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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

Print version ISSN 1808-5687

Rev. bras.ter. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro June 2010

 

ARTIGOS

 

Prevenção do abuso sexual infantil: estratégias cognitivo-comportamentais na escola, na família e na comunidade

 

Prevention of child sexual abuse: cognitive-behavioral strategies in school, family and community

 

 

Cátula PelisoliI; Luciane Benvegnu PiccolotoII

ICentro de Atenção Psicossocial Casa Aberta - Osório/RS. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
IIWP Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental

 

 


RESUMO

Este trabalho teve por objetivo revisar as estratégias utilizadas para a prevenção do abuso sexual infantil e os resultados encontrados nos estudos até então realizados. O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um problema de saúde pública, que ocorre em todas as culturas e em todos os tempos, deixando inúmeras vítimas com conseqüências deletérias para seu desenvolvimento. Sabendo do imenso gasto público e do impacto gerado por essa violência para as vítimas, famílias e sociedade, uma proposta de prevenção é apresentada com base em estratégias cognitivas e comportamentais. Os contextos foco dessa proposta são a escola, a comunidade e a família, numa tentativa de integrar e fortalecer os esforços em direção a uma real proteção integral das crianças e adolescentes.

Palavras-chaves: abuso sexual, prevenção, terapia cognitivo-comportamental.


ABSTRACT

This study aimed to review the strategies used for the prevention of child sexual abuse and the results found in previous studies. The sexual abuse of children and adolescents is a public health problem, which occurs in all cultures and at all times, leaving many victims with deleterious consequences for their development. Given the huge public cost and the impacts that this violence causes to victims, families and society, this work presents a proposal for prevention based on cognitive and behavioral strategies. The contexts focused are the school, community and family in an attempt to integrate and strengthen the efforts towards a real integral protection of children and adolescents.

Key-words: sexual abuse, prevention, cognitive behavioral therapy.


 

 

INTRODUÇÃO

A cada dia, novos casos de abuso e violência sexual são descobertos e denunciados. Alguns, com maior impacto social, são veiculados repetidamente nos telejornais, nos impressos e na mídia eletrônica e alimentam discussões nos mais diversos contextos. Conceituada pela World Health Organization [WHO] (2005) como todo ato, tentativa, comentários ou insinuações sexuais não desejados, ações para comercializar ou utilizar, de qualquer outro modo, a sexualidade de uma pessoa mediante coação por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, a violência sexual contra crianças e adolescentes tem assumido a condição de um problema de saúde pública tanto no Brasil quanto em outros países (Finkelhor, 1994; Habigzang & Koller, 2006; Polanczyk, Zavaschi, Benetti, Zenker, & Gammerman, 2003). Um recente artigo publicado na Child Abuse and Neglect (Pereda, Guilera, Forns & Gómez-Benito, 2009) apresentou a prevalência internacional do abuso sexual, comparando os dados recentes ao clássico estudo de Finkelhor (1994). Segundo os autores, parece haver um padrão mais ou menos constante de vitimização, através dos anos, que situa-se em 10% para os homens e entre 10 e 20% para mulheres. Pereda, Guilera, Forns e Gómez-Benito (2009) investigaram 38 estudos de 21 países e concluíram que o abuso sexual permanece um problema generalizado e que merece atenção da sociedade e dos governos para atuar em termos de prevenção.

Ao redor do mundo, as notícias que chegam dos países da África são aquelas que mais chocam. Na República Democrática do Congo, a violência sexual é uma estratégia de guerra, que busca dominar a comunidade e humilhar a família, quebrando os vínculos que a unem. A mulher é violentada na frente de toda a comunidade, trazendo vergonha, medo e exclusão. Seus agressores são múltiplos e usam armas de fogo e cortantes nos genitais da vítima, levando a necessidade de cirurgias e tratamentos médicos. Estes homens não são punidos e causam um mal que é psicológico, físico, social e também econômico (International Committee of Red Cross [ICRC] 2006). Sabe-se que na África a extirpação do clitóris é prática comum (Reuters, 2008). A chamada clitoridectomia inibe o prazer sexual e é realizada em comunidades islâmicas e não-islâmicas no norte da África e Oriente Médio (Wikipédia, 2009). Recentemente, o Egito proibiu essa prática, que era antes realizada comumente em consultórios e clínicas médicas. A retirada do clitóris, que era praticada pela maioria da população, é atualmente passível de punição para aqueles que se envolverem nessas operações.

Na Colômbia, a situação é semelhante. Mulheres são violentadas por membros de diferentes grupos armados (United Nations, Comission on Human Rights [UNCHR] 2002). Militares americanos também praticaram esse crime em zonas de combate iraquianas e afegãs, segundo relatório elaborado pelo Pentágono (BBC Brasil, 2009). O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas - ONU adotou uma resolução exigindo que os participantes de conflitos detenham esse tipo de violência contra civis. Segundo o consultor jurídico do CIVC Jean-Marie Henkaertz, a violência sexual é inaceitável tanto em tempos de guerra como em tempos de paz (ICRC, 2008).

