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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.spe Goiânia Dec. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24ne.6
DOSSIER FENOMENOLOGIA E IDADE MÉDIA
Pressupostos metafísicos da fenomenologia: uma leitura essencialista do transcendentalismo constitutivo em Edith Stein
Metaphysical assumptions of phenomenology: an essentialist reading of constitutive transcendentalism in Edith Stein
Los supuestos metafísicos de la fenomenología: una lectura esencialista del trascendentalismo constitutivo en Edith Stein
Rafael Carneiro Rocha
Mestre e Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Professor temporário do curso de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (Regional Cidade de Goiás). Email: raffacr@yahoo.com.br
RESUMO
A pergunta metafísica sobre o ser parece estranha à fenomenologia de matiz husserliana. A orientação fenomenológica tem como lugar de investigação a vida do eu, que demanda um "colocar entre parênteses" toda consideração existencial sobre o mundo psicofísico transcendente à consciência pura, incluindo o próprio eu empírico. De fato, o lema fenomenológico de "voltar às coisas mesmas" não se refere aos objetos exteriores à consciência, mas, isto sim, aos puros objetos imanentes enquanto aparecem na consciência. Dessa maneira, embora o fenomenólogo não esteja necessariamente impedido de pensar metafisicamente ou de negar a legitimidade da pergunta sobre o ser, o propósito metodológico que ele segue parece interditar num primeiro momento, em suas investigações sobre a vida do eu, qualquer tipo de posicionamento metafísico. Por outro lado, sugerimos como hipótese neste artigo que a fenomenologia husserliana parece ter pressupostos metafísicos. O exame da investigação sobre o sentido do ser em Edith Stein, especialmente na obra Endliches und Ewiges Sein (Ser Finito e Ser Eterno), fornece indícios de que a investigação mesma da vida do eu envolve, inevitavelmente, a consideração sobre certas unidades constitutivas da subjetividade transcendental: as essencialidades que constituem o próprio sentido da realidade enquanto tal.
Palavras-chave: Metafísica; Transcendentalismo; Essencialidade
ABSTRACT
The metaphysical question about being seems strange to the phenomenology of Husserlian nuance. The place of inquiry of phenomenology is the life of the ego, which demands a "putting in parenthesis" any existential consideration of the psychophysical world transcendent to the pure consciousness, including the empirical ego. In fact, the phenomenological motto of "going back to the things themselves" does not refer to objects outside consciousness, but rather to the pure immanent objects as they appear in consciousness. Thus, although the phenomenologist is not necessarily prevented from metaphysically thinking or denying the legitimacy of the question about being, his methodological purpose seems to preclude, at first, in his investigations of the life of the ego, any kind of metaphysical positioning. On the other hand, we suggest as hypothesis in this article that husserlian phenomenology seems to have metaphysical presuppositions. The examination of the inquiry into the sense of being in Edith Stein, especially in the work Endliches und Ewiges Sein, gives indications that the very investigation of the life of the ego inevitably involves consideration of certain constitutive units of the transcendental subjectivity: the essentialities that constitute the very meaning of reality as such.
Keywords: Metaphysics; Transcendentalism; Essentiality
RESUMEN
La pregunta metafísica sobre el ser parece extraña a la fenomenología de matiz husserliana. La orientación fenomenológica tiene como lugar de investigación la vida del yo, que demanda un "poner entre paréntesis" toda consideración existencial sobre el mundo psicofísico trascendente a la conciencia pura, incluyendo el propio yo empírico. De hecho, el lema fenomenológico de "volver a las cosas mismas" no se refiere a los objetos exteriores a la conciencia, sino a los puros objetos inmanentes mientras aparecen en la conciencia. De esta manera, aunque el fenomenólogo no esté necesariamente impedido de pensar metafísicamente o de negar la legitimidad de la pregunta sobre el ser, el propósito metodológico que él sigue parece interrumpir en un primer momento, en sus investigaciones sobre la vida del yo, cualquier tipo de posicionamiento metafísico. Por otro lado, sugerimos como hipótesis en este artículo que la fenomenología husserliana parece tener presupuestos metafísicos. El examen de la investigación sobre el sentido del ser en Edith Stein, especialmente en la obra Endliches und Ewiges Sein, proporciona indicios de que la misma investigación de la vida del yo implica, inevitablemente, la consideración sobre ciertas unidades constitutivas subjetividad trascendental: las esencialidades que constituyen el propio sentido de la realidad como tal.
Palabras clave: Metafísica; Trascendentalismo; Esencialidad.
Introdução
Na primeira parte do artigo, a proposta é verificar como o conceito metafísico tradicional de essência surge na fenomenologia de Edmund Husserl. Sugerimos, a partir da leitura que Paul Natorp faz da doutrina das ideias ou formas de Platão, que a fenomenologia parece ter pressupostos metafísicos na medida em que opera a partir de uma concepção constitutiva de ser que não é para ser compreendida em termos de uma realidade substancial. O uso das considerações de Natorp se justifica porque ele próprio foi uma influência para Husserl e, principalmente, porque é um posicionamento que permite pensar a questão do ser para além de sua substancialidade, algo fundamental no contexto fenomenológico que opera a partir da suspensão ou colocação entre parênteses de toda a realidade psicofísica transcendente à consciência.
Na segunda parte do artigo, a partir da possibilidade de pensar o ser em perspectiva de sua não realidade - algo que abre também a possibilidade de colocar questões metafísicas na fenomenologia husserliana - o objetivo é apontar como Edith Stein, distanciando-se da concepção metafísica historicamente atribuída a Tomás de Aquino de ser enquanto realidade, aproxima-se, de alguma maneira, da concepção de Duns Escoto sobre a ultima realitas entis, o princípio de individuação que nos faz pensar sobre o ser para além das categorias aristotélicas.
A hipótese que sustentamos é que a fenomenologia transcendental tem pressupostos metafísicos. Porém, a metafísica que se vincula à fenomenologia transcendental não é aquela que concede preeminência de ser à "realidade", mas uma metafísica que concede à essência aquele estatuto prioritário e constitutivo.
De qualquer maneira, não é nosso objetivo bus-car a validação do tipo de metafísica que se vincula-ria à fenomenologia transcendental, mas contribuir para que a colocação de perguntas sobre o sentido do ser se insiram nas reflexões sobre a filosofia de Husserl. Edith Stein, ao ter como meta a construção de uma "ponte" entre a filosofia escolástica e a fenomenologia husserliana, parece ter começado um trabalho instigante.
