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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Família e tecnologias reprodutivas: considerações sobre a transmissão psíquica geracional

 

Family and reproductive technologies: considerations on generational psychic transmission

 

Familia y tecnologías reproductivas: consideraciones la transmisión psíquica generacional

 

 

Camila Fonteles d'Almeida MonteiroI; Leônia Cavalcante TeixeiraII

IMestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Psicóloga. Fortaleza. Ceará. Brasil. camilafonteles@hotmail.com
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza. Ceará. Brasil. leoniat@unifor.br

 

 


RESUMO

Este trabalho teve como objetivo discutir a transmissão psíquica geracional nas configurações familiares advindas do processo de reprodução medicamente assistida. Ao debatermos esse tema nos remetemos a assuntos tais como infertilidade, desejo de ter filhos, discurso técnico-científico vigente e atuação do poder da biomedicina. O estudo de tais questões foi realizado a partir de pesquisa bibliográfica com enfoque na teoria psicanalítica. A psicanálise resgata a dimensão da subjetividade, do desejo, da sexualidade e da filiação como inserção simbólica, ressaltando o que é transmitido na família através dos processos inconscientes. O importante para o desenvolvimento é que sejam transmitidos, através das funções materna e paterna, os interditos fundamentais e a lei do desejo, para que cada um possa subjetivar-se e inserir-se na cultura.

Palavras-chave: Família; Psicanálise; Reprodução medicamente assistida; Transmissão psíquica.


ABSTRACT

This study aimed to discuss the psych generational transmission in the settings of families originated from medically assisted reproduction. The debate of this issue reminds us of issues such as infertility, desire to have children, current technical-scientific discourse and how the power of biomedicine operates. The study of these issues was held from bibliographic search focusing on psychoanalytic theory. The psychoanalysis brings back the dimension of subjectivity, desire, sexuality and filiation as symbolic integration, highlighting what is transmitted in the family through unconscious processes. What is important to the subject’s development is the transmission, through maternal and paternal roles, of the fundamental interdictions and the law of desire, so that each one can subjectivate and insert oneself into the culture.

Keywords: Family; Psychoanalysis; Medically assisted reproduction; Psych transmission.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la transmisión psíquica generacional en las configuraciones familiares advenidas del proceso de reproducción medicamente asistida. Al debate sobre este tema nos remitimos a asuntos como infertilidad, deseo de tener hijos, discurso técnico-científico vigente y actuación del poder de la biomedicina. El estudio de tales cuestiones se ha realizado a partir de investigaciones bibliográficas con enfoque en la teoría psicoanalítica. La psicoanálisis rescata la dimensión de subjetividad, de deseo, de sexualidad e de afiliación como inserción simbólica, sobresaliendo lo que es transmitido en familia a través de los procesos inconscientes. Lo importante para el desarrollo del sujeto es que sean transmitidos, a través de las funciones materna y paterna, los interdichos fundamentales y la ley del deseo, para que uno pueda subjetivarse e insertarse en la cultura.

Keywords: Familia; Psicoanálisis; Reproducción medicamente asistida; Transmisión psíquica.


 

 

Introdução

A constituição da família, seu desenvolvimento ao longo dos séculos e as funções que desempenha na formação do sujeito são temáticas que despertam o interesse de pesquisadores de variadas áreas, como antropologia, sociologia, história, psicologia e psicanálise. Na contemporaneidade surgem formas de família diferentes do modelo até então vigente, a saber, família nuclear composta de pai, mãe e filhos. Essas formações vão ganhando espaço e mudando o cenário das relações familiares, muitas vezes com a criação de laços de parentesco outrora inexistentes (Kehl, 2003; Roudinesco, 2003). Dentre os modos possíveis de constituição de uma família, destacamos as que são construídas com filhos oriundos de tecnologias reprodutivas.

