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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.2 Goiânia May/Aug. 2019

 

EDITORIAL

 

Editorial - dossier Renaud Barbaras

 

 

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva

Editor do Dossiê

 

 

O presente número da Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica, tem a satisfação de trazer a público um Dossiê Especial sobre Renaud Barbaras no sentido de prestar homenagem à obra desse insigne pensador francês. Trata-se, a bem da verdade, de uma obra cuja experiência de pensamento tem decisivamente impactado, nos últimos tempos, não só as pesquisas fenomenológicas stricto sensu, mas igualmente um circuito mais amplo de debate, transdisciplinar por definição, em meio à seara das ciências humanas e das artes em geral. Um importante reflexo disso é a amostra viva que essa edição emplaca de maneira viçosa, em particular, no Brasil, ao reunir pesquisadores de diferentes instituições. Afinal, Renaud Barbaras é alguém que além de uma produtiva interlocução intelectual, sempre manifestou uma generosa cooperação acadêmica com inúmeros estudiosos de língua portuguesa cujas pesquisas foram seminalmente inspiradas por suas reflexões. Nessa direção, os 11 textos aqui reunidos testemunham, com afinco, tal reconhecimento como uma modesta forma de se prestar tributo ao epicentro fenomenológico de sua larga produção em curso.

É tendo em vista esse escopo geral, que o Dossiê é então aberto com o texto do próprio homenageado, intitulado O pertencimento, em direção a uma fenomenologia da carne, Renaud Barbaras busca, fenomenologicamente, descrever o legítimo sentido e alcance ontológico da experiência do corpo ou da carne, sentido esse que escapara, inclusive, a Merleau-Ponty. Para tanto, Barbaras se pergunta se esse sentido do ser do corpo, antes que uma eufórica solução, não apontaria um problema mal colocado no intuito de dar conta de seu próprio modo de existir. Ora, advoga ele, essa experiência fundamental é a do pertencimento: ter um corpo significa exatamente pertencer ao mundo. A tarefa que aqui se coloca é a de uma fenomenologia do pertencimento da qual só há aparição do mundo a partir de dentro dele. Tal é o verdadeiro sentido de ser da carne: ela não é corpo nem consciência, mas uma posse (perceptiva) do mundo que é a contrapartida de uma desaposse (carnal) por esse mundo. Já no segundo artigo, O enigma da pertença ao que escapa: sobre o a priori da correlação fenomenológica em R. Barbaras, Luís António Umbelino reconhece na obra barbarasiana possibilidades teóricas de um projeto filosófico inovador. A originalidade deste projeto encontra uma primeira sedimentação em Introduction à une philosophie de la vie, texto no qual o filósofo retoma e aprofunda um princípio corolário, o do "a priori da correlação fenomenológica" como vida. Trata-se de compreender a essência mesma do viver, ou seja, da vida enquanto comporta a possibilidade da consciência caracterizando-se fundamentalmente como Desejo. É a partir do Desejo que fenomenologicamente reconhecemos um campo transcendental por excelência para além de todo dualismo entre consciência e mundo. No terceiro artigo, Aproximações ao problema fenomenológico e metafísico do sentimento em Renaud Barbaras, José Manuel Beato observa que, com Métaphysique du sentiment, de 2016, Barbaras propõe uma teoria do sentimento singular e radical que, ao mesmo tempo, constitui uma nova etapa na prossecução, ampliação e aprofundamento da sua "fenomenologia da vida". Reconhecendo a sua dívida para com Mikel Dufrenne, tal elaboração teórica afirma, porém, a sua originalidade por meio de um diálogo crítico com os fenomenólogos que problematizaram a sensibilidade e a afetividade. Aquém e além do plano subjetivista dos afetos e emoções, aos olhos de Barbaras, o sentimento consiste na experiência arquiafetiva de abertura à profundidade do mundo. O sentimento é aquilo que se situa e se articula no contexto da teoria do "desejo transcendental", entendido como avanço fenomenalizante do sujeito. No quarto artigo, Em torno da noção de antropologia privativa, de Renaud Barbaras, Reinaldo Furlan destaca a originalidade da filosofia da vida de Barbaras, a partir da apresentação e discussão de sua noção de antropologia privativa. Esse alcance teórico constitui, por assim dizer, o marco decisivo do que viria a ser seu pensamento filosófico, que se completaria com uma cosmologia e uma metafísica. Furlan também situa o ponto de eventual tensão com uma perspectiva fenomenológica, encerrando com uma questão sobre a concepção barbarasiana geral de vida. No quinto texto, Intencionalidade: Merleau-Ponty e Barbaras, Mariana Cabral Tomzhinsky Scarpa intenciona abordar as filosofias de Merleau-Ponty e de Barbaras explorando alguns elementos básicos da noção de intencionalidade bem como suas implicações no pensamento de ambos os filósofos. Retomando, brevemente, a noção de intencionalidade em Husserl, a autora passa à apropriação feita por Merleau-Ponty