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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.3 no.1 São Leopoldo June 2010

 

ARTIGOS

 

Amizade, infância e TDAH1

 

Friendship, childhood and ADHD

 

 

Soraya da Silva Sena; Luciana Karine de Souza

Universidade Federal de Minas Gerais, FAFICH, Departamento de Psicologia. Av. Antônio Carlos, 6627, sala F-4050, Campus Pampulha, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. senasoraya@yahoo.com.br, lucianak@fafich.ufmg.br

 

 


RESUMO

A amizade na infância é promotora de desenvolvimento cognitivo, bem-estar subjetivo e apoio social. Apesar desse reconhecimento, há lacunas nas investigações empíricas e teóricas empreendidas. Assim, este trabalho objetiva, num primeiro momento, revisar as perspectivas conceituais e os estudos empíricos recorrentes na pesquisa em amizade infantil. Em seguida, busca identificar a produção científica brasileira específica sobre amizade na infância. Em um terceiro momento, visa discutir a amizade infantil diante do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), revisando as pesquisas nacionais e estrangeiras disponíveis. Por fim, esses trabalhos são analisados criticamente e são levantadas possibilidades de investimento científico sobre a amizade em crianças com e sem TDAH no país.

Palavras-chave: amizade, desenvolvimento, transtorno.


ABSTRACT

Friendship in childhood promotes cognitive development, subjective well-being, and social support. Nevertheless, gaps in the empirical and theoretical investigations posit the need for further studies. This paper aims at reviewing recurrent conceptual perspectives and empirical studies used in research on children's friendships. It also reviews research conducted with Brazilian children. It discusses friendship in children with At ention Deficit/ Hyperactivity Disorder (ADHD) based on Brazilian and international studies. Finally, those studies are critically analyzed and future research endeavors on friendship in children with and without ADHD in the country are suggested.

Key words: friendship, development, disorder.


 

 

A função da amizade é reconhecida na literatura científica como promotora do bem-estar subjetivo (Hartup e Stevens, 1997; Newcomb e Bagwell, 1996), do desenvolvimento cognitivo (Hartup, 1996) e do apoio social em crianças comumente sujeitas à vitimização e rejeição por seus pares (Garcia, 2005a; Hoza et al., 2005; Rubin e Coplan, 1992; Tonelotto, 2002; Unne ver e Cornell, 2003). Apesar desse reconhecimento, percebe-se a necessidade de maior produção de conhecimento científico sobre essas relações, uma vez que a literatura aponta lacunas nas investigações empíricas e teóricas empreendidas (Garcia, 2005b; Goldstein e Goldstein, 2002; Hinshaw, 1992; Hoza et al., 2003; Mrug et al., 2007), não só direcionadas a amostras sem transtornos do desenvolvimento mas também a amostras clínicas.

O presente trabalho possui três metas. Primeiramente são revisadas as perspectivas conceituais e os estudos empíricos recorrentes na pesquisa em amizade infantil. Em seguida, busca-se identificar a produção científica brasileira específica sobre amizade na infância. Em um terceiro momento, é discutida a amizade infantil diante do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), com base nas pesquisas nacionais e estrangeiras disponíveis. Ao final, estes trabalhos são analisados criticamente e são levantadas possibilidades de investimento científico sobre a amizade em crianças com e sem TDAH no país.

 

Relações de amizade na infância

As relações de amizade promovem atividades sociais mais intensas que as relações de pares. O tempo gasto e a frequência de interações entre amigos é maior do que entre não-amigos. Além disso, amigos conversam, sorriem e se olham mais, e têm mais comportamentos de cooperação, ajuda mútua e de afeto positivo. Comportamentos de dominação e competição são menores entre amigos, mas conflitos e discórdias não são inexistentes nas relações de amizade. Entretanto, a diferença nos conflitos entre amigos e não-amigos reside na preocupação que os primeiros têm de solucionarem suas discórdias, enquanto não-amigos demonstram menos investimento para encontrarem soluções para seus conflitos (Newcomb e Bagwell, 1995, 1996).