Ressaltamos que a ciência, em especial o saber médico, vem há tempos interferindo nas relações familiares. Desde os séculos XVIII e XIX, a medicina intervém na sexualidade dos casais controlando e ditando regras, estabelecendo normas de higiene e de conduta em relação aos hábitos domésticos, à criação dos filhos, entre outras práticas (Costa, 2004). Em meados do século XX, o advento do anticoncepcional permitiu que a ciência interferisse mais intensivamente na procriação, dando às mulheres o direito de escolher o momento de terem filhos ou mesmo de optar por não tê-los. A partir da década de 80, a tecnologia vai ao encontro das pessoas que não podem ter filhos, seja por questões de infertilidade ou por impossibilidade de procriar dentro da formação familiar, como, por exemplo, casais homossexuais ou mulheres e homens sem companheiro. Os avanços biomédicos permitem a concepção de filhos através da reprodução medicamente assistida.

A reprodução medicamente assistida é um conjunto de técnicas utilizadas para promover uma fecundação quando esta não pode ocorrer por vias naturais (CFM, 2010). A tecnologia biomédica possibilita diversas formas de procriação, tais como fertilizações in vitro, doação de óvulos, espermatozóides e embriões, utilização de um útero de substituição, a chamada “barriga de aluguel”, ou maternidade substitutiva, onde há implantação dos óvulos fecundados no útero de outra mulher (Cambiaghi, 2004; Meira, 2008). Destacamos que essas técnicas podem se valer de fecundação homóloga ou heteróloga. No primeiro caso, o material genético utilizado é proveniente do casal que busca o procedimento. No segundo, a fecundação depende da doação de material genético de terceiros.

A intervenção da ciência nos leva a situações diferentes do habitual. Através da doação de gametas e da maternidade substitutiva pode-se ter uma criança com duas mães e dois pais: um casal que doa o material genético e um casal que acolhe a criança como filho. A doação de gametas tem sido uma alternativa procurada, embora ainda existam receios por parte das famílias em recorrer a esse método devido à questão do parentesco múltiplo, que fica ressaltada no procedimento (Machado, Sutter & Costa, 2009). Casais homossexuais buscam a reprodução assistida utilizando gametas de terceiros ou com doação por parte de um dos parceiros. Em casais homossexuais femininos, uma das mulheres pode doar o óvulo e a outra fornecer o útero para gestação. É possível ter filhos de pais que já morreram através da fecundação pós-mortem e, talvez no futuro, através da clonagem, visto que experiências vêm sendo realizadas há mais de dez anos (Tamanini, 2004) e as clonagens com fins terapêuticos já são realidade.

Diante desse cenário, faz-se necessário analisar as questões envolvidas na transmissão psíquica geracional. Esta diz respeito à passagem de conteúdos psíquicos inconscientes de pais para filhos, de uma geração para outra (Correa, 2000), fundamental para compreender como o sujeito elabora o que é herdado e como isso está relacionado a seu processo de subjetivação. A psicanálise traz suas contribuições para as questões que serão estudadas, ao resgatar a dimensão da subjetividade, do desejo, da sexualidade e da filiação como inserção simbólica. Também, por apresentar uma concepção de família bem específica, marcada pelo desejo e pelas funções parentais simbólicas e referida a uma estrutura relacional.

A partir dessas reflexões e com base na teoria psicanalítica considerada a partir de Freud e Lacan, nosso objetivo é investigar as possíveis repercussões de configurações familiares advindas do processo de reprodução medicamente assistida na transmissão psíquica geracional. Para tanto, discutiremos o cenário da família contemporânea e as possíveis implicações das técnicas de reprodução assistida na formação das famílias.

 

A família na contemporaneidade

Sabemos que a família não se constitui como um fato natural, mas sim como uma conquista cultural construída ao longo dos anos. Desde o século XVI, a família ocidental vem se transformando e se estruturando em torno de pai, mãe e filhos, sendo estes o foco do amor e cuidado dos adultos (Ariès, 1981; Kamers, 2004). No entanto, desde o século XVII, com a Revolução Industrial, assistimos a algumas mudanças em relação à família, principalmente no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade.

