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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.9 no.2 Rio de Janeiro Sept. 2009

 

ARTIGOS

 

O cultivo de si e o individualismo 1

 

Self-growth and individualism

 

 

Jorge Guilherme Teixeira da Fonseca

Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro–UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em muitas grandes civilizações existiram pessoas que possuíam um entendimento especial sobre si mesmas e seu papel na sociedade em que viviam. Elas cultivavam um relacionamento espiritual e intelectual especial com qualquer divindade que adoravam ou com o mundo onde viviam. No Ocidente, esta relação especial transformou-se no individualismo moderno. Este carrega inúmeras facetas que precisam ser reconhecidas como parte fundamental da Modernidade que, por sua vez, não é um fenômeno pronto e acabado, mas está constantemente se transformando, o que pode ser fonte de conflitos e sofrimento para pessoas incapazes de acompanhar essas mudanças, principalmente no mundo contemporâneo, marcado pela compressão espaço-temporal, pela superexposição de informações e pela obsolescência programada do mercado de consumo. Para combater esta situação novas formas de mediação entre sujeito e sociedade são criadas: as redes de especialistas, dedicados à adaptação do sujeito à nova sociedade pós-moderna.

Palavras chave: Individualismo, Cultura, Modernidade.


ABSTRACT

On many great civilizations there were people with had a special understanding about themselves and their roll on the society they lived. They grow a spiritual and intellectual relationship with the gods the worship and their world. In the West this especial relationship become the modern individualism. And it carries many facets that needs recognition as a fundamental part of the Modernity. The Modernity it is not a finish phenomenon but it’s in constant self-transformation. What maybe a source of conflict and suffering for those incapable of constantly follow those changes, especially in a world on time-space contraction with a display highly increase information and a program obsolescence by consumerism. To fight this situation new forms of mediation between individual and society are made: the specialist network, dedicate to help the adaptation of the individual to the new pos-modern society.

Keywords: Individualism, Culture, Modernity.


 

 

Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar a relação entre o cultivo de si e a individualidade. O cultivo de si é uma prática que remonta desde os tempos antigos; basicamente, significa cultivar potencialidades para uma melhor forma de viver tanto intelectual quanto fisicamente. 

Durante a história da humanidade, houve aqueles que desenvolveram uma forma específica de individualidade, em que se retiravam do mundo em busca de alguma forma de iluminação. Esses indivíduos adquiriam um distanciamento subjetivo de seu meio social ao criarem arquiteturas internas de pensamentos que os tornavam diferentes dos homens comuns. 

Nobert Elias afirma que a civilização é historicamente identificada como o processo em que o controle social das compulsões à ação se transforma na compulsão de controle interno, sendo este, individual e psicológico. Elias (1993) aponta que na história da civilização ocidental há uma constante passagem do controle externo para o autocontrole interno. Este movimento para a internalidade é concomitante com o surgimento de escolas de pensamentos que defendem o cultivo de si como forma de desenvolvimento do eu.  

Se, segundo Elias, as configurações materiais e de poder modificaram a estrutura social de modo a estimular a internalização dos controles, o cultivo de si, então, é criado como uma proposta para estimular as capacidades internas de produção e trabalho para alcançar objetivos estabelecidos de si próprio e para si próprio.

Se na antiguidade e na época medieval o homem teve de lutar contra um meio exterior hostil para sobreviver, nas épocas moderna e contemporânea as lutas passaram a ser travadas no seu interior com o surgimento de um “superego” específico que luta para controlar as emoções, em conformidade com a nova estrutura social.  Assim, podemos dizer que, na história do Ocidente, há uma constante psicologização do homem, que começou na renascença européia, tendo atingido o seu auge na época vitoriana.

Na passagem do século XX para o século XXI, Bauman (1999) fala da criação de redes de especialistas que buscaram dar respostas para estas aflições surgidas devido à desestruturação da vida cotidiana. Os psicólogos clínicos podem ser incluídos nestas redes de especialistas, porém a maneira como cada um lida com sua clínica, assim como as referências tanto teóricas como de vida profissional, determinam o diferencial de cada caso.  Logo, não podemos afirmar que todos servem para construir um mundo de indivíduos problematizados. 

Foucault (1985) falou das práticas de si (de autocultivo) que se baseiam numa forma de prática reflexiva e moral que disciplina nosso modo de agir para favorecer uma posição crítica de nosso modo de ser como sujeito e como campo de intervenção do sujeito. Formas de cultivo de si sempre existiram na humanidade, sob as mais variadas formas, e quase sempre acompanhadas de um processo civilizador. E são com esses personagens, que desenvolveram a primeira grande relação de si para consigo mesmo no Ocidente, que nós começamos nosso estudo.

 

O indivíduo-fora-do-mundo e o indivíduo-no-mundo

Dumont (1985) identifica os primórdios do individualismo ocidental nos movimentos monásticos cristãos do início da era cristã e os relaciona com o cultivo de si.  Traçando uma comparação com a sociedade indiana, Dumont afirma que a origem do individualismo ocidental está vinculada à relação entre a religião e a sociedade. 

Na sociedade indiana, tradicionalmente organizada em castas bem estabelecidas, haveria uma forte interdependência entre os homens que constituiria num forte controle social.  Todavia existiria uma “instituição” que permitiria a libertação do homem desta sociedade holista como uma forma de complementação a esta: a renúncia ao mundo como forma de engrandecimento espiritual foi a resposta dada por esta sociedade para criar um lugar para os seus indivíduos.