No Brasil, ainda que a violência sexual não tenha esse caráter, até porque somos uma nação teoricamente em situação de paz, as estatísticas não param de demonstrar um constante e vertiginoso aumento. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos divulgou dados referentes ao período de maio de 2003 a maio de 2004, que incluíam mais de 17.000 denúncias. Destas, aproximadamente 5.000 eram denúncias de abuso sexual e aproximadamente 4.000 de exploração sexual, ou seja 28,7% das denúncias são referentes a abuso sexual, enquanto 27,8% a exploração sexual e 45% a outras formas de violência contra crianças e adolescentes (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007). Digno de nota é que o aumento estatístico, no caso do abuso sexual, não significa aumento real da incidência desse fenômeno na sociedade, mas parece dizer respeito a uma maior preocupação social e maior atenção ao tema (Flores & Caminha, 1994). Um fator que contribuiu para esses assustadores índices é o turismo sexual. Segundo Davidson e Taylor (2007), turistas de países ricos que compram sexo geralmente se relacionam com crianças de famílias marginalizadas social, política e economicamente ou com crianças que não tem família e vivem nas ruas. Entretanto, a já sabida estatística de que a maior parte dos casos acontece dentro de casa, perpetrado por pais e padrastos em primeiro lugar, permanece sendo a mais freqüente forma de violência sexual (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005; Kristensen. Oliveira & Flores, 1999; Souza & Adesse, 2005).

A nova lei federal 12.003 de 29 de julho de 2009 cria um número exclusivo para os Conselhos Tutelares. Em conjunto com o Disque Denúncia Nacional - o Disque 100, essa nova estratégia certamente possibilitará um aumento no número de denúncias e a conseqüente maior atenção aos casos de violência. Em vários países, as leis que discorrem sobre crimes sexuais estão sendo revistas, com penas mais rígidas e com maior definição dos crimes. Itália, Áustria e Colômbia são alguns exemplos. No Brasil, a lei 12.015 de sete de agosto de 2009 endureceu as penas para esses crimes (Brasil, 2009). Com esse novo artefato da legislação nacional, os crimes contra a liberdade sexual, incluindo pedofilia, assédio sexual e exploração sexual passaram a ser vistos e serão julgados com maior rigidez.

Testemunhar ou vivenciar situações de violência de qualquer ordem associa-se com a apresentação de sintomas de sofrimento mental no decorrer da vida das pessoas (Assis, Avanci, Pesce & Ximenes, 2009). As conseqüências deletérias para o desenvolvimento das crianças e adolescentes vítimas são inúmeras e podem prolongar-se por toda a vida. Esses resultados negativos podem ser comportamentais, cognitivos, afetivos, físicos e/ou psicopatológicos (Browne & Finkelhor, 1986). Mais especificamente, as crianças podem apresentar agitação psicomotora, dificuldade de concentração e de memória, isolamento, agressividade, abuso de substâncias, queda do rendimento escolar, comportamento hipersexualizado, sentimentos de vergonha, medo, tristeza, raiva, etc, além de possíveis problemas físicos decorrentes do abuso, como doenças sexualmente transmissíveis e gravidez. Em termos de psicopatologia, a mais comum e mais estudada é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, mas o desenvolvimento de outras psicopatologias também é comum, como o transtorno depressivo e outros transtornos de ansiedade (Maniglio, 2009). Conseqüências de longo prazo também se fazem presentes nas vítimas, como problemas de ajustamento e transtornos de personalidade, como o borderline (Linehan & Dexter-Mazza, 2009). Especialmente nos meninos, há sentimentos acentuados de vergonha quanto à identidade masculina, raiva extrema, culpa, e freqüente uso de drogas (Kristensen, 1996; O'Leary, 2009). O´Leary (2009) demonstrou em seu estudo que um menino abusado sexualmente tem dez vezes mais chance de apresentar um diagnóstico clínico na idade adulta do que aqueles que não sofreram a violência. Além disso, há maior probabilidade de revitimização na idade adulta de uma pessoa que foi vítima de qualquer forma de violência na infância, dentre elas, o abuso sexual, o que confirma a hipótese da miltigeracionalidade (Widom, Czaja & Dutton, 2008). Esses dados indicam a importância da intervenção precoce, no sentido de prevenir novas exposições a violências.

Para dar conta de um problema tão grave e complexo como o abuso sexual, há a necessidade de uma rede articulada de serviços e programas, que possa oferecer suporte adequado às vítimas e suas famílias. Entretanto, segundo Assis, Avanci, Pesce e Ximenes (2009), a rede de atendimento a essa população encontra-se frágil, com baixo número de profissionais especialistas e baixa prioridade para as questões de saúde mental. A capacitação de diferentes profissionais e a abertura de novos serviços que atendam esse público são destacadas como necessidades urgentes. A falta de efetividade dos serviços é considerada como mais um fator de risco para a vítima e para a família (Habigzang, Azevedo, Koller & Machado, 2006). Morosidade, falta de comunicação entre os serviços da rede e falta de acompanhamento pelos conselheiros tutelares são alguns fatores que prejudicam o andamento dos casos de abuso sexual e demonstram a necessidade de aperfeiçoamento dos profissionais (Habigzang et al. 2006). Souza e Santana (2009), ao entrevistar gestores de saúde em um município da Bahia, demonstraram que os próprios gestores reconhecem o despreparo dos profissionais, a precariedade de recursos, a ineficiência dos encaminhamentos e a falta de articulação entre diferentes setores que atuam nessa área.

