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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.spe Goiânia Dec. 2018

 

EDITORIAL

 

Marcos Aurélio Fernandes

(Universidade de Brasília)

 

 

A essência da fenomenologia, pensada originariamente, está situada no cerne da filosofia ocidental. Esta essência se resume no mote "às coisas mesmas!". Cada vez que o pensamento se faz radical e se direciona à coisa mesma que o provoca a pensar, correspondendo a esta provocação, emerge o seu traço fenomenológico. O pensamento filosófico é fenomenológico à medida que desvela, deixando vir à fala, o "lógos" mesmo dos fenômenos (sua linguagem, isto é, sua articulação de sentido). Este traço fenomenológico do pensamento filosófico foi captado por Aristóteles como já presente na investigação dos primeiros pensadores. O Estagirita diz a respeito dessa investigação que a coisa mesma abriu-lhes caminho e lhes obrigou a investigar1. De Parmênides ele diz que este foi obrigado a seguir os fenômenos2. Afinal, os antigos investigavam pressionados pela verdade3. Pensar é exercício de liberdade. Mas liberdade só acontece concretamente na dinâmica da libertação para a verdade. Pelo pensamento não somente somos libertos negativamente, isto é, de nossos pareceres e conjecturas, mas somos também libertos positivamente, para a necessidade dos fenômenos. Deixando-nos pressionar e constringir por esta necessidade é que nós, paradoxalmente, experimentamos o abrir-se da liberdade.

A hodierna fenomenologia, encaminhada a partir das investigações de Husserl, constitui uma possibilidade de redescobrir a fenomenologia vigente em todos os tempos na tradição filosófica, qual uma autêntica filosofia perene. O que a filosofia tem de perene não é, pois, uma doutrina, um sistema, conteúdo. O que a filosofia tem de perene é o movimento de investigar deixando-se aviar nas vias que as coisas mesmas abrem. No prefácio do primeiro volume do Anuário para Filosofia e Pesquisa Fenomenológica, num texto programático, declaravase o princípio do relacionamento dos pesquisadores do movimento fenomenológico com a tradição: que a única maneira de explorar os tesouros legados pela tradição filosófica é o de aprofundar-se até às raízes primordiais da intuição e nelas haurir as evidências de ordem essencial. Abria-se, assim, o caminho da fenomenologia hodierna para o encontro com a fenomenologia de ontem - certamente, em vista da fenomenologia de amanhã.

Os artigos que aqui o leitor encontrará mostram que esta abertura de caminho acontece desde diversas posições do movimento fenomenológico do século XX e contemporâneo. Desde Brentano, Husserl, Scheler, Edith Stein, Heidegger, Rombach, partem diversos itinerários de diálogo com a tradição. Tal diálogo caminha na direção das linhas e das entrelinhas, do dito e do não-dito, do pensado e impensado desta tradição. Os autores fazem um recorte neste diálogo: evidenciam a vigência latente ou a presença patente do pensamento medieval nos fenomenólogos hodiernos.

Brentano é um pensador que uniu a tradição aristotélica-escolástica com a filosofia moderna, fundada em Descartes. Uniu ontologia (ciência do ser) e psicologia (ciência da alma, da consciência, da subjetividade). A partir daqui partem as investigações de Husserl - a fenomenologia transcendental da consciência; e as investigações de Heidegger - a fenomenologia fundada na questão do ser. O artigo de Cesalli e Taieb (Genebra) mostra o vínculo com a ontologia medieval no pensamento deste "mestre" de Husserl e de Heidegger.

Um tema fundamental da fenomenologia hodierna, retomado a partir de Brentano, é a intencionalidade. Com efeito, a hodierna fenomenologia através das investigações de Husserl irrompeu como a descrição analítica da intencionalidade no seu a priori. O artigo de Vargas Bejarano (Calli, Colômbia) procura analisar as convergências e divergências entre a concepção de intencionalidade em Duns Scotus e em Edmund Husserl. Metafísica como "scientia transcendens" e como "fenomenologia da verdade" e fenomenologia transcendental, centrada na subjetividade, se encontram, assim, em torno do tema da intencionalidade, articulando identidade e diferenças.

No epílogo das Meditações Cartesianas, Husserl declara que a fenomenologia transcendental plenamente desenvolvida é uma autêntica ontologia universal e concreta (não formal). Nela, a metafísica em geral não é excluída, apenas a metafísica ingênua é superada. As questões de sentido - às quais estão ligados os problemas éticos e religiosos - emergem de modo novo. Esta filosofia universal se realiza como uma tomada de consciência universal de si mesmo, na esfera monádica e intermonádica. Neste sentido a tradição délfica do "conhece-te a ti mesmo" toma uma dimensão ontológica. Se a ciência positiva é a ciência do ser, a qual se perdeu no mundo, a fenomenologia é uma tomada de consciência universal de si mesmo, que realiza plenamente e com novo vigor a indicação investigativa de Santo Agostinho: noli foras ire, in te redi, in interiore homine habitat veritas (não vás para fora, entra em ti, no homem interior habita a verdade). O artigo de Sávio Peres se dedica a tematizar o conceito de atenção na descrição fenomenológica da vida interior realizada por Agostinho, em que a intentio voluntatis desempenha uma função precípua. Além disso, a mente conhece-se a si mesma, antes mesmo de pensar a si mesma. Conhecimento e amor são duas forças fundamentais da alma humana. O artigo de Daniel Rodrigues Ramos tematiza o tema do amor e da finitude através do diálogo de pensamento entre Max Scheler e Agostinho. Evidencia a importância fundamental do amor (caritas) e de sua ordenação (ordo amoris) para a estruturação da existência humana.