Os renunciantes se baseiam na renúncia do mundo e de todas as suas restrições em favor para consagrar-se a uma elevação espiritual. Esta renúncia era muito mais ampla do que simplesmente isolar-se da companhia de outros, e na verdade, alguns renunciantes constituíam comunidades monásticas para facilitar suas práticas. A renúncia estava vinculada a tudo o que o mundo representava em valores mundanos.  Um dos renunciantes mais famosos do mundo foi o príncipe indiano Sidharta Guatama que abandonou sua esposa e seu filho para buscar a sabedoria. Dumont (1985) chamou estes renunciantes de indivíduos-fora-do-mundo, pois seu individualismo está pautado no afastamento dos assuntos mundanos, isto é, da sociedade.

No Ocidente, ainda Dumont, inicialmente temos esta configuração de indivíduo fora-do-mundo, mas com o passar do tempo surgiu uma nova forma de configuração de individualismo, que o autor chamou de indivíduo-no-mundo.  No início, a igreja romana está ligada ao Estado romano através de uma interdependência de papéis: enquanto o imperador e seus oficiais detinham o poder mundano, o papa e os padres detinham o poder espiritual.  Porém, quando novas estruturas de poder começaram a se formar na Idade Média, a Igreja alcançou o poder mundano que transformou padres em príncipes, competidores por terras e poder contra os nobres.  

Todavia, segundo Dumont (1985) as bases do individualismo no Ocidente se encontra na cultura greco-romana. No final da civilização helênica e a ascensão do império romano, surgiu um grupo de filósofos cuja principal preocupação era o bem-estar moral, defendendo uma dicotomia entre a sabedoria e o mundo.  A pedra fundamental foi lançada por Platão há muitos anos, e seguindo os seus passos, os estóicos pregavam um ideal superior do sábio desprendido da vida social. Entretanto, os estóicos romperam com Platão, ao defenderem que razão humana é puramente prática e guia o sábio para o bem viver.

O homem perverso é guiado por suas paixões, mas o homem sábio está livre delas paixões, logo ele pode viver livre de preocupações do homem cotidiano, como por exemplo, de se preocupar com resultado de seus negócios que o prende à expectativa da esperança de prazer ou do medo derivado da dor. Isto é possível porque o estóico compreende e ama o Bem em sua totalidade, ao ver a plenitude da natureza como um ser racional que dispõe de tudo racionalmente sempre para o melhor.

Sêneca, um romano, influenciado por estes autores, séculos depois da escola estóica ter sido fundada, no texto “Da tranqüilidade da alma” escreve para o seu amigo Sereno: “O sábio não precisa dá um passo tímido ou vacilante: sua fé em si mesmo é tão grande que ele não hesita em se dirigir ao encontro da fortuna, diante da qual jamais cederá” (SÊNECA, 1980, p. 207). A principal característica do sábio é a tranqüilidade de sua alma derivada de anos de estudo da filosofia como um auto-aperfeiçoamento moral.  Os conselhos no texto são destinados aos não sábios que buscam a tranqüilidade. 

Historicamente, Sêneca está inserido no período imperial de Roma, quando já não é possível participar da vida pública tal como era na república.  A vida privada passa a ser uma alternativa para homens que alguns séculos antes se dedicariam à vida pública.  A impossibilidade da política se revela neste trecho em que Sêneca revela o principal princípio dos estóicos romanos:

Daí o princípio do qual nós, estóicos, estamos orgulhosos: o de não nos encerramos nas muralhas de uma cidade só, mas de entrarmos em contato com o mundo inteiro e de professarmos nossa pátria é o universo, a fim de oferecer à virtude o mais amplo campo de ação.  Excluem-te do tribunal, expulsam-te da tribuna e dos comícios? Volta-te e olha: quantas nações se abrem para ti! Por mais vasta que seja à parte do mundo que te é vedada, aquele que te é permitida será sempre maior. (SÊNECA, 1980, p. 202)

O estóico romano se retira do mundo se retira de sua comunidade, neste caso da cidade de Roma, para ganhar todo o mundo romano, como um sábio e não como um cidadão. A conformidade é um traço específico deste sábio: “É preciso, pois, se acostumar à sua condição, queixando-se o menos possível e não deixando escapar nenhuma das vantagens que ela possa oferecer: nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não encontre qualquer coisa para consolo” (SÊNECA, 1980, p. 206). Para Sêneca, é inútil lutar contra o mundo, já que este sempre vencerá, além do mais, uma luta significa um esforço obstinado contra os obstáculos que o destino põe no nosso caminho, sendo este esforço inimigo da tranqüilidade, pois favorece a agitação desregrada. Nosso esforço deve ser direcionado para objetivos plausíveis e racionais para que ele não seja inútil, pois o insucesso é a fonte da tristeza; logo, devemos escolher nossas batalhas com cuidado para não sofrermos a tristeza da derrota (SENECA, 1980, p. 208).