O acompanhamento psicológico de vítimas de violência envolve diferentes instituições e profissionais. No caso de crianças vítimas, necessário contato constante com o Conselho Tutelar, Juizado da Infância e Juventude, serviços de saúde e justiça. Trata-se de um acompanhamento multidisciplinar, que procura garantir a proteção e a saúde da criança. No Brasil, um modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental, incluindo psicoeducação, treino de inoculação do stress e prevenção à recaída, foi recentemente avaliado e obteve resultados positivos sobre os sintomas de depressão, ansiedade, stress infantil, transtorno de estresse pós-traumático, além de reestruturação cognitiva relacionada ao abuso (Habigzang, 2006). É sabido, entretanto, que apesar de a maioria ou todas as crianças vítimas necessitarem de alguma intervenção no campo da saúde mental, muitas delas não iniciam a psicoterapia mesmo tendo sido encaminhadas (Lippert, Favre, Alexander & Cross, 2008).

Diante das inúmeras conseqüências adversas associadas à ocorrência do abuso sexual, do impacto que tem para suas vítimas e famílias, das dificuldades evidentes de serviços e da rede de proteção, da multigeracionalidade e da dificuldade de as vítimas iniciarem procedimentos de psicoterapia, torna-se fundamental que estudiosos e técnicos se debrucem sobre estratégias de prevenção de violência. Sob uma perspectiva mais ampla, a prevenção não tem sido uma prioridade na prática dos serviços públicos de saúde, de qualquer natureza. As intervenções primárias, apesar de ter reconhecida sua importância, parecem distantes da nossa realidade. Esse trabalho procura abordar estratégias de prevenção do abuso sexual, numa proposta que englobará os seguintes contextos: (a) a escola; (b) a comunidade; e (c) a família.

Intervenções primárias e secundárias em violência contra crianças e adolescentes

As intervenções dos profissionais de psicologia historicamente são direcionadas ao comportamento desajustado, à psicopatologia e aos problemas de personalidade. É recente o interesse da área pelo foco na saúde e na resiliência. Psicologia positiva e psicologia da saúde são duas abordagens bastante recentes, mas que vêm obtendo uma atenção cada vez maior da comunidade científica (Witter, 2008). A mudança de um enfoque curativo para o preventivo é algo recente no campo da saúde (Galheigo, 2008). Resultados mais positivos em longo prazo e menores custos são dois motivos que fundamentam a existência de trabalhos preventivos Melo (2003 como citado em Lohr, Pereira, Andrade & Kirchner, 2007). Especificamente com relação à violência, encontramos na literatura as abordagens focalizando o tratamento psicoterápico, principalmente baseados nos protocolos de transtorno do estresse pós-traumático (Habigzang & Caminha, 2004; Medical University of South Carolina, 2005). Estas intervenções têm incluído as estratégias psicoeducativas, treino de inoculação do estresse, expressão e modulação do afeto, processamento e reestruturação cognitiva, coping cognitivo, treino comportamental, sessões com pais e filhos e avaliação.

Por sua vez, em termos de prevenção, apesar do corpo teórico bem menos consistente, há um crescente envolvimento de organismos internacionais interessados em promover medidas que previnam a violência e promovam a cultura da paz (Galheigo, 2008). Além de prover suporte e cuidado para as vítimas, as abordagens têm se dirigido também a intervir nos relacionamentos íntimos e familiares, encorajar atitudes saudáveis por parte de crianças e adolescentes, desenvolver campanhas, além de propiciar melhorias no ambiente, treinamento policial, medidas legislativas e judiciais, adesão a tratados internacionais e esforços para modificar normas e costumes (Galheigo, 2008).

Quando abordamos o assunto intervenção, estamos falando de possibilidades diferentes, em três níveis: primário, secundário e terciário. Em se tratando de violência, as intervenções primárias abordam a sensibilização dos profissionais para medidas preventivas, educando e informando pessoas a respeito da violência. Por sua vez, as intervenções secundárias estão voltadas para identificação e intervenção precoce e as terciárias para os atendimentos nos serviços para tratamento e reabilitação (Gomes, Silva & Njaine, 1999). No nível primário, o foco é a promoção de qualidade de vida para a população e a capacitação e participação dos profissionais na problemática da violência, bem como a construção da cidadania e a fundamentação das ações em pesquisas. Por sua vez, no nível secundário, o foco é a identificação e intervenção precoce. Já o nível terciário, trata da organização dos serviços de saúde e da promoção de atendimento integral, através de equipes multidisciplinares (Gomes, Silva & Njaine, 1999). Na Tabela 1, encontramos algumas recomendações para estes três níveis de atenção em violência.

