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Psicologia para América Latina

On-line version ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.spe México Nov. 2017

 

O método psicanalítico: pesquisas e populações indígenas

 

The psychoanalytical method: research and indigenous peoples

 

El método psicoanalítico: investigación y poblaciones indígenas

 

 

Daniela Bueno de Oliveira Américo de GodoyI

IUniversidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Departamento de Psicologia. Av. Bandeirantes, 3900 (Bloco D sala 7) Monte Alegre, 14040-901 - Ribeirão Preto, SP – Brasil, Telefone: (16) 33153808, godoyboa@gmail.com

 

 


RESUMO

São muitos os enfoques metodológicos no atinente ao trabalho de campo. Experiência e interpretação constituem os procedimentos básicos desta tarefa que frequentemente abarca relações de diálogo e dominação. Consideram-se quatro episódios decorrentes da presença indígena na universidade a fim de calcular as posições subjetivas relativas ao par "pesquisador" e "indígena". Por meio da análise da relação transferencial, sugere-se que a estrutura lacaniana dos quatro discursos possibilita mapear modos distintos de se lidar com a alteridade: o pesquisador assujeita o outro a seus modelos interpretativos pré-estabelecidos; convence seus colaboradores de que seu saber lhes é imprescindível; produz um saber movido por uma suposta demanda do outro ou cala-se e dá ouvidos àquilo que o campo lhe apresenta, reenviando o saber aos colaboradores. Espera-se ampliar a aplicação metodológica da psicanálise e contribuir para o debate acerca da autoridade etnográfica nas ciências humanas e sociais.

Palavras-chave: Psicanálise-metodologia; Transferência, Índios.


ABSTRACT

There are several methodological approaches regarding fieldwork. Experience and interpretation are the basic procedures for this task which includes dialogue and relations of domination. Four episodes related to the presence of indigenous peoples in the University are considered in order to calculate the subjective positions of the pair "researcher" and "Native". By analyzing the transference relationship, it is suggested that the Lacanian structure of the four discourses maps different ways of dealing with otherness: the researcher submits the other to its pre-established interpretative models; convinces his informants that their knowledge is essential to them; he produces a knowledge driven by an alleged other's demand or he keeps silent and listen to what the field displays, relaying knowledge to the field. It is expected to expand the methodological application of psychoanalysis and contribute to the debate on ethnographic authority in the humanities and social sciences.

Key-words: Psychoanalysis-methodology; Transference; Indians.


RESUMEN

Son diversos los enfoques metodológicos para el trabajo de campo. Experiencia e interpretación constituyen procedimientos básicos para esta tarea que engloba relaciones de diálogo y dominación. Se tomaron cuatro episodios resultantes de la presencia indígena en la Universidad para calcular las posiciones relativas a la pareja subjetiva investigador-nativo. Mediante el análisis de la relación transferencial, se sugiere que la estructura de los 4 discursos de Lacan permite mapear distintos modos de tratar con la alteridad: el investigador vincula al otro a sus modelos interpretativos preestablecidos; convence a sus informantes que su conocimiento les es esencial; produce un saber impulsado por la supuesta demanda del otro o el investigador guarda silencio y escucha lo que el campo le muestra, reenviando el saber a los colaboradores. Se espera ampliar la aplicación metodológica del psicoanálisis para contribuir al debate sobre la autoridad etnográfica en las ciencias humanas y sociales.

Palabras clave: Psicoanálisis-metodología; Transferencia; Indios.


 

 

Introdução

Historicamente, a produção de saber sobre o outro se relaciona a um processo de dominação (política, econômica, militar, cosmológica, cultural, ideológica etc.) cujo resultado expressa mais o mundo do pesquisador do que o do pesquisado. Ao falar do outro, revela-se o eu: mais do que o exame de uma realidade desconhecida, trata-se comumente de um exercício imaginativo, inspirado em modelos epistemológicos europeus, que acaba por projetar no outro desejos e repressões intrínsecos às culturas ocidentais (Said, 1990; Asad, 1973).

Ramos (2001), a respeito do indigenismo brasileiro, propõe haver um vasto aparato de representações acerca das populações indígenas, porém todas elas regidas por dois movimentos básicos: um de atração e outro de repulsão. Dependendo do interesse do grupo dominante, os indígenas são vistos como mantenedores da natureza, vítimas da civilização ou como obstáculos ao desenvolvimento nacional. De todo modo, eles são tratados como objetos ora a serem salvos, ora a serem eliminados. No entanto, como mostrado pela autora, eles não se submetem; apropriam-se dos discursos sobre eles e se fazem ver enquanto sujeitos.

A conquista dos direitos reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 e a luta pela garantia de seus territórios, bem como pela saúde e educação, apontam para o protagonismo indígena visando à pacificação do branco (Albert & Ramos, 2002). Enquanto o Estado, as práticas missionárias e as organizações não-governamentais reproduzem relações de tutela ou de semi-tutela, os povos indígenas lutam pelo direito a exercerem uma cidadania plena e diferenciada, com autonomia para decidirem o modo pelo qual tradição e modernidade se equacionam (Luciano, 2011).

