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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.27 no.1 Goiânia Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.18065/2021v27n1.8 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

As aproximações teórico-práticas entre a gestalt-terapia e a comunicação não-violenta

 

The theoretical and practical approaches between gestalt therapy and nonviolent communication

 

Los enfoques teóricos y prácticos entre la terapia gestalt y la comunicación no violenta

 

 

Jusedna SpindolaI; Karol MaesII; Luiz Gustavo Santos TessaroIII

IGestalt-terapeuta pela Comunidade Gestáltica, Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Barriga Verde UNIBAVE. Facilitadora de Workshops com ênfase GT e Comunicação Não-Violenta. Atua como Psicóloga Clínica/Psicoterapeuta. Email: jusednaspindola@gmail.com
IIGraduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Faz parte da equipe docente do Comunidade Gestáltica. E-mail: karolmaes.psico@gmail.com
IIIMestre em Psicologia pela UNISINOS. Gestalt-terapeuta pela Comunidade Gestáltica. Pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Metodista IPA. Assessor do Observatório Juventudes (PUCRS/Rede Marista). E-mail: tessaro.luiz@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo pretende investigar as aproximações teórico-práticas da Gestalt-terapia (GT) e da Comunicação Não-Violenta (CNV) com o intuito de sustentar teoricamente possíveis práticas psicológicas que desejam utilizá-las simultaneamente. As investigações se iniciaram a partir das histórias de ambas e dos seus respectivos fundadores. Através da análise histórica, percebe-se a influência da Abordagem Centrada na Pessoa, nas aproximações entre GT e CNV. Seguidamente, as investigações se dão pelas bases epistemológicas, abordando a Fenomenologia, os pressupostos existenciais e a Psicologia Humanista. Por fim, dialoga-se sobre os principais conceitos e como eles se aproximam. Referentemente à GT, aborda-se o conceito de Ajustamento Criativo e suas formas confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo; e, referentemente à CNV, abordam-se os componentes observação, sentimento, necessidade e pedido. Por fim, o jogo Grok é citado como uma forma prática de aproximação. Ante tais aproximações, torna-se evidente que a GT e a CNV valorizam as potencialidades do indivíduo e acreditam na indissociabilidade dele com o meio. A partir dessa visão, ambas defendem a importância da conscientização do ser humano perante os sentimentos e as necessidades que surgem em si e ao seu redor, no intuito de promover uma sociedade mais empática e, por conseguinte, menos violenta.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Comunicação Não-Violenta; Psicologia


ABSTRACT

This article aims to investigate the theoretical-practical approaches of Gestalt-therapy (GT) and Nonviolent Communication (NC) in order to theoretically support possible psychological practices to use them simultaneously. The investigations started from the history of both and their respective founders. Through historical analysis, the influence of the Person-Centered Approach in the dialogues between GT and NC is perceived. Then, the investigations take place on an epistemological basis, addressing Phenomenology, existential assumptions and Humanistic Psychology. Finally, we discuss the main concepts and how they come together. Regarding the GT, the concept of Creative Adjustment and its forms of confluence, introjection, projection, retroflection and egotism are approached; and, regarding NC, the components of observation, feeling, need and request are addressed. Finally, the Grok game is cited as a practical approach. In view of such approaches, it is evident that the GT and the NC value the individual's potential and believe in his inseparability with the environment. From this point of view, both defend the importance of the human being's awareness of the feelings and needs that arise in and around him, in order to promote a more empathic and, therefore, less violent society.

Keywords: Gestalt Therapy; Nonviolent Communication; Psychology


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo investigar los enfoques teóricos y prácticos de la Terapia Gestalt (TG) y la Comunicación No Violenta (CNV) con el fin de respaldar teóricamente las posibles prácticas psicológicas que desean utilizarlas simultáneamente. Las investigaciones comenzaron a partir de las historias de ambos y sus respectivos fundadores. A través del análisis histórico, se percibe la influencia del Enfoque Centrado en la Persona en las aproximaciones entre TG y CNV. Así, las investigaciones tienen lugar sobre una base epistemológica, abordando la fenomenología, los supuestos existenciales y la psicología humanista. Finalmente, discutimos los conceptos principales y cómo se acercan. Con respecto al TG, se aborda el concepto de Ajuste Creativo y sus formas de confluencia, introyección, proyección, retroflexión y egotismo; y, refiriéndose a la CNV, se abordan los componentes de observación, sentimiento, necesidad y solicitud. Finalmente, el juego de Grok se cita como un enfoque práctico. En vista de tales enfoques, es evidente que el GT y la CNV valoran el potencial del individuo y creen en su inseparabilidad con el medio ambiente. Desde este punto de vista, ambos defienden la importancia de la conciencia humana de los sentimientos y necesidades que surgen en sí mismos y en torno a ellos, para promover una sociedad más empática y, por lo tanto, menos violenta.

Palabras clave: Terapia Gestalt; Comunicación No Violenta; Psicología


 

 

Introdução

Neste estudo objetiva-se investigar quais aproximações teórico-práticas existem entre o método da Comunicação Não-Violenta (CNV) e a da Abordagem da Gestalt-terapia (GT). Para tanto, busca-se uma leitura de aspectos referentes à história, à epistemologia e aos conceitos de ambas visando ao estabelecimento de diálogos possíveis. A CNV tem sido pesquisada e recomendada como ferramenta de intervenção no Brasil nos mais variados contextos. Na área da saúde, Pegoraro (2015) propôs uma intervenção com base na CNV visando ao manejo do desgaste psíquico, à melhoria do clima organizacional e da comunicação de trabalhadores da atenção básica; encontrando melhorias nesses quesitos. Santos (2018) propôs a CNV como instrumento para a promoção de uma cultura de paz nas escolas da rede estadual no Sergipe. Mussio e Serapião (2017), em relato de caso, discutiram o uso da CNV no campo do secretariado corporativo. A CNV ainda é uma das estratégias utilizadas no âmbito da Justiça Restaurativa, nos chamados círculos restaurativos de diálogo (Diogo & Ribeiro, 2016).