Especificamente para a prevenção da violência sexual, a revisão realizada por Gomes, Silva e Njaine (1999) traz algumas importantes alternativas, como a veiculação de informações sobre o problema, reflexões sobre como prevenir a violência sexual contra grupos mais expostos, esclarecimento à população sobre a importância de a denúncia ser realizada logo após a agressão sexual, disseminação da idéia de que qualquer omissão de denúncia de maus-tratos a crianças e adolescentes é crime, aprimoramento do diagnóstico de abuso, utilização de exames para detectar e não apenas entrevistas; atividades que envolvam desenhos quando a vítima for criança e a observação das condutas do examinando, a reabilitação da vítima e tratamento multidisciplinar.

O enfoque positivista de Seligman procura, na identificação de fatores de risco e proteção, a demanda para o trabalho com os aspectos positivos do ser humano. Nos estudos sobre violência, essas pesquisas têm tido um campo frutífero e um papel importante em subsidiar intervenções preventivas. Fleming, Mullen e Bammer (1996) encontraram que abuso físico, isolamento social, falta de rede de suporte emocional, e mãe com doença mental foram fatores que se destacaram por sua associação com abuso sexual na infância. Ter uma mãe que sofre de doenças mentais deixa a criança em risco para negligência e falta de supervisão. Além disso, a privação emocional que sofre a deixa mais vulnerável para o abuso, na medida em que tem maior necessidade de afeto e atenção. Para o abuso intrafamiliar, destacaram-se o fato de ter pai alcoolista, não ter um adulto cuidador do sexo feminino, abuso físico e não ter alguém em quem confiar. Para o abuso extrafamiliar, os preditores significativos foram abuso físico, isolamento social, morte da mãe e ter mãe alcoolista. Esses dados podem fornecer importantes dicas para estratégias preventivas, diminuindo o risco de abuso ou minimizando o impacto na vida das vítimas (Fleming, Mullen & Bammer, 1996).

Estudos que avaliaram programas de prevenção no âmbito escolar apresentam estratégias muito úteis. No Brasil, Brino e Williams (2003a) realizaram uma intervenção com professores com a proposta de identificar precocemente o abuso sexual. O procedimento de capacitação dos educadores incluiu explanações sobre o tema e sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, reflexão sobre os procedimentos adotados nos casos de abuso e identificação de formas de ação diante de casos de alunos vítimas. Os tópicos discutidos foram: definições, crenças, causas e conseqüências, aspectos legais, deveres dos profissionais, encaminhamento e tratamento da vítima. Outra fase da intervenção foi a de consultoria, em que discutiram-se questões e casos suspeitos de abuso. No estudo de Brino e Williams (2003a), um grupo de professoras que não participou da capacitação e serviu como grupo controle, pode confirmar que a intervenção teve efeito positivo no que concerne ao aumento do repertório de informações a respeito do abuso sexual infantil e nos procedimentos e encaminhamentos dados aos casos.

Abordar diretamente as crianças para falar sobre abuso sexual também tem se mostrado um procedimento importante. A literatura já demonstrou que crianças que passam por programas de prevenção apresentam maior conhecimento sobre abuso sexual do que aquelas que não participaram. Para saber se esse conhecimento contribui para que se possa evitar sofrer uma situação abusiva, um interessante estudo conduzido por Gibson e Leitenberg (2000) investigou, em 825 mulheres entre 16 e 28 anos, a participação em programa escolar de prevenção de abuso sexual (quando crianças) e a subseqüente vitimização. Os autores encontraram que as mulheres que participaram de programa quando eram crianças foram vitimizadas num percentual menor do que aquelas que não participaram, o que sugere então, a efetividade de programas de prevenção, já que aquelas que não participaram apresentavam três vezes mais chance de terem sofrido abuso sexual.

A percepção do risco para ser vitimizada aumenta quando as crianças participam de programas de prevenção na escola (Jacobs & Hashima, 1995). Para esses programas, o ideal é que a percepção de risco aumente, tornando as crianças mais vigilantes, mas não medrosas. Ensinar crianças sobre risco é uma tarefa difícil porque elas entendem mais facilmente o que é determinístico do que o que é probabilístico. Um grupo focal com crianças também foi uma estratégia útil, inovadora e flexível na prevenção do abuso sexual infantil em estudo realizado nos Estados Unidos (Charlesworth & Rodwell, 1997). O procedimento incluiu as habilidades de "dizer não", "contar para alguém", "procurar um adulto de confiança", diferenciar "tipos de toques". Outro elemento comum nesses programas é o "Bom toque - Mau toque" (Gibson & Leitenberg, 2000). Grupos com crianças contribuem aumentando seus conhecimentos e habilidades sobre segurança pessoal (Burgess & Wurtele, 1998) e habilidades de autoproteção (Rispens, Aleman & Goudena, 1997).

Outra possibilidade é abordar a família, através de pais e filhos. Burgess e Wurtele (1998) conduziram um estudo que procurou verificar a eficácia da apresentação de um vídeo para aumentar a comunicação sobre abuso sexual infantil entre pais e filhos. De um modo geral, encorajar os pais a discutirem esse tópico com os filhos tem sido recomendado. Segundo os autores, se os pais são treinados a serem educadores em prevenção, as crianças receberão repetidamente informações sobre prevenção em seu ambiente natural. Pais que recebem esse treinamento são melhores em identificar crianças vítimas e a responder às revelações e podem proteger suas crianças de potenciais situações abusivas. Muitos pais não conversam com seus filhos sobre abuso porque acreditam que o risco é baixo, porque há falta de confiança em sua habilidade de discutir esse assunto ou há falta de conhecimento, vocabulário ou materiais.