1. A fenomenologia enquanto filosofia das essências
Em Endliches und Ewiges Sein, Edith Stein afirma, em consonância com interpretações tradicionais da história da filosofia, que as filosofias modernas, diferentemente daquelas praticadas na Grécia antiga e na Idade Média, se ocupavam prioritariamente do problema do conhecimento, ao invés de se voltarem para questões sobre o ser (Stein, 2006, p.12). Contudo, ela afirma em seguida que a ontologia reapareceu no século XX como uma "filosofia das essências" [Wesensphilosophie], na fenomenologia de Edmund Husserl e Max Scheler (Stein, 2006, p.14-15). Nas suas Meditações Cartesianas, Husserl afirma:
Gostaria ao terminar, e para evitar mal entendidos, indicar que a fenomenologia, como a desenvolvemos, elimina apenas a metafísica ingênua que opera com os absurdos que são as coisas em si, mas não exclui a metafísica em geral. Não violenta os motivos e os problemas que animavam interiormente a tradição antiga. Era o seu método e a sua posição dos problemas que eram absurdos e não de modo algum os seus problemas e os motivos da sua posição (Husserl, Meditações 5, § 64, s.d., p.196-197).
Talvez, estejamos autorizados com Husserl a considerar que os motivos e os problemas das tradições filosóficas antigas giravam em torno daquilo que é tido como o lema da fenomenologia: "voltar às coisas mesmas". Voltar às coisas mesmas se relaciona à coisa enquanto "fenômeno". Fenômeno, no grego antigo Φαινόµενον, tem um sentido que remonta àquilo que aparece, ou àquilo que brilha. Em Husserl, "fenômeno" se refere aos puros objetos imanentes enquanto aparecem na consciência, e não aos objetos que existem exteriormente à consciência. O fenômeno é o imediatamente consciente e não a "coisa real".
A "coisa real" é "real" na medida em que a própria consciência constitutiva de sentido lhe concede sentido de "real". Husserl afirma no epílogo de suas Meditações Cartesianas: "O ser, primeiro em si, que serve de fundamento a tudo aquilo que há de objetivo no mundo, é a intersubjetividade transcendental (Husserl, s.d., p.197)". Por sua vez, em Ideias I, também encontramos tese similar: "O ser imanente é, portanto, indubitavelmente ser absoluto no sentido de que ele, por princípio, nulla re indiget ad existendum (Husserl, 2006, p.115).
De qualquer maneira, é preciso tomar cuidado para não tipificarmos Husserl como um "idealista" em sentido estrito. Ainda em Ideias I, o próprio Husserl afirma que não o compreende quem considera suas explicações como conversão de todo o mundo em ilusão subjetiva, do mesmo modo previsto por um idealismo berkeliano. A afirmação de uma consciência doadora de sentido para as coisas não significa negação da realidade delas. O caso é que o mundo é como certo sentido, e este pressupõe a consciência absoluta enquanto campo de doação de sentido (Husserl, 2006, p.129).
Dessa maneira, a questão sobre o ser surge na fenomenologia a partir do domínio originário de doação de sentido da consciência. A fenomenologia será "filosofia das essências" na medida em que, após o procedimento metodológico da colocação da realidade psicofísica transcendente à consciência (incluindo o próprio eu empírico) entre parênteses, ao analisar os atos da consciência o fenomenólogo chega aos tipos essenciais que a regulam e normatizam. Segundo André de Muralt, a essência, na fenomenologia husserliana, é a estrutura de consciência que deve ser considerada como a unidade terminal da constituição subjetiva (Muralt, 1998, p. 71).
O exame do sentido de essência na fenomenologia husserliana parece impor, todavia, uma série de questões metafísicas. Ora, se as investigações fenomenológicas não devem se ocupar do ser real a essência é para ser compreendida como um "nada" de ser? Como, então, um "nada" de ser poderia constituir sentido de ser? Trata-se de um tipo de questão que, devido à sua tessitura metafísica, parece alienígena aos propósitos husserlianos de investigação da possibilidade do conhecimento. Contudo, em Edith Stein, podemos verificar como questões metafísicas se autorizam a surgir nas reflexões sobre o domínio fenomenológico originário da consciência transcendental.
O estatuto da essência em Husserl
Em suas Investigações Lógicas, Husserl refutou qualquer modalidade de hipóstase do que é significado pela universalidade. Dessa maneira, embora a essência de um objeto corresponda a um nome universal, ou ainda a uma espécie, ela não é para ser considera como algo. Naquela obra, Husserl aponta dois equívocos das doutrinas sobre os objetos universais. O primeiro equívoco diz respeito a uma interpretação tradicional da doutrina platônica das Ideias que afirma a existência real do universal; enquanto o segundo equívoco diz respeito às teses psicológicas que concedem existência real das espécies no pensamento. Em relação ao primeiro equívoco, o alvo de Husserl não é necessariamente o próprio Platão, mas a tradição interpretativa que envolve este autor. Verificaremos que tanto nas Investigações, quanto em Ideias I (§22), a crítica de Husserl se volta para a corrente interpretativa que ele chama de "realismo platônico no sentido da concepção tradicional" (Husserl, 2012, p. 103).
A crítica à doutrina referente ao realismo platônico é importante para o projeto fenomenológico de Husserl, porque esclarece o posicionamento pré-ontológico e constitutivo da fenomenologia transcendental. Uma vez acionada a epoché, com vistas ao acesso à consciência transcendental reduzida, isto é, ao domínio constitutivo da vida do eu que interessa ao fenomenólogo, todas as teses sobre a realidade devem ser necessariamente suspensas, de maneira que o pressuposto da realidade dos objetos universais jamais poderia escapar do filtro da epoché.
A realidade para Husserl está no âmbito do factual. Ao conceito de "essência", Husserl contrapõe o conceito de "fato" em que, este sim, ao individualizar e atualizar uma essência, diz respeito à realidade. Ou ainda, Husserl contrapõe a universalidade da "essência", imutável e intemporal, ao ser fático, real, individual e contingente (Husserl, 2006, p.33-43).
