que lhe é designado, perdendo qualquer perspectiva de intervenção problematizadora. Seu saber é um saber condicionado.

No entanto, a nossa experiência com intervenções socioanalíticas em estabelecimentos como o Juizado ou a escola, ambos altamente disciplinadores, abre o debate sobre o fundamento e as perspectivas das práticas institucionais. Tais experiências apontam para novas produções. Longe de perceber os técnicos enquanto um exército redundante, constata-se que, contar com a participação das equipes técnicas, sem dúvida, é um avanço. Se por um lado a prática tradicional desloca o cotidiano dos indivíduos para encaixá-los em moldes universais, por outro lado traz a possibilidade de instituir olhares múltiplos a situações múltiplas. Trata-se de produzir novos espaços, buscando-se perceber cada caso em suas diferenciações, sem encaixá-los em modelos pré-estabelecidos. Abrem-se janelas para o debate sobre o contexto em que são produzidos os conflitos6, de forma tal que as relações não sejam naturalizadas e os encaminhamentos não adotem "pacotes" universais, independentemente das condições particulares de cada família.

Esta é uma perspectiva para penetrar nas sólidas redes de grupos que ocupam poderosos espaços institucionais e que, nesta medida, bem podem contribuir para reforçar modelos hegemônicos ou investir em práticas que partam do contexto específico da população alvo dos equipamentos. Leitura possível a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que implica abrir espaços para a participação democrática da população e, como tal, provoca debates na área da proteção à criança e ao adolescente.

Um dos fundamentos do ECA é a descentralização do atendimento. Falar da descentralização é tocar em ampla polêmica que vai da definição da necessidade de proteção às bases políticas a partir das quais esta se exerce. Concretamente, no que diz respeito à participação de equipes técnicas no atendimento a casos específicos ou na definição de estratégias de intervenção, o Estatuto abre um espaço valioso ao localizar os encaminhamentos no âmbito local. Abrir esta brecha, a partir do referido parâmetro legal, perante as dificuldades de um Estado federativo de tradição centralizadora e das práticas históricas de afirmação de modelos dominantes, faz do Estatuto da Criança e do Adolescente um desafio histórico.

Estabelecer novas referências na relação de proteção implica insistir nas diversas leituras possíveis perante uma proposta política; implica produzir novas práticas. Assim, as leituras polêmicas em relação aos discursos hegemônicos criam novos territórios, novos debates e, com eles, novas práticas. Por oposição, formular enunciados plurais e preservar velhos procedimentos é reforçar poderes tradicionais em nome de retóricas combativas. Inovar, desconstruir são exercícios de grande responsabilidade por emergirem das próprias tradições que se colocam sob questão. Não se trata apenas de negar velhas estruturas, mas de reconhecer nas práticas que elas produzem a emergência de espaços a serem explorados. É neste sentido que se insiste em debater não só os enunciados legais, mas as visões em seus contextos políticos e sociais específicos, exercício fundamental para levar à prática os ideais de mudança. Implementar uma nova lei, uma nova concepção de proteção, é preparar-se de forma ciosa para levá-la à prática no cotidiano dos equipamentos sociais, produzir novas alianças e pensar estratégias orientadas a consolidar os ideais postulados. Ou seja, fazer com que os postulados sejam lidos nas práticas cotidianas. Fugir deste caminho é investir no descompasso da história, usando novos discursos para reforçar velhos poderes.

Como acertadamente diz Almeida (1995, p. 88), referindo-se à penetração das novas concepções na área social - concepções fundadoras da Constituição Federal de 1988 e, portanto, das propostas contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente:

[...] a fragilidade das tendências reformadoras reduziu o alcance e o impacto do impulso racionalizador e modernizador. Faltou neste caso uma elite profissional capaz de nuclear e dar rumo a uma coalizão mecanicista e que aliasse concepção clara do novo modelo assistencial com experiência de gestão pública e forte penetração nos centros de decisão da política assistencial no Executivo.

Novos discursos com velhas práticas é o que se presencia no Brasil. Intervir em velhas formas de atuação implica em produzir rupturas, embora não necessariamente rompimentos, a partir das descontinuidades que emergem da prática cotidiana. Os esforços nesse sentido não têm sido poucos e saltam aos olhos as dificuldades. Dentre elas, se destaca a ausência de debate das relações de poder presentes no espaço da proteção à infância e à juventude. As experiências de intervenção nesta área, de forma geral, se limitam à proposta de novas técnicas. No entanto, pensar o modo de funcionamento das relações de proteção implica problematizar sua produção histórica, desnaturalizando as práticas voltadas aos setores infanto-juvenis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, M.H.T. Federalismo e políticas sociais Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 28, p. 88-108, 1995.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Maria Lívia do Nascimento
E-mail: livianascimento@cruiser.com.br

Estela Scheinvar
E-mail: scheinvar@ig.com.br

Recebido em: 17/05/04
Aceito para publicação em: 08/12/04

 

 

NOTAS

* Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
** Professora Doutora do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Socióloga do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense.
1 As autoras têm participado de projetos de estágio no Juizado da Infância e Juventude de Niterói e em escolas de ensino fundamental. Também fazem parte da equipe do Projeto de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social (PIVETES), realizando pesquisa histórica em processos da justiça da infância e da adolescência. Todas essas experiências se realizam na Universidade Federal Fluminense.
2 O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal aprovada em 1990, estabelece a criação de Conselhos, como forma de descentralizar as atribuições políticas anteriores e tradicionalmente circunscritas ao “Juizado de Menores” e ao Ministério dedicado à área social.
3 Para esta situação Castel denomina a exclusão mot-valise (palavra-valise), que inclui uma grande variedade de sentidos.
4 Para este tipo de análise ver R. Castel (1998).
5 Em relação a esta temática ver Vianna (1994).
6 Entende-se por conflito a produção de demanda que faz com que determinadas situações sejam definidas como “problema”.

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