O fundamento do individualismo tanto mundano quanto extra-mundano está, segundo Dumont, na Lei da Natureza relativa.  Três séculos antes do advento do cristianismo, Zenão de Cicio defendia que o Bem é interior ao homem e independente de fontes externas.  Logo, um homem bom pode antagonizar-se com o mundo enquanto meio social, mas mantendo-se sereno e com sua vontade altiva mantém sua dignidade e integridade perante o mundo.  A postura de subjetivar o Bem relativisou o mundo enquanto valor, nos permitindo contrapor ao poder mundano dos reis e da cidade na busca e no estabelecimento da verdade.  Para Zenão, o Bem pode ser conhecido através da razão. Esta razão, que antes era natural e agora é humana, se transforma numa Lei Absoluta reveladora da verdade. Enquanto absoluta esta lei relativiza o mundo, divorciando o homem entre o real e o ideal, o homem do mundo e o homem espiritual, dentro do cristianismo, entre o secular e o temporal (DUMONT, 1985, p. 48).

O apelo fundamental do cristianismo para o individualismo era a defesa que todos somos iguais em Cristo (DUMONT, 1985, p. 44) ao mesmo tempo em que se defendia uma separação entre o mundo mundano e o absoluto espiritual, expressa no ditado: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.  Isto criava uma separação de poderes: os padres detinham a autoridade espiritual para guiar a humanidade, dos camponeses ao rei, para a salvação; mas os reis e seus oficiais detinham o poder de gerenciar os assuntos mundanos, e os padres se submetem a este poder enquanto ele estiver na sua esfera. Um os pensadores mais importantes do cristianismo foi Agostinho, que viveu no fim do império romano, e dele tivemos a primeira síntese do pensamento filosófico do mundo pagão com o cristianismo.  Através de seu estudo do neoplatonismo de Plotino, ele ajudou a desenvolver um pensamento cristão em que Deus e a alma eram vistas como imateriais em contraposição a carne e a este mundo que está sempre em mudança.

O mundo participa de Deus, pois a ordem da natureza é criada de acordo com os seus pensamentos.  O bem dos seres humanos advém da contemplação desta ordem, pois ao amar a ordem da natureza, você estará amando a Deus e guiando sua alma para salvação. Ele faz uma distinção entre o homem interior e o homem exterior.  Este último é o corporal, envolvido com o mundo afetado por ele através dos sentidos e fonte da memória, que armazena as experiências do mundo. O homem interior é a alma, sendo esta mais importante que o corpo exterior, pois é o meio de se atingir o reino superior e eterno de Deus.  Somente quando o homem se volta para seu interior é que pode contemplar a verdade divina e comungar com Deus.

A separação entre o espiritual e mundano não durou muito, pois os imperadores romanos e bizantinos eram sacrossantos em seu poder, isto é, possuíam ambos poderes, espiritual e secular. Na busca de independência, a Igreja procurou outros príncipes mais maleáveis, e por fim transformou-se num Estado próprio, transformando-se num sacerdócio real.

A descida da Igreja em direção ao mundo encontrou sua máxima extensão com Calvino, em sua doutrina a separação a espiritualidade e os valores mundanos desaparecem por completo para transformar o homem Ocidental no indivíduo-no-mundo.  O Deus de Calvino é um deus de vontade “no qual pode ver-se a afirmação indireta do próprio homem como vontade e, para além, a afirmação mais forte do individuo, oposta se necessário, ou superior a razão”. (DUMONT, 1985, p. 65).  Calvino é um homem do mundo, à frente do governo de Genebra, nesta cidade ele promulga leis para disciplinar os homens e a si mesmo, ele atua no mundo e gosta de fazê-lo.

Uma forma da vontade divina se manifestar é a predestinação do homem, que é impotente frente à onipotência de Deus.  A vontade divina é que elege o individuo para a salvação ou para a condenação. Os eleitos fazem parte dos desígnios de Deus a partir do seu sucesso mundano, e o grande destino dos eleitos à salvação era contribuir para o cumprimento dos desígnios divinos, deste modo, unindo-se a Deus (DUMONT, 1985).  O mundo que era antagônico para o renunciante é para o calvinista onde a validação de seu individualismo é retirada, o sucesso mundano indica sucesso espiritual.

Se Deus é vontade e sua vontade se manifesta no sucesso mundano dos eleitos que indica sua predestinação, logo os eleitos fazem uma comunhão com o divino cuidando dos assuntos mundanos.  Estes assuntos são cuidados sob o ponto de vista da religião, pois a igreja, adentrou no mundo como uma instituição de disciplina e santificação, responsável pela cristianização da cidade, sob a égide dos eleitos de Deus. A religião se tornou um assunto mundano como a política da cidade, e os indivíduos acompanharam sua descida terrena, para se transformarem em indivíduos mundanos.

Estes indivíduos mundanos se configuraram de diversas maneiras, em acordo ou em desacordo com a época e lugar.  Uma das características do mundo moderno é a velocidade com que os acontecimentos alteram a realidade dos indivíduos, e como respostas, muitos passaram a se exilar do mundo, buscando a paz dentro de um muro fechado.  A impossibilidade da felicidade do mundo já foi preconizada por Voltaire no século XVIII, abrindo a porta da privatização da felicidade.

 

“Temos de cultivar nossos jardins”

François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, escreveu em 1759 o livro Cândido ou o Otimismo, em que, de uma maneira sarcástica, criticava a filosofia de Leibniz, mais precisamente o seu otimismo.  Dele Voltaire criou uma terrível caricatura, o doutor Pangloss, que garante ao sofrido Cândido que nós vivemos o melhor dos mundos possíveis.

