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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.1 São João del-Rei Jan./Mar. 2019

 

Psicologia Social e Antropologia: experiências de pesquisa participante e etnográfica

 

Social Psychology and Anthropology: participant and ethnographic research experiences

 

Psicología Social y Antropología: experiencias de investigación participante y etnográfica

 

 

José Sterza JustoI; José Carlos Franco de LimaII; Alejandra Astrid Leon CedeñoIII

IDocente do Programa da Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras (Universidade Estadual Paulista)
IIProfessor Titular do Departamento de Antropologia (Universidade Federal de Roraima)
IIIDocente do Departamento de Psicologia Institucional (Universidade Estadual de Londrina)

 

 


RESUMO

Este artigo é um relato de experiências de pesquisas conduzidas em intersecções teóricas e metodológicas da Psicologia Social com a Antropologia. O objetivo é descrever e discutir duas experiências de pesquisas que abordam fenômenos psicossociais, conduzidas nas interfaces dessas duas disciplinas que vêm ocorrendo desde 1993. A primeira é realizada com andarilhos de estrada mediante contatos estabelecidos nos acostamentos das rodovias, e a segunda é realizada por meio de um projeto de pesquisa-ação nas comunidades populares. Como principal resultado é possível destacar a fecundidade e eficácia da utilização de recursos da Etnografia e da pesquisa-ação participante em estudos e práticas voltados para processos de subjetivação distintos, como é o caso daqueles que se desenrolam em comunidades populares que habitam lugares antropológicos bem delimitados e constituídos, e aqueles que se desenrolam em situações de errância e de trânsito por não lugares, conforme acontece com andarilhos de estrada.

Palavras-chave: Psicologia Social. Antropologia. Pesquisa participante. Etnografia.


ABSTRACT

This article is an account of research experiences conducted in theoretical and methodological intersections of social psychology with anthropology. The objective is to describe and discuss two research experiences that address psychosocial phenomena, conducted at the interfaces of these two disciplines. Both have been occurring since 1993. The first one is carried out with road walkers through contacts established on the roadsides, and the second is carried out through an action research project with popular communities. As a main result, it is possible to highlight the fecundity and effectiveness of the use of resources from ethnography and participatory research in studies and practices focused on distinct subjectivation processes, as is the case with those that unfold in popular communities that live in well-defined anthropological places and constituted and those that unfold in situations of wandering and of transit by non-places, as happens with wanderers of road.

Keywords: Social Psychology. Anthropology. Participant research. Ethnography.


RESUMEN

Este artículo es un relato de experiencias de investigación conducidas en intersecciones teóricas y metodológicas de la psicología social con la antropología. El objetivo es describir y discutir dos experiencias de investigación que abordan fenómenos psicosociales, conducidas en las interfaces de esas dos disciplinas. Las dos se ven ocurriendo desde 1993. La primera se realiza con andarillos mediante contactos establecidos en los acostamientos de las carreteras y la segunda es realizada por medio de un proyecto de investigación acción junto a comunidades populares. Como principal resultado es posible destacar la fecundidad y eficacia de la utilización de recursos de la etnografía y de la investigación-acción-participante en estudios y prácticas dirigidos a procesos de subjetivación distintos como es el caso de aquellos que se desarrollan en comunidades populares que habitan lugares antropológicos bien delimitados y constituidos y aquellos que se desarrollan en situaciones de erróneo y de tránsito por no lugares, como sucede con caminantes de carreteras.

Palabras clave: Psicología Social. Antropología. Investigación participante. Etnografía.


 

 

Viajar é preciso: a pesquisa com andarilhos de estrada

Esta experiência de pesquisa, realizada fora dos campos convencionais da Psicologia Social, tais como comunidades, grupos em situação de vulnerabilidade ou instituições, vem ocorrendo desde 1993 com andarilhos de estrada. Os andarilhos aos quais nos referimos são esses caminhantes que avistamos, frequentemente, nos acostamentos das rodovias carregando um saco às costas ou puxando algum carrinho de mão, onde levam todos seus pertences.

Vivem dessa forma, perambulando pelos acostamentos, sem um destino final, se abrigando debaixo de pontes, em casas abandonadas que encontram às margens das rodovias, em algum recanto de postos de combustíveis, pontos de ônibus ou até pernoitando no mato, debaixo de alguma árvore, improvisando o local para dormir estendendo uma lona de plástico no chão.

Conseguem o mínimo para a sobrevivência (alimentação, roupas, chinelos, bonés) com caminhoneiros, funcionários de postos de serviços, restaurantes e lanchonetes, moradores da zona rural ou, em casos de extrema necessidade, adentram as cidades para pedir ajuda. Nas pesquisas com andarilhos, saímos ao campo aberto das rodovias e fizemos os contatos, abordagens e entrevistas nos próprios acostamentos. Percorremos rodovias do estado de São Paulo que interligam esse estado com os estados de Minas Gerais e Paraná, no sentido norte/sul, e com os estados de Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, no sentido leste/oeste. Tais rotas, que cortam o estado de São Paulo, constituem importantes corredores de trânsito de veículos e pessoas. Dentre as rodovias que formam esses corredores e que são o lócus de nossa pesquisa, estão as rodovias Anhanguera (SP 330), Bandeirantes (SP 348), Castelo Branco (SP 280), Presidente Dutra (BR 116), Raposo Tavares (SP 270), Washington Luiz (SO 310), SP 333 (tem vários nomes em toda sua extensão, que vai da cidade de Ribeirão Preto à divisa com o estado do Paraná) e Rodovia Marechal Rondon (SP 300).