A GT, originalmente, surgiu como uma teoria e um método de aplicabilidade na clínica psicoterápica, desenvolvido no início da década de 50 (Perls, Hefferline & Goodman, 1997). Seu desenvolvimento, contudo, permitiu um uso para além da perspectiva clínica tradicional, surgindo o termo "abordagem gestáltica" para definir esse uso ampliado de todo o arcabouço teórico e técnico da GT (Branco & Carpes, 2017). Atualmente, segue cada vez mais consolidada por pesquisas internacionais, que demonstram sua eficácia na promoção de bem estar emocional, diminuição de sintomas de ansiedade e desesperança, bem como no tratamento de depressão, por exemplo (González-Ramírez et al., 2017, Herrera, Mstibovskyi, Roubal, & Brownell, 2018; Leung & Khor, 2017; Leung, Ki Leung, & Tuen Ng, 2013).

Diante das inegáveis contribuições da CNV e da GT, pretende-se investigar aproximações, com o intuito de sustentar teoricamente possíveis práticas psicológicas, as quais anseiam utilizá-la de forma integrada. Seja na prática psicoterápica, ou em outra prática da clínica ampliada, como workshops, trabalhos em escolas, com alunos e funcionários, em organizações, com seus colaboradores, ou em qualquer outro âmbito que se pretenda levar de forma ética, embasada e com consistência, alternativas pacíficas de diálogo e de interação entre os seus.

 

Método

Foi realizada uma revisão de literatura (Creswell, 2010) a fim de averiguar a existência de artigos, trabalhos de conclusão, dissertações ou teses que abordassem a temática da GT e CNV conjuntamente. Para tanto, utilizou-se os seguintes descritores e caractere booleano (em sua variação em inglês): "comunicação não-violenta" e "gestalt-terapia". Utilizou-se os portais de pesquisa: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS Brasil), Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES e Google Acadêmico. A pesquisa foi realizada em janeiro de 2019.

Dada a ausência de publicações sobre o tema, lançou-se mão de uma proposta de escrita teórica de caráter ensaístico (Larrosa, 2004), que pudesse se configurar como ponto de partida para futuros estudos teóricos ou empíricos. Para tanto, foi apresentado um recorte histórico da CNV e da GT com o fim de analisar os pontos em que ambas se cruzam. Acreditou-se ser necessário partir da história dos fundadores de cada uma: Marshall Rosenberg, o criador do método da CNV; e Fritz Perls e seus colaboradores, os precursores da Abordagem da GT.

Após a contextualização histórica, problematizou-se de que forma elas se aproximam epistemologicamente. Nesse ponto, supôs-se necessário trazer a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) de Carl Rogers, pois ela sustenta o método da CNV. Além da ACP, foi trazida a Psicologia Humanista, a Fenomenologia e os pressupostos existenciais, pois elas constituem as bases epistemológicas da GT (Ribeiro, 2011) e fundamentam, de igual forma, a CNV. No que diz respeito às convergências conceituais, pretendeu-se checar onde elas se aproximam no que tange aos principais conceitos. Como Rosenberg (2006) e o seu método da CNV defendem a importância da observação, do sentimento, da necessidade e do pedido para a comunicação pacífica, acreditou-se, a partir desses quatro componentes, na possibilidade de diálogo com a GT, com um dos seus conceitos denominado Ajustamento Criativo (AC) e com as formas dele: confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo.

Por fim, abordou-se a aproximação prática entre a CNV e a GT a partir do jogo de cartas chamado Grok, que ao invés de números, apresenta sentimentos e necessidades, podendo ser utilizado por psicólogos que buscam trabalhar esses temas.

 

História da Comunicação Não-Violenta (CNV) e da Gestalt-terapia

Como o objetivo deste artigo é apresentar as aproximações teórico-práticas entre a CNV e a GT, explana-se, primeiramente, neste capítulo, as suas histórias a partir de Rosenberg (2006), na primeira seção, seguido de Juliano (2004), na segunda seção.

A História da CNV

Esta seção é pautada em Rosenberg (2006) para explanar a história da CNV. Marshall Rosenberg, o criador do método da CNV, cresceu em um bairro turbulento de Detroit, Estados Unidos. Nesse meio, Rosenberg se interessou em criar alternativas pacíficas de diálogo que amenizassem o clima de violência com o qual conviveu. A CNV foi o resultado de suas próprias vivências, da sua especialização em psicologia social e de seus estudos de religião.

Em 1984, na Califórnia, o Center for Nonviolent Comunication, transformou-se em uma organização internacional sem fins lucrativos, com dezenas de pessoas certificadas para dar treinamentos em trinta países, inclusive no Brasil. O trabalho tem sido realizado com diferentes profissionais e em diferentes áreas, por exemplo, com profissionais da área da saúde, com educadores, empresários, mediadores, policiais, membros do clero, funcionários públicos, prisioneiros e guardas. O autor também introduziu programas de paz em regiões afligidas por guerras, como na Sérvia. Além disso, as técnicas da CNV estão sendo ensinadas em escolas de Israel e Iugoslávia.

