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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.1 Rio de Janeiro  2015

 

ARTIGOS

 

Lacan com Koyré: teoria do sujeito e suas incidências clínicas

 

Lacan with Koyré: subject theory and impact on clinical practice

 

Lacan con Koyré: teoría del sujeto y sus implicaciones clínicas

 

 

Cláudia Henschel de LimaI; Marcio Ramos FerreiraII

IDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Volta Redonda. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Veiga de Almeida (UVA). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a relevância do recurso à doutrina da ciência em Alexandre Koyré para a formalização lacaniana da teoria do sujeito e a fundamentação de uma clínica que respondesse ao contexto da época, orientado pelo avanço da bioquímica como instrumento metodológico para a abordagem do funcionamento psíquico. A leitura dos escritos e seminários, situados no quadro de seu primeiro ensino e que compõem o projeto de retorno a Freud, confronta o leitor de Lacan com coordenadas importantes que garantem a especificidade da psicanálise em relação ao ideal positivista da ciência. A partir dessas considerações sustenta-se a hipótese de que a doutrina koyreana de ciência fundamenta o programa de formalização do conceito de inconsciente como estrutura no primeiro ensino e permite localizar a psicanálise na linha de resistência ao modelo biológico que reorientaria a psiquiatria a partir dos anos de 1950.

Palavras-chave: Teoria do sujeito; Ciência; Lacan; Koyré.


ABSTRACT

This paper aims to analyze the relevance of Alexandre Koyré's science doctrine not only as the formalization of lacanian subject theory, but also as a ground to a clinic that follows the social context characterized by the advances in biochemistry in an approach to psychic functioning. The reading of the writings and seminars of Lacan's "first teaching", which asks for a return to Freud's thinking way, confront the reader with important coordinates that ensure the specificity of psychoanalysis relation to the positivist ideal of science. Therefore, the hypothesis in this paper is that koyrean science doctrine not only underlies Lacan's "first teaching" formalization program of the concept of unconscious as an structure as it allows to think the psychoanalysis as a resistance to the biological model that redirect psychiatry from the years 1950.

Keywords: Theory of the subject; Science; Lacan; Koyré.


RESUMEN

Este artículo pretende analizar la importancia de este recurso para la doctrina de la ciencia Alexandre Koyré en la formalización de la teoría lacaniana del sujeto y las razones de una clínica que respondiera al contexto de la época, impulsada por los avances en la bioquímica como herramienta metodológica para abordar del funcionamiento psíquico. La lectura de los escritos y seminarios, situados en el marco de su primera enseñanza y que componen el proyecto de retorno a Freud, el lector de Lacan se enfrenta con las coordenadas necesarias para garantizar la especificidad del psicoanálisis en relación al ideal positivista de la ciencia. A partir de estas consideraciones, éste artículo científico tiene como hipótesis que la doctrina de koyreana justifica el concepto del programa de formalización del inconsciente como una estructura en la primera enseñanza y permite localizar el psicoanálisis en la línea de resistencia al modelo biológico.

Palabras clave: Teoría del sujeto; Ciencia; Lacan; Koyré.


 

 

Considerações iniciais: subvertendo a secularização do homem pelo matematismo do sujeito

O presente artigo tem como objetivo analisar a relevância do recurso à doutrina da ciência em Alexandre Koyré para a formalização lacaniana da teoria do sujeito e a fundamentação de uma clínica que respondesse ao contexto da época, orientado pelo avanço da bioquímica como instrumento metodológico para a abordagem do funcionamento psíquico.

A elaboração de novos diagnósticos para o sofrimento psíquico nas sucessivas edições do DSM evidencia a ocorrência de um agrupamento de sintomas clínicos distintos em torno de uma mesma categoria diagnóstica. É o caso, por exemplo, do transtorno bipolar e do transtorno por uso de substâncias, que são aplicadas indistintamente à psicose e à neurose, diluindo, assim, a especificidade etiológica de cada estrutura e uniformizando a direção de tratamento (Henschel de Lima, Valentim, Rocha, & Rodrigues, 2010). Esse agrupamento é inseparável da ascensão do modelo bioquímico e do avanço da tecnologia de psicotrópicos, que tomam o lugar da hipótese da causalidade psíquica a partir da terceira edição do DSM (Henschel de Lima et al., 2010).

Essa expansão tecnológica, aliada à formulação de novas classificações diagnósticas, permitiu ao saber psiquiátrico, a partir dos anos de 1950, se libertar da sombra da baixa origem moral de sua direção de tratamento - pautada no isolamento, no trabalho, no olhar vigilante, na infantilização e na produção de um ideal disciplinar concentrado na autoridade do médico (Machado, Loureiro, Luz, & Muricy, 1978). Qual é, então, a relação entre essa configuração da psiquiatria, a partir dos anos de 1950, e a releitura do texto de Freud conduzida, nessa época, por Jacques Lacan?