Nos primeiros contatos com andarilhos de estrada, no início de nossas pesquisas, ficamos perplexos diante de uma forma de vida tão diferente da vida comum, especialmente por abandonar condições aparentemente indispensáveis, tais como um teto, um entorno psicossocial mínimo, um assentamento pessoal, vinculações que deem uma sustentabilidade e segurança básicas, enfim, adotando uma forma de viver que rompe radicalmente com o sedentarismo e assume o nomadismo como condição de existência. Várias questões acerca da vida dos andarilhos já foram investigadas e publicadas, tais como: a) perfil dos andarilhos, estratégias de sobrevivência na estrada, motivos da ruptura com a vida sedentária, sentidos da caminhada, sonhos e delírios, socialidade, experiências de cuidado e atenção (Justo, 2011a, 2012; Nascimento, 2008); b) a loucura vivida na estrada (Justo, 2011b; Justo & Nascimento, 2005); c) uso de álcool e outras drogas (Nascimento & Justo, 2000); d) políticas de assistência aos andarilhos (Nascimento & Justo, 2014, 2016,); andarilhos e mobilidade humana na contemporaneidade (Justo & Nascimento, 2012), errância e sentimentos de estranhamento (Freitas, Justo & Perez, 2017), dentre outras.1

O mergulho na vida dos andarilhos foi nos aproximando de suas dificuldades, desafios e sofrimentos, mas vendo bem de perto o que essa vida tem de potente, de ruptura, irreverência e insurgência contra opressões que campeiam no sedentarismo e ouvindo suas narrativas do sentido de liberdade e autonomia que experimentam nessa forma de viver nos fez reconhecer que "viajar é preciso"; que o homem, além de ser "sapiens", "faber", "ludens", "economicus", dentre tantas outras formas básicas de ser, é também "homo viator", ou seja, é capaz de viajar, de se deslocar por diferentes temporalidades e espaços geográficos, sociais, subjetivos e culturais. Tal capacidade de ser viajante, itinerante, explorador e desbravador de outras plagas, explorar outros horizontes e formas de vida lhe dá uma ferramenta fundamental para fortalecer e expandir a vida. Ferramenta essa também necessária para a pesquisa, para a produção de conhecimento.

Viajar é preciso, igualmente, na pesquisa, à feição do fazer dos etnólogos. Sair de onde se está e procurar em outro lugar, sobretudo, quando não se sabe exatamente o que se está procurando ou o que poderá ser achado. Sair das prescrições teóricas e metodológicas cristalizadas e dos objetos e lugares convencionais da pesquisa. Quando iniciamos nossas pesquisas, não sabíamos exatamente o que investigar e nem como. Aliás, nossas primeiras preocupações e buscas prévias de informações sobre a vida dos andarilhos, por exemplo, como faziam para conseguir, comida, agasalhos, pernoite, para obter tratamentos de doenças e outras coisas comezinhas, logo se mostraram desprezíveis diante de outras realizações muito mais importantes. Era preciso, de fato, abdicar, o máximo possível, de todos os referenciais pessoais de vida e de boa parte de conhecimentos teórico-metodológicos convencionais, sedentarizados, para poder se lançar, como numa viagem, ao desconhecido.

À medida que nossas pesquisas caminhavam, colocavam-se desafios metodológicos tão surpreendentes quanto eram as descobertas desse modo de viver. Não tínhamos nenhuma indicação prévia de outras pesquisas realizadas ou de aportes metodológicos que pudessem servir de guias para a localização de andarilhos, o modo de abordá-los, como proceder com eles, inclusive, no tocante às exigências formais do Conselho Nacional de Ética na Pesquisa.

 

A pesquisa em trânsito ou uma etnografia da errância

A natureza desta pesquisa e seu objeto de estudo colocam vários desafios no plano metodológico. O principal deles é compatibilizar o caráter de imprevisibilidade, próprio da errância, com um planejamento de pesquisa que, como tal, exige alguma condição mínima de previsibilidade. Na abordagem do fenômeno da errância, não é possível sequer fazer previsões sobre a localização dos sujeitos da pesquisa ou estabelecer com razoável precisão o tamanho dessa população. A pesquisa com andarilhos se sujeita às mesmas condições de provisoriedade e incerteza nas quais eles vivem. Efetivamente, a única maneira de abordar o andarilho, na sua caminhada, é se lançar também na estrada sem qualquer garantia prévia de encontrá-lo em algum momento da jornada.

Além da incerteza quanto à localização dos sujeitos, também é absolutamente incerta a reação deles à aproximação e tentativa de contato por parte do pesquisador. Por mais que já tenhamos experiência na abordagem, é comum não se obter sucesso ou até se produzir alguma situação de temor, desconfiança intensa ou mesmo alguma reação ríspida. Mesmo quando o contato inicial é bem-sucedido, resta a incerteza quanto ao nível de compreensão e confiança a ser alcançado na interação com o sujeito. Muitos não sabem o que é uma pesquisa, uma universidade, um professor universitário e, mesmo que tenham alguma ideia disso, dificilmente compreenderão as razões de um professor universitário estar ali, num acostamento de rodovia, querendo conversar com eles. A situação é insólita para a grande maioria: de repente, veem-se abordados por um desconhecido, nos rincões de uma rodovia, dizendo-se interessado em suas histórias de vida. É comum, aliás, eles suspeitarem de que se trata de algum agente municipal, incumbido de confiná-los temporariamente em alguma instituição de controle dos andarilhos ou de afugentá-los das cercanias da cidade. Seja como for, sempre há uma persecutoriedade inicial - de ambas as partes - produzindo certo distanciamento na relação e comedimento no uso das palavras que, aos poucos, na maioria das vezes, vai se amenizando, tornando o diálogo mais rico, fluente e inteligível.

O acostamento de uma rodovia, como local de encontro para um diálogo, evidentemente, é bastante precário e pouco se pode fazer para torná-lo mais apropriado. Não bastasse o fato de o encontro com o andarilho ser casual e ocorrer numa situação de trânsito, portanto sem os clássicos agendamentos de entrevista - estabelecimento de hora e local -, a situação é cheia de elementos perturbadores, principalmente o barulho e a turbulência causada pela passagem de veículos em alta velocidade. Via de regra, a entrevista ocorre bem próxima à pista por causa da má conservação dos acostamentos e das áreas adjacentes, sempre tomados pelo mato. Na maioria das vezes, sequer é possível encontrar uma sombra de árvore ou uma área limpa para conduzir o diálogo numa situação mais confortável.

Além da imprevisibilidade, outra condição presente nessa situação de pesquisa é a transitoriedade do contato com os sujeitos. A entrevista acontece num encontro casual e momentâneo, sem a possibilidade de um novo encontro. Trata-se, portanto, de uma condição de instantaneidade extremamente presentificadora, ou seja, que se instala subitamente num dado momento, sem qualquer antecipação de sua ocorrência ou quaisquer mediações como, por exemplo, de horário marcado, secretárias, de aparatos institucionais e assim por diante. Trata-se, ainda, de uma situação irreprodutível, isto é, sem a possibilidade de repetição ou de se reencontrar o sujeito para outra sessão de entrevista.