No livro Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais, Rosenberg diz, nos agradecimentos, ser grato por ter podido trabalhar com o professor Carl Rogers no período em que ele pesquisava os componentes de uma relação de apoio. Segundo Rosenberg, os resultados dessa pesquisa desempenharam um papel crucial no desenvolvimento do processo de comunicação, o qual foi descrito no livro lançado em 2006. Pode-se dizer, então, que o método da CNV advindo de Rosenberg, utiliza como fundo a ACP, criada por Carl Rogers. Essa abordagem tem suas correlações com a abordagem da GT. Logo adiante, explana-se tais correlações, mas antes foi necessário contextualizar a história da GT.

A História da Gestalt-terapia

Nesta seção aborda-se a história da GT através de Juliano (2004), umas das gestalt terapeutas pioneiras no Brasil. A história da GT é construída com muitas idas e vindas. Da Alemanha, para Holanda, África do Sul e Estados Unidos, Fritz Perls e Laura Perls mudam-se fugindo do fascismo, levando em suas bagagens suas inteligências, criatividades, vigores, convergências e divergências. Além das idas e vindas, há o rompimento com a Psicanálise e, concomitantemente, a produção do livro Ego, Fome e Agressão. O ano de 1951, com o livro Gestalt Therapy, produzido por Perls, Hefferline e Goodman (1997), é considerado o nascimento da GT. Há controvérsias se Fritz Perls fundou a GT sozinho ou se junto a ele também estavam o grupo dos sete, composto por ele, sua esposa Laura Perls, Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Eliot Shapiro e Sylvester Eastman.

A partir de 1951, a GT passou a percorrer caminhos diferentes. Por um lado, Fritz Perls indo a Califórnia, com sua prática em vigor, e Laura Perls em Nova York com suas reflexões como figura. Com o passar dos anos, a primeira geração de gestalt terapeutas elabora outra perspectiva, que busca um acordo entre as duas outras vertentes, dentre os criadores dessa junção estão os Polsters, Zinker e Nevis. Os Polsters mudaram-se para San Diego, na Califórnia, e, assim, surgiram mais dois grupos importantes para a GT: o de Los Angeles e o de São Francisco, que influenciaram diretamente no Brasil.

Paralelamente a esse contexto, nos anos 60, no Brasil, houve uma profunda influência pelas ideias de Carl Rogers, um homem que falava na primeira pessoa do singular e privilegiava o vivido. Também chegavam dos movimentos europeus ideias libertárias. A partir de 1970, em plena vigência da eclosão da ditadura militar e dos movimentos estudantis no mundo todo e aqui no Brasil, Thérèse Tellegen e Jean Clark Juliano estavam tomadas pelo "espírito da época" e a preocupação delas era direcionada a problemas de comunicação na interação entre as pessoas.

Dentre as suas atuações, estava a de Juliano na Santa Casa, uma de suas atribuições era através de trabalhos grupais. Ia às enfermarias com professores e alunos; intermediava a comunicação entre eles e com os pacientes. O treinamento da relação médico-paciente e professor-aluno era feito ao vivo e in loco. Esse trabalho foi muito bem sucedido e começou a ser solicitado por diferentes clínicas. A partir de então, por volta de 1972, o início do movimento Gestáltico se dá no Brasil. Em 1981, Jean Clark Juliano, Thérèse Tellegen, Lilian Frazão e Abel Guedes fundaram o Centro de Estudos de Gestalt de São Paulo. A principal motivação para a concepção do Centro foi a de servir como ponto de referência para a comunidade, peneirando o que era honesto e saudável na prática da GT, daquilo que era somente caricatura. Assim, foi se difundindo e lapidando a GT no Brasil e no mundo afora (Juliano, 2004).

Percebe-se que, a partir da história da GT, Carl Rogers é citado como um influenciador de ideias, inclusive dentro da GT. Portanto, conclui-se a aproximação do método da CNV, que utiliza como fundo a ACP de Rogers, com a abordagem da GT.

 

Aproximações Epistemológicas entre GT e CNV

Neste item discute-se a Fenomenologia, os pressupostos existenciais, o Behaviorismo, a Psicanálise, a Psicologia Humanista e a ACP para se fazer as devidas aproximações epistemológicas entre a GT e a CNV, a partir das citações de Mendonça (2013). Segundo Mendonça (2013), a Psicologia Humanista surgiu na década de 1960, por reflexo do descontentamento com os aspectos materialistas e mecanicistas da cultura ocidental. A partir desse descontentamento, tal Psicologia visava humanizar a atividade psicológica e, junto a isso, problematizar algumas teses psicológicas do Behaviorismo e da Psicanálise, sistemas dominantes da época. Os psicólogos Humanistas eram contrários ao Behaviorismo e à Psicanálise por considerar que eles eram alheios à complexidade da pessoa como um todo, colocando ênfase apenas nas partes: o primeiro, no comportamento observável; a segunda, na dimensão do inconsciente. A partir, então, da consideração pela dimensão consciente do homem, a Psicologia Humanista retomou as questões do presente e da liberdade, as quais foram influenciadas pela contribuição filosófica dos pressupostos existenciais e da Fenomenologia. Os humanistas também se opuseram aos conceitos da Psicanálise, por ela ter se fundamentado, naquela época, apenas em estudos sobre neurose e psicose, sem observar as possibilidades saudáveis do indivíduo.

Na concepção da Psicologia Humanista, quando se ignora os aspectos positivos do ser humano, foca-se apenas no lado obscuro e não se valoriza a força e as potencialidades do indivíduo. Desse modo, os humanistas se empenharam em recuperar tais aspectos através dos conceitos como "tendência à autorrealização, status de homem consciente e - ao retomar a questão da liberdade como extensão conceitual - a importância do momento presente" (Mendonça, 2013, p. 78).