Essa pergunta tem sua razão de ser na própria concepção do que vem a ser uma ciência a partir da formulação do conceito de inconsciente. De um lado, a elaboração epistemológica do conceito de inconsciente rejeitou a ciência ideal - pautada na herança positivista de que uma ciência deve se aplicar a objetos empíricos -, em nome da concepção de uma ciência lógica, aplicada a objetos não naturais: no caso, o inconsciente. De outro lado, a releitura de Freud conduzida por Lacan, especialmente em seu primeiro ensino, resultando na formalização do conceito de inconsciente pela estrutura, sustentou-se na tese de Alexandre Koyré sobre o matematismo da ciência. De fato, essa tese permite a Lacan ler o conceito de inconsciente a partir da referência da formalização do real, e não da experiência sensível, conforme sugeria o ideal positivista, tal como era entendido pelas ciências humanas (Lacan, 2003e, p. 422): "que somente a estrutura seja propícia à emergência do real [...]".

Na literatura mais recente, Henschel de Lima (2011) discute como as ciências humanas, constituídas na passagem do século XVIII para o século XIX, sustentaram o ideal positivista de ciência tomando a matematização introduzida no marco das ciências da natureza como critério de ciência ideal e reinterpretando-a como quantificação estatística. A física social de Quételet seria, nesse sentido, o marco dessa conversão do matematismo em quantificação, ao estabelecer a definição do homem-médio ou homem normal e, a partir daí, estabelecer a fronteira quantitativa entre o normal e o patológico. Avançando na análise crítica feita pela autora em torno da relação entre a herança positivista que define o objeto da ciência como objeto empírico e o postulado do realismo psicológico (Henschel de Lima, 2011), é possível pensar que essa fronteira quantitativa está no fundamento das ciências humanas, ao preço do erro epistemológico de substancializar o sujeito por meio do homem-médio.

Em uma reflexão precisa acerca do impacto da ciência na subjetividade da época, conduzida em A ciência e a verdade, Lacan (1998f) localiza na fundação das ciências humanas, e em especial da psicologia oitocentista, esse ponto de conversão do matematismo em quantificação e denuncia sua servidão à tecnocracia:

É conhecida a minha repugnância de sempre pela denominação "ciências humanas", que me parece ser a própria voz da servidão. Até porque o termo também é falso, excetuada a psicologia, que descobriu meios de se perpetuar nos préstimos que oferece à tecnocracia e até, como concluiu com humor realmente swiftiano um artigo sensacional de Canguilhem, numa deslizada de tobogã do Panteão à chefatura de polícia. Aliás, é no nível da seleção do criador na ciência, do recrutamento da pesquisa e de sua manutenção, que a psicologia deparará com seu fracasso (Lacan, 1998f, pp. 873-874).

Sua posição ética de repúdio à secularização do sujeito por meio da quantificação do homem-médio já havia sido exposta em A psiquiatria inglesa e a guerra (Lacan, 1947/2003a). Nesse artigo, Lacan analisa criticamente, no contexto histórico da II Guerra, o impacto do modelo biológico no entendimento da experiência subjetiva, em uma referência direta à sua ascensão e à expansão da tecnologia de psicotrópicos:

Minha exposição detém-se no ponto em que se descortinam os horizontes que nos projetam na vida pública, ou até, que horror!, na política. Sem dúvida, aí encontraremos objetos de interesse que nos compensarão por aqueles trabalhos apaixonantes do tipo "dosagem dos produtos de desintegração ureica na parafrenia fabulatória", inexauríveis produtos do esnobismo de uma ciência postiça, nos quais o sentimento predominante de inferioridade diante dos preconceitos da medicina, por parte de uma psiquiatria já ultrapassada era compensado (Lacan, 1947/2003a, p. 124).

Nesse quadro epistemológico de secularização do homem e reestruturação dos fundamentos da clínica psiquiátrica para o entendimento do sofrimento psíquico, situa-se a relevância da releitura da metapsicologia freudiana a partir do modelo lógico do inconsciente, conduzida por Lacan em seu primeiro ensino. Dois axiomas definem a releitura do conceito de inconsciente no primeiro ensino a partir do recurso à doutrina koyreana da ciência:

1. O inconsciente é estruturado como uma linguagem;

2. O significante é o que representa um sujeito para outro significante.

Esses axiomas expressam a elaboração de um modelo estrutural original pautado na potência de generalização do significante, na natureza de sua ação parcial sobre o real, em contraposição à própria generalização que o modelo biológico imprimia à psiquiatria (Lacan, 2003e, p. 421): "[...] o efeito de ato que se produz como dejeto de uma simbolização correta". O que abre a possibilidade de um entendimento distinto a respeito do funcionamento das estruturas psíquicas, inseparável da perspectiva ética que obedece radicalmente à especificidade de sua causalidade: as estruturas não são generalizações, elas se comunicam com o real, com a pulsão. No marco do primeiro ensino a formalização do inconsciente permitiu, então, à psicanálise elaborar um modelo que denuncia a tendência do modelo bioquímico à hipergeneralização e a redução da clínica psiquiátrica ao procedimento burocrático de prescrição medicamentosa. Isso pode ser verificado nas seguintes referências:

1. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Lacan, 1998b)

2. O seminário. Livro 2: O eu na teoria e na técnica da psicanálise (Lacan, 1985)

3. O seminário sobre "A Carta Roubada" (Lacan, 1998a)

4. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (Lacan, 1998d)

5. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (Lacan, 1998c)

6. A ciência e a verdade (Lacan, 1998f)

A leitura dos escritos e seminários, situados no quadro do primeiro ensino e que compõem o projeto de retorno a Freud, confronta o leitor de Lacan com coordenadas importantes que garantem a especificidade da psicanálise em relação ao ideal positivista da ciência. Trata-se da condução de uma leitura do conceito de inconsciente a partir da noção de estrutura, aplicando à metapsicologia freudiana o estatuto preciso de uma instância lógico-simbólica e sem recuar em relação à tese freudiana referente ao sentido do sintoma. Para isso, ele recorre não apenas à Antropologia e à Linguística Estrutural, como também à história da ciência, sustentado na tese de que a posição científica está implicada no cerne da descoberta psicanalítica (Lacan, 1998b).

A partir dessas considerações iniciais, desenvolvidas ao longo da apresentação do objetivo deste artigo, sustenta-se a hipótese de que a doutrina koyreana de ciência fundamenta o programa de formalização do conceito de inconsciente como estrutura no primeiro ensino e permite localizar a psicanálise na linha de resistência ao modelo biológico que reorientaria a psiquiatria a partir dos anos de 1950.

 

A doutrina da ciência em Alexandre Koyré

Na doutrina de ciência formulada por Koyré (1979, 1982b, 1991), a ciência é definida pelo processo histórico de formalização do real, e não pela quantificação dos dados da experiência. Essa doutrina, fundamentada na teorização, na matematização do real, localiza o experimento como materialização da teoria, e não como quantificação da experiência sensível:

A maneira pela qual Galileu concebe um método científico correto implica uma predominância da razão sobre a simples experiência, a substituição de uma realidade empiricamente conhecida por modelos ideais (matemáticos), a primazia da teoria sobre os fatos. Só assim é que as limitações do empirismo aristotélico puderam ser superadas e que um verdadeiro método experimental pôde ser elaborado. Um método no qual a teoria matemática determina a própria estrutura da pesquisa experimental, ou, para retomar os próprios termos de Galileu, um método que utiliza a linguagem matemática (geométrica) para formular suas indagações à natureza e para interpretar as respostas que ela dá. Um método que, substituindo o mundo do mais-ou-menos conhecido empiricamente pelo Universo racional da precisão, adota a mensuração como princípio experimental mais importante e fundamental. É esse método que, baseado na matematização da natureza, foi concebido e desenvolvido senão pelo próprio Galileu [...], pelo menos por seus discípulos e sucessores (Koyré, 1982a, p. 74).

Koyré (1979) localiza na física-matemática de Galileu Galilei e na construção de um novo sistema do mundo por Descartes o marco de dois acontecimentos na história da ciência. A saber, a dissolução de um mundo dividido entre a precisão matemática do céu, garantida pela Cosmologia, e o mundo do mais-ou-menos, que se furta à matematização; a ruptura com uma forma de conhecimento pautada na atribuição de qualidades e na experiência. O pensamento matemático constitui o fazer científico. Dessa maneira, "uma pura coleção dos dados da observação não constitui uma ciência" (Koyré, 1991, p. 272); os fatos devem ser submetidos a uma ordenação lógica, a um tratamento teórico. Em outras palavras, "só quando submetido a um tratamento teórico é que o conhecimento dos fatos se torna uma ciência" (Koyré, 1991, p. 272).

Nesse modo da ciência de operar, o experimento funciona como um método de produção de dados regido pela matematização. De acordo com Koyré (1982b), quando Galileu declarou que "o livro da natureza é escrito em caracteres geométricos", fez com que a obtenção do conhecimento fosse vinculada ao rigor da linguagem matemática. Portanto, não só os experimentos válidos se fundam em uma teoria, mas também os meios que permitem realizá-lo são, na verdade, sua teoria "encarnada". A história da ciência conduzida por Koyré demarca os efeitos do corte que promoveu as condições de aparecimento de uma ciência moderna baseada na literalização do real. A partir da matematização da física, o mundo finito, hierarquizado e qualitativo dá lugar ao universo da precisão. Tal corte fica esclarecido, segundo Koyré, pela ruptura que a atividade científica causou na organização cosmológica aristotélica que orientava tanto o pensamento quanto o campo de experiências do pré-científico.