Os poderes concedidos ao pai perderam sua força, deixaram de ser ilimitados e passaram a ser submetidos ao Estado (Perrot, 1991). Após as duas grandes guerras mundiais as mulheres passam a trabalhar e a adquirir direitos como voto, divórcio, entre outros. O início do uso de contraceptivos, o aumento do número de divórcios e as novas formas de vivenciar a sexualidade, as relações sexuais fora do matrimônio e as uniões livres abrem espaço para novas formas familiares, a saber, monoparentais, homoparentais, reconstituídas, ampliadas e geradas artificialmente. As mudanças no âmbito social e econômico atravessam as formações inconscientes e possibilitam novos cenários de desejo levantando questões como o declínio da função paterna e um novo lugar para a mulher (Roudinesco, 2003; Sigal, 2003).

Roudinesco (2003) fala das novas formas de família que surgem na contemporaneidade, partindo do princípio de um declínio do pai, este sempre enfatizado pela psicanálise, e que tem no complexo de Édipo o modelo de família. Assim, assistimos a uma passagem da autoridade paterna para a autoridade parental com a criação recente do conceito de corresponsabilidade parental. Essa passagem condiz com uma sociedade em que os laços não são mais obrigatórios, e sim livres, consentidos. As questões de filiação não são mais determinadas pela genética, pelo biológico, mas pelo campo do simbólico, e a figura do pai nem sempre se confunde com a do genitor. Não é por acaso que se tornam comuns as “produções independentes”, mulheres que buscam ter filho através da reprodução assistida a partir da doação de material genético, método que exclui a presença de um pai e constitui uma família monoparental (Szapiro & Féres-Carneiro, 2002). No entanto, essas “produções” têm na figura do médico a terceira pessoa, necessária para que a reprodução aconteça. Por mais que se reduza a presença do homem ao material genético, este sempre é necessário para geração de uma vida.

As teorias que defendem a ideia de um declínio do pai na sociedade contemporânea abrem espaço para novas formas de subjetivação e novas patologias que não estão ligadas ao complexo de Édipo. O discurso da ciência vem colaborar com o declínio do pai simbólico, tomando o seu lugar. No espaço anteriormente ocupado pelo pai, outras influências atuam, sujeitando os indivíduos às proibições fundantes e novas leis vão surgindo (Miguelez, 2007). Portanto, a ciência ocupa o lugar de terceiro, mas em detrimento da perda da dimensão enunciativa do sujeito e das referências simbólicas (Lebrun, 2004).

Esse é o cenário da família na atualidade: influenciada pelas inovações da ciência e da tecnologia e adquirindo formatos antes inexistentes a partir dessas transformações. A psicanálise entende a família por outro viés, destacando as estruturas relacionais e simbólicas, abrindo, assim, espaço para podermos compreender essas configurações da contemporaneidade. Diante disso, pensamos como a psicanálise entende as implicações subjetivas nas configurações familiares advindas dos procedimentos biomédicos.

 

Aspectos da intervenção biomédica nas famílias

Ao preocupar-se excessivamente com as técnicas, o discurso biomédico acaba por negligenciar o sujeito em suas queixas, que vão além da simples infertilidade ou vontade de ter filhos. Em nossa sociedade, os problemas de natalidade não podem ser pensados fora da lógica médica, que inclui medicações, procedimentos e intervenções no corpo do sujeito. Ao discutirmos a reprodução assistida, nos remetemos a temáticas como infertilidade, desejo de filho na atualidade, relações entre a maternidade e feminilidade, discurso técnico-científico vigente, e atuação do poder da biomedicina e das tecnociências sobre os corpos.

A medicina estabelece um discurso normatizante sobre o corpo com vistas ao controle social que se estende à reprodução e à sexualidade, em especial à sexualidade feminina. Desde os métodos contraceptivos até as reproduções assistidas, a medicina vem controlando todos os comportamentos reprodutivos através de uma técnica reconhecida e legitimada pela sociedade. O médico entra nesse cenário ocupando um lugar que, pelas vias naturais, não seria dele. Ele assume uma posição de responder à demanda de uma mulher, dando vida ao filho que ela tanto deseja e que não pode obter de outra forma. Interfere na intimidade do casal que busca a reprodução assistida e está presente na fantasia de mulheres que procuram sozinhas esse procedimento. O médico fica investido de um poder mágico, onipotente, semelhante às figuras parentais da infância (Ribeiro, 2004), sendo considerado um fazedor de milagres, um ‘normatizador’ das mulheres que não correspondem ao ideal cultural (Tubert, 1996).