De acordo com Mendonça (2013), os maiores representantes da Psicologia Humanista foram Clark Moustakas, Abraham Maslow e Carl Rogers. Rogers é mais notório por sua abordagem de psicologia denominada ACP. A experiência clínica dele o convenceu de que as pessoas seriam capazes de mudar comportamentos e pensamentos do indesejável para o desejável de forma consciente, desde que encontrassem um campo propício, como no setting terapêutico, com a aceitação incondicional do terapeuta. Rogers acreditava que a personalidade é constituída no presente, pela forma como o indivíduo percebe as circunstâncias.

É importante informar, que a Psicologia Humanista não é uma escola de pensamento, e sim um conjunto de diversas correntes teóricas que possuem em comum a convergência humanizadora da abordagem do homem. Dessa forma, a GT, por suas origens fenomenológica, existencial e holística, aproxima-se na Psicologia Humanista. Assim, a GT está especialmente associada à Psicologia Humanista pela visão holística do homem. Ambas acreditam na autonomia do ser humano, capaz de encontrar por si mesmo a melhor alternativa para suas dificuldades e questões. Essas, também, enxergam o homem como possuidor de um valor positivo, capaz de se autorregular e de se autogerir (Mendonça, 2013).

A partir da história da GT e da CNV, citadas nas seções anteriores, junto com a explanação sobre a Fenomenologia, os pressupostos existenciais, a Psicologia Humanista e a ACP, de Carl Rogers, trazidas nesta seção, pode-se fazer as devidas aproximações epistemológicas entre a GT e a CNV. Conclui-se, portanto, que a GT, além de ser um método, é, de forma mais abrangente, uma abordagem. Já a CNV é um método sustentado pela ACP, de Carl Rogers. Ele é, também, um dos representantes da Psicologia Humanista, que a GT faz parte.

Portanto, mesmo que o método da CNV não seja sustentado diretamente pela abordagem da GT, e sim pela ACP, todas elas se convergem na Psicologia Humanista, na qual a potencialidade do ser humano é valorizada, a visão da totalidade da pessoa na relação organismo/meio é frisada e a responsabilidade do homem por suas necessidades e sentimentos é influenciada. Essas ideias são pautadas nas influências filosóficas da Fenomenologia e dos pressupostos existenciais.

 

Aproximações Teóricas

Percebe-se que, de um olhar mais geral, os significados da CNV e da GT em si aproximam-se. Mais especificamente, o conceito de Ajustamento Criativo, advindo da GT, aproxima-se da CNV. Sendo que, no AC, tem-se, ainda, as formas confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo, que se relacionam com quatro componentes da CNV, são eles: observação, sentimento, necessidade e pedido. Para pensar essas possíveis relações, primeiramente, foi explicado o significado de cada termo.

 

Comunicação Não-Violenta, Gestalt-terapia e Ajustamento Criativo

Esta seção mobiliza-se para pensar a Comunicação Não-Violenta e as ideias de Rosenberg (2006); quanto à Gestalt-terapia e ao Ajustamento Criativo conta-se com Juliano (1999), Ciornai (1995) e Frazão (2015). Conforme Rosenberg (2006), a CNV ajuda as pessoas a conectarem-se umas às outras e com elas próprias, possibilitando que a compaixão natural floresça. Ela guia no processo de reformular a maneira pela qual as pessoas se expressam e se escutam, através da concentração em quatro componentes: observação, sentimento, necessidade e pedido.

Ressalta-se que objetivo da CNV não é mudar as pessoas e seus comportamentos para conseguir o que se quer, mas sim, estabelecer relacionamentos baseados em empatia e honestidade, que possivelmente atenderão as principais necessidades de todos. Entretanto, conforme Rosenberg (2006), as pessoas aprendem muitas formas de comunicação que as levam a falarem e se comportarem de forma que fere os outros e a elas próprias, isso se chama Comunicação Alienante. Cita-se, a título de esclarecimento, três exemplos de Comunicação Alienante: os julgamentos moralizantes, eles implicam que aqueles que não agem em consonância com os valores da pessoa estão errados ou são maus para ela; a comunicação dos desejos em formas de exigências; e também a prejudicialidade na compreensão de que cada um é responsável por seu próprio sentimento, ato e pensamento.

Sobre a GT, ela é, principalmente, uma postura diante da vida que:

(...) implica um contato vivo com o mundo, com a pessoa do outro, na sua singularidade, sem pré-concepção de qualquer ordem. Esse contato apóia-se sobre a vivência, na experiência de primeira mão, no aqui-e-agora, o que estimula uma presença constante e atenta, com ênfase na percepção sensorial; focaliza o fluxo e direção da energia corporal (Juliano, 1999, p. 25).

Nessa abordagem, há o conceito denominado Ajustamento Criativo, que se refere à capacidade do indivíduo de satisfazer as suas próprias necessidades. Nelas, há, ainda, uma hierarquia que está sujeita às possibilidades do campo organismo/meio (Frazão, 2015). Conforme Ciornai (1995), o funcionamento saudável vai ser, então, o fluxo energizado e contínuo de awareness1 e formação de figura-fundo2, nos quais, através de fronteiras3 flexíveis e permeáveis, o indivíduo interage criativamente com seu meio, desenvolvendo recursos novos para responder às dominâncias que lhe afiguram, usando suas funções de contato4 para poder avaliar, estabelecer contatos enriquecedores apropriadamente e interrompê-los quando intoleráveis e tóxicos.