Em Ideias I, Husserl irá se fundamentar na intemporalidade mesma do que é significado pelos objetos universais para refutar os críticos das Investigações Lógicas. Os críticos de Husserl rejeitam a utilização de nomes filosóficos que significam universalidade como "essência" ou "ideia", porque eles são apenas fatos psicológicos e qualquer tentativa de situá-los além da facticidade carregaria consigo o risco das hipóstases metafísicas. Além do mais, Husserl afirma que os críticos diziam não ser possível haver essência, nem intuição de essência, uma vez que podemos partir de teses psicológicas verificadas empiricamente para concluirmos que os objetos universais nada mais são do que "construtos psíquicos" que ocorrem no tempo. Porém, Husserl afirma ser um contrassenso falar de essência enquanto construto psíquico, porque isso seria confundir a representação contingente no tempo com o representável invariável e intemporal. Ele afirma que a representação numérica que fazemos do "dois" num intervalo de tempo não é o próprio número enquanto membro único e intemporal da série dos números. A hipóstase psicológica de um objeto universal colapsaria a validez mesma de seu sentido que é "anterior" do ponto de vista de uma precedência constitutiva a qualquer representação ou construção psíquica real, que poderia ser verificada empiricamente. Husserl afirma, sobre a consideração do "dois" como construto psíquico: "Designá-lo como construto psíquico é, portanto, contra-senso, um desrespeito ao sentido totalmente claro do discurso aritmético, sentido que sempre pode ser claramente evidenciado em sua validez e que, portanto, está situado antes de toda teoria (Husserl, 2006, p.67)".
Husserl classifica o número "dois" constitutivo, ou a essência "dois", como "ser intemporal" (Husserl, 2006, p. 67). O ser intemporal da essência não é encontrado na realidade, mas também não é um constructo do pensamento. O sentido de real para Husserl se refere tanto ao que está "na" consciência, quanto ao que está "fora"; além do mais, real é um aqui e agora cuja nota caracterizadora é a temporalidade, de maneira que embora ser real e ser temporal não sejam conceitos idênticos, pode-se dizer que eles têm igual extensão (Husserl, 2012, p. 104). Dessa maneira, mesmo as vivências psíquicas são uma unidade coisal, na medida em que transcorrem numa dada duração temporal. Porém, uma vez que a tese metafísica da realidade deve ser metodologicamente colocada entre parênteses, Husserl se interessa pelo ser da essência apenas em sua "intemporalidade" que não pode de maneira alguma ser compreendida como na realidade.
1.2. Fenomenologia e platonismo
A distinção entre ser e existir, sobre a qual Husserl parece estar convicto, pelo que podemos inferir a partir dos dois posicionamentos do autor mencionados acima (a crítica dele ao hipostasiar metafísico do universal e a admissão de um "ser in-temporal"), se é algo capaz de colapsar o "realismo platônico", por outro lado parece concordar com uma interpretação menos corrente da doutrina das Ideias, segundo a qual não fazia parte do projeto de Platão admitir existência real às Ideias, embora estas devam ter estatuto de ser. Husserl concede estatuto de ser para a essência "não real" e isso parece um comprometimento com a tese metafísica segundo a qual o sentido de ser não se esgota em realidade ou existência. Podemos dizer que em Husserl a distinção apresentada na história da metafísica entre essência e existência se exprime em dois modos de ser (ser da essência e ser da existência) que se anunciam em dois modos de autodoação (Korelc, 2016, p. 118).
Pensar a essência em termos de seu ser, em que este domínio se contrapõe ao domínio do ser enquanto real, nos remete à distinção empreendida na escolástica (a partir de Henrique de Gand) entre esse essentiae e esse existentiae1. Historicamente a contraposição entre esses dois domínios de ser parece estar frequentemente a serviço de concepções metafísicas que privilegiam o modo de ser da essência em relação ao modo de ser da existência, na medida em que o fundamento último da realidade é explicado não em termos de seu ser real, mas a partir da condição de ser original da essência. Desse modo, a própria fenomenologia, enquanto filosofia das essências, ou filosofia das origens, poderia ser considerada a partir de um fundo metafísico essencialista e, dessa maneira, como uma revitalização de um certo platonismo, desde que a doutrina das Ideias não seja compreendida em termos da realidade delas.
O filósofo alemão Paul Natorp, em sua obra Teoria das ideias de Platão, sustenta que as ideias platônicas não são substâncias. Para Natorp, a crítica de Aristóteles à doutrina das Ideias é um erro persistente e que contribuiu historicamente para equívocos de leitura dos textos platônicos (Natorp, 2012, p. 255). Segundo Natorp, em nenhum momento da polêmica contra a teoria das ideias ocorreu a Aristóteles que o ser que Platão atribui às ideias poderia ter sentido outro que a existência concreta como substância (Natorp, 2012, p.293).
Vejamos, por exemplo, o argumento aristotélico no capítulo VI, do livro Z da Metafísica:
Se, depois, as substâncias e as essências são separadas umas das outras, (a) das primeiras não haverá mais ciência e (b) as segundas não terão mais nenhum ser (por "ser separado" entendo, por exemplo, o caso em que ao bem não pertença a essência do bem, nem à essência do bem o ser bem). (a) De fato, temos ciência da coisa individual quando conhecemos a sua essência. (b) Por outro lado, o que vale para o bem vale, analogamente, para todos os casos: assim, se a essência do bem não é o bem, tampouco a essência do ser será ser, nem a essência do um será um (Aristóteles, 2005, Metafísica Z 6, 1031b5, p. 307).
A crítica de Aristóteles se fundamenta na tese de que o objeto do conhecimento verdadeiro é a substância individual. Os particulares é que existem absolutamente em si mesmos, cabendo aos universais significado apenas no âmbito do conhecimento. Os universais são anteriores aos particulares apenas como "potencialidade", enquanto na ordem da "atualidade" os particulares é que os precedem e, mais ainda, o próprio conhecimento só adquire atualidade mediante apreensão dos particulares (Natorp, 2012, p. 277).
Enfim, na doutrina aristotélica, as substâncias, em última instância singulares, precedem e são mais fundamentais do que a definição. A definição cumpre o papel de permitir que tenhamos ciência de um particular e neste caso deve haver uma relação de identidade entre o sujeito individual e a ideia que dele se predica, de uma tal maneira que se o predicado não se encontrar exaustivamente representado no concreto particular não se pode dizer com direito que um dado sujeito é portador de uma certa universalidade. Nesse sentido, não poderíamos ter ciência de uma substância, porque o conhecimento universal que poderíamos predicar dela, em sua separabilidade, não lhe pertence realmente. E mais ainda, se a ideia não adquire o estatuto de algo existente no particular, a ideia em si mesma não existe (Natorp, 2012, p. 291-293).