O contato com os andarilhos na estrada, por todas essas condições de provisoriedade e instabilidade, assemelha-se a uma situação de caos, em que os acontecimentos não apresentam regularidades, recorrências, direcionamentos e uma ordem que permitam enquadramentos, predições e controles. Como, nesse universo de isolamento extremo e de trânsito incessante, não são usuais a aproximação e o diálogo entre pessoas, tal como ocorre em tantas outras situações, todo contato estabelecido com andarilhos nas estradas é acompanhado de uma sensação de estranhamento, mesmo para aqueles que presenciam a cena de longe. Não há, evidentemente, como em outras situações, qualquer ritual preestabelecido para essa ocasião que permita minimamente aos interlocutores realizar algum reconhecimento preliminar das intenções do outro, como ocorre, por exemplo, quando um vendedor se dirige a um cliente, quando um transeunte na rua se dirige a outro para pedir uma informação e assim por diante. No universo dos andarilhos, essa é uma situação incomum e evitada ao máximo, até mesmo quando eles próprios se cruzam nas rodovias. Quando dois andarilhos se aproximam na estrada, em vez do cumprimento de praxe, eles nem se entreolham e comumente atravessam a pista a tempo de evitar qualquer tipo de contato.

Nós mesmos tivemos que realizar um longo aprendizado para conseguir a aproximação e o contato sem causar uma ansiedade exagerada. Nas primeiras tentativas, nossos apelos para uma conversa foram totalmente ignorados ou rispidamente rechaçados. Com o tempo, no entanto, fomos lapidando condutas de aproximação e hoje não temos maiores dificuldades para a realização do contato. Talvez a redução da nossa própria ansiedade, que no início era alta, tenha sido o elemento facilitador principal, porém, verificamos que providências simples auxiliam bastante na comunicação, tais como cumprimentar a uma certa distância, deixar o veículo estacionado, de preferência, do outro lado da estrada, fazer a abordagem sozinho, não portar bolsas ou outros objetos e aguardar as primeiras respostas.

Se, por um lado, a condição de trânsito do andarilho contém alguns aspectos adversos para a realização de uma entrevista científica, por outro, tem aspectos extremamente favoráveis e positivos. Não há limitação de tempo para o diálogo e, quando o contato é bem-sucedido, demonstram grande disponibilidade. O andarilho, diferentemente do sujeito sedentário, não é acossado pelo fantasma do tempo, não tem uma rotina rígida e cronometrada, nem toma o tempo como medida de valor. Além disso, na condição de extrema solidão, qualquer contato é bem-vindo, especialmente para aqueles que ainda não se refugiaram completamente no silêncio do mutismo, da reclusão e do isolamento. Embora seja um contato passageiro, travado em condições pouco favoráveis, acaba sendo muito fecundo, o que raramente ocorre em situações formais de entrevista. É comum o sujeito andarilho desfrutar esse raro momento no seu cotidiano, quando alguém se aproxima dele e lhe dirige respeitosamente a palavra, tratando-o com dignidade e ouvindo-o com todo interesse, acolhendo e valorizando sua fala, por meio da qual pode expressar seus sentimentos, revoltas, protestos, visões de mundo, rememorar acontecimentos significativos da vida, refletir e analisar as condições que o cercam, enfim, aproveitar a ocasião para realizar uma ampla catarse de emoções, sentimentos e pensamentos.

Nossa larga experiência de contato com essa população também já demonstrou que a fala do andarilho, na estrada, diferencia-se daquela realizada no interior de alguma instituição onde esteja albergado. Na estrada, sua fala é visivelmente mais livre, enquanto, na instituição, procura adequar seu discurso àquilo que é desejado, por exemplo, mostrando-se mais otimista quanto ao futuro, à possibilidade de encontrar algum emprego, reencontrar ou constituir uma família, reaver uma habitação, abandonar o uso de bebidas alcoólicas e assim por diante. Por isso mesmo, a estrada, apesar dos contratempos, é o local ideal para o conhecimento das subjetivações da sua errância.

O nomadismo radical dos andarilhos de estrada, imbuído desse sentido de provisoriedade, movimentação incessante, itinerância e desterritorialização, exige do pesquisador certa mobilidade no espaço e também no pensamento, necessária para acompanhar e adentrar esse universo móvel e complexo. Exige, de certa forma, um nomadismo na pesquisa, tanto na modulação dos instrumentos de investigação como também dos referenciais teóricos pertinentes à compreensão desse fenômeno. A profusão de informações e a reciclagem constante de conhecimentos tornam a atividade cogitativa itinerante desprovida de um porto fixo ou estável de ancoragem.

O trabalho com andarilhos de estrada é muito semelhante ao de um etnólogo diante de uma cultura, um povo, uma comunidade ou um bairro desconhecido. Por isso mesmo, recorremos à Etnografia como recurso metodológico para tentar compreender esse universo de vida muito diferente do nosso. O contato com esse mundo distante e estranho, o contato com um outro radicalmente diferente, assim como no caso da Etnografia clássica, está na base da nossa metodologia e é sua ferramenta mais potente. À semelhança de um etnógrafo diante de um povo e de uma cultura desconhecida, temos diante de nós um conjunto de pessoas compartilhando relações sociais, linguagens, simbologias, códigos de conduta, valores, hábitos e costumes que nos são completamente estranhos e enigmáticos e nos colocam o tempo todo numa perigosa comparação.

Contudo, diferentemente da Etnologia e Etnografia clássicas - orientadas para o distante e o exótico (Augé, 1994) -, o estranho, o diferente ou o Outro que temos pela frente não se encontra num espaço delimitado ou num território, como é o caso de uma tribo, de uma comunidade, de um povoado, um bairro e assim por diante (Esposito, Justo, 2017). Nosso "objeto etnográfico" está disperso, em constante movimentação. Trata-se de um tipo de mobilidade que se diferencia, inclusive de nomadismos amplamente tomados como objeto de etnologias sobre tantos povos nômades existentes na África ou mesmo os ciganos. Tais nomadismos são essencialmente geográficos e profundamente sedentários quanto às relações sociais, cultura e subjetividades, enquanto os andarilhos, nesse sentido, não são propriamente nômades, mas sim errantes. Diante disso surgiu uma inevitável indagação: é possível se fazer uma Etnografia da errância ou de errantes?

