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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.16 no.2 Goiânia Dec. 2010
RESENHAS
Carlos Diógenes Cortes TourinhoI; Oditon Azevedo da Silva JuniorII
IUniversidade Federal Fluminense - UFF
IIUniversidade Federal Fluminense - UFF (Bolsista PIBIC)
Concepção fenomenológica da educação, 1990
(Antonio Muniz de Rezende)
Coleção "Polêmicas do nosso tempo" - N.º 38, São Paulo: Cortez Editora / Editora Autores Associados
Um levantamento bibliográfico inicial referente às pesquisas que procuram relacionar Fenomenologia e Filosofia da Educação no Brasil permite-nos notar, com certa frequência, um lugar de destaque reservado à obra Concepção fenomenológica da Educação (1990), de autoria do professor Antonio Muniz de Rezende (Faculdade de Educação/Unicamp). Nessa obra, o professor Rezende afirma-nos, logo no primeiro capítulo, que a grande intuição da fenomenologia é a constatação segundo a qual "há sentido, há sentidos, há mais sentido do que podemos dizer" (p. 26). O leitor poderá se perguntar o que, afinal, o autor estaria querendo dizer ao fazer tal afirmação. Poderá igualmente perceber que, ao considerar a especificidade da atitude fenomenológica, bem como da estratégia metodológica adotada pela fenomenologia, o autor da referida obra chama-nos a atenção, ao menos, para duas concepções distintas do que seja propriamente a originalidade e o propósito da fenomenologia. Deparamonos, por um lado, com trechos que parecem fazer eco ao projeto da fenomenologia transcendental anunciado por Husserl, e por outro, com o projeto de uma fenomenologia hermenêutica. Se o primeiro caminho leva-nos à via da "intuição de essências" e, por conseguinte, à possibilidade de evidenciação plena dos fenômenos, o segundo caminho concentra-se em torno da idéia de uma "estrutura simbólica do fenômeno", o que inevitavelmente nos remete, segundo o autor, para uma polissemia que, por sua vez, acaba por nos impor uma hermenêutica. O leitor perceberá, então, ao se deter no texto da referida obra, que uma das vias anseia por uma clarificação do sentido íntimo das coisas por meio de uma autorreflexão radical, ao passo que a outra via considera primeiramente o fenômeno como "significante" e, como tal, vazio de significações, podendo, por isso mesmo, significar qualquer outra coisa. Mas, sendo assim, como o leitor deveria entender, considerando as duas concepções apontadas pelo autor, o lema fenomenológico do "retorno às coisas mesmas"? Uma análise inicial permite-nos notar que, na esteira de Husserl, poderíamos, através da redução fenomenológica, intuir a "coisa mesma" em sua dimensão originária, tal como se mostra na autêntica imanência da subjetividade transcendental, em seu caráter inteiramente primordial: a coisa sobre a qual falamos, sobre a qual pensamos, a coisa intencionada no pensamento, revelada através de diferentes modalidades do aparecer enquanto tal (como objeto de um juízo, de uma lembrança, de um desejo, e assim por diante).
Apenas alguns trechos esporádicos no curso da obra apreciada nos remeterão para essa via, a via da fenomenologia de Husserl propriamente dita. Por outro lado, diferentemente do lugar reservado pelo autor à "via husserliana" ao longo da obra, o leitor não terá dificuldades em notar, sobretudo, no capítulo I (pp. 17-33), intitulado "Dimensão pedagógica do método fenomenológico", a presença contínua no curso do texto da chamada "via da interpretação". Tal via deixa-nos confinados à idéia segundo a qual a investigação fenomenológica consistiria em uma busca interminável e, por conseguinte, inatingível da plenitude de sentido. Frente à estrutura simbólica do fenômeno, para o professor Rezende, restar-nos-ia apenas a possibilidade de um exercício de interpretação permanente de novos sentidos para os quais o fenômeno - enquanto "significante" - nos remeteria. O leitor será levado a pensar esta segunda via como a via propriamente dita da hermenêutica, considerada pelo autor o cerne da pesquisa fenomenológica. Em seus termos: "A hermenêutica acha-se no coração da pesquisa inspirada na fenomenologia" (p. 71). Se a via da intuição de essências remete-nos para um "puro ver" das coisas, para uma consciência intencional na qual e para qual o sentido mesmo daquilo que se intenciona é apreendido e constituído intuitivamente por essa mesma consciência originária doadora de sentidos, a via da interpretação coloca-nos frente à ambiguidade do significante, forçando-nos a pensar o fenômeno não em sua dimensão primordial, tal como se revela "em pessoa" (para usar um termo de Husserl), mas como um símbolo que, enquanto tal, remeter-nos-á sempre a uma outra significação. Sendo assim, para o autor, o que retorna na investigação fenomenológica é, ao modo de consideração da "via da interpretação", a ausência de um sentido pleno daquilo que se intenciona, ausência esta que seria, em sua perspectiva, a causa para a busca recorrente de outros sentidos além do que se pode dizer ("O sentido que falta, que está faltando, é que determina a direção de sua busca...", p. 73).
Diante de tal articulação do autor, o leitor poderia se perguntar até que ponto se pode evidenciar aquilo que aparece para a consciência. Quais os graus de evidenciação almejados pela investigação fenomenológica? O tema é, aliás, central para a fenomenologia desde as suas origens. Pode-se dizer que a intenção primária que move e articula o projeto filosófico anunciado por Husserl é, das Investigações Lógicas à Crise da Ciência Européia, a de constituir a filosofia como uma "ciência de rigor", estabelecendo seus fundamentos a partir do alcance de evidenciação plena. Tal anseio faz com que Husserl não se contente com coisa alguma que não se revele à consciência originária (doadora de sentidos) como um dado absolutamente evidente por meio de uma auto-reflexão radical, capaz de intuir o sentido mesmo da coisa intencionada no pensamento. Cabe lembrar que, para Husserl, podemos distinguir uma intenção meramente significativa de uma intenção intuitiva. Se na primeira não encontramos a presença mesma do objeto, na segunda, o objeto preenche a intenção, revelando-nos intuitivamente graus variados de evidência daquilo que se intenciona. Movido por este ímpeto insaciável de evidenciação, Husserl adota, como estratégia metodológica para o alcance de evidências apodíticas, o exercício da suspensão de juízo em relação à posição de existência das coisas que se nos apresentam, para então recuperá-las em sua pura significação no âmbito de uma autêntica imanência. Trata-se da chamada "redução fenomenológica". Tal método de evidenciação do fenômeno deve ser entendido como um "circuito de reduções": ao colocar entre parênteses a atitude natural, deslocamo-nos, pela técnica de variação imaginária do objeto, da contingência do fato para o que há nele de invariável enquanto objeto de pensamento (para aquilo sem o qual sequer poderíamos tomá-lo como aquele, e não como outro, objeto intencionado).
Deslocamo-nos, em seguida, da coisa intencionada para as suas diferentes modalidades de aparecimento enquanto tal no pensamento. Portanto, a atitude fenomenológica seria, para Husserl, uma atitude reflexiva e analítica cujo propósito maior consistiria em elucidar, determinar e distinguir a coisa mesma revelada em sua dimensão primordial dentro da qual seria apreendida e constituída intuitivamente. A via husserliana é, portanto, a via da intuição. Mas o leitor, ao se debruçar sobre o texto apreciado, perceberá que, para o professor Rezende, a pesquisa fenomenológica recai, inevitavelmente, em uma outra perspectiva, qual seja, a da via da interpretação. Ao se concentrar em torno da "estrutura simbólica" daquilo que se intenciona, o autor chama-nos a atenção para o fato de que o fenômeno impõe uma exigência de interpretação. Enquanto um "significante", o fenômeno remete-nos para uma polissemia e, assim sendo, afirmanos o autor que o fenômeno evoca, na sua origem, uma ambiguidade ("Havendo, porém, vários sentidos possíveis, a interpretação torna-se indispensável", p. 29). Deste modo, a interpretação será, na visão do autor, a tentativa de acompanhar a articulação dos diferentes sentidos no interior do símbolo. Tal ambiguidade originária do significante deixar-nos-ia confinados a um conflito de interpretações que, nos termos do autor, "(...) é indispensável para que a interpretação se aproxime o mais possível da polissemia característica da estrutura simbólica do fenômeno e de sua compreensão" (p. 31). O professor Rezende não hesitará em afirmar que o conflito de interpretações não só é possível, como também é necessário e inevitável na pesquisa fenomenológica. Afirma-nos também que - e este é o ponto que nos permite, particularmente, perceber a distinção crucial entre as duas vias anunciadas - "a fenomenologia não é uma filosofia da evidência, mas da verdade em todas as suas manifestações" (p. 29). Sugere-nos, com tal afirmação, que a verdade tanto se manifesta como se oculta, sendo o seu ocultamento ainda uma das formas de sua manifestação. O desvelamento consistiria, segundo ele, em descobrir que a verdade nunca se revela totalmente, o que implicaria em uma estreita aproximação entre "verdade" e "símbolo".
Ao final de uma leitura atenta dos dois primeiros capítulos do livro, o leitor será colocado frente a frente com duas vias aparentemente inconciliáveis: de um lado, a fenomenologia como filosofia que almeja a evidenciação plena propriamente dita e, de outro, a fenomenologia como filosofia marcada pela hermenêutica e por um conflito inevitável de interpretações de símbolos. O autor deixa-nos claro a sua opção pela segunda via. O leitor poderia, então, se perguntar: considerando o que foi exposto acima, quais as implicações de cada uma dessas vias para se pensar uma concepção fenomenológica em filosofia da educação? Se a "via husserliana" convida-nos para uma reflexão e análise do que há de mais originário no fenômeno educacional, a "via da hermenêutica" confina- nos a um exercício permanente de interpretação da estrutura simbólica do fenômeno em questão, uma vez que, para o professor Rezende: "(...) não há necessidade de interpretação quando só há um sentido e ele é manifesto. Havendo, porém, vários sentidos possíveis, a interpretação torna-se indispensável" (p. 29). Por fim, o leitor perceberá, ao se deter atentamente no texto apreciado, a reafirmação da incompatibilidade de tais posições: se a via da intuição revela-nos a coisa mesma em sua dimensão originária, permitindo-nos "ver" puramente o sentido íntimo daquilo que se intenciona, tornando a interpretação algo prescindível; a via da interpretação assume, ao contrário, que o sentido pleno da coisa intencionada é inacessível, na medida em que a estrutura simbólica do fenômeno remete-nos sempre para outras significações a espera de novas interpretações. De um lado, uma fenomenologia da intuição para a qual o exercício de interpretação se torna desnecessário e, de outro, uma fenomenologia da interpretação para a qual a plenitude de sentido se torna inacessível. Eis a tensão que o leitor mais atento não deixará de notar no curso da obra apreciada.
Referência
Rezende, A. M. de (1990). Concepção Fenomenológica da Educação. Coleção Polêmicas do nosso tempo, v. 38. São Paulo: Cortez / Autores Associados. [ Links ]
Recebido em 18.06.2010
Aceito em 05.08.2010