Cândido, é um belo rapaz da Westfália, tão ingênuo e puro que inspirou o nome que lhe deram.  Ele vive como criado no castelo do Barão Thunderten-tronck e neste paraíso ele foi educado pelo filósofo da casa chamado Pangloss, que ele considerava o maior filósofo da Westfália e do mundo.  Todavia, seu paraíso se desfez quando ele foi flagrado pelo barão dando um beijo na filha dele, e como um bom pai, ele expulsou Cândido deste paraíso, jogando-o no mundo. 

Sem dinheiro e completamente ingênuo, Cândido foi recrutado para o exército do rei búlgaro em sua luta contra os árabes, presenciando as barbaridades em ambos os lados ele parte para a Holanda, onde vive como um mendigo. Depois de passar mal-bocados entre os holandeses, ele conhece um anabatista que o abriga e lhe dá um emprego.  Enquanto isso, o castelo do barão é atacado pelos búlgaros e todos são mortos, exceto o filósofo Pangloss, que passa a mendigar na Holanda.  Cândido o encontra e consegue que o anabatista o empregue também.

Numa viagem de negócios, eles chegam a Lisboa um pouco depois do terremoto que destruiu a cidade.  Eles se instalam numa das poucas estalagens em pé, e Pangloss começa a expor o sistema metafísico-teológico-cosmológico-nigológico para quem quisesse ouvir, - a forma com que Voltaire gozou com a figura de Cristian Wolff 2 . O público incluía um homem vestido de preto que pagou mais vinho ao filósofo para que ele soltasse mais a língua.  Na manhã seguinte, os nossos viajantes foram presos pela Santa Inquisição portuguesa, que precisava de gente para fogueira no intuito de realizarem um grande auto-de-fé, para expiar qualquer pecado que a cidade tenha cometido e dado ocorrência ao grande terremoto. 

Pangloss e o anabatista foram mortos, mas Cândido foi surpreendentemente salvo e cuidado por uma velha, sob as ordens de sua ama.  Esta não era nada mais e nada menos que a filha do Barão, Cunegundes. Ela não havia sido morta, mas vendida como escrava pelo capitão búlgaro que havia se apaixonado por ela quando seus homens atacaram o castelo de seu pai.  Cansado dela, a vendeu ao judeu português Issachar, que a levou para Portugal.  Uma vez lá, o inquisidor descobriu que uma cristã vivia como uma escrava de um judeu, e foi lá exigir sua libertação.  Depois de muita discussão, os dois concordaram em dividir a escrava, o judeu ficava com as manhãs e o inquisidor com as tardes.  Mas quando conversaram o judeu entra na casa e se depara com os dois intimamente conversando, assustado sem saber o que fazer, Cândido o mata.  Enquanto pensavam em como se livrar do corpo, o inquisidor entra na casa e Cândido sem saber o que fazer de novo, também o mata.  Fugido de Portugal: ele, Cunegundes e uma velha serviçal, filha do Papa Urbando X, vão para Cadiz na Espanha, onde pegam um barco para Buenos Aires.

Na Argentina, Cunegundes se transforma na amante preferida do Governador e Cândido se alista no exército para lutar contra os jesuítas que se rebelaram contra os reis da Espanha e de Portugal, para depois desertar de novo. Atravessando a América do Sul com um serviçal, eles encontram o Eldorado, fazendo amizade com a boa gente de lá. Este é o único lugar feliz da Terra porque existe fora dela, mas como seres mundanos os nossos heróis tiveram que partir para encontrarem seu destino no mundo. Ao partirem, eles levam a maior quantidade de ouro e pedras preciosas que puderam carregar. 

Ao chegar no Suriname, Cândido mandou seu serviçal, Cacambo, comprar a liberdade de Cunegundes e encontrá-lo em Veneza. Durante a viagem ele conhece Martin, um velho sábio que a vida ensinou a ser pessimista, este personagem é um contraponto ao filósofo Pangloss, e acreditava piamente que o mundo era um vale de lágrimas sem redenção.

Chegando à Europa, eles passaram pelos salões parisienses apenas para Voltaire realizar sua crítica à sociedade francesa, e para que Martin validasse seu ponto de vista: o mundo não tem salvação e que as pessoas eram mentirosas e enganadoras por natureza.  Depois eles partem para Veneza para se encontrarem com Cacambo e Cunegundes, mas ao chegar, Cândido não os encontra em lugar algum, desesperado ele percebe que o pessimismo de Martin estava certo, e o otimismo de Pangloss estava errado. 

Mas, subitamente, ele encontra Cacambo como escravo de um turco, ele o informa ter conseguido a liberdade de Cunegundes, mas ao chegarem perto da Europa, foram atacados por piratas e feitos escravos. Ele foi vendido ao turco que agora serve, enquanto Cunegundes foi vendida para outra pessoa em Constantinopla. Cândido compra a liberdade do amigo e ambos partem para Constantinopla.  Durante a viagem eles encontram o filósofo Pangloss e o filho do Barão trabalhando nas galés.  Pangloss não havido morrido no auto-de-fé, enquanto o filho do barão, sua história  foi omitida deste pequeno resumo por questão de economia de espaço.  Mas, nossa trupe foi reunida e juntos partiram para Constantinopla com o intuito de resgatar Cunegundes. 