Porém, segundo Natorp, em Platão a ideia jamais pode ser representada no caso concreto em seu todo. Ele cita, por exemplo, a lei da atração de Newton como uma possibilidade de ideia platônica. A lei enuncia um conteúdo como um todo, porém este não pode ser entendido como enunciando em si uma representação particular, nem abrangendo a coleção completa dos casos particulares. A lei, enquanto tal, não se fundamenta pela existencialidade. Porém, isso não significa que ela não tem ser. Segundo Natorp, o ser significa, para Platão, de modo muito geral: determinação em pensamento (Natorp, 2012, p. 293-295). Em Platão, a ideia, enquanto completamente determinada em si mesma, é que pode ser em sentido mais estrito.
Étienne Gilson, em O ser e a essência, reconhece que numa abordagem da doutrina das Ideias, segundo a qual a ontologia platônica da essência é para ser compreendida independentemente da esfera da existência, a noção de ὄντως ὄν (que pode ser traduzido como "verdadeiramente ente") - que Platão atribuía à Ideia enquanto único objeto que merece o verdadeiro título de ser - deve corresponder a uma tal identidade do ser consigo mesmo, de maneira que o ser apareceria necessariamente como uno, isento de toda mudança e, enquanto tal, jamais reportado à instância da existência, uma vez que não poderíamos atribuir a um tal domínio imutável e verdadeiro de ser o que atribuímos ao mundo aparente e mutável das coisas sensíveis, a saber, a existência delas na realidade (Gilson, 2016, p. 33-39).
Contudo, uma tal doutrina, caso desejarmos exaurir-lhe ao máximo o que ela tem a dizer sobre o sentido do ser, é sujeita ao desafio de explicar a relação entre o que é verdadeiramente ser e o que é na realidade mutável do mundo das aparências. A despeito de todos os problemas que a crítica de Aristóteles à doutrina das Ideias ocasionou para uma compreensão mais rigorosa do platonismo, o questionamento do primeiro livro da Metafísica ainda aponta para um legítimo desafio filosófico:
Mas a dificuldade mais grave que se poderia levantar é a seguinte: que vantagem trazem as Formas [είδη] aos seres sensíveis, seja aos sensíveis eternos, seja ao que estão sujeitos à geração e à corrupção? De fato, com relação a esses seres as Formas não são causa nem de movimento nem de qualquer mudança. Ademais, as Ideias não servem ao conhecimento das coisas sensíveis (de fato, não constituem a substância [οὐσία] das coisas sensíveis, caso contrário seriam imanentes a elas), nem ao ser [εἶναι] das coisas sensíveis, enquanto não são imanentes às coisas sensíveis que delas participam (Aristóteles, 2005, Metafísica A, 9, 991, a 8-15, p. 55).
Se nunca foi o caso para Platão compreender a Ideia como "real" ou ainda explicá-la a partir de sua relação com a realidade, ele poderia responder a Aristóteles como Husserl responderia a quem interpretava a sua "ciência das essências" a partir de algum tipo de conexão com a facticidade, ou ainda a quem que viria a lhe exigir uma tal vinculação: trata-se de um contrassenso conferir à essência um papel "real" a ser cumprido.
Dessa maneira, o empreendimento de Husserl se parece bastante com um modelo de platonismo não realista. Contudo, na medida em que a pergunta pela relação causal das Ideias ou das essências com seus modelos na realidade seria desprovida de sentido (afinal, a fenomenologia é uma ciência das essências prevenida metodologicamente para não atrair ao seu escopo o domínio da facticidade ou da existencialidade) é fato que o fenomenólogo exclui de maneira bem mais clara, diferentemente de Platão, a possibilidade de que sua ciência venha a oferecer a tese da existência da essência, ou ainda de uma explicação (pela via da causalidade) da realidade pela essência. Ou seja, em Husserl a desconexão de sua filosofia com a facticidade ou com o sentido de "realidade" que talvez pudéssemos atribuir à Ideia platônica, é algo inquestionável, ao passo que em Platão ainda há impasse entre os seus intérpretes se a compreensão do sentido do ser verdadeiro exclui ou não a existencialidade. Se há inclusão, a crítica aristotélica parece fazer algum sentido; porém, se há exclusão, não apenas o comentário de Aristóteles não faria sentido, como várias das interpretações tradicionais da doutrina das Ideias entrariam em colapso.
Para Edith Stein, é justamente a desconexão com a facticidade, que em Husserl será fundamental para o seu método, que explica por que ele chegou a uma interpretação idealista da realidade, enquanto vários de seus associados e discípulos como Max Scheler, Alexander Pfänder, Adolf Reinach, Hedwig Conrad-Martius, Jean Hering, e outros, guiados por um sentido de essência que não se esgota em seu caráter "irreal" se confirmavam cada vez mais em seus modos realistas de pensamento (Stein, 2006, p.82)". A seguir, apresentaremos como Edith Stein também se enveredou por um modo mais realista de pensamento, concedendo um aspecto de duplicidade à "essência da essência" [Doppel-"Wesen" des Wesen] em que o sentido de essência não se esgota somente em universalidade intemporal e "irreal", mas que abrange também uma faceta real, isto é, o ser de sua atualidade adicional [Sein] em relação a um dado objeto [Gegenstand].
2. Essencialidade em Edith Stein: a expressão fenomenológica da Ideia ou Forma
Em Endliches und Ewiges Sein, ao diferenciar a unidade de experiência da alegria do eu, que surge e desaparece no tempo, da alegria enquanto tal, Edith Stein afirma que encontramos aí aquelas "formas" [Gebilde] que Platão tinha em mente com as suas ideias [Ideen (ἰδέα, εἶδος)] e que reapareceu na filosofia de Aristóteles sob os nomes de εἶδος ou µορΦή. Porém, ao afirmar a sua escolha terminológica, ela diz que prefere usar a expressão fenomenológica Wesenheit (Stein, 2006, p.63-64), que traduziremos a partir daqui como "essencialidade".
A essencialidade de algo é um "estado" ou "condição" que determina todas as experiências individuais, sendo que cada uma delas deve o seu nome mesmo à essencialidade. Não poderia, por exemplo, haver experiência de alegria do eu sem que houvesse uma essencialidade preeminente à experiência. Não se trata de uma alegria minha ou sua, que seja agora ou posteriormente, nem que tenha duração mais longa ou mais curta: ela não tem ser no tempo e no espaço, mas onde quer e quando quer que a alegria é experimentada [erlebt], a essencialidade da alegria é realizada [verwirklicht] (Stein, 2006, p.64). Há, portanto, leis da essencialidade que determinam o curso da experiência em que a unidade estrutural surge em mim. As essencialidades carregam consigo mesmas a possibilidade de serem plenamente inteligíveis, transmitindo assim inteligibilidade e sentido aos objetos da realidade.