em seus textos iniciais, a fim de descrever o modo como a intencionalidade aparece ligada ao movimento do corpo próprio no mundo. Na sequência, ela, então, retoma alguns textos barbarasianos que ampliam os sentidos do a priori correlacional apontando para os limites abertos por uma fenomenologia da vida. O artigo sexto, Sartre por Barbaras: movimentos de uma leitura crítica, Fernanda Alt se detém em alguns aspectos que perfilam a crítica barbarasiana de Sartre. Nessa direção, a autora reconstitui como fio condutor a retomada que Barbaras empreende acerca do dualismo de base da filosofia sartriana, em continuidade com a crítica de Merleau-Ponty, visando, é claro, abrir outras perspectivas reflexivas. Entre alguns dos temas sartrianos arrolados que comporão esse colóquio figuram a questão do outro e do desejo. O texto sétimo intitulado Desejo e negação - a falta situada no coração do ser (uma homenagem a Barbaras), Luciano Donizetti da Silva retoma o problema sartriano do desejo e sua relação com a negação. Trata-se de pensar o fenômeno da falta situada no coração do ser. É, portanto, no contexto desse tema que nasce a questão de fundo posta por Barbaras: "Como pode haver desejo, se o desejado não pode ser de alguma maneira?". Luciano Donizetti então discute que, para além de certo realismo ingênuo sartriano, há uma diferença entre uma ontologia fenomenológica não idealista e a ingenuidade realista pela qual insiste-se em ler a ontologia de O ser e o nada. Assim, ao invés da identificação entre desejo e falta, a ontologia de Sartre é - sem mais - ontologia da negatividade: Ser e Nada referem-se ao ser categorial, ser-para-si e ser-em-si são existentes - fenômenos enfim -, mas não no sentido puritanamente fenomenológico. O oitavo artigo, Sobre a interpolação interioridade e exterioridade: a crítica de Barbaras à fenomenologia da vida de Hans Jonas, Jelson R. de Oliveira restitui as bases da crítica de Barbaras à fenomenologia da vida de Hans Jonas tal como essas se apresentam na sua obra Introduction à une phénoménologie de la vie. Para tanto, cumpre levantar, entre outros argumentos, o proble ma da interpolação entre a interioridade e a exterioridade, o que teria permanecido como um problema não solucionado na tese de Jonas. Isso o levaria à impossibilidade de sua fenomenologia da vida, stricto sensu. Oliveira então procura avaliar, contudo, a possível resposta de Hans Jonas por meio do conceito de "vida expressiva", que indica a insistência na relação e na inter-compreensão como fenômeno mais originário da vida. O nono artigo, Sobre ética, Merleau-Ponty e fenomenologia: ecos de um diálogo com Renaud Barbaras, Vânia Vicente retoma um diálogo com Barbaras em que versam sobre o projeto de investigação em torno de uma ética, via o pensamento de Merleau-Ponty. Sob esse prisma, ora perscrutando as dificuldades para se pensar uma ética desde uma filosofia cujo solo é fenomenológico e, portanto, descritivo, opondo-se à perspectiva propriamente prescritiva da ética, a autora demarca, ao longo do texto, três traços que dão o tom desse contorno: (i) as aproximações e dissonâncias entre ética e fenomenologia, (ii) a ética que deriva daí - ou pelo menos alguns dos seus traços e (iii) o fluxo de uma amizade - no sentido dos antigos - vivida no debate destas questões. O décimo artigo, As experiências poético-filosóficas de Fernando Pessoa e a não-filosofia de Alberto Caeiro, Gisele Batista Candido explora, via os poemas de Caeiro, um profundo eco fenomenológico. Essa ressonância toma corpo a partir da maneira como Renaud Barbaras reconstitui a poesia de Fernando Pessoa como expressão de uma "não-filosofia" capaz de, por assim dizer, configurar uma perspectiva radical sobre o pensamento e a existência. O Dossiê fecha com o texto - O elogio do poético em Renaud Barbaras - em que Claudinei Aparecido de Freitas da Silva ensaia um balanço fenomenológico acerca do estatuto do poético sob as lentes de Barbaras. Tal como o texto anterior, o artigo examina a crítica de fundo pela qual o filósofo francês, tomando como linha de frente os trabalhos de Merleau-Ponty, vislumbra outro horizonte possível para além da habitual divisão entre filosofia e literatura. Claudinei Silva então mostra que esse horizonte, uma vez perpassado pela obra poética de Fernando Pessoa que reúne poesia e metafísica, também pode ser entrevisto em outros escritores como Clarice Lispector e no ensaísmo poético-filosófico de Bento Prado Jr.

Enfim, por meio desse lançamento editorial, o leitor de língua portuguesa tem acesso, em primeira mão, a mais um pujante trabalho em torno da obra fecunda de Renaud Barbaras no âmbito dos recentes estudos fenomenológicos. Esse projeto busca, à medida do possível, retribuir a atenção devida a um autor que sempre devotara, especialmente na cultura brasileira, o mais alto apreço e colóquio.

Ao leitor, portanto, uma profícua e prazerosa incursão!

 

 

(Este número foi finalizado em março de 2019)

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