Fica evidente, portanto, que, para a GT, criatividade e saúde são funções que andam juntas. As restrições no modo de ser do homem limitam a criatividade e a responsividade espontânea e inovadora para os acontecimentos diários e para as relações interpessoais. Dessa forma, conforme Ciornai (1995), o Ajustamento Disfuncional refere-se ao funcionamento caracterizado por interrupções e inibições desses processos, com a consequente formação de figuras fracas, nebulosas e confusas à percepção, que, ao não se completarem, vão dificultando progressivamente as possibilidades de contatos criativos, vitalizados e vitalizantes com o presente. Isso, segundo Frazão (2015), poderá acarretar controle externo, dependência, aprisionamento e comportamento estereotipado.

Com as devidas explanações, percebe-se que as relações entre o significado de Comunicação Não-Violenta, de Gestalt-terapia e de Ajustamento Criativo se aproximam no sentido de ambos defenderem a importância do indivíduo estar consciente. Para, assim, observar o que acontece consigo e com outro, conectado com o seu próprio sentimento. Atendendo, de forma responsável e criativa, as suas necessidades e a do meio, alternadamente, conforme a dominância de cada necessidade: indo ao meio e fazendo pedidos quando necessário, de uma forma que não prejudique a si e ao outro, pelo contrário, que haja empatia entre ambos. Logo, quando isso não acontece, não há uma conscientização das necessidades do indivíduo e do outro, o que torna a ação e a comunicação estereotipada, desconectada e, muitas vezes, violenta com a própria pessoa e com o seu meio.

1.1 Componentes da Comunicação Não-Violenta e Formas de Ajustamento Criativo

Nesta seção, mais especificamente, dialoga-se a respeito dos componentes da CNV, citados por Rosenberg (2006), com as formas de Ajustamento Criativo no campo citado por Robine (2006). A observação, o sentimento, a necessidade e o pedido são os componentes da CNV. Já a confluência, a introjeção, a projeção, a retroflexão e o egotismo são as formas de Ajustamento Criativo. Porém, antes de correlacionar nas subseções seguintes, primeiramente descreve-se as formas e, seguidamente, os componentes.

Através da confluência, surgem, aos poucos, alguns sinais de sensações, desejos, percepções que vão elaborar-se em outra figura/necessidade. Goodman (apud Robine, 2006) diferencia a confluência saudável, na qual o plano de fundo pode, outra vez, ser mobilizado e outra figura ser destacada; da confluência patológica, na qual o fundo continua como fundo por meio da fixação.

Entende-se, então, que essa interrupção pode desencadear outras interrupções em outras modalidades, impedindo a fluidez no Ajustamento Criativo, em pelo menos algum aspecto da vida. Assim, ao invés, por exemplo, de assimilar (introjeção), o indivíduo pode engolir por inteiro (introjeção disfuncional); de pensar possibilidades (projeção), tomar como verdade absoluta (projeção disfuncional); de priorizar o meio (retroflexão), enrijecer (retroflexão disfuncional); de priorizar a si (egotismo), controlar (egotismo disfuncional).

Segundo Rosenberg (2006), o primeiro componente da CNV, denominado observação, defende a necessidade de separar a observação da avaliação, ou seja, as observações devem ser feitas de modo específico, exercitando o não julgamento. Já o sentimento, o segundo componente, refere-se ao desenvolvimento de um vocabulário de sentimentos que permita nomeá-los ou identificá-los de forma clara e específica, com o intuito de conectar mais facilmente as pessoas umas com as outras.

Logo, o terceiro componente é o reconhecimento das necessidades. Se a necessidade não está clara para a própria pessoa, não é possível estar para os outros com quem convive. Por fim, o quarto componente é o pedido, que aborda o que as pessoas gostariam de pedir umas às outras para contribuir na vida de todos (Rosenberg, 2006).

Diante do exposto nesta seção, acredita-se que os componentes da CNV e as formas de Ajustamento Criativo no campo se aproximam, não de forma estática e exatamente sequencial, mas sim no fluxo que elas apresentam e no sentido mais amplo do significado. Pode-se, por exemplo, elaborar uma correlação entre a introjeção com o componente observação; a projeção com os componentes sentimento e necessidade; e, por fim, a retroflexão e o egotismo com o componente pedido. Essas possíveis relações foram trazidas nas subseções a seguir.

1.1.1 Introjeção e Observação

Segundo Ginger & Ginger (1995), a introjeção é a própria base da educação e do crescimento, pois só é possível crescer assimilando o mundo exterior, os alimentos, os princípios e as ideias. Perls (1988) cita as convenções linguísticas, de vestuário, de instituições e de plano urbanístico como exemplos de introjeções saudáveis. Porém, segundo Ginger & Ginger (1995), a introjeção disfuncional consiste em 'engolir inteiras' as ideias, os princípios ou os hábitos, sem ter o cuidado de transformá-los para assimilá-los. Conforme Perls (1988), o homem que introjeta não tem oportunidade de desenvolver sua própria personalidade, pois está muito ocupado em ficar com os corpos alheios abrigados em seu sistema. Quanto mais se sobrecarrega com introjeções disfuncionais, menos lugar há para descobrir quem se é de fato e, por conseguinte, para se expressar.

A postura dos indivíduos nesse ajustamento disfuncional tende a ser baseada em ideias generalistas, com pontos de vista fechados, estabelecendo uma rigidez em situações flexíveis. As palavras "sempre", "nunca", "jamais" são definitivas, geralmente utilizadas por pessoas que no momento estão empregando a introjeção disfuncional como figura. No que diz respeito ao componente observação, Rosemberg (2006) também utiliza as palavras "sempre", "nunca", "jamais" para se referir a exageros de linguagem, os quais prejudicam uma comunicação empática e fluída. O autor cita exemplos desse tipo de Comunicação Alienante: "Você está sempre ocupado" ou "Ela nunca está quando precisamos dela" (Rosenberg, 2006, p.57).