As técnicas de procriação artificial implicam um controle sobre os corpos. Por exemplo, casais que se submetem a essas técnicas, de acordo com cada método, têm horários estipulados para ter relações sexuais ou, então, horário certo para a fertilização, já que as medicações indicam o momento exato da ovulação. O sexo distingue-se entre o sexo para fazer filhos e o sexo do prazer, e durante o processo de fertilização a atividade sexual é limitada ou restringida (Spotorno, Silva & Lopes, 2008; Tamanini, 2003). Chatel (1995) apresenta uma posição crítica em relação às práticas de reprodução. Ela afirma que, anteriormente, a concepção de uma criança era resultado de um encontro sexual fecundante, o que tinha um sentido simbólico. Agora é o encontro de gametas, uma manipulação de substâncias. Nesse contexto, o simbólico e o desejo sexual saem de cena, homem e mulher ficam reduzidos a seres indiferenciados sexualmente.

A cisão entre o sexo e reprodução vem desde a década de 60, com advento do anticoncepcional, permitindo o sexo desvinculado de fins reprodutivos (Roudinesco, 2003). Em tempos de reprodução assistida, a concepção de uma criança também se separa do sexo. Existe a reprodução, porém sem o ato sexual. De uma autonomia feminina sobre seu corpo, e a decisão de ter filhos, passamos a uma autonomia dos elementos biológicos – embriões e seus resultados – determinados pela ciência (Perelson, 2009). Ao mesmo tempo, Sigal (2003) nos mostra uma visão diversa, acreditando que, na reprodução assistida, a sexualidade não está totalmente ausente, posto que não se restringe ao ato sexual, mas leva em conta o desejo parental. Assim, essas práticas não devem ser ‘demonizadas', visto que, se a sexualidade está bem definida, se o homem tem um lugar para o desejo da mulher e se o filho não está revestido da qualidade de fetiche, de filho-falo, não existem problemas em recorrer aos métodos artificiais.

Ressaltamos que, nas procriações medicamente assistidas, o corpo feminino é o mais visado, ele é campo de intervenções invasivas. Ao mesmo tempo, as mulheres buscam mais os métodos de reprodução e a infertilidade feminina é a mais ressaltada (Ribeiro, 2004). A impossibilidade de ter filhos instaura uma ferida narcísica que só poderá ser recuperada com o nascimento de uma criança, colocando o filho como um capital afetivo e narcisista, uma idealização depois de tantas buscas (Ribeiro, 2004; Tubert, 1996). No entanto, seja qual for a forma em que a família é concebida, algo fundamental é o desejo de filho. Por isso, é necessário percebermos qual a demanda das pessoas que procuram a reprodução assistida, se elas estão realmente implicadas nesse processo ou se é somente uma vontade de ter filhos.

O desejo de ter filho está sujeito às vicissitudes do inconsciente como qualquer outro desejo, a saber: recalque, produção de sintomas, entre outros. No entanto, ele tem uma especificidade, pois visa um objeto real: uma criança (Chemama & Vandermersch, 2007). Esse desejo está ligado à sexualidade desde a infância, da relação primária com a mãe, seguindo caminhos diferentes para homens e mulheres, ligados à ênfase dada ao ser mãe. O desejo de ter filhos, que está vinculado ao desejo narcísico de imortalidade do Eu, é uma maneira de se aproximar da imortalidade e de transmitir a herança genética para seus descendentes (Ribeiro, 2004). Desta forma, percebemos que em todos os métodos de reprodução assistida, ter um filho é considerado como um fim a ser conseguido, seja qual for o procedimento ao qual se será submetido. A criança pode ganhar o status de “criança perfeita”, que poderá satisfazer os desejos dos pais, como um objeto para realização de um ideal. Essa criança pode ser representada como um triunfo pessoal dos pais, nascendo sob o peso de uma idealização, de ser aquela que venceu a infertilidade, ou como um milagre. Pensando nesses aspectos, nos remetemos à subjetivação infantil nesses contextos (Braga & Amazonas, 2006).