Parte-se do pressuposto de que as sociedades indígenas se transformam sob a tentativa de dominação por outra cultura, que se julga superior, mas sem necessariamente corromper a substância imaterial que as distingue enquanto tais (Ponte, 2009; Andrello, 2006). Diante disso, como um pesquisador pode contribuir para o empoderamento indígena frente à pressão de discursos etnocêntricos e de modelos metodológicos que os objetificam?

Clifford (2002) sugere haver quatro estilos de autoridade etnográfica ao longo da história da antropologia, sendo que nenhum deles é puro ou obsoleto. Um seria fundamentado na experiência em campo – tal qual preconizado pela observação participante –, o contato sensível, a afinidade emocional e o acúmulo de conhecimento seriam suas principais marcas. Outro diz respeito à interpretação, que, por sua vez, depende da capacidade de descrição do pesquisador; esse estilo contribui para dar visibilidade ao fato de que os "objetos culturais" são inventados pelo pesquisador. Outro estilo de autoridade etnográfica seria o dialógico, o qual aponta para a intersubjetividade presente nas etnografias, relevando que a voz do pesquisador dialoga com várias outras. Por fim, o estilo polifônico tem por objetivo apresentar as diferentes vozes advindas do campo, partilhando assim a autoria e a autoridade com o pesquisador.

Devereux (1980) afirma que o trabalho de campo além da observação, inerente à prática etnográfica, deve levar em consideração sentimentos, sensações, pensamentos etc., suscitados no pesquisador, visto que sua subjetividade influencia o modo pelo qual a interação com o campo se estrutura. A subjetividade institui, ao mesmo tempo, o papel de observador e de observado tanto no pesquisador quanto no pesquisado, trata-se sempre de uma observação recíproca. Quanto a isso, Devereux (1980) sugere que esse processo deve levar o pesquisador a desenvolver uma auto-observação e uma consciência da complexidade desta interação pela análise das deformações que venham a afetar sua percepção em relação ao nativo.

Ainda que Clifford (2002) aponte para uma diversidade quanto aos estilos de autoridade etnográfica e que Devereux (1980) considere essencial a subjetividade do pesquisador frente aos dados obtidos, as diferentes posições assumidas pelo pesquisador em campo, bem como seus respectivos modos de produção de saber, restringem-se à esfera intersubjetiva. Compartilhando dessas mesmas preocupações, este ensaio procura outros modos de o fazer, mediante nuances conceituais advindas da psicanálise. Visa-se ultrapassar o âmbito das relações egoicas para abarcar o campo da relação entre subjetividade e alteridade.

Ressalte-se a relevância ético-política desta empreitada, cuja finalidade é contribuir metodologicamente para uma escuta refinada das populações indígenas, conforme assinalado por Silva e Grubits (2006).

Para tanto, consideram-se quatro episódios testemunhados durante o desenvolvimento de uma pesquisa2 sobre a subjetividade de estudantes indígenas universitários, os quais se referem a eventos científicos organizados por eles em parceria com as universidades em que estudam.

Durante um ano e meio de trabalho de campo (de 2014 a meados de 2015), as relações estabelecidas entre pesquisadores e pesquisados (e entre docentes / funcionários e estudantes indígenas) foram observadas para além do âmbito do enunciado, ou seja, do conteúdo propriamente dito. Mais do que focar na suposta intenção relativa a uma fala, o intuito era apreender a enunciação, o que de fato estava sendo dito por quem e para quem. Em outras palavras, discutir a subjetividade indígena na universidade implica considerar relações de poder e questionar o lugar normalmente atribuído a eles nesses casos.

 

Episódio 1

Refere-se a um workshop cujo objetivo era discutir a assistência à saúde indígena com foco na formação de profissionais de saúde e na implementação do subsistema de saúde indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Os palestrantes, com reconhecida experiência de atuação na saúde indígena, apresentaram relatos de trabalhos e pesquisas realizados em aldeias indígenas, sobretudo na região norte do país.

O evento, embora planejado por estudantes indígenas, contou apenas com dois de seus representantes (do curso de medicina, por já terem atuado em suas comunidades como enfermeiros) na última mesa redonda do workshop. É inegável a relevância de um evento como esse que, para discutir a saúde indígena, teve que abordar questões históricas, políticas, epistemológicas e culturais intrínsecas às relações entre a sociedade dominante e esses povos. No entanto, parece sintomático que as críticas tenham se reduzido ao âmbito da argumentação.

De modo geral, foi comum a ideia de que os conhecimentos indígenas devem ser respeitados, que a medicina tradicional deve caminhar lado a lado com a medicina ocidental, conforme a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (2002). Porém, já que havia inúmeros estudantes indígenas presentes, muitos deles inclusive da área da saúde e com alguma experiência, por que não ter mais espaço para o diálogo? Por que não convidar pajés, curandeiros e xamãs para debates deste porte?

 

Episódio 2

Tratou-se de uma situação presenciada durante uma das mesas redondas de um evento organizado em função do "Dia do Índio". Diferentemente do evento anterior, não apenas a organização, mas todas as discussões foram realizadas por indígenas, já graduados ou graduandos. O episódio a que este relato se refere se deu durante o debate sobre os desafios relativos à pós-formação.