Na cosmologia aristotélica, o mundo natural era explicado por definições qualitativas dos seres: o quente, o frio, o seco e o úmido, por exemplo, seriam as quatro qualidades da matéria. Não cabia aqui o uso da matemática, pois esta só seria conveniente ao estudo dos astros celestes, que realizam movimentos "repetíveis" verificáveis pela geometria e pelo cálculo. O mundo sublunar era posicionado hierarquicamente como o menos perfeito, mundo do mais-ou-menos, onde não se encontram círculos, nem retas, nem elipses perfeitas (Koyré, 1991). Porém, no século XVII, a matematização da física realizada por Galileu coloca em questão tal maneira de pensar a Natureza, realizando algo antes tido como impossível.

Pensando matematicamente a física, Galileu rompe com toda a concepção de mundo que regia a Idade Antiga e a forma escolástica de conhecimento (Koyré, 1991). A noção de mundo natural, com todas as características da antiga cosmologia (finitude, qualidade, hierarquia), dá, assim, lugar ao universo infinito da precisão. Os problemas aí propostos reorganizam a forma de se fazer e pensar a ciência. Nesse universo sobressai o pensamento sem qualidades do cálculo. O campo de problemas científicos não necessita de virtudes e morais elevadas para produção de um real (como algo novo, uma ruptura, um novo problema); consequentemente, a natureza não tende para o bem nem para o mal. Koyré (1991) destaca que Galileu e, mais tarde e pela mesma razão, Descartes foram obrigados a suprimir a noção de qualidade, declarando-a subjetiva e banindo-a com o estudo da natureza. Isso indica que, com a fundação da ciência, suprimiram-se a percepção e os sentidos como fonte de conhecimento, declarando-se a postura intelectual matematizada como única forma possível de apreensão do real.

A supressão da percepção como ponto de partida do conhecimento científico fica evidente no texto em que analisa a realização da experiência de Pisa. Koyré (1982a, 1982b) mostra o conflito entre a forma escolástica de conhecimento e a física-matemática de Galileu, que estabeleceu as leis matemáticas no estudo da natureza por meio da realização do impossível. A hipótese aristotélica da queda dos corpos sustentava que a velocidade de queda de um corpo é proporcional a seu peso. Mas, para a física-matemática de Galileu, o peso do corpo não deveria ter qualquer influência na velocidade de queda. E a comprovação seria simples: bastava jogar do alto da torre corpos com diferentes pesos e mensurar o tempo de queda. A literatura mais fantasiosa relata a execução de uma experiência em que bolas de 10 gramas e de 1 grama teriam sido lançadas da Torre de Pisa, sob o testemunho dos aristotélicos, e todas teriam chegado ao solo ao mesmo tempo. No entanto, não houve a experiência de Pisa, não só porque Galileu jamais a mencionara como porque ele conduz um experimento mental: eliminada a resistência do ar e outros fatores (a forma e o material dos corpos lançados), obedecidas as condições do vácuo, ambos os corpos chegariam ao solo ao mesmo tempo: "Isso é tão improvável que não o podemos seriamente admitir; a única explicação possível para esse silêncio é a seguinte: se Galileu nunca fala da experiência de Pisa, é porque ele não a fez" (Koyré, 1982a, p. 202).

Da falácia da experiência de Pisa à sustentação de um experimento mental, no qual o vácuo era uma fórmula matemática, Koyré define a atitude intelectual da ciência moderna, no século XVII, por dois eixos complementares:

1.A destruição do Cosmo e, consequentemente, o desaparecimento de todas as considerações baseadas nessa noção.

2.A matematização do espaço, isto é, a substituição do espaço qualitativamente diferente da física pré-galileana pelo espaço infinito e abstrato da física-matemática, governado por leis universais.

Assim, Descartes e Galileu não somente substituíram ou combateram as teorias erradas; eles realizaram a destruição de um mundo no qual a forma de se construir o conhecimento científico seria a atribuição de qualidades e o senso comum. No quadro epistemológico dessa retificação operada a partir da história das ciências, os axiomas de Koyré assim se escrevem:

1.Há um corte entre a epistémè antiga e a ciência moderna, que consiste na passagem do mundo do mais-ou-menos para o Universo da precisão.

2.A ciência moderna é galileana, e seu projeto consiste em submeter o real à exigência de precisão e rigor do símbolo matemático.

3.O determinismo da ciência moderna estabelece a causa formal dos fenômenos sobre os quais se aplica: trata-se da elaboração de leis regulares para os fenômenos em ruptura com a concepção aristotélica do finalismo.

 

O recurso a Alexandre Koyré no primeiro ensino de Lacan

No quadro de seu recurso à doutrina koyreana de ciência, Lacan (1998d, 1998e) ressalta o estatuto epistemológico assumido pela formulação do conceito de inconsciente na história da ciência: revolução do conhecimento à altura de Copérnico e Kepler (Lacan, 1985); ferida narcísica imposta à humanidade no ponto em que ela introduz um limite na ação da consciência em saber sobre si própria (Lacan, 1998e). Ao recorrer à doutrina de ciência de Koyré, Lacan conferirá à psicanálise uma versão da história da ciência que localiza a matematização do real como eixo central da ciência, ao contrário de uma interpretação positivista que reduz a disciplina do conceito a uma evidência factual (Lacan, 1998e). E a formulação lacaniana da teoria do sujeito é orientada pela doutrina koyreana de ciência, precisamente no ponto em que Koyré caracteriza a ciência como um discurso no qual a certeza se apoia na consistência da lógica do significante. De fato, o recurso à história da ciência, ao longo do período situado entre os anos de 1953 e 1965, permitiu a Lacan estabelecer a separação entre o discurso científico e a referência positivista das ciências humanas, que equaciona cientificidade e quantificação. Desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1998b) dedicou-se a pensar criticamente esse equacionamento e a depurar o matematismo da quantificação de dados empíricos:

[...] se a ciência experimental herda das matemáticas sua exatidão, nem por isso sua relação com a natureza é menos problemática. [...] a ciência experimental não se define tanto pela quantidade a que efetivamente se aplica, mas pela medida que introduz no real (Lacan, 1998b, pp. 287-288).

O recurso à história da ciência conduzida por Koyré ganha relevo nesse momento do ensino de Lacan, centrado na estrutura do simbólico e em uma teoria do sujeito sem qualidades. A presença dessa referência consiste, também, em apresentar uma posição sobre a ciência diferente daquela que rege o domínio das ciências humanas.

A partir da epistemologia desses autores, é possível sustentar que a introdução do símbolo matemático no real se refere menos à intervenção da quantidade do que à hegemonia da literalização sobre a dimensão contingente do real. E que, portanto, o procedimento científico é essencialmente um procedimento de literalização do real. Se a aplicação do símbolo matemático foi, em algum momento, entendida pelo viés da quantificação, é em função do que Miller (1979) denunciou como sendo a piada da sociologia e da psicologia. Essas últimas localizam simplificadamente a questão da objetividade científica no terreno da quantificação de dados empíricos:

[...] o que se chama de objeto é uma pura criação do discurso matemático. Não teríamos, então, que usar como critério de cientificidade o que as ciências experimentais pensaram que podiam definir como sua cientificidade própria. Tenho que lhes dizer que tudo o que admitimos como disciplinas científicas na faculdade de letras - a sociologia, a psicologia -, para um matemático ou um físico, resulta ser, muitas vezes, uma piada. [...] o conceito de ciência é mais complicado do que simplesmente tratar de ser objetivo (Miller, 1979, p. 44).

De fato, ao estabelecer, através da teoria do sujeito e da lógica do significante, a formalização do conceito de inconsciente (Lacan, 1985, 1998a, 1998b, 1998c, 1998e, 1998f), Lacan introduz a distinção entre exatidão e verdade. A exatidão é o ideal positivista das ciências humanas, que decalca a quantificação sobre a matematização, enquanto a verdade se refere ao universo da literalização. Seguindo o viés da literalização, a orientação do ensino de Lacan na direção do matema confirma a ideia de que o surgimento da psicanálise implicou a reestruturação do que vem a ser a ciência para a psicanálise. Com efeito, esse ensino, centrado em um primeiro momento no retorno a Freud, elaborou uma sophia apropriada ao seu campo conceitual. Ela traz a difícil tarefa de relacionar o universal (do conceito) e a contingência, que comparece no coração da experiência clínica. Sendo assim, a retificação do sentido do matematismo é fundamental para Lacan ainda em outro sentido.

É a partir da literalização do real e de seu papel de determinante sobre o sujeito que Lacan empreenderá sua avaliação crítica da concepção de ciência pelas ciências humanas e da teoria do sujeito que lhe é tributária. É constatável a preocupação de Lacan com o esclarecimento das distinções entre experiência e experimento, e matematização e quantificação, na esteira do programa de formalização do real. E essa preocupação está nitidamente presente ao longo de Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Lacan, 1998b), quando estabelece a separação entre a psicanálise e as ciências humanas: a psicanálise não se submete a um método científico prévio a ela ou mesmo a um conjunto de disciplinas (as ciências humanas, por exemplo) que decidam sobre sua validade científica.

Essa separação entre a psicanálise e as ciências humanas se reapresentará em A ciência e a verdade (Lacan, 1998f), em dois momentos intimamente articulados: quando Lacan enuncia a tese de que o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência e quando denuncia a operação das ciências humanas de reduzir o sujeito à substancialização do homem-médio, por meio da própria degradação da teoria cartesiana do sujeito. De fato, a articulação, presente nesse escrito, entre a tese de Lacan e a denúncia, acontece porque o autor já desenvolvia um verdadeiro programa de subversão dessa herança degradada em torno da substancialização do homem-médio, ao afirmar o determinismo do sujeito pelo significante e localizar sua causa no âmbito da causa formal. A presença desse programa é notável em uma passagem de Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (Lacan, 1998e), redigido seis anos antes de A ciência e a verdade (Lacan, 1998f), e em que Lacan critica a posição epistemológica de Lagache em relação à estrutura:

[...] quando Daniel Lagache parte da escolha que nos propõe, entre uma estrutura como que aparente [...] e uma estrutura que ele pode declarar distante da experiência (já que se trata do "modelo teórico" que ele reconhece na metapsicologia analítica), essa antinomia desconhece um modo da estrutura que, por ser terceiro, não deve ser excluído, ou seja, os efeitos que a combinatória pura e simples do significante determina na realidade em que se produz. Pois, é ou não o estruturalismo aquilo que nos permite situar nossa experiência como o campo em que isso fala? Em caso afirmativo, "a distância da experiência" da estrutura desaparece, já que opera nela não como modelo teórico, mas como a máquina original que nela põe em cena o sujeito (Lacan, 1998e, p. 655).