Na contramão disso, a CNV é uma linguagem dinâmica que desestimula generalizações estáticas. Para isso, as observações devem ser feitas de modo específico, com a tentativa de se abster dos pré-julgamentos5 e das certezas. Pois, quando as misturam, os outros tendem a receber isso como crítica e resistir ao que se diz. Em um de seus textos, o autor exemplifica: "Diga-me que você está decepcionada com as tarefas inacabadas que você vê, mas me chamar de 'irresponsável' não é um modo de me motivar" (Rosemberg, 2006, p. 49).

Os conceitos de introjeção, umas das formas de Ajustamento Criativo, assim como o componente observação, da CNV, foram descritos acima para possibilitar a explicação das devidas relações entre eles neste parágrafo. Tanto a introjeção, quanto a observação partem da premissa de observar, checar, assimilar, exercitar o não julgamento e não generalizar para, assim, ocorrer uma fluidez nas relações e nas comunicações. Porém, quando isso não acontece, há uma interrupção no contato e na comunicação, ou seja, há uma alienação e a pessoa que está dessa forma pode exigir do outro, como se pedisse: "Seja a minha lei".

1.1.2 Projeção, Sentimento e Necessidade

Após a explanação das devidas relações entre a introjeção e a observação, é possível, também, fazer certas correlações entre o sentimento e a necessidade, componentes da CNV, com a projeção, forma de Ajustamento Criativo, advinda da Gestalt-terapia. A projeção, segundo Perls (1988), é momento em que a excitação6 é aceita e o ambiente é confrontado, existe a emoção vinculada ao desejo e à necessidade e, portanto, o indivíduo pode lançar para o meio as possibilidades para satisfazê-los, a partir de planejamentos, fantasias e hipóteses. Tais processos são imprescindíveis para o indivíduo encontrar maneiras mais satisfatórias para realizar suas necessidades, mas ele precisa reconhecer que essas suposições são apenas suposições e que elas são suas e não dos outros.

Conforme Perls, Hefferline e Goodman (1997), caso não haja esse reconhecimento, o resultado será a projeção disfuncional. Nessa interrupção, sente-se a emoção, mas esta flutua desarticulada do próprio indivíduo. Visto que não há uma apropriação da emoção, ela é atribuída a outrem ou contra o próprio indivíduo. Como o indivíduo necessita se apropriar da emoção para ir ao contato, na projeção disfuncional ele não consegue dar o passo e, portanto, tenta fazer com que o outro dê. Consoante Perls (1988), na projeção disfuncional, usa-se "ele", "ela", "eles", mas geralmente quer dizer "eu".

A partir disso reflete-se que há questionamentos e experimentos no setting terapêutico que podem auxiliar o indivíduo a identificar sua interrupção projetiva, como, por exemplo: "Tu dizes que ele não te escuta, mas tu te escutas?" "Tu te identifica com alguma coisa que falaste dessa pessoa?".

Na projeção, a emoção e a necessidade ficam em evidência. Dessa forma, pode-se correlacioná-la com o segundo e o terceiro componente da CNV: o sentimento e a necessidade, respectivamente. Sobre o componente do sentimento, Rosenberg (2006) afirma que o repertório de palavras para rotular os outros tende ser maior do que o vocabulário para descrever os estados emocionais da própria pessoa. Por isso, o objetivo da CNV é convidar as pessoas a romperem, quando se permitem ser vulneráveis, esse padrão disfuncional. Desenvolvendo um vocabulário de sentimentos que permita nomeá-los ou identificá-los, de forma clara e específica, conectando mais facilmente as pessoas, umas às outras.

Sobre o componente da necessidade, Rosenberg (2006) acredita que no decorrer do desenvolvimento da responsabilidade emocional, a maioria das pessoas passa por três estágios:

1. a "escravidão emocional" - acreditar que somos responsáveis pelos sentimentos dos outros; 2, o "estágio ranzinza - no qual nos recusamos a admitir que nos importamos com os sentimentos e necessidades de qualquer outra pessoa; 3. a "libertação emocional" - na qual aceitamos total responsabilidade por nossos próprios sentimentos, mas não pelos sentimentos dos outros, e ao mesmo tempo temos consciência de que nunca poderemos atender a nossas próprias necessidades à custa dos outros (Rosemberg, 2006, p.95/96).

Dessa forma, acredita-se em uma possível aproximação entre a projeção e os componentes sentimento e necessidade, tendo em vista que ambos valorizam a conexão do indivíduo com a sua própria emoção. Com o intuito de ele ter clareza dos seus sentimentos e das suas necessidades e, assim, poder se responsabilizar por atendê-las de uma forma saudável e empática com o outro. Logo, o indivíduo não tenderá a responsabilizar o outro pelo o que é seu, não exigirá do outro de forma coercitiva, não o culpabilizará e o violentará e, por conseguinte, também não fará isso consigo.

1.1.3 Retroflexão, Egotismo e Pedido

Por fim, faz-se a aproximação entre a retroflexão e o egotismo com o quarto componente denominado pedido e, para isso, descreve-se brevemente cada conceito. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), na retroflexão saudável, as energias de orientação e manipulação estão totalmente comprometidas com a situação ambiental, seja na raiva, no amor ou na dor, mas antes de ir para a ação o indivíduo checa a situação do ambiente, com o intuito de não aniquilá-lo.

Em contrapartida, na retroflexão disfuncional, o indivíduo checa e não vai para o meio, devido ao medo do que possa vir acontecer. Nessa situação, a energia comprometida volta-se aos únicos objetos disponíveis e seguros no campo: seu próprio corpo. Evita-se a frustração buscando não estar totalmente envolvido. O indivíduo pode torturar sistematicamente seu corpo, produzir enfermidades psicossomáticas e, se estiver envolvido num empreendimento, trabalhará de maneira inconsciente para o fracasso dele.