Ao considerar o sentido de ser das essencialidades, a autora afirma que, em correspondência ao procedimento fenomenológico de esclarecer o sentido do ser no domínio da vida do eu, ou seja, naquela região de ser que nos é imediatamente próxima, encontramos um tipo de ser que, embora à parte, condiciona o fluxo da vida do eu: as essencialidades experienciadas [Erlebnis-Wesenheiten]. Se as essencialidades não se realizassem na vida do eu, este seria um labirinto caótico em que nenhuma estrutura formal poderia se distinguir. Além de sentido e de inteligibilidade, as essencialidades transmitem à vida do eu unidade, multiplicidade e ordem (Stein, 2006, p.65).
Contudo, não podemos conceder às essencialidades o mesmo estatuto de ser das essencialidades experienciadas. O ser da essencialidade não é como aquele das experiências - afinal as experiências são um tornar-se e um desaparecer - tampouco é como o ser do eu, que é uma vitalidade que se renova de momento em momento. O ser da essencialidade é imutável e eterno, embora para Edith Stein haja grande diferença entre o ser eterno de Deus e o ser das essencialidades. A essencialidade, enquanto tal, é ineficaz [Unwirksames] e irreal [Unwirkliches], enquanto Deus é absolutamente primeiro em eficácia e realidade, conforme a autora verifica pelo pensamento inferencial ao considerá-Lo como causa primeira de todo o ser (Stein, 2006, p.67).
2.1. O ser próprio da essência
Embora a essencialidade tenha estatuto de ser irreal [unwirkliches], não podemos considerá-la como um não-ser (Stein, 2006, p.68). Edith Stein geralmente emprega "Ser Próprio da Essência [Wesenhaftes Sein]" para designar o "Ser das Essencialidades" [Sein der Wesenheiten], mas ela diz que embora tais modos de ser sejam bastante próximos, há uma distinção que precisamos observar. O ser próprio da essência é o único tipo de ser que a essencialidade possui, enquanto, por sua vez, devido ao sentido dual de essência, esta abrange o ser da própria da essência mais o ser da sua atualidade adicional em relação ao objeto (Stein, 2006, p.81).
Edith Stein admite que há um ser próprio da essência, porque uma vez que somos capazes de alcançar [fassen] o "o quê"- ou quid [Was] da essência independentemente de sua realização num objeto, tal quid deve possuir "um tipo de ser" [eine Art des Seins], afinal, tudo o que é algo [Etwas], também é (STEIN, 2006, p.80). O ser próprio da essência é um "estágio preliminar" [Vorstufe] de ser, porque o ser real é fundamentado nele. Porém, embora a essência careça de autonomia e necessite de suplementação, uma vez que é de sua natureza a possibilidade de se "realizar" num objeto, isso não significa que ser em estágio preliminar constitua-se numa inferioridade; pelo contrário, Edith Stein enfatiza que o objeto se torna real em virtude da essência, e não é a essência que se "torna" em virtude do objeto (Stein, 2006, p. 81).
O ser próprio da essência se difere, em senti-do de ser, do ser da realidade de uma experiência. Se analisarmos uma dada experiência da vida do eu, constatamos que seu ser é um tornar-se e um desaparecer. Porém, o ser próprio da essência é supra-temporal. Em todas as vezes que a alegria é experienciada, podemos dizer que as experiências se diferem, sendo mais ou menos intensas entre si e durando mais ou menos tempo, mas não a alegria enquanto tal, ou a essencialidade da alegria, que é condição de possibilidade de todas aquelas atualizações que surgem e desaparecem no tempo. Dessa maneira, o estágio preliminar e supra-temporal de ser próprio da essência, que constitui-se como não real, não é uma inferioridade de ser, mas de um estado de ser ainda mais preeminente, ou seja, que estaria ainda mais de acordo com as exigências do "ὄντως ὄν", do que o ser da realidade temporal.
O âmbito do ser próprio da essência deve ser concebido como um domínio em que as essencialidades representam os protótipos simples do estágio preeminente de ser da essência. As características essenciais que designamos como o "o quê" ou "quid" de uma dada essência são à imagem e semelhança da essencialidade. Ou seja, a "essência" para Edith Stein deve ser compreendida tanto em seu aspecto quiditativo, quanto em seu aspecto constitutivo. A "essencialidade" é constituinte do "o quê" que conceitualmente obtemos a partir das características essenciais do objeto, sendo que esta quididade está no mesmo âmbito de "ser próprio da essência" que a essencialidade constituinte; isto é, ambas pertencem ao domínio daquilo que na metafísica tardo-escolástica poderíamos denominar de esse essentiae.
2.2. O sentido do ser em Edith Stein: aproximações com Duns Escoto e distanciamentos com Tomás de Aquino e Husserl
Para Edith Stein, a compreensão de Husserl da essência, que leva em consideração apenas o aspecto constituinte do ser próprio da essência, faz com que se elimine aquela conexão com a realidade que, na concepção dual, se anexa à essência não apenas externamente, mas que é intrinsecamente pertencente a ela. Portanto, tendo como base o corte que separa fato de essência, se torna compreensível, segundo Edith Stein, por que Husserl chegou a uma interpretação idealista da realidade, enquanto vários de seus associados e discípulos como Max Scheler, Alexander Pfänder, Adolf Reinach, Hedwig Conrad-Martius, Jean Hering, e outros, guiados pelo sentido pleno do termo essência se confirmavam cada vez mais em seus modos realistas de pensamento (Stein, 2006, p.82).
Segundo a autora, a justificativa da conexão entre o ser próprio da essência do "o quê/quid [Was]" e o ser real da coisa correspondente está na essência compreendida como "determinidade quiditativa da coisa [Wasbestimmtheit des Dinges]" (Stein, 2006, p. 282). A determinidade quiditativa cumpre, ao que parece, um papel diretor em relação à coisa, na medida em que determina a própria manifestação [Entfaltung] da coisa enquanto real.
O modo de manifestar-se é o que diferencia os diversos sentidos de ser finito para Edith Stein. Observemos, portanto, a partir de suas próprias palavras como a autora cataloga o sentido de ser finito em diferentes manifestações para que prossigamos nossas reflexões metafísicas sobre a autora, que terminarão por deixá-la distante tanto de Husserl, quanto de Tomás de Aquino:
Ser finito é o manifestar-se de algum sentido. Ser próprio da essência é um manifestar-se in-temporal para além do contraste (oposição) entre potência e ato. Ser real é uma manifestar-se que procede de uma forma essencial, da potência para o ato e no interior do tempo e do espaço. Ser conceitual é uma manifestar-se em mais de um significado [Endliches Sein ist Entfaltung eines Sinnes; wesenhaftes Sein ist zeitlose Entfaltung jenseits des Gegensatzes von Potenz und Akt; wirkliches Sein Entfaltung aus einer Wesensform heraus, von der Potenz zum Akt, in Zeit und Raum. Gedankliches Sein ist Entfaltung in mehrfachem Sinn] (Stein, 2006, p. 284-285).