Nas investigações de Edith Stein o vínculo com a tradição filosófica da antiguidade tardia e da Idade Média se apresenta ainda mais forte. O artigo de Juvenal Savian Filho mostra que este vínculo é essencial no pensamento da carmelitana em sua fase madura. Ele possibilita abrir uma possibilidade de continuar o projeto husserliano no sentido da abertura de um caminho que leve à investigação das características essenciais dos objetos. O artigo de Rafael Carneiro Rocha mostra a importância que o ser no sentido da essência toma na investigação fenomenológica de Edith Stein. Aponta também para uma aproximação desta com a concepção do ser no sentido da "ultima realitas entis" de Duns Scotus.

Heidegger procurou fazer uma crítica imanente da investigação fenomenológica que se desenvolve no elemento da consciência pura. O questionamento do ser do intencional, e, mais ampla e profundamente, do ser do humano e do ser do ente no todo e, por fim, do ser como tal e nele mesmo, abriu novos caminhos para essa investigação fenomenológica. Tenta-se assim uma superação do esquecimento do ser proporcionado pela decadência da existência - esquecimento que vigora na metafísica dos antigos e dos modernos. Surge, assim, o projeto de uma fenomenologia fundada no questionamento e na recordação do ser. Na repetição da questão do ser dá-se uma retomada verdadeira e própria da tradição, no sentido não só do seu dito, mas também do seu não dito; não só do seu pensado, mas também do seu impensado. O artigo deste que agora escreve salienta que o jovem Heidegger, em sua Tese de Habilitação, sobre Duns Scotus e sobre a Gramática Especulativa, ao tratar da doutrina das categorias, já colocava em ressalto a importância da visão simples do ser: a doação prévia da ordem universal do ser (o todo do pensável) - implícita na doutrina do ente como primeiro objeto do intelecto - mostra-se um ponto de partida importante para a investigação fenomenológica. Fenomenologia é a visão simples do Simples: intuição do Ser.

Na investigação de Heidegger, fenomenologia é o método da ontologia. O Ser é a coisa mesma do pensar. Em sua forma juvenil, esta investigação se estrutura como hermenêutica da faticidade da vida humana. É junto às estruturas da existência (vida humana fática) que se pode haurir o sentido do ser de um modo privilegiado. Um campo fenomenal importante, que põe em relevo esta faticidade da existência é a vida religiosa. Heidegger procurou realizar o exercício da análise fenomenológica da faticidade da existência a partir da hermenêutica de textos fundamentais da vida do espírito na religiosidade cristã. Assim, a mística mostrou-se terreno fecundo de investigação fenomenológico-ontológico-existencial. O artigo de Renato Kirchner e Jealison Machado Laroca, que intenta uma interpretação do poema "Noite Escura" de São João da Cruz trilha por este caminho aberto por Heidegger. A experiência do mistério - raiz da mística - mostra-se como singular, intransferível, incomunicável; como algo que acontece no mais recôndito da alma humana, no silêncio de seu fundo. A escuridão do mistério é supraluminosa; é a mais intensa iluminação. No não-saber do mistério da experiência e da experiência do mistério o pensamento da mística chega a seu ápice.

Do fundo da alma e da centelha divina que nela se esconde, bem como da douta ignorância (o saber do não-saber) da experiência mística falava muitas vezes em seus Sermões e Tratados e Conversações o Mestre Eckhart. No seu pensamento, a mística especulativa da escolástica chega a alturas ousadas. Do nada do mistério é que provém toda acriação. O artigo de Ênio Paulo Giachini aponta para a importância da concriatividade na vida humana.

Este conceito, central na fenomenologia estrutural de Heinrich Rombach, é trabalhado neste artigo à luz de uma das Conversações de Mestre Eckhart com seus orientandos. É posto em evidência que a criatividade não consiste na mera inovação. Criatividade é, em sua essência, não a produção de coisas novas, mas a abertura de novas dimensões para que as coisas apareçam - dimensões que só fazem enriquecer a riqueza da vida humana.

Para terminar, acrescentamos uma tradução de um texto do século XII, a respeito da Unidade. Trata-se de um opúsculo atribuído a Dominicus Gundisalvi. Desde os primórdios, o ser e o uno são temas centrais da metafísica da tradição. O texto traduzido mostra a riqueza que este tema traz para a compreensão fenomenológico-ontológica do Uno Todo da realidade do real. O tema do Um abre a perspectiva para uma "mathesis universalis" toda própria?

Desejamos a todos que a leitura destes textos lhes ajude a meditar sobre tantos e tão belos caminhos que muitos abriram no diálogo entre a fenomenologia hodierna e a fenomenologia vigente no ontem, no vigor recolhido do passado, da tradição. E que esta meditação ajude-nos a preparar a fenomenologia do amanhã.

Brasília, 21 de agosto de 2018

 

 

(Este número foi finalizado em 26 de agosto de 2018)
1 Autò tò prágma hõdopoíõsen autois kaì synênánkase zêteín: Metafísica I, 3, 984a 18s.
2 anankazómenos d'akoloutheín toís phainoménois: Metafísica, I, 986b 31.
3 hyp'autês tes aletheías... anankazómenoi: Metafísica, I, 984b 10.

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