Conforme Polster & Polster (2001), o indivíduo pode consolar e mimar a si mesmo por não ter recebido quando necessário e por achar que não receberá mais, tendo, assim, pouco contato com o outro. Perls (1988) percebe, também, como o indivíduo se comunica, pois a retroflexão se apresenta pelo uso do reflexivo eu mesmo, como por exemplo: "Tenho que me forçar a realizar este trabalho." (Perls, 1988, p.54)

Retomando Perls, Hefferline & Goodman (1997), o egotismo é o momento em que, quando todas as bases para o contato final estão preparadas de modo apropriado, há uma frenagem no processo, no intuito de prolongar o contato, o controle ou a vigilância. Normalmente, essa modalidade é fundamental em todo processo de maturação prolongada e de complexidade elaborada, senão há um compromisso prematuro. O egotismo saudável é cético, hesitante, arredio, mas se compromete. Porém, o egotismo disfuncional é uma tentativa de aniquilar o surpreendente e o incontrolável.

Nessa forma disfuncional, o indivíduo evita as surpresas do ambiente e tenta tomá-lo como seu, a partir dos acúmulos de conhecimentos e relações pessoais. Como não há troca, não há contato, nem crescimento e, portanto, o indivíduo fica solitário e entediado. Entende-se, então, que o indivíduo nessa situação, geralmente, fala demasiadamente, racionaliza excessivamente, não escuta o outro, convida o outro a competir e possui dificuldade, segundo Robine (2006), ao citar os atendimentos de Isadore Fromm, de utilizar o pronome "nós" e "meu/minha" como, por exemplo, ao invés de falar "minha esposa", fala "a mulher com quem vivo neste momento (Robine, 2006, p.133).

Já o componente denominado pedido aborda, conforme Rosenberg (2006), o que as pessoas gostariam de pedir umas às outras para enriquecer suas vidas. O autor frisa a importância desse componente, pois as pessoas muitas vezes não têm consciência do que estão pedindo e como estão pedindo. Nessa maneira de Comunicação Alienante, a pessoa pode falar de uma forma vaga e a solicitação pode não estar acompanhada dos sentimentos e necessidades do solicitante, podendo soar como exigência. Nessa comunicação, então, as solicitações vêm com críticas e julgamentos.

Quando outra pessoa ouve de alguém uma exigência, ela vê apenas duas opções: submeter-se ou rebelar-se. Quem faz a solicitação e tenta fazer a outra pessoa se sentir culpada é um exemplo de exigência. Portanto, quanto mais claras as pessoas forem a respeito das suas necessidades, maior a probabilidade de serem atendidas na relação com o seu meio. Não pela persuasão, mas sim pela clareza e honestidade da necessidade, do sentimento e do pedido que o indivíduo transparece a outrem. Sendo assim, a pessoa que recebe o pedido de uma forma clara, honesta e empática terá a escolha de realizar o pedido ou não. Diferentemente de receber de uma forma confusa, violenta, duvidosa, em que limita a possibilidade de o outro se conectar e realizar tal pedido de forma genuína, sincera e fluída (Rosemberg, 2006).

Ao explanar sobre a retroflexão e o egotismo em contraposição ao pedido, conclui-se que há a possibilidade de aproximá-los. Pois a retroflexão e o egotismo são os momentos em que o indivíduo vai para o meio realizar as suas necessidades, assim como o pedido, que se refere ao momento em que o indivíduo vai ao meio pedir algo, para que sua necessidade possa ser atendida. Se esse movimento é interrompido, o indivíduo ajusta-se de uma forma disfuncional ou se comunica de uma forma alienante, podendo prejudicar-se, controlar o outro ou exigir do outro.

 

Uma Possibilidade de Aproximação Prática: O Jogo Grok

Neste capítulo, com o objetivo de demonstrar um recurso prático que reflete a aproximação da CNV e da Gestalt-terapia, apresenta-se uma ferramenta recorrentemente utilizada entre psicólogos. Esse instrumento exemplifica, na prática, a discussão teórica desenvolvida neste artigo. Trata-se de um jogo de cartas, chamado Grok, cuja elaboração é baseada na CNV, em que todos os participantes experimentam uma conexão mais profunda consigo e com os outros. Nessa experiência não há perdedores, apenas ganhadores. O engajamento na atividade promove diversão, reflexão, aprendizado e auxilia a escuta dos valores, necessidades, desejos, esperanças e sonhos uns dos outros.

Conforme informações coletadas no Manual de Instruções da versão em português (2017) - distribuída pela Colab Colibri Assessoria, mediante autorização das autoras -, o Jogo Grok foi elaborado em 2014, nos EUA, por Christine King e Jean Morrison, ambas treinadoras certificadas de CNV, com o objetivo de aprimorar e aprofundar as habilidades de comunicação, cultivar a compaixão e promover relações intrapessoal, interpessoais e sistêmicas mais sustentáveis. Inclusive, a palavra Grok metaforicamente significa "estar em harmonia com". As autoras se inspiraram no livro de ficção científica de Robert Heinlein, Stranger in a Strange Land.

É utilizado por psicólogos de diversas maneiras e em diversos contextos, como o ambiente escolar, empresarial, hospitalar e em consultório; também em grupos, na dupla terapêutica ou até mesmo individualmente. Mesmo que seja baseado na CNV, acredita-se que é congruente com a prática da GT por trabalhar com as mesmas questões, de sentimentos e necessidades, propostas pela Abordagem. Portanto, também pode ser utilizado por gestalt-teraupetas como um valioso experimento.