Chegando à cidade, Cândido descobre que ela estava trabalhando para um velho nobre valáquio que se refugiara no império otomano, e para desespero de Cândido, depois de tantas desventuras, Cunegundes havia perdido sua beleza.   Todavia, Cândido pagou pela sua liberdade, e todos se instalaram numa chácara perto dali.  Como o irmão de Cunegundes não concordava com o casamento da irmã com Cândido, pois ela era nobre e ele plebeu, eles o entregaram para um capitão de galé para que o levassem a ferros para o chefe de sua ordem em Roma.  O restante da trupe se instalou numa chácara perto de Constantinopla, e depois de algum tempo, vivendo uma vida bucólica no campo, Cândido, juntamente com Pangloss e Martin foram se consultar com um sábio dervixe.

Durante a conversa, eles perguntaram ao sábio mulçumano sua opinião sobre os recentes acontecimentos de Constantinopla: a execução de um mufti e dois vizires e de diversos partidários seus.  A resposta do sábio foi:

- Não sei - respondeu o bom homem - nem nunca soube o nome de qualquer mufti ou vizir.  Ignoro em absoluto o caso de que falais e penso que, em geral os que se imiscuem nos assuntos acabam miseravelmente, e bem o merecem. Mas nunca me informo do que se faz em Constantinopla. Contento-me em mandar lá vender os frutos da horta que cultivo. (VOLTAIRE, 2004, p. 124)  

Concluindo este pequeno discurso, o sábio convidou-os para se juntarem a ele num lanche vespertino, Pangloss, tagarela como sempre, comentou que ele devia ter uma grande propriedade para oferecer o banquete que estava dando aos seus vizinhos, ele respondeu: “- Só possuo vinte jeiras e cultivo-as com os meus filhos. O trabalho liberta-nos de três grandes males: a pobreza, o aborrecimento e o vício.” (VOLTAIRE, 2004, p. 125).

Com esta pérola de sabedoria, Cândido, Pangloss e Martin, decidiram pôr fim aos seus discursos e dedicarem-se ao trabalho, e, assim, os habitantes da chácara dedicaram ao cultivo de seu jardim, levando prosperidade à pequena propriedade. 

Mais tarde, Pangloss conversando com Cândido, disse que apesar de todo o mal que lhe ocorreu este é o melhor dos mundos e não poderia ser diferente, pois tudo levou àquele lugar e àquelas pessoas.  Cândido respondeu: “Tudo isso é muito bonito... mas o que é preciso é cultivar nosso jardim”. (VOLTAIRE, 2004, p. 126)

Este jardim passa a ser o lugar fora do mundo, tal como foi o castelo do Barão e o Eldorado, um lugar onde se pode encontrar a felicidade distante do mundo.  Mas isto não vem de graça, é preciso trabalhar, cultivar tal jardim.  Não é um Éden, protegido por Deus, mas um lugar terreno em que o mundo é deixado de fora para nos resguardarmos dele.

Para Bauman, a idéia do cultivo é fundamental para a experiência da Modernidade, inicialmente ela nasceu da ânsia dos filósofos em criar um mundo melhor onde “a dignidade humana pode ser respeitada e preservada”. (BAUMAN, 1999, p. 35)

Para tanto, eles elegeram a razão como legisladora criando uma afinidade entre a razão e o poder estatal para impor ordem num mundo em desordem, para o bem de todos.  Todavia, no século XIX e XX, este sonho ganhou características sinistras que culminou no que Bauman (1999) chamou de Estado jardineiro, sendo a Alemanha nazista o melhor exemplo.  Tal como um jardineiro poda individualmente as plantas para criar jardins bonitos, perfeitos e ordenados, o Estado jardineiro podou homens em busca de uma sociedade bonita, perfeita e ordenada.  Ela podou indivíduos para homogeneizá-los numa sociedade perfeita.

O surgimento do evolucionismo darwiniano na biologia deu origem ao darwinismo social num curto espaço de tempo.  A associação entre a concepção de um mundo puro, o biologismo social de médicos eugenistas e o poder estatal deram origem a novas práticas de extermínios de populações consideradas biologicamente ineptas (BAUMAN, 1999).

Mesmo em Estados considerados liberais, como os Estados Unidos, a esterilização foi legalizada como uma prática de saúde pública, visando livrar da sociedade a deficiência genética causadora do crime e da idiotia.

Este foi o cultivo do homem realizado por políticas públicas que procuravam criar um mundo melhor pela construção de indivíduos melhores.  Mas, segundo Bauman (1999), esta força de cultivo foi privatizada, transformando a questão do cultivo em algo pessoal, mas, neste momento, façamos um interlúdio para falarmos de um assunto que se ligará com a privatização do cultivo defendido por Bauman.

 

O cultivo do indivíduo

Ralph Waldo Emerson foi um dos primeiros autores genuinamente norte-americanos e como tal, também foi um dos responsáveis pela formação intelectual de seu país. Sua ideologia, chamada de transcendentalismo americano, advogava a existência de um ideal espiritual transcendente do físico e do empírico, e somente acessível através de uma consciência intuitiva capaz de gerar conhecimento, que é condicional ao individualismo.  O transcendentalismo nega que qualquer conhecimento válido possa vir do mundo, ele dever vir de dentro, da essência espiritual e mental do indivíduo.

Emerson possui uma visão pessimista da sociedade norte-americana. Para o autor, a democracia atomizou os homens, criando, assim, uma fonte de mal-estar, pois, se de um lado ela conferiu uma dignidade sem precedentes ao indivíduo, de um outro, ela provocou a perda da habilidade ou da vontade de ajudar os outros (RÜDIGER, 1996, p. 56).