Os palestrantes indígenas falaram principalmente sobre as dificuldades enfrentadas durante a graduação e também em relação ao acesso à pós-graduação. O lugar incômodo de ser objeto de pesquisas (dentro e fora das aldeias), o preconceito oriundo de alunos e de professores que não os consideram aptos a cursarem a universidade, o choque cultural, a saudade da família, as dificuldades para a entrada em programas de pós-graduação. Os estudantes indígenas, ao apresentarem os problemas por eles vividos, estavam reivindicando, junto aos órgãos competentes, uma maior inserção neste debate, como também relembrando os seus predecessores que, independentemente de terem desistido do curso, abriram caminho para que eles pudessem estar ali. Ou seja, estavam compartilhando informações e vivências entre si e, ao questionarem as consequências da entrada no ensino superior, estavam também elaborando conjuntamente estratégias para lidar com esses conflitos.

No entanto, um docente da instituição que estava assistindo disse que as críticas eram injustas, porque muitos professores não apenas estavam se mobilizando quanto à questão do acesso à pós-graduação, como era graças a eles que os indígenas estavam estudando naquela universidade. Afirmou estar decepcionado e ofendido, sobretudo no que dizia respeito aos profissionais que eram aliados dos povos indígenas. Citou pesquisas que realizou no norte do país e afirmou seu conhecimento sobre as mazelas e abusos que os povos indígenas vêm sofrendo desde o início do contato com os não-indígenas. Depois de ter falado de si, do bem que faz a esses povos, pediu uma salva de palmas para o novo coordenador das ações afirmativas daquela universidade ali presente.

Os estudantes indígenas prontamente responderam às "acusações". Afirmaram que o propósito daquela mesa era repensar os desafios vividos por eles ao longo do caminho percorrido naquela universidade e que nem sempre a realidade vivida correspondia aos direitos adquiridos.

 

Episódio 3

Depois de um ano convivendo com os estudantes indígenas durante os eventos científicos por eles promovidos, houve a oportunidade de passar uma noite com eles, num evento cuja duração era de dois dias. Essa experiência foi vivida como um rito de passagem, uma aceitação da minha presença. Ressalta-se o cuidado a mim dispensado por um estudante do campus onde estava acontecendo o simpósio, que me auxiliou a encontrar uma acomodação e que de tempos em tempos vinha checar se estava tudo bem.

Havia um misto de formalidade ("professora, a senhora precisa de alguma coisa?") e de informalidade, porque diversos estudantes falaram sobre suas angústias, conflitos, saudades; mas, também sobre suas expectativas, desejos e críticas em relação à universidade e a tudo relacionado a ela: professores, pesquisadores, alunos, burocracia, modelos de ensino, etc., de modo livre e espontâneo.

Além dessas conversas, como é comum em confraternizações entre estudantes universitários, havia música e bebida alcóolica. Alguns participaram da "balada", outros foram estudar, outros foram dormir. Os que ficaram bebendo e dançando o fizeram até às cinco da manhã. No dia seguinte, uma estudante indígena que não participou da festa, disse: "ah, como bebem esses indiozinhos", ao que se lhe respondeu: "e não é isso o que normalmente fazem os estudantes universitários quando se encontram fora de situações acadêmicas?".

 

Episódio 4

Em agosto de 2014 foi realizado o II Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) na cidade de Campo Grande; um evento que reuniu estudantes, intelectuais, profissionais e lideranças indígenas de todo o país. Os temas discutidos foram: políticas públicas para a educação superior indígena, o pesquisador indígena e sua comunidade, a luta pelo território, os desafios da pós-formação, a construção de uma saúde indígena diferenciada e o desejo de uma universidade indígena intercultural. A maioria dos palestrantes era indígena, bem como a grande maioria da plateia. Nos quatro dias do evento havia apenas cinco não-indígenas, dentre os quais a autora.

Aquela era uma ocasião organizada por eles e para eles. Não se está dizendo, contudo que se tratava de um ato de segregação, mas de um espaço em que poderiam discutir sem a interferência dos não-indígenas questões fundamentais aos seus interesses. Disso decorre que em muitos momentos a dicotomia nós (indígenas) x eles (não-indígenas) constituía o pivô argumentativo tanto no plano político, quanto no pedagógico. As questões debatidas tinham o objetivo de propor alternativas, desde uma lógica indígena, às imposições culturais e ideológicas decorrentes do contato.

Mais do que se ater ao conteúdo dessas diferenças – inclusive porque muitas delas são vistas como positivas –, o desafio parecia ser o de não sucumbir aos meios pelos quais a diferença se coloca. Ou seja, os povos indígenas que requerem o acesso ao ensino superior não são contra o contato, querem, no entanto, negociar as formas pelas quais ele ocorre. Donde pôde ser constatado as seguintes questões: "como garantir os modos indígenas de ser e de pensar?" e "como fazer para que a voz indígena tenha representatividade por si mesma?".

 

Os quatro discursos

Como pensar, então, a ação do pesquisador em campo?