Na China, outro estudo reforçou a necessidade de envolver os pais na prevenção do abuso. Chen, Dunne e Han (2007) encontraram que os pais têm muito mais probabilidade de falar com seus filhos sobre perigos com pessoas estranhas do que sobre abuso sexual. Muitos preocupam-se com programas preventivos, porque entendem que falar sobre isso poderia levar as crianças a saberem muito sobre sexo. Os pais chineses, por outro lado, consideram muito importante haver algum tipo de informação sobre esse assunto na escola. As mães têm mais probabilidade do que os pais de falarem com seus filhos sobre abuso. O nível de escolaridade dos pais está fortemente associado com conhecimento e atitude positiva em relação a prevenção, mas não diferencia a comunicação sobre o abuso com as crianças, ou seja, ter mais escolaridade parece indicar que os pais têm mais conhecimento sobre o assunto e reagiriam mais positivamente no caso de haver uma revelação. Entretanto, não significa que eles conversam mais sobre isso com seus filhos do que pais com nível de escolaridade menor.

Diante dos estudos revisados, fica clara a importância de propostas e ações de intervenção que objetivem não apenas o tratamento das vítimas, mas o envolvimento de diferentes atores na prevenção do abuso sexual infantil. Pais, professores, alunos e outros profissionais podem passar a ter um papel mais ativo nessa direção, evitando que novos atos de violência sejam cometidos e rompendo ciclos abusivos cujas repercussões se manteriam durante anos. Na próxima seção, será apresentada uma proposta de intervenção com o objetivo de (a) prevenir o abuso sexual; (b) identificar e intervir precocemente nesses casos.

Proposta de prevenção do abuso sexual: Estratégias cognitivo-comportamentais

Não é de hoje que se fala que educadores, conselheiros tutelares e profissionais da saúde precisam de capacitação para atuar frente aos casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes (Caminha, 1999). Essa necessidade impulsiona a proposta a seguir, que é baseada nos estudos abordados nesse trabalho e buscam uma integração do conhecimento sobre os campos da prevenção, da violência e da psicoterapia cognitivo-comportamental. Ela aborda três contextos de intervenção, tendo em vista a sobreposição natural destes, a necessidade de não percebê-los de forma estanque e de se atuar simultaneamente em todos (Galheigo, 2008).

Na Tabela 2, é apresentado um quadro resumido dos contextos e estratégias de intervenção, que buscam prevenir e intervir precocemente nos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. A seguir, os contextos são apresentados um a um e as abordagens propostas são esclarecidas mais detalhadamente.

Escola

Professores, orientadores e funcionários de escolas podem ter um papel muito importante na identificação precoce de situações de abuso ou mesmo na prevenção. Esses trabalhadores têm contato diário com as crianças e adolescentes no contexto escolar, que é um local muito propício para discussão e reflexão (Rispens, Aleman & Goudena, 1997). Além disso, como na maioria dos casos o agressor é parte da família, a escola é o lugar ideal para detecção e intervenção (Brino & Williams, 2003b). Também por razões econômicas, grande parte das estratégias preventivas tem ocorrido no sistema educacional.

Segundo estudo realizado por Brino e William (2003b), as professoras carecem de informações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e especificamente sobre abuso sexual. Muitas delas, entretanto, declararam já ter em suas salas de aulas casos de vítimas entre seus alunos. Assim, as autoras reforçam a importância e a necessidade de os professores receberem treinamento especializado para identificar e intervir nesses casos, já que muitas professoras apresentam apenas um conhecimento superficial sobre o tema, buscam informações em meios não apropriados e não tem clareza sobre os procedimentos que devem tomar.

A psicoeducação é uma estratégia útil em muitos tratamentos psicoterápicos e consiste em ensinar ao paciente sobre o modelo com que trabalhamos e sobre o seu problema (Knapp, 2004). Nessa proposta, sugere-se que os trabalhadores da escola sejam ensinados por um profissional especialista no assunto sobre o fenômeno do abuso sexual, sua prevalência e consequências e possíveis sinais que contribuem para identificar uma situação abusiva precocemente. Além disso, a psicoeducação vai contribuir para ensiná-los a como agir nesses casos, que instituições acionar e a melhor forma de abordar o assunto com a criança e os pais.

Também com este objetivo, as técnicas de modelação, treinamento de habilidades sociais e role-play podem contribuir para que esses trabalhadores possam se aperfeiçoar nessas tarefas e agirem com mais segurança e confiança na hora que uma atitude se fizer necessária. A modelação é uma forma de aprendizagem pela observação (Feilstrecker, Hatzenberger & Caminha, 2003). Nesse contexto, esses funcionários podem observar o terapeuta/coordenador atuando em situações criadas o mais realisticamente possível e, posteriormente, reproduzir os comportamentos observados. O coordenador observará então o que os participantes absorveram e poderá aperfeiçoar a aprendizagem dos participantes, através do feedback e do fornecimento de outras informações.