O jogo apresenta dois tipos de cartas: sentimentos e necessidades. Há muitas maneiras de utilizá-lo: em uma delas, que é mais simples, pede-se ao participante que pegue uma das cartas de sentimentos, como, por exemplo, a raiva, e fale sobre um dia que se sentiu dessa forma. Assim, o jogo legitima a importância da presença, da escuta empática, responsabilidade e autenticidade. A conexão que acontece durante o jogo surge do reconhecimento e validação de sentimentos e necessidades, contribuindo significativamente na gestão de conflitos.

Com a identificação de sentimentos, pode-se gerar novos ajustamentos criativos, visto que se proporciona a retroflexão saudável e a identificação de introjetos. De forma semelhante, identificar necessidades genuínas e comunicá-las ao meio promove uma maior fluidez no processo de contato, por meio, sobretudo, da projeção saudável.

 

Considerações finais

Este artigo tem como objetivo investigar algumas aproximações entre a CNV e a Gestalt-terapia, perpassando pela história, pelas bases epistemológicas, pelos seus conceitos e pelas suas práticas. No que tange à história percebe-se que, mesmo Fritz Perls e seus colaboradores indo por um caminho e Marshall Rosenberg por outro, tanto a Gestalt-terapia quanto a CNV, desde as suas origens, buscaram defender uma sociedade mais empática, cooperativa, consciente, criativa e, por conseguinte, menos violenta.

Nessa busca, a Gestalt-terapia e a CNV apoiaram-se em bases epistemológicas que fundassem as suas percepções. A Gestalt-terapia apoiou-se na Psicologia Humanista, na Fenomenologia e nos pressupostos existenciais, a CNV apoiou-se na Abordagem Centrada na Pessoa, esta, por sua vez, é fundamentada nas mesmas bases epistemológicas da Gestalt-terapia. Por isso, conclui-se que o método da CNV, no que diz respeito à Psicologia Humanista, na Fenomenologia e nos pressupostos existenciais, recebe as mesmas influências epistemológicas da Gestalt-terapia. Diante dessas aproximações, fica evidente a valorização das potencialidades do ser humano, da totalidade e da indissociabilidade organismo e meio.

No campo conceitual, percebe-se um diálogo entre a Gestalt-terapia e a CNV, visto que elas valorizam a conscientização e a responsabilização do ser humano perante suas ações no mundo. Nessa visão, o ser humano torna-se consciente e responsável a partir da atenção dada a si e ao meio no que diz respeito aos sentimentos e às necessidades, para que assim o indivíduo possa fazer pedidos, comunicar-se e relacionar-se de forma mais saudável, criativa e não violenta. Essa conclusão parte da discussão entre as formas de Ajustamento Criativo, advinda da Gestalt-terapia - confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo - com os quatro componentes da CNV - observação, sentimento, necessidade e pedido.

No campo prático, há o Jogo Grok, baseado na CNV e, por conter cartas de sentimentos e necessidades, acredita-se também ser congruente com a prática da Gestalt-terapia. Psicólogos podem utilizá-lo em diferentes contextos, como nas empresas, escolas e consultório, a fim de convidar as pessoas envolvidas a perceberem os valores, necessidades, desejos, esperanças e sonhos uns dos outros, além de buscarem formas de se comunicarem e se relacionarem de maneira mais saudável.

Muito ainda há para debater acerca do tema levantado. Este trabalho, sem dúvida, não dá conta de todas as possibilidades de encontro entre Gestalt-terapia e CNV. Aqui também não foram discutidas as possíveis divergências entre as teorias, por fugir do escopo do objetivo inicial. Por ser um tema não explorado na literatura até o momento, outros estudos teóricos são importantes, sobretudo a respeito de outros aspectos metodológicos da CNV que possam contribuir com a abordagem gestáltica. Sugere-se também relatos de experiência e estudos de caso que tragam exemplos de práticas; e estudos quantitativos que tragam resultados efetivos no trabalho com os mais variados grupos. A GT precisa estar sempre aberta ao diálogo e à troca permanente com os mais diversos campos de conhecimento, a fim de fugir do risco de se tornar uma figura cristalizada, que não responde mais às demandas da contemporaneidade.

 

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Submissão: 03/08/2019
Primeira Decisão Editorial: 11/03/2020
Aceito: 07/04/2020

 

 

1 Awareness é o sentir espontâneo do que surgir no indivíduo; do que está sentindo, fazendo, planejando (Perls, Hefferline e Goodman, 1997).
2 O fundo é a totalidade; a figura é a parte. Portanto a figura é a parte que se destaca do um fundo. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), a vida saudável é a expressão da fluidez no processo de formação figura/fundo, em que as necessidades dominantes do organismo são satisfeitas segundo sua emergência e o disfuncional é a interrupção desse fluxo.
3 Fronteira de contato limita, protege, contém o organismo ao mesmo tempo, que toca o meio (Perls, Hefferline e Goodman, 1997); é dotada de permeabilidade e plasticidade: o que significa que pode favorecer, dificultar ou impedir o contato.
4 "A palavra 'contato' tem sido utilizada para definir o intercâmbio entre o indivíduo e o ambiente que o circunda dentro de uma visão de totalidade" (D'Acri, Lima & Orgler, 2007, p.59).
5 Para observar sem julgamento é necessário entrar em contato direto com o fenômeno que emerge no momento e exercitar a abstração de todas as ideias pré-estabelecidas. Esse movimento chama-se redução fenomenológica (Holanda, 1997).
6 "Em suma, ritmo, vibração, tremor, afeto são formas de expressões da excitação" (D'Acri, Lima & Orgler, 2016, p.100).

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