Para a psicanálise, a formação da família não vai depender dos métodos, das condições em que a criança foi gerada, e nem dos vínculos biológicos. Como já apontamos, o que forma a família é a presença do desejo, dos investimentos parentais e das funções paterna e materna. A partir dessa concepção de família, discutiremos a transmissão psíquica, o que se transmite, como se transmite e como a criança se inscreve na filiação simbólica, na linhagem parental.

 

Transmissão psíquica geracional

Sabemos que a transmissão é um trabalho psíquico em que pensamentos, histórias e afetos são passados de um sujeito para outro, de um grupo para outro ou de uma geração para outra. No entanto, a transmissão direta da tradição e de traços culturais não garante a continuidade da vida psíquica. Para que isso ocorra, aquilo que pode ser herdado deverá ser estimulado pelos vínculos intersubjetivos estabelecidos entre a criança e o meio familiar. A geração atual apoia-se na precedente apropriando-se de sua herança (Garcia & Penna, 2010). A herança genealógica constitui o fundamento da vida psíquica processando-se no inconsciente. O lugar por excelência do processo de transmissão dessa herança é a família, visto que os vínculos nela existentes organizam uma importante dimensão fantasmática (Correa, 2000). Diante do processo de transmissão, questionamo-nos como esse ocorre em tempos de reprodução medicamente assistida em que a ciência contribui para a formação de configurações familiares diversas. Se a criança nasce inserida numa história familiar, como ocorre a transmissão no caso de uma multiplicidade materna e paterna?

Para a psicanálise, sempre existe algo que é transmitido de pais para filhos, geração a geração, através das formações e processos inconscientes. De acordo com Szejer e Stewart (1997), a criança é desejada bem antes de seu nascimento, estando inserida no que podemos chamar de “banho de linguagem”, ou seja, nas palavras que antecedem o nascimento, na preparação por parte dos pais que falam dela, que a planejam, que a inscrevem no seu desejo e que dão sentido a esse filho. A história da criança remonta à história dos pais individualmente e em conjunto, estando essa origem marcada no inconsciente do filho. Diante disto, podemos supor que a criança nasce inscrita em uma linhagem, determinada pelo desejo de outros (Jerusalinsky, 1988). Portanto, o discurso que antecede a chegada de um filho contém tanto as expectativas dos pais como a das gerações que o precederam.

Catão (2004) afirma que os bebês são sensíveis à transmissão do inconsciente parental através de gestos e palavras. Essa transmissão, muitas vezes, remonta às relações dos pais da criança com seus próprios pais. O lugar que uma nova criança deverá ocupar em uma família é construído pelos conteúdos inconscientes presentes nas cadeias significantes. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o significante é sua via de transmissão e cada criança é herdeira de um conjunto de significantes. Lacan (1964/1990) destaca, no Seminário XI: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, a constituição do sujeito a partir de uma alienação ao desejo do Outro. A criança estaria submetida ao desejo deste Outro, geralmente a mãe. Em consonância com isso, em Duas notas sobre a criança, esse autor (Lacan, 1969/1986) sublinha que a transmissão ocorre pela via do desejo, através da função materna e paterna. A criança está em relação ao desejo do Outro e seus sintomas revelam a verdade do casal familiar. A criança pode ocupar o lugar de objeto a na fantasia da mãe.

