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Revista da Abordagem Gestáltica
Print version ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.spe Goiânia Dec. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24ne.10
TEXTOS CLÁSSICOS
Livro da unidade (de unitate)1
Dominicus Gundisalvi; Tradução: Marcos Aurélio FernandesI
IUniversidade Brasília
A unidade é aquilo a partir de que uma coisa, qualquer que seja, é dita ser uma. De fato, quer seja simples ou composta, espiritual ou corpórea: a coisa é uma pela unidade; e não pode ser uma a não ser pela unidade, como uma coisa não pode ser branca a não ser pela brancura, e não pode ser de certo número ou grandeza a não ser pela quantidade. Não só, porém, a coisa é uma pela unidade, mas também, o que quer que seja, o que ela é, é por tanto tempo quanto for em si unidade. Quando, porém, deixa de ser um, deixa de ser aquilo que é. Donde segue: o que quer que é, é por esta razão, a saber, porque é um - Isso assim se mostra:
Com efeito, todo ser é a partir da forma, a saber, nas coisas criadas. Mas nenhum ser é a partir da forma, a não ser que a forma esteja unida à matéria. Ser, portanto, é somente a partir da conjunção de forma com matéria. Daí que os filósofos descrevem isso dizendo: ser é existência da forma com a matéria. Como, porém, a forma está unida à matéria, é necessário que algo seja constituído como um a partir da conjunção de ambas. Nessa constituição aquele uno não permanece, a não ser enquanto a unidade mantenha a forma com a matéria. Portanto, a destruição da coisa não é outra coisa que a separação da forma em relação à matéria. Mas separação e união são coisas contrárias. Portanto, se a partir da separação a coisa é destruída, certamente não é conservada em seu ser exceto pela união. A união, porém, não se faz, salvo pela unidade. É que quando tal forma é separada da matéria em relação à qual estava unida, a união, pela qual tal coisa era algo uno, se dissolve. Dissolvida, pois, a união, se destrói a essência da coisa, que surgiu pela união de ambas; pelo que se faz o não uno. Por conseguinte, assim como a unidade conduz a coisa ao ser, do mesmo modo a unidade custodia a coisa naquele ser. Donde se conclui que ser e uno são inseparavelmente concomitantes um com o outro e parecem ser de natureza semelhante.
De fato, porque o criador é verdadeiramente uno, por isso deu às coisas, que ele criou neste número, que cada uma delas tivesse o ser uma. E por causa disso, porque a partir do que a coisa tem ser, ela é uma: por isso o movimento de todas as substâncias é para um e por causa de um; e nenhuma daquelas coisas que são apetece ser muitas, mas todas as coisas, assim como apetecem ser, assim também apetecem ser um. Porque, porém, todas as coisas apetecem naturalmente ser, e não podem ter ser a não ser que sejam um, logo todas as coisas tendem ao um. A unidade é, pois, aquilo que une todas as coisas e mantém tudo difuso em todas as coisas que são.
Por conseguinte, porque a matéria não tem ser a não ser pela união de si com a forma, a forma, porém, não se mantém unida com a matéria a não ser pela unidade: em razão disso a matéria carece de unidade para unir-se e para acolher o ser. A matéria, com efeito, é contrária à unidade, porque a matéria se desfaz e por sua natureza tem o ser multiplicada, o ser dividida e o ser dispersa, enquanto que a unidade, em contrapartida, retém, une e reúne. Segundo isso, para que a matéria não se divida e não se disperse, é necessário que ela seja mantida pela unidade. O que quer, porém, que carece de outro para unir-se, não se une por si. Portanto, a matéria não se une por si. Aquilo, pois, que por si não se une, por si em todo o caso se dispersa, porque toda coisa, que faz alguma coisa contrária ao agente, faz alguma coisa contrária à coisa feita; pois os efeitos dos contrários são contrários. Por conseguinte, porque a unidade faz o um, certamente a matéria faz a divisão. Em razão disso, a unidade por si retém a matéria. Mas, aquilo que por si retém, não pode fazer a separação. A forma, portanto, existente na matéria, que perfaz e custodia a essência de cada coisa, é unidade descendente da unidade primeira, que a criou.