Lacan (1992) a partir da estrutura dos quatro discursos possibilita que estas questões possam ser respondidas de quatro modos distintos. Isso porque o sujeito se faz representar pela combinatória de dois significantes. Na verdade, trata-se de dois conjuntos de significantes: um que representa o sujeito para os demais (o S1) e o outro formado pelos "demais significantes3". No entanto, essa representação simbólica não consegue abarcar a totalidade do sujeito, porque há sempre um resto4 irrepresentável. A partir disso, Lacan (1992) sugere que, dependendo do elemento (S1, saber, sujeito ou resto) que assumir a posição de agente, a tônica do discurso se altera. Deste modo, "(...) todo e qualquer discurso apresenta uma verdade que o move (...) sobre a qual está assentado um agente, o qual se dirige a um outro (...) a fim de obter deste uma produção" (Jorge, 1997, p. 158 – grifos nossos), que seria o próprio discurso. Resumidamente, quando na posição da verdade encontra-se o sujeito, na de agente o S1, na de outro o saber e na de produção o resto, temos o discurso do mestre, cuja tônica é a dominação. O sujeito esconde-se atrás de um significante (Grosrichard, 1987), de algo que toma como verdade universal, e luta para que tudo se encaixe em suas convicções. Não há espaço para o saber do Outro, já que é um traço de si que serve de modelo para todo o resto. O resultado disso é o assujeitamento do outro.

Ao efetuar um quarto de giro alterando os elementos e mantendo as posições, temos o discurso histérico, aquele que possibilitou o surgimento da psicanálise. Ao reconhecer que algo lhe falta, o sujeito sai em uma busca incessante pelo seu preenchimento. Para tanto, ele elege como outro um mestre, alguém a quem supõe um saber e que, por isso também poderia produzir um saber a seu respeito.

Mais um quarto de giro e temos o discurso do analista, que é o inverso do discurso do mestre. O saber no lugar da verdade apresenta-se como um enigma – "como saber sem saber?" (Lacan, 1992, p.33) – o que implica o dever da interrogação dirigida ao sujeito; função esta desempenhada pelo resto na posição de agente. O analista é aquele que abdica de um saber a priori do que o sujeito lhe enuncia e que, ao questionar o sujeito sobre o seu desejo, possibilita que este produza novos sentidos para seu ser. Enquanto o discurso do mestre visa assujeitar o outro, o discurso do analista visa reenviar o sujeito a seu próprio desejo.

Por fim, temos o discurso universitário. O saber na posição de agente produz um sujeito dissociado de seus significantes primordiais, visto que o objetivo deste discurso é vir a saber sempre mais. Sua tônica é objetivar o outro, fazendo com que ele apenas reproduza enunciados, como um mero porta-voz de um saber já estabelecido (Jorge, 1997). Apresenta-se como o inverso do discurso histérico, já que esse produz o saber e não sua mera reprodução.

Poderiam esses discursos contribuir para a compreensão da ação do pesquisador em campo e as implicações da forma pela qual a interpretação dos dados se efetua? Para tanto, considera-se necessário abordar os tipos de relação transferencial derivados desses discursos, aqui sintetizados: a) o pesquisador assujeita o outro a seus modelos interpretativos pré-estabelecidos (discurso do mestre); b) o pesquisador produz um saber movido por uma demanda (discurso da histérica); c) o pesquisador se cala e dá ouvidos àquilo que o campo lhe apresenta, reenviando o saber ao sujeito, no caso, aos colaboradores (discurso do analista); d) o pesquisador convence seus colaboradores de que seu saber lhes é imprescindível (discurso da universidade).

 

A transferência

Para Gueguen (1997) a transferência – como um fenômeno da vida cotidiana – se apresenta em função de sentimentos (amor, ódio, indiferença, confiança, desconfiança, angústia, etc.) que afetam a mensagem, a qual só pode ser transmitida à custa de numerosas distorções. Tanto quem enuncia quanto aquele a quem a mensagem é dirigida produz essas distorções. Por esta razão, a psicanálise não se atém à mensagem, conteúdo de significações que supostamente comunica algo, mas às posições assumidas entre os interlocutores no discurso. Conforme Lacan (1998a), esse fenômeno não se restringe à prática clínica, antes esta oferece um modo de lidar com ele:

Mesmo se devemos considerar a transferência como um produto da situação analítica, podemos dizer que esta situação não poderia criar o fenômeno todo, e que, para produzi-lo, é preciso que haja, fora dela, possibilidades já presentes às quais ela dará composição, talvez única. Isto não exclui de modo algum, onde não haja analista no horizonte, que ali possa haver, propriamente, efeitos de transferência exatamente estruturáveis como o jogo da transferência na análise. Simplesmente, a análise, ao descobri-los, permitirá lhes dar um modelo experimental que não será de modo algum forçosamente diferente do modelo que chamaremos natural. (p. 120-121)

Os efeitos da transferência podem ser observados em qualquer relação interpessoal. Para a psicanálise, esses efeitos constituem a via de acesso ao sujeito do inconsciente. Mas de que forma a relação transferencial estabelecida na psicanálise se difere das demais? A diferença reside nos parâmetros utilizados para sua análise. Não se trata de focar naquilo que a pessoa do analisando diz para a pessoa do analista, muito menos naquilo que esse compreende do que lhe é dito, mas – a partir da concepção de que o inconsciente atesta a constituição do sujeito como efeito da linguagem – de calcular o lugar de onde o sujeito se enuncia e o lugar de que ele espera que o Outro5 responda. Isso implica abandonar o âmbito egoico, das individualidades, para adentrar na realidade do inconsciente.