Marc Augé (1992), discutindo os desafios da Antropologia e da Etnografia na atualidade, ressalta que hoje o que se coloca para elas é um mundo de superabundância temporal e espacial que torna tudo próximo e em constante mudança, diferentemente de outras épocas, em que a Antropologia se voltava para espacialidades e temporalidades estáveis e bem-definidas e se valia do distanciamento e do estranhamento do outro como recurso metodológico básico. Segundo o autor, a supermodernidade, tal como ele designa nossa contemporaneidade, traz para a Antropologia o desafio de reposicionar seu objeto nas atuais condições de excesso nas quais proliferam as figuras de superabundância factual, espacial e a individualização das referências identitárias. Segundo ainda o mesmo autor, os "não lugares", a saber, os lugares de passagem, de trânsito, tais como rodoviárias, estradas e aeroportos - espaços anônimos e não identitários -, são produzidos, por excelência, pela supermodernidade e tendem, cada vez mais, a se constituírem como espaços de habitação.

O caso dos andarilhos de estrada é exemplar como um desses tantos "não lugares" do contemporâneo que, no entanto, pela prática dos andarilhos, acabam se transformando em lugares habitados, onde a vida e a subjetividade são produzidas e, mais do que isso, modos de vida e culturas são criados tal como gramíneas que brotam de frestas do asfalto das rodovias. O fato mais surpreendente, ao se aproximar e adentrar o mundo dos andarilhos de estrada, é a resistência da vida e a capacidade humana de criar formas de vida, em condições das mais inóspitas, algo que se coloca também para os transeuntes de tantos outros não lugares.

Voltar-se para essas vidas errantes ou em trânsito exige do etnólogo ou do psicólogo social abrir-se para o inesperado, o imprevisto, para o estranho e para o distante que, no entanto, vistos de perto, se tornam relativamente familiares pelo compartilhamento da mesma lógica da produção de não-lugares que atinge a todos.

 

Recantos de beleza e resistência

Nesta segunda experiência de pesquisa, a trajetória de pesquisa em comunidades se iniciou em 1993 na Favela Heliópolis na capital paulistana. Trabalhando com formação de lideranças em organizações populares desde a década anterior, neste ano iniciamos nossa primeira experiência de pesquisa social na condição de inseridos em meio popular. Depois vieram oito anos de inserção na periferia de Londrina (PR) e 10 anos na periferia de Boa Vista (RR). Em 2016, fizemos, pelo estágio pós-doutoral, parte do Projeto de Pesquisa e Extensão intitulado "Recantos de Beleza e Resistência" da Universidade Estadual de Londrina (PR). As reflexões aqui apresentadas representam a configuração atual do que denominamos Etnografia Comunitária do Cotidiano (Cedeño, 2012).

O Projeto de pesquisa e extensão "Recantos de Beleza e Resistência" visa apoiar as iniciativas de organizações sociais que possam, dentre outras funções, auxiliar na prevenção da violência em zonas periféricas, sendo uma das características da metodologia do projeto a integração entre pesquisa e extensão. A metodologia utilizada se situa no campo da pesquisa ação participante. Acompanhamos cinco organizações sociais no Brasil e Venezuela: o Núcleo de Ecologia Urbana da Universidade Bolivariana da Venezuela; o ecoturismo dos Pemones, na Comunidade São Camilo, em Santa Helena de Uiarén na Gran Sabana venezuelana; a Associação Cultural dos Maranhenses de Boa Vista (Roraima, Brasil). Os trabalhos de apoio e de registro de manifestações de cultura popular maranhense em Roraima são realizados desde 2013; a Ciranda da Cultura de Londrina (Paraná, Brasil).

 

Lutar é preciso

A participação popular esteve no centro da ebulição política nos anos 1980 no Brasil. A presença de agentes religiosos ligados à teologia da libertação nas periferias e de pesquisadores sociais engajados nas lutas populares inseriram a razão crítica no cotidiano dos movimentos reivindicativos populares. Havia uma crença nos saberes e culturas populares como demiurgos para a construção de uma nova sociedade, mais justa e equitativa.

As classes populares, a classe trabalhadora, os oprimidos e as comunidades eram vistos como sujeitos protagonistas cujas organizações e lutas construiriam a nova sociedade. Foi a década em que o popular teve voz e vez, ocupando o centro do cenário político do país. Lá estávamos nós, início de 1990, Favela Heliópolis em São Paulo (SP), 60 mil habitantes, um gueto nordestino na maior metrópole do país. O desafio era realizar uma pesquisa inserção sobre a religiosidade popular dos trabalhadores de Heliópolis.

Apoiados na visão de que o saber erudito, o saber popular e o saber artístico têm o mesmo valor heurístico na interpretação do que chamamos realidade social, relativizamos os quadros teóricos interpretativos científicos oriundos das sociologias e psicologias explicativas. Optamos por uma ciência compreensiva cuja intelecção comportava uma grande dose de incerteza e desconhecimento em relação aos sujeitos e temas pesquisados.

O desafio seguinte foi a pesquisa convivência para o doutoramento, realizada na periferia de Londrina (PR) com adolescentes. Nesse período, os movimentos populares estavam em refluxo. As organizações populares vindas dos anos 1980 se esvaziaram. Participamos, na periferia de Londrina (PR), do surgimento de um novo tipo de organização em que o formal e o informal conviviam no mesmo movimento. Agentes internos e externos desenvolviam ações artísticas e educativas. Fluidez constante de lideranças, apoios e participantes.

A implantação e consolidação dos sistemas de elaboração e definição das políticas públicas na área social pareciam ser o grande desafio da década de 1990, tendência que se consolidaria nos governos de Lula e Dilma. Nessa conjuntura, alguns conceitos analítico-mobilizadores ficaram no caminho: oprimidos, classe trabalhadora, periferia, conscientização, participação popular. Em compensação emergiram novos: redes, excluídos, facilitadores, políticas públicas. Outros sobreviveram e foram reciclados na nova conjuntura: consciência crítica, comunidade, transformação social, emancipação social. Outros foram retomados, por exemplo, autogestão.