A primeira e verdadeira unidade, pois, que é unidade para si mesma, criou outra unidade, que fosse sob ela. Mas porque todo criado é de todo diverso daquilo pelo qual foi criado, certamente a unidade criada deveu ser inteiramente diversa da unidade criadora e como que oposta. Mas porque a unidade criadora não tem princípio nem fim nem mudança nem diversidade, por isso à unidade criada sobrevém multiplicidade e diversidade e mutabilidade; de tal modo que em certa matéria seja tendo princípio e fim; em certa matéria, porém, tendo princípio mas não fim, porque em algumas está sujeita a mudança e corrupção, em algumas está sujeita a mudança mas não a corrupção. Em algumas coisas, com efeito, a matéria é sutil, simples, distante da contrariedade e da separação; a unidade a prepara e se une com ela, de modo que esta e aquela sejam um, indivisível em ato: como nas coisas celestes, nas quais a unidade é inseparável da matéria; e, portanto, carecem de fim, porque são perpétuas. Naquelas coisas, porém, em que a matéria seria espessa, débil, a unidade não se adequa a ela, mas é debilitada em unindo e mantendo a essência delas, e, por causa disso, a essência delas se dissolve, porque não são retidas pela unidade; como acontece nas coisas geradas, que têm princípio e fim. Quanto mais, pois, uma unidade, qualquer que seja, for mais próxima da primeira e verdadeira unidade, tanto mais a matéria formada por ela será una e mais simples; e, ao contrário, quanto mais remota for da unidade primeira, tanto mais será múltipla e composta.
E devido a isto, a unidade, que conduz ao ser a matéria da inteligência, é mais una e simples, não multíplice nem divisível essencialmente; mas se é divisível, é, por essa razão, acidentalmente; e, por isso, esta unidade é mais simples e mais una do que todas as unidades, que levam ao ser outras substâncias, enquanto imediatamente conectada à primeira unidade, que a criou. Mas porque a unidade subsistente na matéria da inteligência é unidade da simplicidade, por conseguinte, necessariamente, a unidade subsistente na matéria da alma, porque é sob ela, cresce e se multiplica e lhe sobrevém mudança e diversidade, e assim, paulatinamente, descendo do superior por cada grau da matéria, a unidade aumenta e se multiplica, até que chegue à matéria, que sustenta a quantidade, a saber, a substância deste mundo. Tal substância, porque remotamente distante da unidade primeira, por isso mesmo é espessa e corpulenta e apertada e, por causa da sua espessura e grossura é oposta à substância superior, que é sutil e simples. É que aquela está sujeita ao princípio e ao início da unidade, esta, porém, está sujeita ao fim e à extremidade da unidade. O fim, com efeito, dista muito do princípio, porque não é chamado fim a não ser por defeito e término da virtude. Portanto, secundo o descenso da unidade superior à inferior faz-se a degeneração da sua simplicidade e a diminuição da sua virtude, de modo semelhante à água, que, na sua fonte nasce sutil e clara, mas paulatinamente defluindo para baixo, em lagoas e pântanos se torna espessa e obscura. Assim, paulatinamente a unidade varia por causa da matéria, que a sustenta. Com efeito, porque algo da matéria é espiritual e algo dela é corporal, algo dela é puro e luzidio e algo dela é espesso e obscuro, e isso, por causa da quantidade, cujas partes em algumas coisas são mais rarefeitas, como no ar, em algumas coisas, porém, são mais compactas, como na pedra. Por esta razão cada parte de matéria segundo o grau de sua lonjura em relação à primeira unidade originariamente recebe a unidade, que lhe é mais digna a partir da sua aptidão. Isto explica o fato de que vemos as partes do fogo bastante unidas e simples e iguais, de tal modo que a sua forma parece ser una, não tendo em si diversidade; as partes, porém, do ar e da água nós as achamos mais diversas e separadas, de tal modo que as suas partes e unidades podem ser discernidas; nas unidades duras, porém, e espessas já é maior a diversidade e a obscuridade.