No século XIX, os Estados Unidos enriqueceram enormemente, o que alterou os padrões de vida dos americanos, pois uma crescente leva de imigrantes levou as cidades americanas a um crescimento desordenado, tal como cresceu a disparidade entre ricos e pobres.  Antigos costumes derivados de uma sociedade protestante foram postos de lado quando os novos ricos começaram a gastar seus ganhos em novos prazeres. Aos olhos de Emerson a sociedade norte-americana estava se corrompendo, gerando uma inevitável fonte de mal-estar, pois divorciava o homem de si mesmo. 

A solução desse mal-estar é o cultivo da vida privada, já que a natureza humana é essencialmente boa, e, cultivando a interioridade, podemos resolver o problema que é puramente social. Ele não contesta o paradigma do individualismo, mas defende que a busca pela solidão deve ser temperada pela educação cultural, mediada pela autocultura e pelo cultivo do bom gosto, e pelo contato com a beleza natural. O que permitiria o aumento da nossa autoconfiança e da nossa capacidade de realizar mais e melhor. 

A idéia de auto-aperfeiçoamento se tornou corrente na cultura anglo-saxã e um deles, contemporâneo de Emerson, mas separado deste pelo Oceano Atlântico, foi Samuel Smiles.  Em 1859, ele escreveu um livro chamado Self-Help e fundou uma nova tradição literária no Ocidente.  Este livro consistia na seleção de uma série de palestras que ele deu para um grupo de trabalhadores que havia se organizado num grupo de estudo para aprenderem a ler, a escrever e a ensinar ciências. 

Smiles no seu livro defende que a auto-ajuda é uma prática que consiste em aplicar a força de vontade para o cultivo de bons hábitos.  A felicidade não era o principal objetivo, a auto-realização estava vinculada à formação de um bom caráter que, por sua vez, estava unido à prática de trabalho e o cumprimento dos deveres sociais. 

Para ele, o que caracteriza o progresso social é a capacidade dos homens de se elevarem e se aperfeiçoarem por si mesmos e exercerem sua vontade como indivíduos livres de modo a se autogovernarem.  Para o autor, as melhores instituições são aquelas que deixam os homens livres para buscar o desenvolvimento individual pelo espírito de auto-ajuda.  O seu interesse nas classes trabalhadoras era justamente fomentar o espírito de auto-ajuda de modo a elevar os trabalhadores a um patamar espiritual e moral superior, porém sem rebaixar as outras classes.  

O que Smiles defendia é que os homens uma vez livres, agindo por conta própria, empregassem sua força no cumprimento do dever.  A formação do caráter é justamente moldada pela capacidade ativa do ser humano e o caráter constitui-se pela “mediação individual da ordem moral legada pelas gerações passadas num mundo em que a vida humana ainda não é vista como um território para a satisfação das necessidades individuais, mas uma realidade moral, ou melhor, moralista, dependente da ultima instância, do trabalho”. (RÜDIGER, 1996, p. 39) 

O mundo aos olhos de Smiles é constituído pelo trabalho das gerações passadas que seguiam uma vida ética baseada nos cumprimentos dos deveres, o sucesso e a felicidade humana baseiam-se justamente no cumprimento dos deveres sociais, para tanto ele desenvolve um projeto educacional que visava transformar os sentimentos morais na fonte de prazer e satisfação da classe trabalhadora, assim eles ascenderiam sua posição inferior na escala social pela construção de um caráter mais forte e distinto. 

A base do sistema de Smiles era a educação do homem vinculada à ética do trabalho e da autovigilância, a prática da modelação de si próprio pela constante observação do ideal de Ser. A prática do trabalho é a forma pela qual os sentimentos morais são transmitidos de homem para o homem, uma vez que disciplinamos nossos desejos para agirmos respeitosamente conosco e com os outros, os bons costumes serão transmitidos e cultivados na sociedade através de um processo de automodelação, em que imitamos uns aos outros dentro do nosso cotidiano, em casa e no nosso local de trabalho

Para Rüdiger, a origem da auto-ajuda, conforme o conceito de Smiles, foi a secularização da ética protestante.

A secularização da ética protestante é um processo com várias estações.  Self-help constitui um símbolo marcante do momento representado pela literatura que mediou para o indivíduo a experiência de libertação das representações coletivas dominantes no mundo pré-moderno e processou moralmente os desafios colocados ao sujeito pela desintegração das culturas tradicionais. (RÜDIGER, 1996, p. 47)

Smiles escreveu sua obra para uma nova população que estava abandonando os antigos costumes morais protestantes de seus antepassados, passando a desenhar um novo projeto para estimular a vida moral, porém, a adaptando para a nova configuração de vida nas grandes cidades.  

O termo auto-ajuda se tornou corrente pelo trabalho de diversos autores, porém seu sentido vai se modificando até atingir um novo significado - o cultivo das forças mentais para alcançar o sucesso.  A auto-ajuda, portanto, passou a designar uma série de práticas em que visava alcançar o sucesso e o bem-estar da personalidade: de um princípio moral de autocultivo de si, a auto-ajuda passou a ser uma prática de auto-racionalização na busca de um “eu superior” como uma manifestação da individualidade da pessoa.

 

A privatização da ambivalência

Terminado o interlúdio, voltamos a Bauman e sua tese de privatização da ambivalência.  A ambivalência para o autor é o mal-estar desenvolvido pela Modernidade ao estabelecer uma ordem que gera a desordem no momento quando não consegue classificar, nomear ou destruir elementos aleatórios a sua ordem construída.  Neste momento histórico, segundo Bauman (1999), esta ambivalência foi privatizada, transformada de algo socialmente construído pela experiência da Modernidade para algo pessoal e individual, que tende a criar uma amnésia das causas sociais deste mal-estar.