Essa passagem marca a especificidade da estrutura no ensino de Lacan: ela inclui o sujeito. Dessa forma, a genealogia do conceito de estrutura conduz ao conceito de sujeito em Lacan, a ponto de resultar na escrita de um dos axiomas de seu primeiro ensino: o significante é o que representa um sujeito para outro significante. Assim, a crítica à posição epistemológica de Lagache, ao situar na ação da estrutura a condição de possibilidade do sujeito, abre o ensino de Lacan para uma verdadeira crítica à concepção psicologizante do sujeito, e que se preserva por todo o seu ensino, conforme é possível depreender da seguinte passagem de A psicanálise. Razão de um fracasso (Lacan, 2003d):

É por isso que meu discurso, por minguado que seja perto de uma obra como a de meu amigo Claude Lévi-Strauss, cria marcos de outra maneira, na maré montante de significante, significado, "isso fala", traço, grama, engodo, mito ou falta, de cuja circulação fui agora despojado. Afrodite dessa espuma surgiu recentemente a différance, grafada com a (Lacan, 2003d, p. 346).

A difícil tarefa de relacionar o universal do conceito e a contingência, que comparece no coração da experiência clínica, avança no ensino de Lacan por meio da experiência do real.

 

A teoria da ciência no primeiro ensino de Lacan

Ao longo do artigo, foi destacado que, no quadro epistemológico do primeiro ensino, Lacan conduz uma arqueologia da psicanálise em afinidade com o matematismo da ciência. Ela se verifica com precisão em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Lacan, 1998b), em que o autor cita o artigo de Koyré Uma experiência de Medida para aprofundar os axiomas de Koyré para a revolução científica - literalização do real e o sujeito como fundamento do conhecimento - e interrogar a relação entre a psicanálise e a ciência.

No diálogo travado com a doutrina da ciência formulada pela história das ciências pensada por Koyré, Lacan manteve o primeiro teorema e conduziu uma retificação dos teoremas 2 e 3, tendo-se então:

1. A ciência se define pela subordinação do real ao símbolo matemático.

2. A matematização do real tem limite.

3. O determinismo é incompleto.

4. O sujeito da ciência é sem qualidades.

No que se refere ao teorema 4, acerca do estatuto do sujeito da ciência, a releitura de Lacan denuncia a presença de uma divisão no saber científico. Se, por um lado, ao afirmar, em A ciência e a verdade (1998f), que não há ciência do homem, mas apenas seu sujeito, Lacan aponta para o fato de o saber científico só dispor do símbolo matemático enquanto medida do sujeito (conforme os teoremas 1 e 4). Por outro lado, denuncia na teoria cartesiana do sujeito - marco histórico do corte da ciência moderna - a manutenção de um fundamento metafísico garantidor da veracidade do saber científico:

Deve-se apreender no ego que Descartes acentua, pela superfluidade da função que ele tem em alguns de seus textos em latim [...], o ponto em que ele fica sendo o que se apresenta como sendo; dependente do deus da religião. Curiosa decadência do ergo, o ego é solidário a esse Deus (Lacan, 1998f, p. 879).

Como, então, o cogito, o sujeito, se posiciona diante de sua própria divisão entre o matematismo e um fundamento exterior e garantidor da verdade? A resposta de Lacan é precisa: a ciência sutura a divisão do sujeito. A partir dessa resposta, o sentido da subversão do sujeito em Lacan é bastante preciso, exigindo a reflexão ética, sustentada pelo limite da literalização matemática do real, e que fora suprimida pela ciência. A despeito de o eixo da subversão do sujeito ter sido enunciado no quadro do primeiro ensino de Lacan, seu sentido atravessa a totalidade de seus seminários e escritos, evidenciando a unidade da posição assumida pelo autor em relação ao peso da herança positivista sobre a ciência: esta sutura a divisão do sujeito.