Por sua vez, as habilidades sociais podem ser desenvolvidas a partir de treinamento. O treino de habilidades sociais - THS - envolve o desenvolvimento de habilidades interpessoais como iniciar e manter conversações, defender os próprios direitos, expressar sentimentos, criticar e receber críticas, pedir, negar, falar em público (Feilstrecker, Hatzenberger & Caminha, 2003). Na escola, para os professores e funcionários, elementos de THS podem ser muito úteis na medida em que possibilita que esses profissionais consigam estabelecer interações mais próximas, positivas e abertas com seus alunos, possibilitando assim que esses possam obter mais apoio e abertura para possíveis diálogos sobre problemas familiares e violência. O treinamento de comunicação pode contribuir na medida em que instrui o participante sobre dizer o que quer de forma clara e objetiva (Knapp, 2004).

Outra técnica que certamente pode ser incluída nesses programas é o role-play, que envolve as tarefas de experienciar o problema, desempenhar diferentes papéis e observar os comportamentos. Dessa forma, os professores podem dramatizar a revelação por um aluno, ensaiando diferentes maneiras de abordar a situação. Com essa estratégia, eles iriam ainda poder experimentar como é para uma criança fazer esse tipo de relato, em que os sentimentos dominantes são medo, vergonha e culpa. Para cada forma que o professor apresenta de manejar a situação, os sentimentos dos atores podem ser trazidos ao conhecimento de todos os participantes e, dessa forma, o grupo descobriria a melhor abordagem, a partir da vivência e da interação. Um momento de discussão e encerramento deve fazer parte, enfatizando as principais conclusões a que o grupo chegou, claro, com a ajuda do coordenador.

Com os alunos, grupos psicoeducativos podem abordar direitos e deveres de crianças e adolescentes. De acordo com Souza (2008), apesar de os adolescentes apresentarem conhecimento acerca de seus próprios direitos, ainda há necessidade na nossa sociedade de intervenções que possam ampliar esse conhecimento, incluindo deveres e valores. Portanto, encontros em grupos realizados na escola com esse objetivo podem impulsionar as crianças e adolescentes a verem-se como sujeitos de direitos, com garantias que devem ser asseguradas pela família, pela sociedade e pelo Estado. Ao ter maior contato com esse assunto, certamente essa população vulnerável ao abuso sexual infantil poderá ter maiores chances e habilidades de agir em proteção própria, buscando adultos que podem oferecer ajuda e garantir sua proteção. Esses grupos podem, ainda, abordar a diferença entre contatos físicos abusivos e não abusivos e alternativas de comportamentos que podem contribuir para que eles protejam-se de possíveis situações adversas.

Uso de vídeos educativos, oficinas, palestras com profissionais de diferentes áreas (direito, psicologia, etc) são algumas das alternativas que podem ser utilizadas. Muitas vezes, a educação sexual na escola restringe-se a simples aulas de anatomia e fisiologia dos órgãos sexuais e apresentação de doenças sexualmente transmissíveis. Esse espaço poderia ser utilizado para que se aborde a questão da relação não consentida e dos relacionamentos abusivos e ilegais que são estabelecidos nos mais variados contextos. Certamente, muitos alunos seriam beneficiados por uma explicação que iria além da biologia, incluindo relações de poder, sentimentos, saúde e lei.

Comunidade

As denúncias realizadas por profissionais de saúde a respeito de maus-tratos contra crianças e adolescentes são em número muito reduzido. Segundo Cavalcanti (1999), apenas 3% dos casos que chegaram ao Conselho Tutelar foram denunciados por esses profissionais. Em recente estudo realizado no Rio Grande do Sul (Pelisoli, Pires, Almeida & Del'Aglio, no prelo), esse percentual também se mostrou muito baixo, indicando que são poucos os profissionais de saúde que identificam e denunciam os abusos cometidos contra crianças e adolescentes. Pela característica de vinculação e acompanhamento sistemático e continuado dos programas de saúde da família, como o atual ESF - Estratégia de Saúde da Família, a identificação e a intervenção em situações de violência teriam aí um campo rico. Quando há o fortalecimento dos laços entre os profissionais e a população atendida, podem ser constituídas importantes estratégias para prevenção, identificação e intervenção em situações de violência familiar (Cavalcanti, 1999).

Entretanto, não é sozinha que a equipe de saúde da família deve atuar. Ela deve obter supervisão dos serviços especializados e, pela própria necessidade inerente aos casos de abuso sexual, deve estar em contato constante com os órgãos judiciários e de proteção, como os Juizados e Conselhos Tutelares.

Por sua vez, o Conselho Tutelar é o órgão encarregado de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. É autônomo e permanente, formado por pelo menos cinco pessoas eleitas pela comunidade. No Brasil, os únicos requisitos para candidatar-se ao cargo de conselheiro tutelar é residir no município, ter 21 anos ou mais e ter reconhecida idoneidade moral (Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] 1990). Entretanto, parece imprescindível haver programas de capacitação para esses profissionais, tanto por haver poucos requisitos para a investidura no cargo quanto pela complexidade de suas tarefas. Os próprios conselheiros tutelares consideram necessário haver capacitação a respeito de violência sexual, como também acerca de outros assuntos como leis e orientação a pais (Silva, 2004). A capacitação gera impacto no aprimoramento das concepções dos participantes acerca das modalidades de violência, fatores de risco e proteção, bem como na conseqüente melhor identificação destes (Silva, 2004).