Já estávamos cientes de que as rápidas mudanças decorrentes da globalização, a consolidação do estado de direito no Brasil e a ampliação da presença do estado no cotidiano das áreas de periferia interferiam de forma radical na organização dos populares. Presenciamos também, em toda a América Latina, do México até a Argentina, a expansão das práticas de latrocínio, homicídios e tráfico de drogas e seu estilo de vida inerente. Recentemente, o desmonte das políticas públicas na área social por parlamentos e governos conservadores, caso do Brasil, Argentina e Paraguai; a disseminação das redes sociais; e o surgimento de movimentos sociais contestatórios, como as manifestações de 2013 e as ocupações de escolas e universidades em 2016 no Brasil, são sinais de um novo momento para as organizações ou ações sócio-político-culturais que apostam na emancipação social como meta.

A supermodernidade otimiza as forças produtivas ao máximo, assim como o fluxo de pessoas e informações são intensificados. Por um lado, ocorre o desmonte de muitas formas de resistência cultural baseadas em identidades culturais bem-definidas situadas em territórios bem delimitados. As viagens de turismo e as migrações são facilitadas pela estrutura de transporte de massas, inclusive em trechos de longa distância. Por outro lado, abre-se uma infinidade de possibilidades de estabelecimento de vínculos e afinidades. Os mesmos aparatos que insuflam a desagregação, também, podem ser usados para estabelecer novos vínculos.

Diante dessas constatações, reformulamos o conceito de comunidade, tradicionalmente vinculado a território. Concebemos comunidade como um estado de sinergia que se estabelece num grupo de seres humanos, envolvendo sentimentos, objetivos comuns e criações coletivas. Nesse estado, formamos uma comum-unidade que cria ou se apropria do espaço onde está situada. Esse lugar pode se dar no ciberespaço, no imaginário compartilhado ou no território, tipo casa, centro cultural, rua, bairro ou região. Esse espaço de compartilhamento é também um espaço de decisões.

Uma comunidade pode ser permanente, tendo uma rotina, espaços de reunião contínuos, objetivos, ritos e linguagem comum. Mas também pode ser volátil e fugaz. Pode se formar pontualmente e se desfazer, como também pode se articular em rede com parceiros, institucionais ou informais. Por isso podemos falar de comunidades territoriais baseadas em bairros, mas também de comunidades terapêuticas, comunidades temáticas, comunidades virtuais. Comunidade é um estado ontológico que pode se estabelecer entre humanos, podendo incorporar inclusive outros seres. A afinidade e os objetivos comuns são as bases de sua sustentabilidade. O espaço e a continuidade são relativizados. Critérios para definir quem é membro (insiders) e quem é externo (outsiders) à comunidade podem variar de acordo com as situações. Por exemplo, o Conselho da Comunidade São Raimundo Nonato é a instância de poder que toma as decisões sobre o Arraial dos Maranhenses no Bairro Santa Luzia em Boa Vista (Brasil), porém o coordenador do arraial convida as instituições parceiras e grupos de boi para as reuniões e o conselho dá poder, voz e voto a esses representantes, ou seja, construir a festa como comunidade implicou em incorporar agentes externos como membros da organização do evento.

Uma característica de comunidades autogestionárias é a busca da gestão coletiva das ações e do espaço baseada em relações horizontais, o que implica na relativização das diferenças funcionais, salariais, acadêmicas, etárias, sexuais ou étnico-raciais entre os que pertencem ao estado de comum-unidade. As diferenças são reconhecidas e mantidas, mas a possibilidade de participar das decisões está ao alcance dos membros da comunidade. Delegar poderes a alguém para tomar decisões ou criar momentos de decisão consensual são estratégias viáveis, desde que haja comunhão emocional.

Para Cedeño (2006, p. 252), a emancipação está relacionada com a ocupação de espaços de possibilidades, como potência e resistência que é cotidiana e fractal. Sua extensão e intensidade na contraposição aos sistemas de controle baseados na força bruta e introjeções sutis são irregulares e dinâmicas. Não só exercemos poder e nos juntamos para alcançar objetivos, mas também nos encontramos e somos afetados pelos encontros, nos entregamos e, ao fazê-lo, ocupamos espaços físicos, virtuais, sociais e emocionais que haviam sido tomados.

O fazer etnográfico que estamos propondo comporta compreender as estruturas políticas e econômicas geradas pelo capitalismo especulativo contemporâneo, a partir da percepção do sofrimento no cotidiano das pessoas. Comporta, ainda, perceber os padrões de distinção de idade, raça, etnia, religião, classe social, gênero, entre outros, que condicionam nossa percepção e nossa conduta no correr de ações comunitárias - mas buscamos evitar o uso desses quadros de interpretação macroestruturais como quadros explicativos que condicionam o microssocial.

Estamos gerando uma proposta teórico-metodológica que busque estudar e potencializar formas de resistência e produção de beleza que fortaleçam subjetividades rebeldes, que sejam sensíveis ao horror e que questionem a cotidianidade capitalista. Potencializar implica tomar consciência do outro e apoiar ações culturais voltadas para a convivência, beleza e resistência nos cenários de homogeneização cultural, crises político-econômicas e violência da sociedade globalizada.

A beleza é uma projeção de nossos desejos e uma qualidade potencial dos seres e pode ser encontrada inclusive na tristeza, na dor ou no sofrimento. Nós priorizamos a produção da beleza plugada à alegria, leveza e comunhão. Não se trata de gerar um mundo fantasioso que ignora as opressões da sociedade na qual vivemos. Trata-se de potencializar dimensões do bem viver que estão latentes, às vezes reprimidas ou esquecidas.

Quando falamos em resistência, estamos pensando nas ações coletivas voltadas para resistir à expansão e aprofundamento das desigualdades sociais e processos de homogeneização cultural nas sociedades capitalistas contemporâneas. Houve uma expansão das políticas públicas de inclusão na América Latina, em especial, Brasil e Venezuela nas últimas décadas, porém estamos assistindo, nos últimos anos, a um retrocesso capitaneado pelas forças elitistas e conservadoras em vários países da Europa e América Latina.