Esse deslocamento analítico da esfera interpessoal para o das posições subjetivas do ser, presente na psicanálise lacaniana, não precisa se restringir à prática clínica. Pesquisas desenvolvidas no contexto social apontam nesta direção (Crapanzano, 1992; Favret-Saada; 1977, Devereux, 1972) sendo o presente texto uma tentativa de elucidar as diferentes estruturas do discurso que subsistem nas relações entre pesquisador e pesquisado para além daquilo que é dito.

Uma vez apontado que a transferência é um fenômeno próprio a qualquer relação humana, quais seriam suas especificidades no contexto da pesquisa de campo? Contrariamente à clínica, é o analista-pesquisador quem formula uma pergunta e busca por respostas endereçando a um grupo específico de colaboradores esse saber. À primeira vista, a demanda pelo saber neste tipo de encontro transferencial não advém do pesquisado, mas do pesquisador. Como, então, calcular as posições do sujeito no discurso, já que é o outro que se pretende compreender, se essa posição parece se confundir com aquela do pesquisador? Corresponderia o pesquisado à categoria de objeto (de estudo) ou à de sujeito produtor de sentidos? Ou, ainda, seria a pesquisa de campo um espaço privilegiado de interlocução e de relação intersubjetiva (Clifford, 2002)? Voltemos à concepção lacaniana de transferência.

No seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1998a) articula a transferência em relação ao inconsciente (ela é sua atualização), à presença do analista (que invoca o campo do Outro), situando-a não como obstáculo, mas como condição mesma da análise. Essas três referências não esgotam a temática, mas dão conta da argumentação aqui em pauta. O inconsciente, como jogo combinatório de significantes veiculado pelo Outro, está desde sempre presente na relação subjetiva. O sujeito diz sempre mais do que crê dizer e o faz de um lugar específico, equacionado a partir daquilo que do dizer do Outro lhe é enigmático. Os sentidos daí advindos não provêm de uma interioridade, mas do trânsito significante entre sujeito e Outro. Escutar o sujeito é, portanto, escutar um tipo de relação estabelecida com o Outro.

A verdade de um dizer não se coloca no nível do enunciado que, para Lacan, é o caminho para a tapeação, mas no nível da enunciação. Não se trata de referir o sujeito à realidade, aos fatos ou à razão, mas de vê-lo surgir no campo do Outro, forjado pelos significantes que lhe foram atribuídos e com os quais constitui seu desejo6. Isso é o que está em pauta na análise e a transferência atualiza esse processo, que nada mais é do que a realidade do inconsciente. Tem-se com isso que ela é um modo específico de se estabelecer relações. É isso que se repete. O analista, ao fazer semblante de objeto, se empresta ao lugar que lhe é concedido pelo analisando, para que este perceba os modos pelos quais ele mesmo se oferece como objeto ao Outro. Em suma: o analisando ao tentar fazer com que o analista corresponda ao que ele espera dele, o analista não responde desse lugar, mas ao reconhecer a regência do desejo do Outro, coloca-se a serviço do analisando, no sentido de que ele venha a se encontrar neste desejo.

A função do analista é, então, se prestar a ser o depositário do sujeito suposto saber. O analisando espera que ele saiba a resposta sobre seu ser. No entanto, o analista parte ao encontro do desejo inconsciente, pivô do que se articula na transferência. Àquilo que lhe é demandado, o analista responde reenviando o sujeito ao seu desejo. É por esta razão que o analista deve se esvaziar de conhecimentos, de julgamentos, não sendo sua pessoa modelo nem ideal para o analisando (Lacan, 2008a; 1967-68). Lugar vazio na relação, a função do analista consiste apenas em convocar a aparição do sujeito, em fazer com que ele (se) enuncie e que ao fazê-lo construa novos sentidos.

Se a análise não visa adequar o sujeito a uma suposta realidade, domesticando-o ou referindo-o a alguma normalidade, é porque seu objetivo é referi-lo a seu desejo. E a transferência é a única condição de acesso a ele porque, por meio desta, não se coloca em relação "dois inconscientes", mas se evidencia o funcionamento inconsciente do qual o analista (enquanto função) faz parte: "a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista" (Lacan, 1998a, p. 219). Neste sentido, não há análise que não seja análise na transferência.

Disso tudo, temos que o simples fato de haver enunciação já implica a transferência, porque a fala supõe um tu, alteridade que na situação analítica não implica um semelhante (outro), mas o Outro (Speller, 2002). Da perspectiva da psicanálise, a transferência é uma objeção à intersubjetividade, por levar a sério a dimensão do desejo do Outro como constitutiva do sujeito.

 

Discussão

Desde a perspectiva lacaniana, os quatro episódios relatados sugerem modos diferentes de estruturar a relação entre pesquisador e pesquisado. Para afirmar essa diferença é preciso deixar claro que a psicanálise não se atém àquilo que é dito (o conteúdo da fala), mas àquilo que ordena e regula os vínculos sociais entre as pessoas. Neste sentido, "a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala" (Lacan, 2008b, p. 11) ou, dito de outro modo, um discurso sem palavras. A enunciação ultrapassa o enunciado na medida em que o dizer se mostra por meio do ato. Os episódios narrados assinalam, portanto, lugares enunciativos, modos específicos de se tratar o outro, no caso, os indígenas universitários.