Já em Freud percebemos, na obra Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1996c), que os filhos são considerados a revivescência e reprodução do narcisismo primário dos pais sendo, portanto, portadores dos seus desejos não realizados. Assim, cada sujeito tem que cumprir uma pauta narcísica, dando continuidade à geração que o precedeu, mantendo a identidade familiar, transmitindo os enunciados históricos e familiares, de modo a fortalecer o narcisismo do grupo. Devido ao desamparo do sujeito, ocorre uma invasão narcísica parental e a criança pode ficar aprisionada no narcisismo dos pais, não se apropriando do seu próprio desejo (Bertin & Passos, 2003; Chemin, 2006).

Entres as diferentes vias de transmissão, destacamos a identificação, eixo fundamental da transmissão entre as gerações. A trama identificatória apresenta-se como um tecido de identificações que se cruzam e se superpõem entre as pessoas que fazem parte de uma estrutura de parentesco. Ela permite ao sujeito sentir-se pertencente a uma cadeia genealógica, reconhecendo as diferenças geracionais (Piva, 2006). A identificação faz parte do processamento psíquico de formação do sujeito na família, na medida em que se constitui como dispositivo necessário à formação dos vínculos entre os membros do grupo familiar (Amazonas & Braga, 2004).

A família é o lugar das primeiras identificações. A criança identifica-se inicialmente com a mãe, e depois com o pai ou a com a mãe à época do complexo de Édipo. Nesse complexo, percebemos a transmissão da lei paterna, dos interditos fundamentais que permitem ao sujeito inserir-se na cultura e posicionar-se diante da diferença sexual. Os pais devem transmitir uma dívida simbólica para seus filhos, permitindo a inscrição destes na lei do interdito do incesto, lei do desejo, e inserindo o sujeito no mundo simbólico. Transmitir a dívida simbólica é transmitir as leis que regulam o parentesco e o lugar que cada um ocupa, é transmitir também as referências identificatórias a partir das quais a criança se organiza e se posiciona como homem ou como mulher (Hurstel, 2006). Ressaltamos que o que é herdado psiquicamente passa por um processo de elaboração. Caso contrário, esses conteúdos passam a ser um destino a cumprir, uma compulsão à repetição. Dessa forma, o sujeito é herdeiro de diversas experiências ancestrais que o enriquecem, mas que podem também torná-lo prisioneiro de uma história que não é a dele (Garcia & Penna, 2010; Piva, 2006).

Um elemento importante que marca a transmissão psíquica diz respeito à questão que sempre perpassa o sujeito: a origem. Essa se constitui em um enigma para o sujeito. Desde a infância, nos interrogamos de onde viemos, como nascemos, de quem somos filhos. De acordo com Ansermet (2003), nossa origem participa na determinação de nosso vir a ser, sendo o sujeito constituído pelo que o precede. Toda existência é sempre segunda, tendo uma história anterior com a qual estamos sempre em dívida. A origem é inacessível, por mais que remontemos às gerações passadas.

Encontramos na obra freudiana referências à questão das origens. Nos Três ensaios sobre sexualidade, Freud (1905/1996b) discute as fantasias originárias das crianças que podem ter uma origem filogenética. As fantasias proporcionam uma representação aos enigmas das crianças, como o do coito dos pais, o nascimento de um irmão e a diferença entre os sexos. Esses enigmas culminam nas teorias sexuais infantis. A criança é atraída principalmente pelo tema das origens, “de onde vêm os bebês”, e assim se iniciam suas pesquisas sexuais. Elas sabem que os bebês vêm da mãe, e que o pai tem uma participação nisso, e iniciam sua busca para saber o que os pais fazem para que o bebê entre no corpo da mãe (Freud, 1905/1996b).

De acordo com Freud (1905/1996a), as crianças aceitam a presença de seus pais como indiscutível e somente a partir da chegada de um irmão é que começam a pensar sobre sua origem. Muitas histórias são passadas a elas, como a cegonha que traz os bebês, mas logo as crianças começam a desconfiar de que os adultos escondem algo proibido. Inicia-se um “conflito psíquico”, pois algumas concepções, que estão entre suas preferidas, não são consideradas corretas pelos adultos. A criança, inicialmente, tem o desejo de igualar-se aos pais. No entanto, à medida que vai crescendo, coloca em dúvida as qualidades destes, conhece outros pais e começa a fazer comparações. Essa atitude inicia-se nos momentos em que se sente negligenciada, sobretudo quando nascem os irmãos. Então, começam a fantasiar que são adotadas, que seus pais são padrastos e madrastas. Essa atividade imaginativa é chamada de “romance familiar do neurótico” (Freud, 1905/1996a) e constitui uma etapa na separação da criança de seus pais.