Ao analisar essa passagem crucial de Ser Finito e Ser Eterno, parece constatar-se que a caracterização fundamental do ser finito prescinde da "realidade". Edith Stein prefere caracterizar ser finito como um manifestar de algum sentido, enquanto "ser real" é um manifestar de ser nos estágios de ato e potência no domínio do tempo e do espaço. Ser finito é para ser compreendido, portanto, numa abrangência maior do que "ser real". Além disso, o manifestar de sentido do ser finito reporta, preeminentemente, para a sua essencialidade constitutiva e não para a sua realidade. Metafisicamente podemos enfatizar que, em Edith Stein, o domínio do esse essentiae é preeminente ao domínio do esse existentiae.
O ser, para Edith Stein, compreendido como o manifestar de um o "quê" denota não apenas o "à parte/ sozinho (em outro)" e o "em (outro)" [Auseinander/Ineinander] dos conteúdos deste, mas simultaneamente o "o quê" sendo manifesto ou sendo inteligível para alguma mente que conhece [erkennenden Geiste] (Stein, 2006, p.285). Dessa maneira, parece que a estrutura de sentido da essência surge como primordial para que cheguemos ao próprio sentido de ser. A essência, para Edith Stein, tem sentido tanto de quididade, como de determinidade de um dado o quê [quid].
Parece que a autora, comprometida com a tese da preeminência metafísica da "essência", defende que a determinidade quiditativa cumpra um papel, de certa maneira, diretor em relação à coisa, isto é, que determina a própria manifestação da coisa enquanto real. Ela diz: "a coisa seria incapaz de se manifestar [entfalten] se não fosse determinada pelo seu "o quê/quid [Was]" (Stein, 2006, p.282)".
Esse "determinar" parece fazer com que a "essência", em Edith Stein, cumpra um papel metafísico muito próximo àquele que, em Tomás de Aquino, corresponderia não à essência, mas ao ser enquanto ato de ser. Em Tomás de Aquino, a forma substancial aparece só como um quo est (aquilo por meio do qual algo existe) secundário e subordinado ao quo est primeiro que é o ato mesmo de existir. Dessa maneira, há uma preeminência metafísica do ser enquanto ato de ser à essência (Gilson, 2002, p.153-174). Além disso, vejamos uma passagem de Tomás de Aquino que parece servir como indicativo daquela preeminência do ser enquanto ato de ser, em que ele situa o ato de ser para além da forma: "a forma é dita princípio de ser, porque é complemento da substância, cujo ato é o ser" (Aquino, 1990, SCG II, 54, p.256) Alguém poderia argumentar que talvez o Tomás gilsoniano não seja um autêntico Tomás. Contudo, o Tomás de Aquino de Edith Stein é o Tomás da vertente "realista", uma vez que a própria autora procura considerá-lo sempre dentro de parâmetros realistas. Edith Stein tinha a convicção de que Tomás de Aquino era, de fato, o Tomás realista. Vejamos o que ela diz em Potência e Ato: "Podemos considerar a ideia de ser e as formas básicas em que o ser é determinado como o núcleo da obra tomista. O contraste entre potência e ato se relaciona às questões mais fundamentais sobre o ser, e a discussão desses conceitos nos leva ao coração da filosofia de Tomás de Aquino (Stein, 2009, p.5)".
O sentido de ser "real" para Edith Stein se relaciona aos estágios precursores [Vorstufen] de ser atual e de ser potencial e não esgota todo o sentido do ser, porque a ocorrência mesma do ser próprio da essência faz com que a autora defenda que seja necessário pensar o ser não apenas como ser "real" (Stein, 2006, p. 88). De qualquer maneira, ela se pergunta como o ser próprio da essência se relaciona ao ato e à potência.
Edith Stein afirma que há um duplo sentido para ato: aquele do ser perfeito (que é plenamente atualizado somente no puro ser), e aquele do ser real/atual (que admite gradações, de acordo com sua relativa proximidade ou distância do ser perfeito). Há, portanto, potência no ser atual, uma vez que a potência pode ser compreendida como um estágio preliminar do ser atual, sendo que ela própria apresenta várias gradações (Stein, 2006, p. 87). A atualização de algo (na realidade) envolve, portanto, um tornar-se, mas também um desaparecer, e isso pode ser compreendido como uma constante transição da potência para o ato. Porém, no ser próprio da essência, se encontra um tipo de ser que não é um tornar-se ou um desaparecer. O ser próprio da essência não envolve potencialidade, uma vez que em seu próprio domínio é perfeito, não podendo sofrer qualquer acréscimo ou diminuição (Stein, 2006, p.68), e tampouco envolve atualidade, porque é "ineficaz": a alegria que ainda não é viva não me impele a vivê-la em seu júbilo, da mesma maneira que a luz ainda não acesa na realidade não ilumina e a corda que ainda não vibra realmente não emite nenhum som. Isto é: a essencialidade "alegria" não vivifica, a essencialidade "luz" não ilumina e a essencialidade "som" não emite som (Stein, 2006, p.87-88).
Dessa maneira, o ser próprio da essência coloca-se em oposição com o ser real. Contudo, se uma dada essencialidade não é "atual" ou "eficaz" pode parecer estranho à primeira vista que ela traga em si algum sentido de ser. Porém, segundo Edith Stein para que compreendamos o sentido de ser próprio da essência devemos dissociá-lo da temporalidade. O que é essencialmente não adentra na existência a partir de um fluxo temporal em que se pressupõe o momento da anterioridade da sua atualização, o presente real e o seu lançar-se para um futuro. E precisamente porque é independente do tempo, o ser próprio da essência é em cada instante. O ser próprio da essencialidade e da quididade é repousar em si mesmo [Das Sein der Wesenheit und Washeit ist Ruhen in sich selbst] (Stein, 2006, p.89).