O primeiro deles apresenta um saber (dos palestrantes: pesquisadores, docentes e profissionais com reconhecida experiência na temática da saúde indígena) sobre o outro (povos indígenas), de modo que este – enquanto objeto de estudo – deve se esforçar para aprender e reproduzir este saber. Os estudantes indígenas ali presentes estariam lá para isso. Não houve espaço para o diálogo porque, implicitamente, não lhes era suposto nenhum saber a mais. A experiência deles em suas comunidades, como usuários ou como profissionais do sub-sistema de saúde indígena, nada acrescentaria ao saber médico ou antropológico já instituído, no máximo, acrescentaria exemplos.

Essa é a estrutura do discurso da universidade. O desejo em questão é o do pesquisador, que visa saber sempre mais, mas a partir de um lugar já determinado por esse mesmo saber. O outro não produz sentido, apenas oferece material para que o pesquisador analise e proponha uma interpretação. A alteridade se esvaece, coisificada pela ação de uma verdade que lhe é exterior. A posição de sujeito é ocupada pelo pesquisador, porque de início não há espaço para o não saber, para um saber Outro que não o seu. Aos indígenas ali presentes, a quem supostamente o evento se dirigia já que tinha sido organizado por estudantes indígenas, o que estava sendo dito era: "volte[m] depois para falar do seu desejo, agora não é hora para isso" (Lacan, 1986, p. 367).

O segundo episódio apresenta uma situação na qual o conhecedor, parceiro, e benfeitor das causas indígenas, se vê deslocado desse lugar, justamente por aqueles a quem se dedica a ajudar. Sua enunciação visa fazer com que o outro, a categoria de "estudantes indígenas", não apenas reconheça o bem que lhes é feito, como perceba que sem sua ação ele jamais existiria.

Frente a questionamentos do outro, fruto de um movimento que intenta mexer no status quo da universidade, já que discutem modelos pedagógicos, o acesso e a permanência não apenas na graduação, mas na pós-graduação, um de seus representantes – o docente / pesquisador – responde colocando-os no lugar que lhes cabe neste discurso: o de objeto. Os estudantes indígenas só estariam ali porque professores parceiros da causa assim o permitiram. O fato de o movimento indígena reivindicar o acesso ao ensino superior, que se iniciou em termos de licenciaturas interculturais, parece se apagar frente à decisão de um grupoespecífico. A estrutura desse discurso mostra que o sentido do enunciado se sustenta numa fala sem falhas (Longo & D'Agord, 2011). Logo, não é possível admitir que o outro tenha uma interpretação diversa de um mesmo fato, ele só pode estar enganado.

No discurso do mestre, o sujeito encontra-se alienado num saber. Neste caso, mais do que reproduzi-lo ou de fazer com que o outro se convença do mesmo, é imperativo subjugar o outro a este saber. As representações teóricas sobre o outro – elaboradas por meio de pesquisas científicas, as quais dão um estatuto de verdade para essas representações – têm uma consistência tal que o assujeitamento do outro a esse saber parece ser aquilo que deve ser feito. Todavia, Vaz (1990) afirma que o discurso do mestre não predomina nas tradições orais, como constatado nas obras de Lévi-Strauss e de Pierre Clastres, donde a "naturalidade" dos estudantes indígenas quanto à não aceitação dessa dominação. Ou seja, é possível supor que eles não se colocaram no lugar de assujeitados, porque essa configuração discursiva não faz parte de suas organizações culturais e sociais.

Enquanto o primeiro e o segundo episódios apresentam a relação entre pesquisadores e pesquisados; relação esta perpassada por aquela entre professor e aluno, o terceiro episódio marca minha entrada em campo não apenas como observadora, mas como participante. Spink (2003) sugere que o campo é um argumento em que o pesquisador se insere e que por esta razão implica múltiplas territorialidades, antecedendo o contato direto com os colaboradores. Embora essa ideia de "campo-tema" situe o modo como  o pesquisador lida com uma temática, não se pode negar o peso das relações estabelecidas tête-à-tête. É isso que está em pauta no momento. Até então, eu era mais uma na multidão, estava sendo observada, estudada por eles. Poderia ser considerada pesquisadora por ter o aval do Comitê de Ética e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, mas não por ser reconhecida enquanto tal pelos colaboradores. Poderia, de fato, assumir essa posição?

O que se passou nesse terceiro evento considerado mostra que não só tinham aceitado minha presença, como se interessavam por ela, já que muitos me perguntaram o porquê de minha participação em tantos eventos acadêmicos indígenas. As interações entre mim e eles já não eram mais frutos de uma investida somente de minha parte. Quando passei a ser reconhecida como pesquisadora é que as enunciações começaram a aparecer. A afirmação da estudante indígena, dirigida à pesquisadora, quanto à ingestão de álcool por seus colegas, indica que ela a toma por alguém que sabe sobre o assunto (saúde mental indígena) e que, neste lugar – de mestre – poderia tecer um saber sobre aquilo que aparentemente é uma afirmação, mas que é tomado pela pesquisadora-analista como uma pergunta.

Essa é a estrutura do discurso da histérica, que tem como tônica fazer com que o outro enuncie uma verdade sobre seu ser (no caso dizia respeito à propensão ao consumo exagerado de álcool). Como mencionado anteriormente, é ele quem possibilita o surgimento da psicanálise, por instaurar o analista como sujeito suposto saber. No entanto, conforme o discurso do analista demonstra, o analista nada sabe, sua função consiste em devolver ao sujeito sua fala para que ele possa se descolar de enunciados no qual ele veio a se alienar.