Em relação aos processos de reprodução medicamente assistida, percebemos que esses parecem excluir o enigma da origem presente na constituição do sujeito. As técnicas da ciência tentam dar conta do que é da ordem do impossível, do inconsciente, trazendo as questões da origem para o plano real: uma vida gerada em laboratório com a presença de uma equipe médica, com material genético manipulado que garantem a filiação biológica. Lebrun (2004) destaca que, nesse cenário, a ciência assume um lugar de certeza no qual pai e mãe são sempre certos, visto que a vida surge a partir da manipulação médica, retirando do sujeito suas indagações sobre a origem. Assim, a medicina tenta assegurar a paternidade e maternidades biológicas, colocando-os em termos genéticos, excluindo o campo simbólico que, segundo a psicanálise é primordial na constituição do sujeito.

Podemos nos perguntar se as técnicas de procriação artificial estariam criando um novo romance familiar (Meira, 2003). Pensamos essa hipótese por duas vias. A primeira, de que, em casos de reprodução homóloga, não existiria o enigma que desperta fantasias na criança, visto a certeza imposta pela ciência. A segunda, nos casos de reprodução heteróloga ou de outros métodos de procriação tais como maternidade substitutiva, a ambiguidade da filiação poderia trazer o romance familiar para o plano da realidade: a criança realmente teria outros pais.

De acordo com Hurstel (2006) o desejo funda a conjugalidade e, posteriormente, a parentalidade. É desse desejo e do desejo de filho que vêm as buscas pela origem, por saber o que significou para seus pais o fato de ter feito nascer esse filho. Daí a importância das palavras dos pais sobre o desejo investido nesse filho, seja qual for a sua origem, adoção, técnicas reprodutivas ou concepção natural. Em toda família é possível a transmissão da dívida parental. O importante para o desenvolvimento da criança é que sejam transmitidos, através da função materna e paterna, os interditos fundamentais e a lei do desejo, para que a criança possa humanizar-se, subjetivar-se e socializar-se.

Na teoria do complexo de Édipo, percebemos a transmissão da cultura, da lei, dos interditos realizados pelo pai. No entanto, na psicanálise o pai é menos um ser real do que um ser essencialmente simbólico que opera uma função. O lugar dos pais é um lugar simbólico que transcende o dos pais sociais; não é necessário que exista um homem para que exista um pai. O estatuto de pai é marcado pela função simbólica sustentada pela atribuição imaginária do falo. Nenhum pai real é detentor da função que representa, ele é apenas seu vetor. Portanto, qualquer um ocupe uma posição de terceiro mediador entre o desejo da mãe e do filho, pode exercer a função paterna (Dor, 1991).

Por essa visão psicanalítica podemos separar paternidade e filiação, visto que essa se define pelo registro simbólico, pela inscrição na linhagem parental. Nas novas formas de família, a paternidade e a maternidade podem estar desvinculadas da filiação biológica. Ao introduzir a nomenclatura Nome-do-Pai, Lacan (1955/1985) separa o pai real e o pai simbólico, sendo este remetido ao estatuto de um significante, uma metáfora. No Seminário V: as formações do inconsciente, Lacan (1957/1999) afirma que o Édipo pode realizar-se normalmente quando não existe a figura de um pai. Portanto, a subjetivação de uma criança não depende das figuras concretas que formam seu entorno, mas das funções simbólicas exercidas adequadamente. Essa teorização possibilita a apreensão das formas de família constituídas na contemporaneidade, sem o reducionismo sociológico e biológico, em uma época na qual o avanço da ciência ocupa um lugar de destaque e seu discurso é posto como verdade e seguido como norma.