Porque a matéria nas coisas supremas é formada pela forma da inteligência, depois, pela forma da alma racional, depois, porém, pela forma da alma sensível, depois, nas coisas inferiores, pela forma da alma vegetal, depois, pela forma da natureza, por último, porém, nas coisas ínfimas, pela forma do corpo: isso não acontece a partir da diversidade da virtude do agente, mas a partir da aptidão da matéria do acolhedor. A forma, com efeito, é tal qual o lume, pelo fato de que assim como pelo lume a coisa é vista, assim pela forma se tem o conhecimento e a ciência da coisa, não pela matéria; mas este lume em algumas coisas é mais claro, em algumas, porém, mais obscuro, à medida que a matéria, na qual é infundido, for mais clara ou mais obscura. De fato, em razão disso, se a matéria for mais sublime, se faz mais sutil e é penetrada toda pelo lume; e, por conseguinte, a substância mesma se faz mais sapiente e mais perfeita, como se dá com a inteligência e com a alma racional. E, ao contrário, pela mesma razão, se a matéria for inferior, se faz mais espessa e mais obscura e não é assim toda penetrada pelo lume; quanto mais, de fato, a matéria desce, como já foi dito, mais é constringida, mais se torna espessa e corpulenta, e as suas partes medias impedem às últimas serem penetradas perfeitamente pelo lume. Não é possível, com efeito, que uma quantidade de lume penetre a segunda parte tanto quanto a primeira, nem que chegue uma quantidade de lume à terceira parte, tanto quanto chega à parte média; e assim paulatinamente, até que chegue à parte ínfima de matéria. Tal parte, porque está sumamente distante da fonte luminosa, nela se debilita o lume. Entretanto, não é assim que isso se faz por causa do lume em si, mas por causa da muita densidade e da obscuridade da matéria em si. Assim, de certo modo, o lume do sol, quando é misturado com o tenebroso ar, não é em virtude daquele, que está misturado ao ar claro; ou, de certo modo, o pano branco bem estendido, quando é vestido por um corpo preto, tem ocultado seu candor por causa da abundância da cor preta; ou, de certo modo, se três ou mais janelas de vidro são dispostas retamente em ordem uma após a outra contra o raio do sol, é evidente que a segunda recebe menos lume que a primeira, e a terceira menos que a segunda, e assim até que à última falte lume, não por causa do lume em si, mas por causa do distanciamento das janelas de vidro em relação ao lume: do mesmo modo, o lume da forma da unidade, que é infundido na matéria, descendo, se faz débil e obscuro, de tal modo que o primeiro destoa muito do que está no meio e o que está no meio destoa muito do último.
E por causa desta diversidade de forma da unidade se diz que algo é um pela unidade, não de modo único, mas de muitos modos. Com efeito, uma coisa é ser um pela simplicidade da essência, como Deus. Outra coisa, ser um pela conjunção dos simples, como o anjo e a alma, cada um dos quais é um pela conjunção de matéria e forma. Outra coisa, é ser um pela continuidade, como a árvore e a pedra. Outra coisa é ser um pela composição, como de muitas tábuas se faz uma arca ou de muitas paredes se faz uma casa. Outras coisas são ditas um por agregação, como povo e grei, um amontoado de pedras ou um monte de trigo. Outras coisas são ditas um por proporção, como o dirigente do navio e o governador da cidade são ditos um pela semelhança do ofício. Outras são ditas um por acidente, à medida que diversos sujeitos de mesma qualidade são ditos em virtude desta, como a neve e o cisne são um na brancura. Outros são ditos um pelo número, enquanto diversos acidentes, que inerem ao mesmo sujeito, são ditos um pelo número, ou seja, em numerando, como este doce e este azul ou este cumprimento e esta largura. Outras coisas são ditas um por razão, mas isto de dois modos, porque ou se diz um por razão de comunhão, como o conceito e a coisa e o vocábulo são ditos um gênero, ou por razão de um sacramento, como espírito, água e sangue são ditos um (1 Jo 5, 8). Outros são ditos um por natureza, como por participação da espécie muitos homens são ditos um. Outras coisas são ditas um por nascimento ou por língua, como muitos homens são ditos uma estirpe ou uma tribo. Outras coisas são ditas um por costume, mas isso de dois modos, porque ou é dito um segundo o consenso da virtude e da dileção como: a multidão dos crentes eram um coração e uma alma (At 4, 32), ou segundo o consenso dos mesmos vícios muitos homens são ditos um, como: quem adere a uma meretriz, se faz um só corpo com ela (1 Cor. 6, 16).