 

Pesquisando a beleza e a resistência

Estamos desenvolvendo uma Etnografia que seja uma ferramenta para pesquisadores comprometidos com ações culturais realizadas em contextos de violência e de crise político-econômica. Fazer Etnografia é potencializar o outro coletivo, é discorrer sobre o modo de vida do outro, sobre suas práticas cotidianas. O discurso do etnógrafo estabelece uma relação com o discurso do outro, percebe o discurso do outro a partir dos seus quadros teóricos, de seus valores e estruturas emocionais. A relação de investigação constitui o pesquisador social e o pesquisado, o sujeito que conhece e o sujeito que ele conhece.

O discurso do etnógrafo sobre o outro é distinto do discurso do sujeito-pesquisado, mesmo quando tentamos apenas dar visibilidade a esse discurso. O pressuposto é que o sujeito-pesquisado tenha introjetado, de maneira espontânea, os atributos culturais do meio em que vive, enquanto o pesquisador reflete sobre esses atributos. O pesquisador social exprime a cultura do sujeito-pesquisado condicionado aos quadros teóricos que utiliza para organizar suas observações e análises. Interpreta, contextualiza, traduz, produz sentidos, enquanto o pesquisado exprime de forma espontânea essa cultura na qual está imerso. Os discursos se situam em planos diferentes (Viveiros de Castro, 2002, p 1) e o etnógrafo corre o risco de predefinir e circunscrever o mundo do pesquisado com as informações que acessa de antemão (Viveiros de Castro, 2002, p 3).

Tradicionalmente, antes de ir a campo, o etnógrafo se informa sobre o conhecimento produzido a respeito da temática e sobre o grupo a ser pesquisado. No campo, seu olhar e seu ouvir, seu sentir, é disciplinado pela teoria. Ao voltar, organiza as observações e põe ordem nos fatos emoldurando-os numa teoria interpretativa. É um fazer Etnografia sobre o outro. Parece-nos importante superar essa postura para que sejamos afetados pela experiência de encontrar o outro, sendo assim, propomos fazer Etnografia na relação coletiva com o outro.

Se o pesquisador é um gestor ambiental, exemplo que acompanhamos de perto no Núcleo de Ecologia Urbana da Universidade Bolivariana em Caracas (Venezuela), que utiliza os princípios da Investigación Acción Participativa nas suas pesquisas, mesmo que pertença à mesma classe social das comunidades que assessora, ambos ocupam posições sociais diferentes. Essa pertença a uma mesma condição de classe se mescla com a diferença de posição na produção de conhecimento acadêmico. Um trabalhador social que usa a Psicologia Comunitária do cotidiano no trabalho com as equipes de assistência social, mesmo que tenha a mesma condição de classe dos atendidos, terá uma diferença funcional que condicionará a produção de conhecimento sobre o outro.

Partamos da premissa que outro é uma categoria mental construída socialmente que introjetamos desde tenra idade. Com Viveiros de Castro, propomos uma subversão no interior nessa relação pesquisador-pesquisado: ambos são pesquisadores sociais, cada qual a seu modo. Ambos perscrutam o ser o outro, o que fica mais patente nas fases de aproximação inicial de ambos. Acatamos a disparidade entre os discursos do cientista social e do sujeito pesquisado. Visando superar a prática de colonialismo intelectual, na qual o mundo acadêmico se apodera dos mundos investigados de forma cienciofágica, buscaremos a criação de espaços de encontro entre esses saberes. Neles, o comunitário se expõe e expõe suas impressões. Defendemos o reconhecimento de uma Psicologia, de uma Antropologia e de uma Ecologia nas práticas de sentido dos pesquisados.

Esse perscrutar mútuo entre pesquisador social e sujeito pesquisado aparece no correr das relações e das ações sociais no âmbito comunitário. No processo, podem surgir ambiguidades ou duplicidade de papéis e posições sociais: pesquisadores ou membros de equipes multidisciplinares que podem se tornar lideranças de determinadas atividades; pesquisando ou usuários que atuam como pesquisadores ou educadores sociais em determinados momentos, dessa forma, é importante assumir essas ambiguidades possíveis nos processos de ações cotidianas.

Uma Etnografia centrada na relação envolve compreensões, empatia, apreensões racionais, emocionais, físicas e intuitivas. Importa-nos mais as relações sociais geradas no processo de pesquisa e os saberes produzidos no processo do que os produtos finais em si. Há uma tensão contínua entre o que o pesquisado pensa e o que o pesquisador pensa que o pesquisado pensa.

Os momentos/espaços nos quais encontramos o outro podem ser atividades recreativas, aulas de dança ou reuniões, como ocorre na Ciranda de Londrina (Brasil). Os estudantes são também oficineiros e brincantes. Podem ser ações culturais como a brincadeira de Boi-bumbá de sotaque maranhense no Arraial dos Maranhenses em Boa Vista (Brasil), onde universitários, docentes e parceiros entram na brincadeira. Reuniões comunitárias reivindicativas, reuniões de planejamento com lideranças comunitárias, longas conversas crivadas de histórias alegres, tragédias e dúvidas, também estão inclusas nesses momentos de encontro.

Vale observar que os estudantes e docentes têm espaços de reflexão específicos nas universidades: reuniões de orientandos, reuniões de projetos de pesquisa ou extensão, orientações individuais. Os comunitários também terão espaços específicos de ressignificação de suas impressões: família, grupo de amigos, reuniões de diretoria. Os primeiros produzirão artigos, monografias; os segundos exprimirão seu conhecimento em falas e práticas comportamentais. Os primeiros dirigirão suas conclusões ao meio acadêmico no formato de conhecimento científico; os segundos formarão opinião em suas redes de relações nos meios sociais que frequentam.

O Recanto de Beleza e Resistência é um trabalho que está sendo feito, é uma teia de relações. É um espaço de interlocução e de intercâmbio. Temos que ir até as pessoas, saber delas, conversar com elas, brincar com elas, atuar com elas. Encontrá-las. Fazer com elas, não para elas. Como diz Viveiros de Castro (2002, p 5), é experimentar a imaginação alheia para fazer ficções teóricas sobre as impressões de mundo que constituímos. Acabamos por construir visões relativas de mundo no encontro de saberes na realização de ações culturais. Relativas porque relacionais.