A partir dessa ideia de repouso, ela conclui que tanto o tornar-se e o desaparecer quanto a essência [Wesen] são dispostos um contra o outro como ser em movimento e ser em repouso, respectivamente. Ambos são ser: o ser em movimento da atualidade e o ser em repouso da essência, porém, conforme a autora tem enfatizado em relação à preeminência da essência, ela diz que o que é precedido [vorausgeht] é a essência, porque ela é requerida para que algo [etwas] seja (Stein, 2006, p.89).
Em Tomás de Aquino, há uma diferença clara entre "essência (essentia, quidditas ou ainda nature - em sua obra, parece que ele tende a utilizar os termos indistintamente)" e ser enquanto ato de ser (esse)". Segundo Edith Stein, trata-se de uma distinção guiada pelo desejo de delimitar com clareza e rigor o que diferencia Deus (cuja essência é ser) de todos os demais entes (cuja essência é distinta do ser). Dessa maneira, Tomás de Aquino, segundo a autora, designa ser como ato e coloca a natureza ou a quididade em potência em relação ao ser a ser recebido de Deus (Stein, 2006, p.89). Contudo, Edith Stein reconhece que, assim sendo, a descrição que ela havia feito do sentido de wesen como a essencialidade em repouso ou a quididade em si mesma (em contraste a um tornar-se e a um desaparecer) parece excluir a transição da essência do não-ser ao ser como parece implicado na ideia de receber o ser (Stein, 2006, p. 89).
Porém, de maneira a tentar validar a sua própria tese, Edith Stein cita a seguinte passagem de Tomás de Aquino em De potentiae (q.3, a5, ad 2): "Quidditas creari dicitur: quia antequam esse habeat, nihil ist nisi forte in intellectu creantis, ubi non est creatura, sed creatrix essentia"2. A "essência criativa" parece denotar uma forma que é separada da coisa em que ela é forma. A essência criativa é aquilo de acordo com que a respectiva coisa é formada; sendo, portanto, a forma exemplar à imagem e à semelhança daquilo pelo que algo é formado. Dessa maneira, Edith Stein conclui que para a expressão "recepção de ser" não ser desprovida de sentido, aquilo que recebe ser deve possuir algum tipo de ser que precede o ser atual. Este aquilo é a forma exemplar e recorrendo novamente ao tomismo, a autora diz que as formas exemplares têm ser, de acordo com Tomás (inspirado em Agostinho), no intelecto divino; sendo que elas se diferem daquelas formas criadas que têm ser nas coisas (Stein, 2006, p.89-90).
Porém, diferentemente de Tomás de Aquino que não concedia aos arquétipos divinos estatuto de ser, uma vez que estes são apenas fora do intelecto divino, quando atualizados, Edith Stein identifica as formas exemplares com o ser próprio da essência. Segundo o comentador Gerald Gleeson, em artigo sobre a noção de ideias modelares e essência em Tomás de Aquino e em Edith Stein, para esta, a noção que Tomás tem de essência é inadequada, uma vez que ele fala de essência como algo que pode existir apenas num ser real ou na mente de um conhecedor (Gleeson, 2016, p. 240).
Outra comentadora, Sarah Borden, afirma que para Edith Stein, ao falarmos de uma essência (por exemplo, ser humano) à parte da realidade de Sócrates ou daquilo que alguém conhece como Sócrates - ou seja, daquilo que Tomás chama de "consideração absoluta" da essência, ao qual nada corresponde na realidade - é, não obstante, verdadeiramente falar de "algo" como uma estrutura não arbitrária de sentido, ou ainda algo que deve realmente ter ser em seu próprio direito. Sendo que "tudo aquilo que é algo [Etwas] deve também ser [auch ist]", as essencialidades devem de alguma maneira ser, isto é, no modo de "ser próprio de essência (Borden, 2001, p. 74-75)".
A concepção de essência em Edith Stein se difere, portanto, da concepção de essência em Tomás de Aquino. Essência, para este, não é um "algo". Edith Stein, fazendo referência ao clássico estudo Elementa philosophiae aristotelico-thomisticae , de Joseph Gredt (religioso beneditino que viveu entre 1863 e 1940) afirma:
Os tomistas - a partir da autoridade de pensadores como Aristóteles, Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino - consideram o seu posicionamento como realismo moderado. Eles fazem distinção entre matéria (ou conteúdo quiditativo) e o conceito universal (isto é, a natureza) da forma universal. À matéria, eles atribuem ser na coisa individual, enquanto à forma eles atribuem ser apenas na mente (Stein, 2006, p.92-93).
Trata-se de realismo moderado, porque a forma apesar de não ser um "algo" não é um nada na coisa, mas um potencial inteligível para a mente de quem irá conhecê-la. Dessa maneira, o hilemorfismo de Tomás de Aquino tem como consequência a tese de que a essência de todos os entes que recebem ser da causa primeira (Deus) e são por Ele sustentados na existência reporta ao significado da composição ou não de matéria e de forma no ente em questão. As substâncias ou realidades compostas são essencialmente composição de matéria e de forma, enquanto as substâncias simples (que não são suprema simplicidade: Deus) são essencialmente formas destituídas de materialidade. Em resumo, a essência da coisa é potencialidade de ser tomada mentalmente como significado que reporta à quididade ou natureza da coisa, seja ela simples ou composta.
Por sua vez, Edith Stein concede à essência estatuto de "algo", porque ela é para ser compreendida em sentido multifacetado, abrangendo essencialidade (em aspecto constitutivo e quiditativo), como também a atualidade adicional de ser em relação ao objeto. Se de acordo com a interpretação de Gredt que Edith Stein parece consentir, o tomismo concede ser na coisa individual apenas à matéria, a autora, diferentemente, irá atribuir à forma, enquanto "algo" preeminente à matéria, o princípio de individuação da coisa (Stein, 2006, p. 408).
Ao que parece, a filosofia de Edith Stein sempre estará a pagar os maiores tributos para a originariedade metafísica da essencialidade. Dessa maneira, a afinidade metafísica maior da autora se dá, em última instância, com algumas tradições filosóficas essencialistas, entre as quais a escola de Duns Escoto.
Além do prefácio de Ser Finito e Ser Eterno onde Edith Stein se coloca no caminho de Platão, Agostinho de Duns Escoto, no último capítulo daquela obra, onde ela reflete sobre o sentido e a fundamentação do ser individual, a autora também assume concordância com Duns Escoto no que se refere à concessão de princípio de individuação à forma. Ela diz que se o entende corretamente, Duns Escoto faz o mesmo que ela ao conceber o principium individuationis como positivamente um ente ou um algo cuja universalidade existe na coisa individual (Stein, 2006, p. 408-409).