Se tivesse me identificado com o papel da psicóloga sanitarista teria produzido explicações para o que ela havia dito, teria assumido então o lugar de mestre. Procurando garantir as bases para uma escuta analítica, busquei contextualizar a "preocupação" ao mostrar a divisão ali implícita: ser indígena x estudante universitário, que parece constituir a base da maioria dos conflitos por eles vivenciados. O objetivo da resposta não era, portanto, elaborar um veredicto para orientar ou normatizar condutas; era colocar um enigma ali onde se supunha uma verdade.

O quarto episódio relata minha experiência diante de alguns acontecimentos que sugerem um estranhamento acerca da alteridade. A mudança de um evento científico de um lugar para outro poderia ser considerada como uma atitude antiprofissional dos organizadores. Se somarmos a isso o fato de a pesquisadora fazer parte da categoria "eles", criticada ao longo do evento, respostas projetivas de teor negativo poderiam facilmente ter ocorrido. Isso quer dizer que supor sentidos ao outro em função de percepções ou sensações próprias leva facilmente a compreensões etnocêntricas.

Terminar o relato com perguntas aponta para outra direção, para um esvaziamento do saber. Como não-indígena, a autora reconhece que não deve se propor a responder tais questões. As pessoas capazes de dizer "como" e "se" é possível garantir os modos indígenas de ser e de pensar e como fazer para que a voz indígena tenha representatividade por si mesma são os indígenas.

Além disso, não se pretende "dar voz" aos indígenas, porque eles já a têm, mas "dar ouvidos" a essa voz, testemunhar questões, conflitos, expectativas, desejos, para que – na qualidade de parceira das causas indígenas – a autora possa contribuir multiplicando a visibilidade dessas questões. A relação entre pesquisador e pesquisado (mesmo que neste caso se configure como "campo-tema" (Spink, 2003)) visa outra no plano ético e político, a qual reafirma o outro no lugar de sujeito.

Essa é a estrutura do discurso do analista. O pesquisador, ao ocupar o lugar de agente a partir de uma proposta de silêncio, "não pretende nenhuma solução" (Lacan, 1992, p. 66), porque ele é o objeto e o outro sujeito (nos outros discursos o outro é tratado como objeto (discurso universitário), como escravo (discurso do mestre) e como mestre (discurso da histérica)). O pesquisador, tal qual o analista, passa a ser o meio pelo qual o outro pode se ouvir. Isso significa que:

Tratar o outro como sujeito é possibilitar que ele se manifeste com sua singularidade (...) Mas o sujeito considerado pela psicanálise é o - sujeito do inconsciente - que ao tomar a palavra não pode dizer tudo, na medida em que não é unívoco. Sendo assim, o que o sujeito vai deixar aparecer são seus equívocos – o mal-entendido – para que disso emerja, como produto do discurso os significantes singulares de cada sujeito. O sujeito no discurso do analista é, portanto, um sujeito ativo, inventivo, criativo, um sujeito que trabalha, que não está pronto e acabado. (Almeida, 2010, p. 896)

Em outras palavras, isso implica admitir que o outro tem sempre respostas incompletas para suas próprias questões e que elas podem ser incoerentes, paradoxais sem que com isso deixem de ser legítimas. Quando o pesquisador se empenha em dar consistência teórica ou interpretativa àquilo que o campo enuncia acaba por dominar o outro pelo saber (conforme a estrutura do discurso universitário), pelo poder (conforme a estrutura do discurso do mestre) ou pela sedução (conforme a estrutura do discurso da histérica) (Almeida, 2010).

E como o sujeito para a psicanálise não se reduz à pessoa, o campo – a temática da subjetividade indígena no ensino superior – pela enunciação de traços que se repetem, se mostra sujeito. Dar ouvidos a essa temática é dar ouvidos a um modo específico de subjetividade. A singularidade não precisa se restringir à individualidade porque, simbolicamente, os traços admitem uma plasticidade, ainda que regidos por uma mesma lógica combinatória. Com isso, o discurso do analista possibilita vislumbrar algo do sujeito, pelos efeitos mesmos de sua enunciação.

 

Conclusão

As quatro modalidades de laço social, apresentadas por meio desses episódios, não são estanques. A estrutura do discurso implica posições (verdade, agente, outro, produção) e o giro dos elementos (sujeito, S1, saber, resto) nessas posições; o que pressupõe certo dinamismo nas relações. A particularidade desta compreensão do discurso, enquanto estrutura, evidencia a impossibilidade de reificação do Outro. O resto nele incluído demarca esse fracasso, visto que é por causa dele que as posições discursivas podem se alternar. Se não houvesse falhas, se a linguagem conseguisse definir o sujeito e outro, não haveria desejo, conflito nem movimento.

Os discursos, no contexto da relação pesquisador-pesquisado, apontam modos de se tratar o outro e não dizem respeito às pessoas envolvidas em cada episódio. Um mesmo pesquisador pode, dependendo da situação, tratar o outro como objeto, como servo, como mestre ou como sujeito. O aporte psicanalítico a essa questão diz respeito, conforme já apontado por Devereux (1980), à possibilidade de o pesquisador refletir sobre a sua ação em campo e sobre o campo, o que lacanianamente significa compreender a posição que o outro lhe atribui (Bairrão, 2005) e, a partir daí, possibilitar que ele mesmo (o outro) se escute.