O objeto dessa Etnografia é potência, mas esta pode não se manifestar como ato. A beleza e a resistência como estado sinergético são possibilidades e são voláteis, o que traz uma carga de imprevisibilidade para a pesquisa. Nossa intencionalidade nos orienta, mas nosso sujeito de pesquisa exige certa disponibilidade para a errância. É assim que, por exemplo, desenvolvemos várias atividades nos coletivos: caminhadas nas trilhas indígenas com os Pemones, em Santa Helena de Uiarén (Venezuela); brincadeiras de Boi-bumbá nos grupos de cultura popular maranhense, em Boa Vista (Brasil); capoeira e batalhas de rap, no Galpão Cultural em Assis (Brasil); recreação, dança do ventre, fisioterapia para idosos, aulas de zumba na Ciranda em Londrina (Brasil).

Somos afetados pelos sujeitos pesquisados. O processo de convivência é impactante. Vivemos em sociedades violentas. Há situações que nos afetam profundamente e nos mostram situações complexas em nós e nos outros com os quais fazemos trabalhos sociais. É importante identificar os sentimentos que nos acometem diante da miséria e da violência, perante os outros que estão ao nosso lado, tal como aconteceu num encontro com uma mulher, numa de nossas andanças.

Nossa equipe está fazendo o registro do Arraial dos Marenhenses 2016, uma mulher nos procura. Ela está com a filha de 14 anos, bem-vestidas. Nos conta que se separou há dois anos do marido, que se tornou usuário de pasta base de cocaína. Está desempregada. Roubaram seu botijão de gás e está cozinhando utilizando lenha. Está sem alimentos para dar aos três filhos há dois dias. Pede ajuda desesperada. Passa a noite conosco e conta suas histórias. Damos carona para ela ao fim das apresentações do Boi. Os três filhos são simpáticos e muito espertos. A porta está sem fechadura, devido ao arrombamento. Falta dinheiro para comprar comida. A ausência de perspectivas é desesperante para ela e para nós. No outro dia, providenciamos uma cesta básica e um botijão de gás. Conseguimos também uma bicicleta para ela se locomover. Na mesma semana, o ex-marido a procura. Mesmo estando sob medida protetiva, pois já foi espancada por ele várias vezes, ela fica com ele. A possibilidade de os caminhos da tragédia serem trilhados de novo se apresenta.

Às vezes nos deparamos com "emaranhados" de situações diante das quais nos sentimos impotentes. É o líder e guia indígena, crítico e consciente de seu papel, que vê seus dois filhos serem presos em flagrante num ponto de venda de drogas de Santa Helena de Uiarén (Venezuela); que vê os smartphones se multiplicarem nas aldeias e com eles o acesso a sites pornôs e a músicas eletrônicas; que se depara com o aumento da prostituição das jovens indígenas nas áreas de turismo da Gran Sabana; que vê seu país entrar num desabastecimento agudo, onde a fome campeia solta; que nos pede ajuda para reverter esse quadro social e nos calamos impotentes tocados pela tristeza. Só nos resta oferecer-lhe as lágrimas e cumprimentos de apoio. Reconhecemos nossos limites.

Por isso, necessitamos de espaços onde possamos expressar, conversar e trabalhar de forma lúdica e corporal nossos medos, angústias e raivas diante de situações de violência que nos afetam. Necessitamos estar atentos aos nossos impulsos de violência para evitar projetá-los sobre os demais, nem reproduzi-los quando estamos trabalhando com a comunidade. Há também as tensões e conflitos entre membros da equipe de pesquisa e entre participantes das atividades.

Às vezes, as situações cotidianas de pesquisa nos expõem pressupostos e conceitos que fomos construindo durante nossa vida, durante nossa carreira profissional, durante nossas atuações em projetos sociais. Trazemos uma visão de mundo, trazemos uma série de experiências e posturas. Quando nos encontramos em espaços compartilhados com o outro, tendemos a realizar uma operação de enquadramento. O oposto também é válido. Os participantes oriundos de outros grupos sociais distintos do nosso tendem a emitir juízos sobre nós a partir de conceitos já construídos. Por exemplo, quando uma oficineira de dança chega num carro de luxo e à primeira vista a situamos no mundo dos setores de renda alta da sociedade e projetamos expectativas comportamentais sobre ela, ou quando recebemos um adolescente que está em regime de liberdade assistida e nos pomos vigilantes em relação a ele. Como lidar com esses quadros de interpretação que compõem a nossa identidade pessoal e social?

À medida que vamos nos relacionando, mediados pelas ações culturais que acompanhamos ou desenvolvemos, construímos laços e formamos imagens uns dos outros. À medida que nos deparamos com desafios macrossociais presentes no cotidiano dos grupos, vamos desmontando e delineando quadros teóricos. À medida que convivemos, também redefinimos esquemas de percepção. Se permanecemos atentos ao movimento da vida no cotidiano estaremos, sempre, reelaborando esses quadros de referência. Se a vida se move continuamente, nossos quadros também devem se transformar permanentemente.

Podemos ajudar sem atrapalhar quando conversamos com as pessoas de forma compreensível, traduzindo os vocábulos técnicos das diferentes profissões e políticas públicas para que, tendo acesso a eles, possam ter mais clareza para tomar as decisões. Podemos, também, usar de nossa posição de intelectuais reconhecidos para mediar conversações entre grupos populares e órgãos governamentais ou empresariais.

O processo etnográfico é relacional e, conforme a proposta aqui apresentada, implica confiança. Nossos medos e receios, bem como os medos e receios dos sujeitos com quem trabalhamos, têm que ser assumidos e dirimidos no processo de convivência. Envolve compromissos e emotividade. O sujeito pesquisado assume características de uma anterioridade não compreendida na ordem da constituição do mundo, parte do mundo real, mas, ao mesmo tempo, "exterior" enquanto desconhecido, um sujeito vivo, mutante, condicionado, livre e imprevisível. Essa liberdade real do outro que pode ser compreendido, mas jamais enquadrado em explicações rígidas, coloca a Etnografia comunitária do cotidiano como uma relação entre sujeitos. Inclusive nós, pesquisadores, ao compreender esses sujeitos sociais e, portanto, o meio em que vivem, passamos a nos compreender, seja pelo efeito "espelho" no qual estabelecemos, de forma automática, comparações entre nosso mundo e o mundo onde mergulhamos; seja por força das vivências cotidianas durante a inserção.