Um exemplo que ele trás é o programa eletrônico de assessoria de moda de Emily Cho, que foi oferecida por ela para as mulheres como uma forma de auxiliarem-nas na tarefa de expressar a individualidade do eu na forma de se vestirem e apresentarem.  Mas, na verdade, ela estava insegura sobre o programa, pois achava que suas clientes prefeririam o calor humano na assessoria pessoal e se recusariam em usar o programa.  Porém, aconteceu o contrário, o programa foi um sucesso imediato, os clientes preferiam lidar com uma máquina que lidar com outro ser humano.

Os clientes foram extremamente positivos no envolvimento da tecnologia e, segundo a senhorita Cho, isto se dava pelo fato de que sua consciência estava de alguma forma presente no programa, isto tranqüilizava a consciência das outras mulheres, pois detinha a Emily Cho privadamente com um estilista pessoal, sob o controle do computador, enquanto ela não estava presente, e sem o risco de criar qualquer mal-estar derivado da ambivalência da relação entre um senhor e um escravo. A partir deste caso, Bauman (1999) faz algumas observações.

Primeiro, ele afirma que os clientes aceitaram tão facilmente o uso do computador porque ele os permitiu realizar uma tarefa ambivalente sem se arriscar: buscar a autonomia através da submissão, isto é, estabelecer sua individualidade ao submeter-se a apreciação da sociedade através da moda, em outras palavras, para se afirmar como um ser de personalidade própria, seria preciso passar pelo escrutínio de outras pessoas.

Segundo, a ambivalência da questão, a integração social como meio de estabelecer o caráter individual separado do meio comunal era visto como uma tarefa a ser feita tal como um dever de casa, que você faz após as aulas – às vezes com auxilio de alguém, neste caso o computador - privadamente.  A solução para ambivalência pode e deve ser construído pelo indivíduo, e através do esforço individual.

Terceiro, a tarefa implicava numa conformidade social, pois implicava na criação de imagens adequadas que poderiam ser lidas e interpretadas corretamente por outros, o que significa na submissão a um código supra-individual autorizado e legitimado socialmente.

Quarto, a existência de código significa que existem objetos simbólicos que asseguram uma comunicabilidade entre o individuo e o social ao reduzirem o perigo de uma leitura errada, sendo a tarefa do indivíduo se educar neste código para poder usá-lo.

Quinto, como há uma profusão de objetos no mercado, cada vendedor defendendo que seu produto é melhor do que o outro, há uma necessidade de uma autoridade imparcial e objetiva.  Tradicionalmente no Ocidente, a ciência, que ainda detém credibilidade nos quesitos de imparcialidade e ausência de paixão - representada pelo computador, no caso em questão-, é chamada para cumprir papel do juiz.

Sexto, como o acesso à ciência é restrito àqueles que a estudam, ao público em geral é destinado um mediador, entre ele e os anseios sociais que devem ser resolvidos.  Este mediador é o especialista.

O especialista é uma pessoa capaz, simultaneamente, de interrogar o fundo de confiabilidade e conhecimento suprapessoal e de entender os pensamentos e anseios mais íntimos de uma outra pessoa.  Como intérprete e mediador, o especialista abarca os mundos, de outro modo distante, do objetivo e do subjetivo.  Ele é a ponte sobre o abismo que existe entre as garantias de estar do lado certo (o que só pode ser social) e fazer as opções que alguém deseja (o que só poder ser pessoal). (BAUMAN, 1999, p. 209)

Este especialista age como um intermediário entre o indivíduo e a sociedade, sendo o vínculo dele com ela. Este vínculo é necessário para o reconhecimento do indivíduo como ser único e especial, dotado de uma personalidade única que precisa ser reconhecida e celebrada. O especialista age no intuito de garantir tal reconhecimento, mascarando a submissão ao código social de consumo na forma de um rosto amigável que está ali para ajudar o individuo a ser individuo. No caso do programa de Emily Cho, e também dos livros de auto-ajuda, esta tarefa se torna pessoal o que permite mascarar a inclusão do indivíduo na lógica da sociedade de consumo sob a forma de um cuidado pessoal.   

 

Conclusão: a intermediação do homem e do social

Neste momento, cabe aqui realizar um pequeno resumo. Dumont (1985) afirma há duas formas de individualismo: o indivíduo-fora-do-mundo e o indivíduo-no-mundo. O primeiro foi representado pelo renunciante que se isolava do meio social para buscar uma supremacia espiritual e moral. Na segunda forma, por sua vez, o indivíduo foi inserido dentro da esfera das preocupações mundanas através da secularização do sentimento religioso em que a igreja imergia no mundo enquanto o indivíduo ascendia numa posição ativa de buscar a validação de sua vida neste mesmo mundo.

Anos mais tarde, Voltaire deixou explícito que este indivíduo-no-mundo estava condenado à miséria e à desgraça, pois estas são as conseqüências de viver num mundo mesquinho, violento e desgraçado como o dele.  O único meio de alcançar a felicidade é trabalhar nos nossos jardins pessoais, cultivar nossas vidas privadas e qualidades especiais que permitissem nos aperfeiçoar como pessoas. 