Tendo em vista essas possibilidades de laço social, retomaremos agora a questão da transferência. Para Lacan (1998a) "desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (...) há transferência" (p. 220), ou seja, a transferência pressupõe a suposição ao outro de um saber. No caso do discurso universitário, o pesquisador é o meio pelo qual o saber estabelecido se reproduz, sendo que o pesquisado deve se convencer dessa supremacia, sendo instrumentalizado por ele. O saber é suposto a ele mesmo, aos títulos e cargos universitários. Não há lugar para o novo, apenas para a repetição do mesmo. No discurso do mestre, o pesquisador encontra-se alienado em suas teorias às quais o pesquisado deve se sujeitar. A verdade encontra-se do lado do pesquisador, a pesquisa é apenas uma forma de comprová-la. Não há espaço para o saber do outro.

Nesses dois casos, o pesquisado é tido como objeto e o pesquisador se relaciona com o saber que o constitui neste papel. Se há transferência nesses dois discursos é no sentido de que o pesquisador se dirige ao saber para corroborar seu estatuto dominante. É esse saber que sabe sobre o outro e que determina como o outro deve ser tratado, se será cuidado ou tratado como um problema e quais são as melhores formas para isso.

No discurso da histérica, o sujeito demanda ao outro um saber. Mas no caso da relação entre pesquisador e pesquisado, quem ocupa a posição de sujeito e a de outro? De modo geral, o pesquisador vai a campo com uma pergunta, supondo que seus colaboradores possam produzir um saber a partir dela. Se essa questão for relevante apenas para o pesquisador, ele se fixa na posição de sujeito e exige que o outro produza um saber que é importante para o progresso científico, mas não necessariamente para aqueles que estão sendo pesquisados. Se essa questão for um eco daquilo que se constitui como nodal ao campo, o pesquisado irá supor ao pesquisador um saber (como no episódio 3) e, a partir daí, o pesquisador poderá responder pela instituição do discurso do analista, ou seja, não identificando-se com esse suposto saber, mas agindo em função dele. Nesta estrutura, os dados referem-se ao campo – tido como sujeito – e mostram o saber do outro. O pesquisador e suas explicações se calam dando espaço para as configurações simbólicas enunciadas pelo campo. A observação recíproca proposta por Devereux (1980) não precisa se submeter a sensações ou percepções do pesquisador, mas se inserir no âmbito da estrutura, ou seja, do cálculo das posições que o pesquisado atribuiu a si mesmo e ao pesquisador.

O discurso do analista se mostra, então, como um desafio. Muitas são os riscos (Gorostiza, 2005) no trabalho de campo com as populações indígenas. Deixar-se guiar pelos afetos, querer convencer ou dominar outro (o que inclui o desejo de salvá-lo) e operar desde a individualidade, são alguns exemplos dessas tentações. Entretanto, é historicamente reconhecida a habilidade ameríndia de se constituir como sujeito, ainda que aos olhos de muitas parcelas dessas populações pareçam assujeitadas (Viveiros de Castro, 2012; Gow, 2003). A consideração da relação transferencial no trabalho de campo busca, portanto, dar ouvidos à alteridade tal qual ela se coloca.

 

Referências

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1 Pós-doutora em Psicologia pela FFCLRP-USP, especialista em topologia lacaniana. Desde 2006 atua na psicologia social, principalmente no campo das religiões afro-brasileiras e das culturas indígenas.
2 Trata-se de uma pesquisa de pós-doutorado aprovada pelo Comitê de Ética da instituição a ela vinculada e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CAAE no. 27960314.1.0000.5407).
3 O conjunto de significantes do qual se extrai um (S1) que representa o sujeito para os demais significantes, recebe a notação de "S2" na teoria lacaniana e indica o saber inconsciente que organiza e que dá consistência ao conjunto de dizeres relativo ao sujeito.
4 O "resto" na psicanálise lacaniana apresenta-se como aquilo que é heterogêneo à cadeia significante, ou seja, é um produto residual da operação simbólica sobre o corpo. Na álgebra lacaniana recebe o nome de objeto a.
5 Na psicanálise lacaniana, o Outro diz respeito às possibilidades de produção de sentido. Todavia, mesmo sendo constituído na e pela linguagem, o sujeito é muito mais do que uma representação significante; é desejo. É porque há encontro faltoso entre sujeito e Outro que há espaço para o equívoco e para a suposição. Nas entrelinhas do dizer do Outro, o sujeito calcula um lugar para si e tenta fazer com que o outro corresponda àquilo que espera dele. No nível intersubjetivo mudam-se as pessoas (os outros), mas mantém-se um padrão estrutural da relação com o Outro.
6 Para a argumentação em pauta, basta-nos a ideia de que o desejo do homem se constitui em relação àquilo que ele supõe que o outro espera dele (Lacan, 1998b). Suposição que o coloca em movimento, ainda que suas ações jamais satisfaçam o outro. Articulado entre a necessidade e a linguagem, o desejo aponta para o que é mais íntimo ao sujeito, mesmo tendo sido constituído em função da fala de outros (representantes da cultura).

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