Da mesma forma que na escola, as estratégias de psicoeducação, role-play, modelação e treino de habilidades sociais podem contribuir garantindo aos profissionais uma capacitação adequada para intervir nessas complexas situações. Essas técnicas garantem a participação efetiva das pessoas e impedem que a capacitação fique limitada a aulas expositivas sobre o tema.

Família

É sabido que a maior parte dos abusos sexuais ocorre dentro da família (Kristensen, Oliveira, & Flores, 1999). São pessoas próximas, com laços afetivos com a vítima, que abusam sexualmente. Geralmente homens, em sua maioria, pais e padrastos, violentam meninas às quais têm acesso facilitado, pela convivência e confiança que têm tanto da criança quanto da família. Um fator abordado por Sanderson (2005) é o de que o abusador, antes de aliciar a vítima, alicia os adultos. Somente conquistando a confiança dos adultos que cuidam da criança é que ele consegue as oportunidades para que o abuso aconteça. Em muitos casos, o processo de conquistar a confiança da família pode durar muito tempo, o que faz com que o abusador obtenha da família uma credibilidade que mais tarde vai dificultar ainda mais a revelação por parte da vítima.

O Treinamento de Pais - TP - é uma abordagem utilizada em muitos tipos de problemas envolvendo crianças e adolescentes, tendo um papel fundamental em pais que correm o risco de descuidar de suas crianças (Caminha & Pelisoli, 2007). Essa abordagem se fortalece na prerrogativa de que agir adequada e de forma contingente a um determinado comportamento influencia este comportamento mais fortemente do que uma intervenção posterior. Sendo assim, os pais ou cuidadores podem intervir no momento preciso e controlar reforçadores poderosos e significativos para as crianças e adolescentes, obtendo resultados em alterar o comportamento problema (Olivares, Méndez & Ros, 2005). O TP é definido como um enfoque para o tratamento de problemas de comportamento, estimulando comportamentos adaptativos e diminuindo os desadaptativos (Olivares et al. 2005).

Entretanto, para além da manipulação adequada de contingências, o TP pode ser utilizado como uma medida para proteger as crianças de maus-tratos. Em se tratando de abuso sexual infantil, o TP pode ser utilizado de forma que conscientize os pais sobre os cuidados necessários para que seus filhos tenham um risco menor de sofrer esse tipo de violência, tanto em casa como na rua. Um procedimento com esse objetivo geral poderá incluir: (1) psicoeducação sobre abuso sexual: definições, prevalência, conseqüências, mitos e realidades; (2) levantamento das estratégias de cuidado e proteção já utilizadas pelos pais; (3) ampliação dessas estratégias; (4) abordagem sobre o que fazer quando há suspeita ou revelação; (5) role-play de como discutir o assunto com as crianças e uso de vídeo educativo (Burgess & Wurtele, 1998); (6) modelação, onde o terapeuta pode atuar como modelo, mostrando aos pais formas de conversar com a criança sobre abuso sexual; (7) treinamento de habilidades, onde o pais vão ensaiar as conversas com seus filhos e as atitudes que tomarão diante de diferentes situações envolvendo risco, suspeita e revelação.

As habilidades sociais maternas estão positivamente correlacionadas à qualidade da interação com os filhos, ou seja, quanto maiores as habilidades sociais das mães, melhor é o seu envolvimento com seus filhos (Cia, Pereira, Del Prete & Del Prete, 2007). Portanto, um melhor envolvimento implica maior qualidade na comunicação verbal e não verbal, participação nos cuidados e nas tarefas das crianças, que apresentam um impacto positivo para um desenvolvimento saudável. Na medida em que há um envolvimento de qualidade, com interações positivas e abertas, podemos inferir que há mais facilidade para introduzir assuntos relacionados a comportamentos de proteção em relação ao abuso sexual. Nesse sentido, propiciar elementos de treinamento de habilidades sociais para pais pode favorecer a prevenção do abuso sexual ou a sua intervenção precoce.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou revisar estudos de prevenção do abuso sexual contra crianças e adolescentes, tendo em vista o impacto que essa violência acarreta tanto aos indivíduos e famílias, como aos sistemas de saúde e justiça demandados. O objetivo principal deste estudo foi o de apresentar uma proposta de intervenção utilizando estratégias cognitivo-comportamentais que podem contribuir para prevenir esse mau-trato em diferentes contextos: escola, comunidade e família.

Apesar de encontrarmos alguns projetos e programas que buscam a prevenção da violência, o que se percebe é que essas iniciativas se dão de forma isolada e sem planos de ação intersetorial que agregue essas ações num contexto mais amplo (Galheigo, 2008). Parece que em todos os níveis de intervenção em saúde há fragmentação das ações e no que diz respeito à violência isso não ocorre de forma diferente. O setor saúde experimenta uma lacuna no que diz respeito à prevenção e apenas na ameaça de epidemias e pandemias se mobiliza nesse sentido. Entretanto, o que se vê é que o abuso sexual é uma pandemia lenta, gradual e muitas vezes discreta, que por essas características vai passando despercebida e com pouca atenção nos níveis primário e secundário.