 

Considerações finais

A medicina intervém no campo da procriação e da saúde das famílias desde a inserção de normas de higiene e saúde no interior, no século XVII, até à atuação na gestação e parto, áreas que não pertenciam, anteriormente, ao campo médico. Atualmente, os ideais da medicina e da ciência, de uma forma geral, estão presentes na vida dos sujeitos, ditando regras e interditos (Sfez, 1995).

As tecnologias reprodutivas abordadas neste trabalho fazem parte de um contexto no qual os saberes biomédicos imperam, acarretando transformações subjetivas e sociais. Podemos interrogar se a rápida ampliação desse campo se deve à grande procura desses métodos pela população concernida. Antes da criação dessas técnicas, a solução para quem não podia ter filhos era a adoção de crianças. Hoje, as pessoas recorrem primeiramente à reprodução medicamente assistida (Moura, 2005).

O modelo de família com filhos ainda é hegemônico no imaginário social, sendo o ter filhos praticamente uma obrigação feminina. Na contemporaneidade, as mulheres vêm se libertando de suas obrigações domésticas e formações familiares alternativas ao modelo nuclear tomam a cena social. Entretanto, a busca por ter filhos parece constituir ainda um ideal (Corrêa, 2001). Diante disso, perguntamos se, com a introdução da ciência na reprodução, não haveria o retorno de uma antiga imposição social de que as famílias devem ter filhos. Essa imposição pode funcionar como um imperativo, sendo em nome deste que novas técnicas e medicações surgem visando responder à demanda social. Mas, quais as repercussões subjetivas das intervenções científicas que outorgam a procriação pela via genética? Pensamos que a normatização do sujeito e do social pela biotecnologia exige reflexões não reducionistas e lineares, permitindo olhares polissêmicos acerca da complexidade envolvida, em termos subjetivos, no ato de ter filhos, de gerar descendentes. Tais interrogações inscrevem-se no campo da ética e, considerando que os procedimentos da reprodução medicamente assistida são ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que permite um maior acesso de um serviço de alto custo anteriormente restrito às clínicas particulares, parece adequado que constituam tema de amplos debates.

Quando o foco de análise reside na constituição da família e de suas vicissitudes a partir da intervenção das ciências biomédicas, ratificamos que o sujeito nasce inserido em uma pré-história que está relacionada com seus pais, seus antecessores, sua linhagem. Como o que se transmite não é da ordem do biológico, a transmissão psíquica dos ideais perpassa as figuras que ocupam as funções de mãe e de pai, sujeitos que se ocupam da introdução do filho na ordem geracional. Quem transmite é aquele que investe psiquicamente o novo ser, que exerce as funções materna e/ou paterna, que deseja a criança, não importando se possui ou não o mesmo material genético. Embora ressaltemos que a inclusão da ciência, tal como se figura no campo da reprodução medicamente assistida, merece ser problematizada, enfatizamos que os processos que regem a inclusão de uma criança na cadeia genealógica são os mesmos para todos, humanos desamparados carentes do olhar de desejo do Outro para acolher e forjar um lugar psíquico no qual se possa existir.

Ressaltamos que não desconsideramos a importância dos avanços da ciência na sociedade, tampouco apresentamos as técnicas de reprodução assistida como portadoras de impasses que inviabilizem a subjetivação. Tentamos, a partir das ideias discutidas ao longo deste escrito, abordar os procedimentos biomédicos enfatizando a posição do sujeito em suas escolhas, não o considerando, necessariamente, reificado pelo discurso hegemônico das biotecnologias. Mas ao contrário, no seu lugar de sujeito desejante, pulsional e regido pelo inexorável caráter da alteridade e da finitude. Nesse sentido, discutimos os desafios que a ciência nos lança, privilegiando suas possíveis implicações no contexto familiar.

 

Referências

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Submetido em: 07/04/2011
Revisto em: 04/08/2011
Aceito em: 12/08/2011

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