Assim, todas as coisas apetecem a unidade, de tal modo que também aquelas coisas que são muitas querem ser chamadas de um. De fato, quaisquer que sejam as coisas, ou se esforçam por ser isso que são em virtude de verdadeira unidade, ou, pelo menos, se esforçam por ser simulando unidade. O que quer que seja, com efeito, é ou um ou muitos. A pluralidade, porém, não é a não ser a partir da agregação das unidades. Tais unidades, se são desagregadas, fazem a multidão, se, porém, forem contínuas na matéria, fazem a magnitude. Pelo que, entre as unidades de quantidade discreta e as unidades de quantidade contínua subsistente na matéria nada se interpõe, exceto que aquelas são desagregadas, estas são, porém, contínuas. Portanto, o contínuo não é, a não ser a partir do dividido, porque o sentido comprensível de continuidade não está no contínuo a não ser pela continuação dos separados. E, portanto, é necessário que a quantidade contínua não advenha na substância a não ser a partir da unidade. Pois qualquer que seja a parte de quantidade que tu assinalares, é necessário que seja um ou muitos. Mas toda pluralidade, como foi dito, é a partir da unidade. Por conseguinte, dá-se a compreender abertamente que a raiz da quantidade discreta e da contínua é uma, uma vez que as coisas compostas são a partir de uma coisa e são redutíveis a um; e também porque as partes do corpo, que forem maiormente unidas entre si e apertadas, o corpo mesmo será de maior espessura e de maior quantidade, como a pedra, e, vice versa, quanto mais as partes do corpo forem dissolvidas e rarefeitas, o corpo mesmo será tanto mais sutil e leve e de menor quantidade, como o ar. Verdadeiro é, portanto, que a quantidade contínua não vem à substância a não ser a partir da conjunção e confluência das unidades nela.
A unidade, portanto, é aquilo pelo que uma coisa qualquer é uma e é aquela coisa que ela é.
Recebido em 26.07.2018
Aceito em 30.08.2017
Nota Biográfica: Dominicus Gundisalvi ou Domingo Gundissalvo (c.1105/1110-c.1181), Arcebispo de Segóvia, Filósofo e Tradutor do séc. XII, desenvolveu suas atividades em Toledo, na Espanha. Traduziu cerca de vinte obras do árabe para o latim, de Avicebron, Avicena e Al-Ghazâli.
1 Tradução: Marcos Aurélio Fernandes. O "Livro Da Unidade" é um opúsculo de Dominicus Gundisalvi (Domingos Gundissalino ou Gundissalvo ou, ainda, Domingo Gonzalez), autor do século XII, que fora também tradutor da escola de Toledo e arcebispo de Segóvia. Aqui apresentamos uma tradução do texto publicado em 1891 em Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters (Contribuições para a história da filosofia da idade média) - Band 1,1: Dominicus Gundissalinus: Die dem Boethius fälschlich zugeschriebene Abhandlung des Dominicus Gundisalvi De unitate. Hrsg.und philosophiegeschichtlich behandelt von Paul Correns. Münster 1891. Acessos pela internet: http://www.archive.org/details/diedemboethiusf00corrgoog/ https://books.google.com/books?id=48ALAAAAIAAJ https://books.google.com/books?id=y64QAAAAYAAJ http://www.freidok.uni-freiburg.de/volltexte/6610/