Inicialmente, parece difícil qualquer tentativa de aproximação da preocupação constitutiva de Edith Stein com as preocupações constitutivas dos autores medievais; afinal, a preocupação com problemas de constituição na filosofia medieval se dava na chave realista das disputas acerca do principium individuationis, em que se buscava investigar os elementos constitutivos e fundacionais da realidade individual. Porém, a solução de Duns Escoto para o problema da individuação representa, segundo Francesco Alfieri, em sua obra sobre a apropriação de Duns Escoto no pensamento de Edith Stein, justamente uma "virada transcendental (Alfieri, 2015, p. 70)", em que a fundamentação das singularidades, ou seja, destas unidades últimas da realidade, se explica por uma "entidade" que não é uma res, justamente por ela ser prioritária a qualquer res:
(...) para Escoto, o princípio de inviduação não é uma coisa (res) que é adicionada à natureza comum de fora, tornando-a assim individual, mas é algo (uma entitas) interno, na base da natureza mesma do ser. Essa foi uma nova maneira de conceber o ser que estava além das categorias aristotélicas conforme elas haviam sido tradicionalmente compreendidas (Alfieri, 2015, p.65).
O princípio de individuação para Duns Escoto é uma entidade positiva, mas que não tem estatuto de coisa. Trata-se da ultima realitas entis, que "contrai" a species (natureza comum) para a sua singularidade concreta. Escoto faz, portanto, uma distinção formal (e não real) entre a ultima realitas entis e a species, e parece que essa diferenciação que se opera no domínio do ser da essência (esse essentiae) e não do ser da existência (esse existentiae), para nos reportarmos à dicotomia ontológica de Henrique de Gand que foi historicamente apropriada por Escoto, além de conceder preeminência metafísica para a essência em relação à realidade (uma tese da preferência de Edith Stein), também aponta para sutilezas distintivas no esse essentiae que Edith Stein também promove ao diferenciar "essencialidade" de "essência" de maneira a conceder, como Escoto, papel quiditativo, constitutivo e diretor para a essência.
Considerações Finais
Mesmo nos momentos de distanciamento crítico, Edith Stein sempre se manteve próxima à fenomenologia husserliana. Para a autora, o procedimento fenomenológico se caracteriza a partir de uma "limpidez metodológica como jamais havia sido vista anteriormente (Stein, 2005, p.81). A autora sempre se comprometeu metodologicamente com o metodológico com o transcendentalismo constitutivo que, em nossa leitura, fez com que ela desenvolvesse, em suas investigações sobre o sentido do ser, uma metafísica "essencialista" em que o princípio explicativo da constituição da realidade enquanto tal se diferencia de uma abordagem realista, como aquela que muitos sugerem ser o caso em Aristóteles ou em Tomás de Aquino. Dessa maneira, conforme as próprias palavras da autora no prefácio de Endliches und Ewigs Sein, ela se distancia do caminho de Tomás de Aquino, optando pelas sendas de Platão (ao que parece, na medida em que a doutrina das ideias não seja compreendida de acordo com os desdobramentos da interpretação clássica de Aristóteles, que concede existência ou realidade à ideia) e de Duns Escoto (cujo princípio de explicação da realidade, composta de indivíduos, remete a uma entidade que não é uma res).
Parece que a fenomenologia, ao ser considerada metafisicamente, nos faz vislumbrar a possibilidade de interpretações esclarecedoras daquilo que seria o sentido original de diversas tradições filosóficas que não operam com parâmetros conceituais realistas. Nesse sentido, Platão parece ser menos esotérico e Duns Escoto parece ser menos obscuro. Além do mais, em Edith Stein, abre-se a possibilidade de que a própria fenomenologia se torne metafisicamente esclarecida em seu domínio subjetivo originário. A concepção própria de Edith Stein sobre o sentido do ser, em que o domínio transcendental da essencialidade constitutiva é preeminente em relação à realidade, justifica o sentido da atitude fenomenológica, em que a tomada radical de consciência de si próprio coincide com a abertura investigativa do domínio não substancial do eu puro.
Enfim, concordemos ou não com os posicionamentos metafísicos da autora, a clareza fenomenológica que ela se utiliza para abordar conceitos metafísicos clássicos oferece ao pesquisador uma ampla fonte de investigação a ser apresentada e discutida tanto nos círculos de pesquisa metafísica, quanto nos círculos de pesquisa em fenomenologia.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 23.01.2018
Aceito em 02.08.2018
1 O pesquisador português Mário Santiago de Carvalho, na obra A novidade do Mundo: Henrique de Gand e a Metafísica da Temporalidade no Século XIII, defende a tese que Henrique de Gand, ao analisar o modo como Deus conhece a Si, introduziu um contributo teórico pessoal tanto à epistemologia quanto à metafísica. Quando Deus conhece a Si mesmo, Ele conhece tudo o que pode chegar a ser, pois é o princípio constitutivo de tudo. Dessa maneira, Deus conhece a sua essência não apenas na identidade, mas também na diferença. O conhecimento da criatura por Deus é, pois, conhecimento da diferença. Por sua vez, no plano da diferença, acriatura mesma se distingue como "coisa" criada por Deus e como "imagem" de Deus (ou seja, a criatura imita a essência de Deus). A"imagem" da criatura tem consistência ontológica, ou seja, um esse essentiae, que se distingue da consistência ontológica de seu ser uma coisa (esse existentiae). O ser da criatura que se modela a partirdas ideias de Deus é o ser da essência, enquanto o esse existentiae é a dimensão que compreende a realidade, constituída por unissingulares efetivamente existentes e em devir. Trata-se, para Carvalho, de uma tentativa de sublinhar duas espécies de relações a Deus: na ordem da exemplaridade (esse essentiae, objeto da referência à inteligência divina) e na ordem da eficiência (esse existentiae, ser que depende da intervenção da vontade de Deus). De qualquer maneira, a diferença entre esse essentiae e esse existentiae é uma diferença de intenção, uma vez que não há dualidade no seio do ser criado. Porém, apesar da indiferença real entre essência e existência, um talsistema metafísico enfatiza a preeminência ontológica das essências, uma vez que os seres que existem, existem de um modo mais ou menos autêntico, isto é, realizam a sua "essência" de maneira mais ou menos perfeita (Carvalho, p. 264-279).
2 Sugiro a seguinte tradução: "Chamamos a quididade como criada: pois antes de possuir ser, ela é apenas no intelecto divino e não é nada fora dele; e ela está no intelecto do criador não enquanto criatura, mas enquanto essência criativa".