Tal espelhamento implica num engajamento integral (intelectual, emocional e físico), contudo se resguarda a cientificidade na elaboração e análise dos dados, bem como na construção do referencial teórico. Supõe-se um movimento permanente de aproximação-distanciamento. Implica também num envolvimento com aqueles que estão sendo investigados, em alguns casos exige um comprometimento entre o pesquisador e os pesquisados (Brandão, 1985, p. 8).

A inserção do investigador não tem modelo e nem metodologia predeterminados. As organizações locais já desenvolvem projetos educativos, assistenciais ou religiosos, mas nem sempre ocorre a alquimia dos Recantos de Beleza e Resistência, pois estamos lidando com a potência que pode ou não virar ato. Os Recantos de Beleza e Resistência potencialmente podem se efetivar em qualquer lugar, ao mesmo tempo em que não estão em nenhum lugar de forma permanente. É a volatilidade inerente à sua manifestação social.

A presença é fundamental para sentir o espaço, o momento e os sujeitos com os quais estamos trabalhando, bem como os sentimentos que nos tomam; para ter sensibilidade na percepção do outro e a importância desse outro em nossa vida psíquica; para perceber detalhes, matizes da subjetividade, da forma mais humana possível (Cedeño, 2012, p. 53).

A documentação e registro dos fatos vividos durante o processo de pesquisa é um procedimento usual nas pesquisas sociais de cunho qualitativo. Essa proposta é um exercício de presença relacional. A formação de um banco de dados com esses materiais faz parte do processo de pesquisa, é a base para análise relacional que traz vestígios dos acontecimentos, pois contém elementos para o exercício ficcional da elaboração de representações relacionais.

A transformação desses materiais em um acervo público de informações ou aberto aos membros e apoiadores da comunidade deve ser encaminhada com cuidado. Imagens e fatos que envolvam situações constrangedoras ou privadas nem sempre podem ser expostas sem autorização dos envolvidos.

Detectar as reminiscências dos fatos vividos nos registros efetuados exige uma análise crítica do percurso, tarefa que continua, em última instância, sob responsabilidade dos pesquisadores. Transformar os dados etnográficos em informação científica, em obras de divulgação ou obras de caráter poético é um trabalho dialógico que deve levar em conta os vários olhares dos sujeitos participantes das ações O desafio está em estabelecer uma composição entre as expectativas do pesquisador com os desejos dos outros sujeitos envolvidos. As estratégias de caráter participativo que propomos para isso dependerão das condições reais de cada projeto de pesquisa. Ficção e realidade interpenetram-se na organização e interpretação dos registros, uma dando sustentação à outra como metáfora de uma existência concreta (Sequeira, 2010, 94).

 

Considerações finais

Estar presente é a condição básica para uma Etnografia errante, esteja ela percorrendo experiências culturais de comunidades ou caminhantes que vivem nos acostamentos das rodovias. Estar presente é condição básica para o encontro com o outro diferente. Estar junto ao outro demanda uma disponibilidade para ir ao seu encontro, para vencer distâncias, tanto as geográficas quanto, sobretudo, as distâncias sociais, culturais, subjetivas; distâncias, às vezes, permeadas por barreiras, construídas entre diferentes modos de ser e de se viver. A aproximação ao outro diferente e estranho e a presença, junto a ele, para um possível encontro, implica em disponibilidade para percebê-lo para além das palavras. É olhar, é tocar, é observar, é interagir, é expor-se, é estar no aqui e agora. Pode ser um simples aperto de mão ao cumprimentarmos um andarilho no acostamento de uma rodovia - coisa que dificilmente um pesquisador habituado a ambientes assépticos de pesquisa consegue fazer -, ou colocarmos nosso corpo inteiro na interação ao participarmos de uma oficina de dança num projeto cultural com pessoas de um bairro pobre. E os pressupostos: princípios, teorias, conceitos, valores, técnicas de observação e intervenção? Trazemos para o aqui e agora da ação em que estamos envolvidos e permitimos que nossas crenças sejam colocadas em xeque, permitimo-nos abrir mão de planejamentos, se necessário, permitimo-nos propor novos procedimentos. A situação concreta nos guiará. Podemos denominar isso de intenções flexíveis.

O direito ao bem viver e a construção de espaços-encontros é o horizonte utópico que estabelece o eixo do campo relacional no qual nos movemos. Em todo caso, é importante ter informações sobre o contexto micro e macrossocial no qual estão os sujeitos com os quais estamos trabalhando.

A pesquisa etnográfica tem enfrentado dificuldades para combinar temporalidade acadêmica com temporalidades distintas, como a dos errantes e dos Recantos de Beleza e Resistência. Somos pressionados pelo manejo institucional do tempo como produtividade. Foi o que observamos nas exposições dos projetos de Investigación Acción Participativa, do Núcleo de Ecologia Urbana da Universidade Bolivariana da Venezuela, realizado nos dias 16, 17 e 18 de março de 2016, em Caracas. O mesmo ocorre com os estudantes de Psicologia vinculados ao Projetos Recantos de Beleza e Resistência da Universidade de Londrina (Brasil) em 2016: fazer slow sciense quando a demanda acadêmica de um curso integral permite apenas frequentar a comunidade uma vez por semana por um período de quatro horas é difícil.

Nossa intencionalidade orienta a definição dos campos temáticos e nossa conduta nos encontros etnográficos. Cada atividade ou ação específica que vai surgindo comporá uma grande sinfonia improvisada na instantaneidade do movimento investigativo. Nesse campo, se manifestará o que nos habita e perpassa, inclusive pesares, lamentos e dores. Os temas perenes e pontuais presentes em nossa sociedade se manifestarão, porém as formas como serão abordados ou digeridos na pesquisa dependerão de cada situação.

 

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Recebido em: 23/9/2017
Aprovado em: 28/12/2018

 

 

1 Essas publicações foram arroladas como indicação de leitura para aqueles interessados em conhecer melhor o mundo dos andarilhos e o quanto a partir dele podemos pensar nosso próprio mundo e nosso cotidiano. Resumir toda essa literatura ampliaria demasiadamente o tamanho deste artigo e fugiria do seu foco, que é o metodológico. Com os acréscimos, as duas experiências não ficam ainda equilibradas, mas como a experiência de pesquisa com andarilhos tem bastante publicação, diferentemente da outra experiência relatada, um conhecimento melhor desta não fica prejudicado.

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