O cultivo de si encontrou no século seguinte defensores mais ardentes e diretos.  Emerson desqualificou quaisquer informações que pudéssemos encontrar no mundo para defender que a verdade é interna ao homem e somente acessível para o indivíduo que possui o seu interior cultivado.

Samuel Smiles com o seu movimento de auto-ajuda defendia um melhoramento do ser humano através de grupos socialmente organizados, que não formam uma instituição legalmente estabelecida, e esses grupos se ajudam a se melhorarem como indivíduos, tornando-se mais cultos, mais disciplinados, mais felizes e mais conformados com a sociedade, pois não queiram mudá-la ou vencê-la, mas se transformarem em bons membros dela.

O cultivo institucional de homens deu frutos amargos, o que levou, segundo Bauman (1999), a privatizarem o cultivo sob a forma de tarefas que os indivíduos devem realizar para obterem o reconhecimento social de que são indivíduos com uma autenticidade bem desenvolvida. Para tanto eles contam com especialistas capazes de lhes ensinarem o léxico que lhes permitem comunicar sua condição.

A questão principal é a forma de intermediação entre o homem e a sociedade que nos permitem sermos indivíduos-no-mundo.  O individualismo moderno Ocidental não é uma contraposição à sociedade, mas uma função dela que politicamente visa construir pessoas mais conformistas quando dentro do processo civilizatório, ela necessita de paz e ordem para manter o status quo.

Karl Mannheim (1969), inspirado por Weber, classificou as práticas de cultivo de si em dois tipos: a auto-racionalização, isto é, a regulação interna dos impulsos e desejos enquanto direcionados para executar uma tarefa, seja ela uma técnica de trabalho ou um exercício mental; e a reflexividade, que seria a capacidade de observar a si mesmo enquanto Ser no mundo, ou seja, avaliar seu modo de ser ou de agir, e percebendo-se como seu próprio sujeito, o que permite uma avaliação crítica para questionar-se na sua posição moral e ética no mundo. Dentro da experiência da modernidade capitalística a racionalização instrumental se relacionou de maneira muito mais intrínseca com as forças produtivas do Capital do que a reflexividade, logo, fará com que a subjetividade moderna se correlacione com o modo de produção industrial. 

Esta correlação está bastante explícita nos trabalhos de Adorno e Horkheimer (1990), o caráter industrial que eles observaram na cultura americana os levou a concluir que a lógica de produção capitalista havia se expandido para a área da cultura, criando bens de consumo culturais enquanto moldavam a psicologia da população para transformá-los em consumidores.  

Esta expansão do modo de produção capitalista para a cultura popularizou a prática de si como racionalização instrumental em detrimento da reflexividade.  A indústria cultural se tornou à intermediária entre o homem e a sociedade que visa construir indivíduos passivos aos ditames da sociedade industrial. 

Atualmente, segundo Bauman (1999), este papel é realizado por uma rede de especialistas, na qual se encontram os psicólogos.  A causa disto seria a desorganização do capitalismo sob uma forma mais fluida e flexível, que levou uma maior heterogenia da sociedade ao invés da antiga homogenia industrial. Mas, mesmos estas redes de especialistas estão desaparecendo como uma presença física pessoal no mundo e reaparece como uma mídia amplamente especializada: a literatura de auto-ajuda.  Estes livros ensinam a viver socialmente numa sociedade cada vez mais heterogênea, ensinando o léxico que permite o individuo comunicar sua autenticidade individual para o mundo e obter a sanção deste para sua individualidade. 

De uma forma muito mais conveniente, estes especialistas impessoais permitem que a privacidade do indivíduo se torne mais perfeita ao anular a presença de outro ser humano. Que poderia fazer algo caótico, impensado e novo, colocando o individuo em perigo, pois todos nós trazemos a ambivalência da Modernidade em nós no momento em que tornamos indivíduos nesta sociedade. 

Ambivalência da autonomia pela submissão desaparece do espectro mental humano mais facilmente quando o individuo trabalha para solucioná-lo mais privadamente. Este é a chave do sucesso da literatura de auto-ajuda, tal como o programa de computador de Emily Cho, ele elimina o mal-estar da ambivalência moderna, ao mesmo tempo em que privatizam a vida humana pela eliminação de intermediários pessoais.

Em todo caso devemos considerar que nem toda humanidade está inserida dentro desta lógica de dominação, assim como nem todo ocidental foi individualizado tal como Dumont explicou. Logo, temos de rever as teorizações que propõe o fim da sociedade moderna humana como conhecemos diante das garras da individualidade e narcisismo, e lembrar que esta sociedade foi construída por nós, logo também pode ser destruída por nós, e substituída por outra melhor.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Jorge Guilherme Teixeira da Fonseca
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524, Bloco F, 10º andar, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, CEP: 20550-013, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Endereço eletrônico: jorgeguilhermet@yahoo.com.br

Recebido em: 09/04/2008
Aceito para publicação em: 25/05/2009
Acompanhamento do processo editorial: Luciano Elia e Deise Mancebo

 

 

Notas

1 Este artigo foi adaptado do capitulo 1 da dissertação de mestrado: O desafio de ser indivíduo no século XXI: um estudo sobre a cultura de auto-ajuda. Defendida em Abril de 2007.
2 Christian Wolff (1679-1754) defendia que a filosofia era um saber rigorosamente obtido através de um exame racional dos conceitos utilizando os princípios de contradição e da razão suficiente. 

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