 

Considerações finais. Da estrutura e suas incidências clínicas: o paradigma Schreber

Ao ser interrogado pelos estudantes de filosofia sobre como a psicanálise poderia levar alguém a sair de sua consciência, Lacan (2003c) responde: "esfolando-o" (p. 213). Trata-se de um chiste endereçado aos estudantes preocupados com o destino da ética a partir da nova racionalidade introduzida por Freud com o conceito de inconsciente. Nesse sentido, é preciso ler a resposta como uma síntese do retorno a Freud conduzido no quadro do recurso a Koyré. E, consequentemente, no quadro de um posicionamento epistemológico que considera a consistência significante como base da certeza produzida pelo discurso científico: ruptura com a compreensão positivista da ciência, adesão às ciências da linguagem, linguística e lógica. Isso esclarece o marco epistemológico do retorno a Freud, tal como Lacan sintetizara em Discurso de Roma (2003b):

Os conceitos da psicanálise se apreendem em um campo de linguagem, e seu domínio se estende tão longe quanto uma função de aparelho, que uma miragem da consciência, um segmento do corpo ou de sua imagem, um fenômeno social, uma metamorfose dos próprios símbolos podem servir de material significante para o que tem de significar o sujeito inconsciente (Lacan, 2003b, p. 145).

Essa citação esclarece o passo que Lacan dá na direção do estruturalismo, considerado pelo próprio autor como o movimento que instaura uma nova ordem nas ciências (Iannini, 2008). E que resultará na formulação dos dois axiomas do primeiro ensino: o inconsciente é estruturado como linguagem; o significante é o que representa um sujeito para outro significante. Estendendo o galileismo, pensado por Koyré, até o limite da precisão literal, Lacan aplicou, ao longo do primeiro ensino, o rigor do matematismo (entendido como cálculo literal) ao inconsciente freudiano. De tal modo que esses axiomas funcionassem, simultaneamente, como linha de resistência ao modelo biológico e atribuíssem um poder de generalização ao significante que se contrapusesse à própria generalização que o modelo biológico imprimia à psiquiatria. Tem-se, então, no quadro do primeiro ensino de Lacan, uma teoria do sujeito que, pela formalização literal, assumiria as seguintes propriedades:

1.Minimalismo do objeto: o conceito de inconsciente foi reinterpretado a partir da operação de uma estrutura mínima formada por dois significantes - S1-S2 -, sendo dado um destaque especial ao Nome-do-Pai como um elemento diferencial na ação estruturante do significante sobre a pulsão, sobre o gozo.

2.Introdução do tempo na estrutura: a determinação do sujeito pelo binarismo impõe a formação de uma memória caracterizada pelo automatismo da repetição.

No entanto, no diálogo travado com a doutrina da ciência formulada pela história das ciências pensada por Koyré, Lacan conduziu uma retificação dos teoremas 2 e 3, assim reescritos: a matematização do real tem limite; o determinismo é incompleto. O que indica que o passo na direção do estruturalismo, por meio do formalismo do significante, incluiu a divisão do sujeito na forma da crítica às tentativas de circunscrever a experiência da loucura em torno da categoria de "doença mental", "desordem" e "transtorno" e de convertê-la em objeto do conhecimento, destituindo-a de sua espessura enigmática.

O primeiro ensino de Lacan não se furtará a localizar, na tese freudiana de que há pensamento no inconsciente, o ultrapassagem dessa redução da experiência trágica à categoria de transtorno. Essa tese permitiu resgatar a experiência humana trágica - na figura de Mayer, Cantor e, também, da loucura de Schreber - para além das formas objetivantes conduzidas pela medicina psiquiátrica da época. No entanto, o avanço do modelo biológico até a síntese dos primeiros psicotrópicos produziu a redução da experiência trágica a um déficit no funcionamento do sistema nervoso. Em um trecho extraído de A ciência e a verdade, Lacan (1998f) assinala que a experiência trágica da loucura, ou o drama subjetivo, está excluída da produção científica:

Existe o drama, o drama subjetivo que cada uma dessas crises custa. Esse drama é o drama do cientista. Tem suas vítimas, das quais nada diz que seu destino se inscreva no mito de Édipo. Digamos que essa questão não é muito estudada. J. R. Mayer, Cantor, não vou fazer a lista de laureados desses dramas que às vezes chegam à loucura, onde logo surgiriam nomes de pessoas vivas: onde considero que o drama do que se passa na psicanálise é exemplar. (Lacan, 1998f, p. 884).

É nesse contexto que Lacan defenderá, no quadro do primeiro ensino, a hipótese da causalidade psíquica e, mais especificamente, pensará a loucura não pela perspectiva biológica do déficit enzimático, mas a partir da dimensão trágica da foraclusão do Nome-do-Pai. Assim, na condição de linguagem, os conceitos metapsicológicos foram reinterpretados a partir da operação do significante, e a constituição da subjetividade, central na clínica para a elaboração da hipótese diagnóstica e para a direção do tratamento, passa a ser uma dedução lógica da incidência da linguagem sobre a pulsão. Tem-se, então, uma teorização no sentido da valorização do simbólico e do determinismo do sujeito pelo significante, sendo dado um destaque especial ao Nome-do-Pai como elemento diferencial na ação estruturante do simbólico sobre o gozo, da linguagem sobre a pulsão. Ainda no que se refere à ação estruturante do Nome-do-Pai, esta se verificará no modo como Lacan (1999) retificará, em O seminário. Livro 5: As formações do inconsciente, as versões do pai em Freud - o parricídio do Complexo de Édipo e o pai da horda de Totem e Tabu -, definindo a morte do pai por sua elevação ao estatuto de metáfora.

Dessa forma, o que Lacan denominara de Mais além do Édipo, no contexto do primeiro ensino, consistiria no tratamento do pai pela metáfora, fundamentado no vetor conceitual que vai do mito à estrutura. Ele apresenta, assim, a teoria da metáfora paterna, bem como sua localização no interior de uma ordenação da estrutura do Édipo em três tempos: o pai simbólico (o pai como significante, como metáfora), o pai imaginário (mediado pela mãe e concebido pelo sujeito como aquele que o priva de sua mãe) e o pai real (o pai que diz sim). Através desses três tempos, testemunhamos um Lacan que concebe uma teoria do Pai que está além do Édipo, no sentido em que a metáfora paterna funciona como uma dobradiça para o sujeito. Ao mesmo tempo em que o pai é o agente separador, a instância de proibição, que diz não - demonstrando que o pai morto, o pai como metáfora, é o anúncio de que nem tudo é possível -, ele é aquele que diz sim, é o pai desejante, que oferece um horizonte, uma bússola, a partir do não.

Paralelamente ao eixo conceitual da metáfora paterna formalizado em O seminário. Livro 5: As formações do inconsciente (Lacan, 1999), Lacan (1998d) escreve De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, em que introduz o Nome-do-Pai como o operador principal na metáfora paterna e, portanto, como o significante que confere vida ao sujeito. Dentro dessa perspectiva - que elege o Nome-do-Pai como um significante privilegiado no Outro para a constituição da realidade psíquica -, Lacan elabora uma doutrina da psicose pautada na neurose como norma, uma disciplina do diagnóstico diferencial, na qual a realidade psíquica é definida a partir do Édipo e, portanto, da polaridade estrutural entre Nome-do-Pai e foraclusão do Nome-do-Pai. Assim, na relação com o Outro, a resposta do sujeito neurótico é o recalcamento por esse elemento diferencial que é o Nome-do-Pai, e a da psicose, a foraclusão, entendida como déficit da interdição operada pelo Nome-do-Pai:

É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose.

Essa formulação, que trazemos aqui como uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, prossegue sua dialética (Lacan, 1998d, p. 582).

No caso específico da psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai e a falência fálica - que definem sua estrutura - são pensadas como um déficit com relação à norma edipiana. Nesse momento, o horizonte da psicanálise pensada por Lacan incluía "restaurar o acesso à experiência que Freud descobriu" (Lacan, 1998d, p. 590), em uma época em que a psiquiatria já vislumbrava nos neurolépticos a direção possível para o tratamento da psicose. No próprio escrito em questão, encontramos um exemplo de como, no primeiro ensino, a presença da norma edipiana se contrapõe à norma biológica do equilíbrio enzimático, localizando no déficit do Nome-do-Pai, no buraco do simbólico, a condição causal na fenomenologia das mais variadas formas de exceção sofridas pelo sujeito na psicose - seja pelo servidor de uma obra de salvação, pelo virtuoso, ou pelo representante máximo da fé:

(...) quer ele seja, efetivamente, daqueles que fazem as leis, quer se coloque como pilar da fé, como modelo de integridade ou de devoção, como virtuoso, como servidor de uma obra de salvação [...], de nação ou natalidade, de salvaguarda ou salubridade, de legado ou legalidade, do puro, do pior ou do império, todos eles ideais que só lhe fazem oferecer demasiadas oportunidades de estar em posição de demérito, de insuficiência ou até de fraude e, em resumo, de excluir o Nome-do-Pai de sua posição no significante (Lacan, 1998d, p. 586).

A fim de definir a psicose, Lacan se detém, nesse escrito, no ponto preciso em que o encontro com Um Pai produz o seu desencadeamento. De fato, desde o seminário sobre as psicoses, Lacan (1988) já definira que o momento de desencadeamento da psicose evidenciava a colocação de uma pergunta sobre o pai que, no entanto, não podia ser respondida. Donde Lacan sustentar que um modelo de integridade ou devoção só oferece oportunidade de se estar em posição de demérito, insuficiência ou fraude.

É certo que a própria noção de estrutura irá sofrer reformulação ao longo do ensino de Lacan. No entanto, o sério da estrutura manter-se-á radicalizando-se na direção do recurso ao matematismo puro das estruturas topológicas e do nó borromeano, ratificando assim a consideração de Lacan de que o estruturalismo é "la prise au sérieux" (Lacan, 2008, p. 14). E importa menos discutir, aqui, se a topologia pode ou não ser pensada a partir de uma referência ao estruturalismo; importa antes pensar que a batalha travada entre os anos de 1950 e 1960 contra o fantasma do ideal positivista estava, a princípio, ganha...

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Cláudia Henschel de Lima
claudiahlima@vm.uff.br
Marcio Ramos Ferreira
falecombisa@gmail.com

Submetido em: 08/12/2014
Revisto em: 21/03/2015
Aceito em: 22/02/2015

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