A partir dos estudos revisados, conclui-se que existe uma série de possibilidades de intervenção nesses níveis, que são subutilizadas pelas áreas da saúde, principalmente no Brasil. Como vimos, os prejuízos decorrentes dessa violência são tão intensos e duradouros que talvez os resultados de programas de prevenção, ainda que sejam muito positivos, talvez não consigam demonstrar a magnitude de seus benefícios, já que os resultados desses estudos apenas abordam aquilo que poderia acontecer, numa lógica probabilística. O impacto do abuso sexual infantil é social, psicológico, de saúde e econômico e sua prevenção deixa de gerar uma demanda muito grande de crianças e famílias, nos setores da saúde e da justiça e faz uma diferença sem tamanho na vida dessas pessoas. É necessário, portanto, que o campo da Psicologia oriente-se mais ao plano da prevenção, minimizando assim os incontáveis prejuízos dessa violência que vitimiza tantas crianças e adolescentes e que se repete no decorrer das gerações.

A proposta descrita nesse trabalho é uma compilação de ideias e estratégias abordadas em outros estudos, muitos deles já tendo sua efetividade verificada em outros contextos, mas que merecem ser avaliadas no Brasil. Abordando esses três contextos, escola, família e comunidade, acreditamos estar dando maior consistência a essas estratégias preventivas, na medida em que aumentamos as possibilidades de um desfecho positivo e saudável para muitas histórias de abuso que poderiam ocorrer e foram evitadas, ou que ocorreram e foram conduzidas de uma forma mais apropriada. Com maior conhecimento sobre o fenômeno e maiores habilidades em lidar em situação de risco, há maiores chances de que o abuso não aconteça e se ele não for passível de ser evitado, que seja revelado brevemente e abordado adequadamente. Entretanto, ressalta-se como uma importante limitação deste estudo, que essa proposta deve ser detalhada num programa terapêutico que ofereça um número determinado de sessões, qual técnica aplicar em casa sessão, além de ter posteriormente sua eficácia avaliada em outro estudo.

Algumas outras estratégias de prevenção possíveis são a realização de campanhas na mídia, o uso de telefones de disque-denúncia, o tratamento de abusadores sexuais (Sanderson, 2005), além de intervenções com base nos fatores de risco, como a violência comunitária (Polanczyk, Zavaschi, Benetti, Zenker & Gammerman, 2003).

É claro que profissionais da saúde, educação e justiça acabam, pela própria especificidade de seu trabalho, tendo maior contato com esse polêmico assunto que é o abuso sexual. Além da necessidade premente de especialização e maior conhecimento e habilidades desses técnicos em lidar com as vítimas e os procedimentos específicos, ressalta-se que a prevenção do abuso pode e deve ser papel de todo cidadão. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º refere que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público zelar pelos direitos da criança (ECA, 1990). A partir do princípio da proteção integral, todo cidadão deve denunciar caso tenha suspeita de violência, acionando assim os órgãos responsáveis. Denunciar também é prevenir, porque estamos prevenindo novos abusos com a mesma criança, outros abusos com outras crianças, além de prevenir os diversos problemas futuros que podem ser desencadeados com uma vitimização sexual.

Falar sobre abuso sexual e não permitir que ele seja empurrado para baixo do tapete (Sanderson, 2005) é fundamental para que tenhamos uma sociedade que se preocupe em prevenir essa violência e não apenas rechaçar e punir quem a pratica. É necessário que os reais dados e informações sobre os abusos, obtidos pelos estudos, sejam levados ao público e às comunidades (Koller, 2008), para que as pesquisas tenham uma implicação mais direta e positiva sobre a população, que, assim, pode atualizar-se em seu conhecimento sobre o fenômeno, não permitindo que se mantenham noções errôneas e falta de atitude frente a esses acontecimentos.

Para Minayo e Souza (1999), qualquer proposta de prevenção da violência deve considerar que se trata de um fenômeno complexo que se atualiza nas relações interpessoais cotidianas. Portanto, uma proposta deve incluir diferentes atores e contextos e ser ao mesmo tempo abrangente e específica. O setor saúde e a psicologia, em particular, podem protagonizar ações que promovam saúde e previnam as mais variadas formas de violência, buscando assim a proteção integral das crianças, conforme propõe a legislação brasileira (ECA, 1990). Com as palavras de Christine Sanderson, as crianças "têm o direito de viver em um mundo em que não sejam mais vulneráveis ao abuso e à exploração sexual, um mundo no qual possam confiar em vez de ter medo" (p.311).

 

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Nota sobre as autoras

Cátula Pelisoli é psicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, especialista em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental, pela WP Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental, mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial Casa Aberta - Osório/RS, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Adolescência - NEPA/UFRGS e da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas - FBTC.
Luciane Benvegnu Piccoloto é psicóloga pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, especialista em Psicologia Hospitalar pela ULBRA e em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. É mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, professora de cursos de graduação e pós-graduação e psicóloga clínica na WP, Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental.