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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.20 no.2 Goiânia Dec. 2014
TEXTOS CLÁSSICOS
A Nova Fenomenologia1
Henry Lanz
Stanford University, California
(1924)
São duas as possíveis reações em relação ao mundo que cerca um indivíduo. Geralmente ele pode entender o mundo como algo "efetivamente dado", algo do qual ele mesmo constitui parte, ativamente. Ele vive nesse mundo, percebe seus objetos, escuta suas melodias, desvenda seus segredos, age, pensa, constrói e desconstrói suas crenças, cria novas leis e transgride as já existentes; ama e odeia, vota e escolhe. Sua ciência expande seu campo de visão física; suas técnicas o ajudam a conquistar novas esferas e contextos, novos mundos. Em outras palavras, os objetos do mundo aparecem para ele na capacidade de serviço, não no senso prático da palavra, mas no sentido de ser uma parte válida dentro de um contexto valioso. Tudo é considerado, apenas, à medida que se encaixe no contexto. Coisas, verdades, teorias estão lá para que o indivíduo acredite nelas ou não; elas existem ou subsistem simplesmente pelas consequências, isto é, para atuar como base de alguma outra coisa, como as partes de um sistema. Tudo tem um caminho dentro do curso geral dos acontecimentos ou no sistema geral do conhecimento. As coisas existem e subsistem pelo propósito de serem ouvidas; isso é o que Husserl chama de "natürliche Einstellung" - atitude natural - do indivíduo em relação ao mundo.
Essa atitude é contrastada com a "atitude fenomenológica", caracterizada pela eliminação de qualquer serviço. Podemos ainda perceber as coisas como reais e existentes, mas devemos concordar em não fazer nenhum uso teórico de suas existências, isto é, não devemos tentar provar ou refutar nada simplesmente pelo fato de serem reais. Isso não implica o fato de duvidarmos da nossa existência. Nós simplesmente desconsideramos suas consequências, "colocando-as em parênteses" ou, como diz Husserl, "retiramo-las do circuito" do nosso julgamento e as destituímos de sua validade. Podemos também estar cientes da verdade, mas isso não deve nos afetar pelo aspecto de sua natureza (através da qual desempenha funções no sistema de conhecimento), ou seja, não deve ser entendida como fonte de informação. Considerando qualquer percepção, julgamento ou verdade, não devemos dar ouvidos ao que ela, de fato, clama ou certifica. Podemos assistir aos papéis que representam no estágio do conhecimento, mas devemos fazê-lo como estrangeiros, sem acreditar ou desacreditar em seus testemunhos2.
Qualquer tese que tenhamos aceito pode ser, naturalmente, retida e analisada do ponto de vista da fenomenologia, mas isso deve ser feito pressupondo que as nossas crenças "naturais" sejam desconsideradas. "Não estamos desistindo de nossa atitude natural e mantendo nossas crenças inalteradas; estas têm a permissão de permanecer em si mesmas como são (...) e ainda assim nossa tese em relação à natureza sofre uma modificação: nós a deixamos descansar em seu próprio conteúdo, mas a colocamos, por assim dizer, fora do seu eixo de ação, entre parênteses, de lado. Ela permanece lá como o parêntese dentro dos colchetes ou como partes eliminadas, fora do sistema ao qual pertenciam (...) não fazemos uso delas"3, ou seja, ela não tem serventia. "Eu elimino todas as ciências que não estão relacionadas com o mundo real" afirma Husserl posteriormente "e embora não tenha a intenção de tecer objeções contra elas, não faço uso algum de sua validade. Nem uma única proposição, que pertença ao contexto natural, perfeitamente evidente para mim, é admitida como sendo válida ou não, nenhuma é aceita de fato; nenhuma me serve como fundamento. (...) posso considerar qualquer proposição, mas somente depois de ela ter sido colocada entre parênteses, isto é, somente na consciência modificada e que é caracterizada pela eliminação do julgamento, isto é, nem no modo como serve a uma proposição dentro da ciência, nem tampouco como proposição que prega uma validade que eu possa creditar ou utilizar".
A possibilidade de uma mudança de atitude tão radical não está confinada a conteúdos puramente racionais, tais como a verdade, o julgamento, etc. O conteúdo de uma apreciação artística ou uma inspiração puramente religiosa pode ser abordado de modo similar, a partir de dois pontos de vista distintos. Podemos estar interessados em dogmas teológicos, por exemplo, a medida que sustentem nossas crenças religiosas e representem o sistema de fé que se faz necessário entre certos indivíduos, a fim de assegurar o tipo de vida que acreditam ser o melhor; podemos atacar ou defender seus conteúdos ou discutir suas origens e explicar seus significados; em outras palavras, podemos tomar um posicionamento na tessitura da fé. Neste caso, nosso interesse e atitude são aqueles de um teólogo ou estudante de religião. Por outro lado, podemos intencionalmente desconsiderar a validade teológica dos dogmas e compreendê-los meramente como expressões da crença, como atitude peculiar da consciência para com seus objetos que chamamos de "fé". Desconsideramos os conteúdos desses dogmas, colocando-os entre parênteses para estudar apenas o modo de sua doação peculiar. Nós os compreendemos do modo como, de fato, se doam no elemento da fé, mas desconsideramos completamente o que eles realizam na prática, no sistema da fé. Neste caso, agimos como fenomenologistas. Assim, a fenomenologia se define como o estudo dos objetos em sua relação com a consciência, num estado de suprema imparcialidade quando a significação sistemática e válida dos objetos relacionados não é considerada. Esta imparcialidade fundamental ou abstinência da validade factual dos objetos é algo mais do que um simples "estado de consciência" ou invenção arbitrária de uma mente indolente. Isso implica um método e exige nova política intelectual em relação ao mundo inteiro e até mais. Qualquer que seja o objeto - real, irreal, lógico, alógico ou mesmo ilógico, pode ser abordado fenomenologicamente ou purificado, isto é, destituído de suas conexões naturais ou sistemáticas. Tal objeto teoricamente "desconectado" é denominado por Husserl de "Fenômeno" e a abstinência metodológica, pela qual os fenômenos são obtidos, de "redução fenomenológica".
Assim, a fenomenologia é caracterizada, primeiramente, não por uma escolha de objetos específicos, mas sim pelo seu método de abordagem. O material da investigação fenomenológica é o mesmo de outras ciências, ou seja, o mundo e seus incontáveis fenômenos. Porém, o método de abordagem é fundamentalmente distinto. Os fenomenologistas não agem de forma metafísica, isto é, eles não inventam nenhum supra-mundo para o seu próprio deleite intelectual a fim de obter um objeto de estudo que não possa ser estudado por nenhum outro ramo da ciência. Os fenomenologistas se esforçam em descrever o mesmo mundo, aquele mundo que é familiar a todos. Eles suprimem julgamentos em relação a todo e quaisquer fenômenos, contanto que constituam partes de um sistema maior. Os fenomenologistas se esforçam para isolar qualquer objeto do contexto no qual está, de fato, inserido e que o contempla em sua própria essência purificada. É possível, no entanto, se perguntar por que os objetos devem ser isolados? Por que o julgamento deve ser suprimido? Em outras palavras, qual é o propósito da atitude fenomenológica? Desde Hegel, tornou-se clichê o fato de que o contexto (as conexões sistemáticas na qual um dado objeto está inserido) exerce influência efetiva sobre a situação ou a noção que formamos sobre o objeto. Essa influência tão significativa pode, sob determinadas circunstâncias, ser excessivamente danosa e mal interpretada, uma ilusão. Mesmo os grandes teóricos frequentemente perdem a perspectiva de sua questão original em função de determinadas relações sistemáticas que os fazem responder perguntas que nunca se perguntaram postergando, indefinidamente, as soluções para os problemas iniciais! Até mesmo os epistemologistas frequentemente se esquecem do conteúdo específico de seus problemas epistemológicos, influenciados pelas teorias da psicologia (que em si mesmas são verdadeiras e valiosas)! Nós todos, de modo geral, quando pressionados, não nos tornamos propensos a substituir um conteúdo por outro em razão de uma necessidade sistemática?
Frequentemente ouvimos um físico afirmar que a cor vermelha, por exemplo, não existe na realidade e que deve ser fisicamente considerada como sendo o resultado de certa frequência de vibrações etéreas. Alguns teóricos vão ainda mais além e reduzem completamente o fenômeno a causas físicas; o que denominamos "vermelho", nessa perspectiva, é apenas uma forma de energia específica descarregada pelas células cerebrais! E quando os psicólogos se esforçam para corrigir essa concepção materialista, ressaltando que a "vermelhidão" em si é real como uma "sensação", acabam cometendo erro similar, pois intercalam certo conteúdo teórico, chamado "sensação", com o fenômeno genuíno do "vermelho" que, por sua vez, é tão estanho em relação às sensações quanto em relação às vibrações.
A ciência e a filosofia modernas exibem uma tendência comum para reducionismos similares. Estamos tentando "reduzir" quase tudo. A vida social é "reduzida" a "fatores" tanto econômicos quando psicológicos; a vida de modo geral é reduzida a "causas puramente mecânicas"; o som é reduzido a vibrações e estas são reduzidas ao princípio de conservação de energia; fenômenos são reduzidos a leis e estas a princípios. Esforços repetidos estão sendo feitos a princípios para reduzir o mundo todo a uma única substância, um Deus, ou um princípio fundamental tal como I = I. Um objeto ou uma proposição não são considerados suficientemente claros até que sejam reduzidos a alguma outra coisa; até mesmo a natureza da "explicação" consiste na redução.
Muitas destas reduções são válidas de fato, mas muitas vezes elas apenas encobrem a questão e substituem as invenções e tradições de nossa mente pelo fenômeno dado. "Uma dada tonalidade de vermelho", afirma Max Scheler, um dos fenomenologistas mais importantes da escola de Husserl, "pode ser determinada de muitas maneiras, a saber: como a cor que é enunciada pela palavra "vermelho" (a cor em si mesma já sendo uma substituição, uma redução); como a cor desta coisa ou desta superfície específica; como a cor que "eu vejo"; como a cor desde número específico ou da amplitude de suas vibrações. Ela aparece aqui como o "X" de uma equação. A experiência fenomenológica sozinha pode nos dar o "vermelho" em si mesmo, no qual a totalidade destas determinações, sinais e símbolos encontra seu cumprimento final. Essa experiência transforma o X num fator intuitivo4." Este fato, isto é, o fenômeno do "vermelho" enquanto tal, parece não ter lugar dentro de quaisquer desses contextos; não pode ser reduzido a elementos físicos ou psicológicos e, nos dias atuais, foi mais uma vez chamado insistentemente de "ilusão5". Por essa razão, o contexto aniquila o fenômeno. Nossa concepção de como o "vermelho" deveria existir, isto é, as conexões existenciais do "vermelho" ou, mais popularmente, nossas teorias em relação ao "vermelho" enquanto realidade, remove o fenômeno do campo de nossa visão intelectual, como um homem que diante da visão das árvores não enxerga a floresta. Por essa razão, é importante suprimir nosso julgamento em relação a quaisquer destas "reduções" em outras palavras, reduzir nosso julgamento ao fato puro. Nesse caso, o nosso reducionismo é precisamente o oposto de uma explicação. Ele é, na verdade, o processo de esclarecimento dos fatos, ou seja, a determinação do conteúdo "fenomenológico" genuíno dos objetos. Nossos objetos são cobertos com "teorias" a tal ponto que, para resgatá-los a tarefa se torna bastante difícil. Estamos muito acostumados a considerar o "vermelho", por exemplo, como uma sensação ou vibração que qualquer afirmação em relação ao seu valor "independente" encontra oposição violenta de nossa própria parte. Seria melhor aceitarmos o vermelho como ilusão, do que considerá-lo como entidade independente. O fato é que mesmo sendo ilusão, o vermelho não deixa de ser "vermelho". Não podemos eliminar sua "essência" mesmo considerando-a uma ilusão.
Mas, (e isso pode ser contestado) aceitando que o "vermelho" tem certa essência fenomenológica que sobrevive fora de qualquer contexto físico ou psicológico, o que ganhamos ao levar isso em consideração? O que podemos estudar sobre o "vermelho" enquanto tal, independente de conexões físicas ou psíquicas nas quais ele aparenta ser real? Devo admitir que, de fato, não há muito para estudar sobre isso, exceto o método e a ideia da atitude fenomenológica (de onde a posição neorrealista, por exemplo, segue como um mero corolário - resultado que, a parte qualquer outra consequência, deve ser considerado como tendo algum valor!). A "independência" fenomenológica das qualidades secundárias torna essa mudança radical de atitude bastante compreensível, pois os fenomenologistas frequentemente se referem a cores e tonalidades apenas a título de ilustração. Mas, o valor da atitude fenomenológica é raramente indicado e de modo algum exaurido ao apontar a independência fenomenológica de qualidades secundárias. Esse método da redução fenomenológica produz resultados mais definidos e construtivos, se aplicado a outros fenômenos tais como "conhecimento", a "imaginação", o "valor, a "beleza", etc. Os fenômenos da "verdade" e da "significação", por exemplo, precisam de um grau considerável de purificação fenomenológica, mesmo nos dias atuais, pois é comum serem confundidos com realidades psicológicas. Alguns pensamentos proeminentes do presente não consideram a "verdade" como resultado de nossa organização mental6, talvez até um subproduto da nossa estrutura biológica?7 Não é relativamente moderno argumentar que não há verdades eternas e que toda verdade é construída para satisfazer nossas necessidades biológicas e/ou sociais ou mesmo para atender certas dificuldades?
Diametralmente oposto a estas modernas e errôneas interpretações sobre a "verdade", como um tipo de fato, realidade mental ou função mental, Husserl trabalha sua concepção fenomenológica como um fenômeno sui generis, o qual, em sua essência, é inteiramente independente de conexões psíquicas. Em suas Investigações Lógicas, ele demonstra que a verdade não pode ser considerada como tal, visto que não tem existência8. Uma proposição não começa a ser verdade quando a apreendemos num primeiro momento e também não cessa de ser verdadeira depois que a esquecemos por completo, nem mesmo se toda a raça humana desaparecer da face da Terra9. Aqui, novamente, assim como no exemplo do "vermelho", ao desconsiderar as conexões existentes da "verdade", ou seja, nossas teorias relacionadas ao modo de sua existência, obtemos o fenômeno puro da verdade na forma pela qual é atualmente dado, ou seja, no ato do conhecimento ou da evidência, pois nesse caso a verdade não é originalmente intencionada como uma realidade mental, mas sim imposta através de considerações teóricas de natureza heterogênea, posteriormente. A verdade não aparece como realidade mental ao conhecimento individual, mas tão somente ao epistemologista teórico. Quando dizemos que 2 + 2 = 4, não temos em mente, a princípio, nenhuma combinação de processos mentais, mas tão somente os números. Esses números podem ser reais, visto que estados mentais não alteram nossa intenção matemática, mas mesmo que alguém prove o contrário, isso não terá efeito algum sobre a ciência matemática. A característica mais importante desse argumento consiste em esclarecer nossas próprias intenções intelectuais. Husserl não diz que a expressão acima (2 + 2 = 4) subsiste como ideia platônica em algum lugar fora dos nossos processos mentais, mas sustenta que quando somamos 2 + 2 não temos a intenção de somar duas ideias. O que temos em mente não é uma relação psicológica, mas sim uma relação puramente matemática. E é somente nesse sentido que a verdade, expressando essa relação, difere da realidade psicológica. Sendo assim, a atitude fenomenológica nos ajuda a apreender a verdade como um fenômeno sui generis - uma tarefa que abre um novo campo no qual ainda há muito para ser conquistado.
Fenomenologicamente falando, todo objeto difere completamente do estado de consciência no qual aparece conforme nos é apresentado. É comum dizermos que certas coisas só existem na nossa imaginação. Já na realidade não encontramos quaisquer desses objetos imaginários com o conteúdo psicológico real da imaginação enquanto tal. Suponha que eu imagine o deus Júpiter. Na minha imaginação, Júpiter é dotado de várias qualidades mitológicas, tais como onipotência, força física, um determinado rosto e barba, etc., características que, de modo algum, podem ser atribuídas a minha imaginação. Ele era um homem casado - uma situação que a minha imaginação jamais poderia imaginar. Segundo Husserl, alguém pode até analisar a ideia de Júpiter em detalhes, os quais a própria introspecção ou métodos psicológicos modernos permitirão sustentar, mas essa pessoa jamais será capaz de encontrar o próprio Júpiter junto aos constituintes de sua imaginação, pelo fato de as ideias serem ocorrências reais, enquanto Júpiter não é: ele não existe em lugar algum10. O mesmo argumento se aplica a qualquer ideia, proposição, crença ou percepção, a qualquer ato de consciência sustentando que "tenha alguma coisa em mente" ou "intencione" alguma coisa.
O objeto da intenção é fenomenologicamente distinto do ato da intenção, não como realidade independente, mas simplesmente como um centro diferente de possíveis predicações. Proposições que são válidas em relação a um objeto, são geralmente inválidas em relação ao ato, exceto os casos em que o objeto é, ele mesmo, outro ato psicológico.
O dogma crítico da "identidade" é, dessa forma, abandonado. A luz da teoria da objetividade da intenção alcança sua "independência" teórica. Foi uma verdadeira ressurreição dos mortos. Kant sepultou os objetos nas profundezas da consciência. Já Husserl retirou-os do túmulo, deu-lhes nova vida e os regastou com honras e pompas como ens intentionale11. Porém, os cem anos nos quais permaneceram sepultados deixaram profundas mudanças em sua natureza a ponto de nenhum concerto conseguir apagar. O próprio núcleo da objetividade foi infectado com questões transcendentais e anseios impossíveis de serem erradicados a priori. Essências medievais reapareceram no horizonte filosófico e novamente assumiram o papel de liderança na vida e na organização do pensamento. Mas, eles mudaram o modus de sua existência e tornaram-se mais "epistemologizados" e restritos a suas próprias "intenções". Em resumo, os objetos ganharam sua independência, mas com a limitação essencial de que devem ser compreendidos da maneira como a intenção de fato os apresenta. Se forem entendidos assim, estão limitados a aparecer em sua essência fenomenológica, ou seja, independentes de sua existência factual e estritamente a priori. Nesse sentido, realizar a "redução fenomenológica" do objeto (isolando-o de suas conexões existenciais ou sistemáticas) equivale a considerá-lo da maneira como é apresentado inicialmente, sem as influências teóricas que os distorcem. Assim, todo objeto é limitado a revelar o que é em si mesmo, "vermelho de fato", "verdade de fato", etc. e isso significa revelar sua ens intentionale. Assim, a Gegenstandstheorie de Meinong aparece, então, como mero corolário do princípio fenomenológico. A importância metodológica da ens intentionale pode ser mostrada pela seguinte ilustração emprestada da estética fenomenológica. Desde Aristóteles, tornou-se popular a compreensão de que o deleite artístico consiste do sentimento de conforto causado pela obra de arte - alívio do peso e dos sofrimentos da vida, das paixões e preocupações da ação. Isso é o que Aristóteles chamava de ϰαϑαϱσɩς ou "purificação artística".
O erro consiste em compreender a essência do deleite artístico, em tal purificação, do ponto de vista fenomenológico, pois, mesmo inexistente, essa purificação é meramente consequência da experiência artística, um subproduto desejável em si mesmo e que não constitui fenômeno do deleite artístico. Esse fenômeno é um ato de apreciação da obra de arte e não de alívio das paixões. Substituir um pelo outro é resultado, mais uma vez, da nossa mania de reduções. Se eu for a um teatro, talvez eu aprecie o relaxamento do meu dia de trabalho e também fico feliz de ter a oportunidade de esquecer os meus problemas. Porém, esse tipo de deleite não é o mesmo derivado da apreciação do drama encenado no palco: eu deveria ser capaz de apreciar Shakespeare mesmo se não tivesse nada para esquecer. Meu relaxamento e o meu momento de recreação são certamente gostosos, mas é uma apreciação do relaxamento em si e não da arte. Assim, esclarecendo nossas "intenções", evitamos a confusão que, de outra maneira, poderia ser fatal, não só para as nossas teorias estéticas, mas para nossos gostos e práticas artísticas também12.
Concordando com Schelling, e depois com Platão, Husserl acredita que os únicos meios para alcançar a ens intentionale residem na intuição pura13. Husserl é levado a considerar a intuição como a única solução do problema epistemológico14. A "intuição epistemológica" é uma experiência no sentido de que chegamos a ela através do contato imediato com as suas informações, e não por meios do raciocínio ou da especulação. A razão não produz o seu conteúdo. Visto que esse [o conteúdo] é assumidamente diferente do processo pelo qual nós nos tornamos ciente dele, a ausência da racionalidade nos ajuda a criá-la. Assim, o conteúdo nos deve ser dado ou não podemos nos tornar cientes dele. O estado da consciência, um conceito abstrato tal qual o número 5, encontra-se no mesmo nível de qualquer senso de qualidade: a relação da consciência com o seu objeto é, fundamentalmente, a mesma em ambos os casos; o número 5 tem que ser "apresentado" (tem que estar presente na) à consciência, precisamente no mesmo sentido em que o "vermelho" também nos é apresentado (ou está presente em nós). Nesse sentido, o intelecto é, em si mesmo, uma intuição o que, entretanto, não significa que a fenomenologia seja uma ciência indutiva. A fim de compreender que "duas linhas retas podem cortar uma a outra em apenas um ponto", ou que "no círculo cromático, a cor laranja ocupa um lugar entre o vermelho e o amarelo", não precisamos nos referir a um número de casos similares. Ambas as proposições, embora sejam fatos, não são deduzidas pelo método indutivo, do mesmo modo como não são generalizações a partir de casos isolados. Um único olhar para o círculo cromático já é suficiente para convencer qualquer indivíduo de que a relação entre "laranja", "vermelho" e "amarelo" é válida para todos os casos nos quais deva ser válida. Em outras palavras, notamos que é uma relação essencial e que não pode ser modificada, nem mesmo imaginada como sendo formada de outra maneira. Apelar para outros casos também não ajuda, pois a evidência é completa nas bases de um único caso15. Sendo assim, a relação é, ao mesmo tempo, "dada" e "a priori". Os fenomenologistas definem por "a priori" todos aqueles significados e proposições fundamentados na evidência suprida pela intuição. Para atingir um estado que fosse, então, a priori é necessário abandonar todas as crenças e teorias, abster-se de todo tipo de "Setzung" tal como o "real" ou "irreal", "verdadeiro" ou "ilusório" e se entregar ao conteúdo conforme intencionado. Um conteúdo independente do contraste de "verdade" e "ilusão", etc., ou seja, que é igualmente necessário no mundo da verdade, assim como nos contos de fada, é adequadamente chamado pelos fenomenologistas de "essência". Assim, a essência da vida deve ser dada mesmo que estejamos sob a ilusão de que um determinado objeto está vivo; a essência da "lei" deve estar presente tanto na constituição dos Estados Unidos, como na constituição do reino de Lilliput. Nesse sentido, a essência não é um termo universal ou individual. A essência "vermelho", por exemplo, está contida no conceito geral do vermelho, bem como em toda tonalidade concretamente percebida da cor vermelha16.
Além disso, as essências, conforme descrito acima, não são necessariamente racionais. Existem talvez inúmeras formas de intenção ou modos de consciência (Bewusstseinweisen) todos com suas cópias objetivas. Fé, dúvida, imaginação, investigação, apreciação, desejo, etc., são nomes que se referem a diferentes modos de consciência, cada um com sua natureza específica, ou essência geral, que transmite a si mesma para seus objetos. Um objeto de fé tem seu próprio sabor peculiar que o torna "essencialmente" diferente de qualquer outro objeto da razão. Apesar do fato de ambos coincidirem em certos aspectos, eles são fundamentalmente diferentes, mais precisamente a medida que um pertence ao reino da fé e o outro ao intelecto e a razão. Uma consciência determinada resulta, similarmente, num tipo peculiar de estrutura objetiva, conhecido comumente por "valores", os quais tem suas próprias relações e conexões distintas daquelas de "verdade" ou "realidade"17. É fútil racionalizar aquelas relações, visto que não são intelectuais. Elas podem ser adequadamente compreendidas somente através de "sentimentos" e no meio das dificuldades e obstáculos de ações reais. Um valor não é "coisa" ou "verdade" e sua relação com outros valores não é física ou lógica. Nosso contato com os valores é de uma ordem diferente da que Blaise Pascal chamou de "logique du coeur" e que Mr. Scheler chama de Ethos. É uma das formas alógicas da objetividade.
Nesse sentido, existem tantos tipos de objetividade quantos de consciência. Cada tipo de "intenção" é, por assim dizer, suprido com seu próprio material, que dá origem um mundo peculiar ou um "território" ontológico em si mesmo, com suas próprias características "territoriais-essenciais" e "territoriais-categóricas"18. O mundo da fé possui um tipo específico de subjetividade diferente daquele da emoção; o mundo das coisas é, novamente e essencialmente diferente daquele dos "deuses" ou "valores". E, de acordo com Husserl, cada tipo implica uma relação de mão dupla: 1) É necessariamente relacionado à realidade dos eventos psíquicos para o meu ego, em outras palavras, aquelas "partes e elementos" que podem ser encontrados no ato em si, como pertencentes ao íntimo, a alma. Husserl denomina esses aspectos subjetivos, embora não necessariamente psicológicos, da consciência de "noesis". Nesses termos, o elemento da subjetividade (o modo da consciência qua consciência) recebe seu reconhecimento formal no sistema da filosofia fenomenológica. 2) Por outro lado, cada modo ou tipo de consciência particular, tal como a fé, a imaginação, reflexão, etc., é um actus intentionalis que enfatiza algo além. O caráter objetivo daquele algo mais, muda de acordo com o caráter essencial da noesis. Caracterizar um conteúdo como um objeto é absolutamente insuficiente, pois temos que agregar o "como" de seu oferecimento (das Wie seiner Gegebenheitsweise). Em outras palavras, cada tipo de consciência, em virtude de sua própria intenção é intuitivamente projetada para dentro da esfera de objetos entre os quais ela aparece como essência objetiva. Àquelas projeções Husserl chama de "noemata"19. Desse modo, a percepção tem a sua noema, isto é, perceptum como tal20; Cada pergunta tem sua noema, isto é, seu significado tem uma pergunta, precisamente como é intencionada pela mente inquisitiva21; ao julgar alguma coisa nós nos colocamos em contato com aquele mundo peculiar das entidades neutras, geralmente denominados conteúdos lógicos ou "verdades" (assim, a entidade neutra aparece como um caso específico de noemata). Comumente falando, "para todos os dados reais de conteúdo noético multiplicado, corresponde uma multiplicidade de dados no conteúdo noemático". Husserl insiste que esses dados deveriam ser descritos precisamente em termos de "modo" ou tipo de consciência no qual são originalmente fornecidos.
A noemata que corresponde aos nossos desejos ou ações é fundamentalmente, "essencialmente" diferente daquela que constituí o mundo do pensamento ou da sensação. A noemata tem suas próprias qualidades que não podem ser reduzidos, sob nenhuma circunstância, a elementos intelectuais. Isso liquida a questão do intelectualismo ético bem como do sensualismo, pois um valor não pode ser demonstrado logicamente, visto que sua "essência" é alógica. O imperativo categórico de Kant é uma ilusão intelectual - uma miragem nos desertos da razão formal. Porém, pensar em valores em termos de análise psicológica, como uma antecipação do prazer, é igualmente impossível. Quanto mais forte o nosso desejo, mais nos esquecemos de seus constituintes psicológicos e nos perdemos em "planos" e "esquemas", "fins" e "meios". Isso esclarece, parcialmente talvez, o fato de que os grandes gênios da história estavam inclinados a considerar a si mesmos como instrumentos tanto da força divina (Cromwell e seu grupo) como do destino (Napoleon, Wallenstein). Faltava a eles a consciência de seus egos como fonte imediata de seu poder de determinação, pois o único modo possível de chegar a uma ética positiva e construtiva se fundamentava no ato de reconhecer o conteúdo original de valores éticos - uma ordem independente ou lógica do coração22.
A noeses e a noemata juntas constituem o reino da consciência absoluta. Elas são "fatos" absolutos que nenhum ceticismo pode eliminar, em outras palavras, constituem um reino de "Ser" absolutamente aquela "nulla re ad existendum indiget.23" O que quer que seja ou que possa ter sido é baseado apenas em tais fatos. Nesse sentido, a neofenomenologia é a restauração do empirismo24. "Os fatos e apenas os fatos, não as construções de uma "razão" arbitrária, integram a base da fenomenologia"; porém, esses fatos são diferentes daqueles que constituem a base da ciência natural. Encontramos aqui, no sentido matemático da palavra, uma generalização do conceito de fato. Um fenomenologista jamais tentaria reduzir uma "essência" a "fatos", pois desse ponto de vista, a essência é, em si mesma, um fato. Do contrário, o que é comumente chamado de fato (no sentido científico) é meramente um caso especial de essência. A neofenomenologia é o neoempirismo, isto é, uma continuação do experimento de Hegel para tornar essência e fato uma única coisa. Husserl e Hegel, mesmo diferentes na questão do estilo e no resultado de suas doutrinas, concordam quanto ao esforço para tornar a filosofia um fluxo contínuo da experiência. Nada é excluído dela. Verdade e falsidade, real e irreal, essência e fato, individual e universal são todos, igualmente, justificados como "conteúdos" ou "estágios" da experiência na consciência purificada da imparcialidade fenomenológica.
O fenomenologista, assim como o pragmático, jamais pode se deixar incomodar com quaisquer dúvidas de cunho moral ou religioso, pois está acima (talvez abaixo?) desses problemas. A atualidade de um problema jamais constitui seu interesse, pois eles são muitos, numa imensidão que é apenas superficial. Essa fenomenológica universalidade de interesses, essa anatomia cósmica insensível, desprovida de amor intellectualis no sentido de Spinoza, somada à imparcialidade fundamental do julgamento, constitui característica comum das filosofias de Husserl e Hegel. Ambos são partidários da imparcialidade.
Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)
Revisão Técnica: Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)
1 The Monist, volume 34, número 4 (Oct), 1924, p. 511-527. [ Links ]
2 Edmund Husserl, Ideen zu einer reinen Phaenomenologie und phaenomenologischen Philosophie (1913), p. 187. [ Links ]
3 Husserl, Ideen, p. 54.
4 Max Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 45. [ Links ]
5 Cf. Hermann Cohen, Logik der reinen Erkentniss.
6 Cf., por exemplo, G. Heimans, Gesetze und Elemente des wissenss chaftlichen Denkens. p. 38, 64-65, 90, 181-189, 224, 242, etc. Também Sigwart. Logik, Vol. 2, p. 66, 40-41, 92. Para uma análise mais detalhada do ponto de vista psicológico ver: H. Lanz, Das Problem der Gegenstandlichkeit in der modernen Logik.
7 Comp. Mach, Erkenntniss und Irrtum.
8 Husserl, Logische Untersuchungen, Vol. 1, p. 119: Vol. 2, p. 590-595. [ Links ]
9 Logische Untersuchungen. Vol., p. 100, 117, 131, 184, etc. [ Links ]
10 Husserl, Logische Untersuchungen, Vol. 2, p. 352. [ Links ]
11 A fonte imediata das inspirações intencionais de Husserl está fundamentada não nos teóricos da Idade Média, mas na Psicologia de Brentano. Segundo esse autor: "Jedes psychische Phänomen wird dadurch characterisiert, was von den Scholastikern die intentionale Inexistenz des Gegenstandes gennant wurde, und was we jetzt das Gerichtetsein auf das Object nennen würden." Psychologie, 8,115.
12 Moritz Geiger, Beiträge zur Phänomenologie des ästhetischen Genusses, p. 592-594. [ Links ]
13 HusserI, Ideen, p. 113.
14 lb., p. 204-205.
15 M. Geiger, Beiträge zur Phänomenologie des ästhetischen Genusses, p. 571. [ Links ]
16 M. Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 43. [ Links ]
17 M. Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 10, 15, 59, 79, 133, 260-272. [ Links ]
18 Husserl, Idem, p. 19.
19 Husserl, Idem, p. 179-199.
20 lb., p. 182-183.2.
21 lb., p. 197.
22 M. Scheler, Der Formalismus in der Ethik, p. 59.
23 Husserl, Ideen, p. 91-92.
24 M. Scheler, Der Formalismus in der Ethik, p. 46. [ Links ]