A amizade é um contexto privilegiado para o desenvolvimento social, pois nessa relação a criança exercita habilidades interpessoais e adquire competências importantes, como a lealdade. Além disso, há maior intimidade na comparação com vínculos com pares em geral. Isso possibilita maior expressão das emoções, o que faz das relações de amizade um ambiente favorável para o desenvolvimento afetivo e emocional (Newcomb e Bagwell, 1995). No entanto, a maior contribuição das relações de amizade durante a infância possivelmente seja o fato de que nelas a criança tem uma base extrafamiliar segura, na qual pode explorar os efeitos de seus comportamentos sobre seus pares, o mundo e si mesma (Rubin e Coplan, 1992).

O termo amizade pode seguir definições distintas entre diferentes pesquisadores, da mesma forma que seu significado, características e expectativas podem variar conforme o nível de desenvolvimento cognitivo do indivíduo pesquisado (Bigelow, 1977). Entretanto, é consensual entre diversos autores a noção de atratividade recíproca e sensação de bem-estar quando na companhia de amigos (Bukowski et al., 1996), além do sentimento de igualdade e escolha mútua e voluntária (Howes, 1983; Rubin e Coplan, 1992). O caráter voluntário da relação de amizade pode ser observado no seu início, manutenção e término, ou seja, pode-se escolher fazer, manter e permanecer ou não com a amizade de determinada pessoa. Todavia, a voluntariedade dessa relação segue diferenças culturais, de normas sociais e de valores familiares. Assim, cada sociedade possibilita ou não a interrupção de amizades e postula funções específicas para essas relações (Krappmann, 1996).

Em crianças, o divertimento com brincadeiras é comumente esperado, enquanto os adultos demonstram maior expectativa de que suas amizades lhes sejam úteis (Reisman e Shorr, 1978). Dessa forma, durante o desenvolvimento, as relações de amizade sofrem mudanças quanto às expectativas nelas depositadas por seus integrantes. A título de exemplo, Bigelow (1977) propôs um modelo que reflete o desenvolvimento das expectativas acerca da amizade, partindo de atividades compartilhadas e trocas (estágio 1), passando por valores morais e admiração (estágio 2) e culminando em empatia, compreensão e autorrevelação (estágio 3).

Selman (1971) enuncia que a concepção infantil sobre a amizade está relacionada à habilidade de troca de papéis (role taking) e, portanto, acompanha o desenvolvimento desta habilidade mediante estágios. Partindo do estágio zero, no qual a amizade está baseada em ganhos materiais, a criança, à medida que avança na coordenação de distintas perspectivas (seu próprio ponto-de-vista e dos demais com quem interage), conquista, no último estágio (estágio quatro), a compreensão de que os amigos devem apoiar-se uns nos outros e a eles é permitido relacionar-se com outras pessoas.

Em qualquer idade da vida, as amizades são caracterizadas por similaridades no gênero, idade, etnia e atividades preferidas. Crianças, por sua vez, demonstram valorizar as similaridades de gênero e etnia, sendo comum a exclusão de pares com base nesses aspectos. Esta exclusão, porém, ocorre com mais frequência na fase inicial das amizades (ou seja, na escolha dos amigos). Com o avanço em idade, a criança refina seus critérios de escolha de amigos. Por volta dos 10 anos, por exemplo, as crianças são conscientes das diferenças de personalidade e temperamento existentes entre ela e seus amigos e podem considerar tais diferenças tão importantes quanto as similaridades (Aboud e Mendelson, 1996).

Meninas tendem a relações diádicas e íntimas, sabendo mais sobre suas amigas do que meninos sobre seus amigos (Buhrmester e Furman, 1987). Meninos, por sua vez, interagem mais em tríades ou grupos e apresentam mais conflitos em suas amizades (Benenson, 1993; Maccoby, 1990). Além disso, meninos usam mais de força e ameaças na resolução dos conflitos, enquanto as meninas tendem a mitigar o conflito (Miller et al., 1986). Meninos costumam preferir brincadeiras ao ar livre, apresentam grupos mais heterogêneos quanto à idade e brincam mais com jogos competitivos que as meninas (Lever, 1976).

As diferenças de gênero nas amizades têm um papel importante na socialização da criança, provendo o desenvolvimento de diferentes competências sociais entre meninos e meninas. Assim, as meninas apresentam maior competência para assuntos de interesse grupal, enquanto os meninos desenvolvem mais habilidades de crescimento individual (dominação e liderança).

 

Estudos brasileiros sobre relações de amizade

Em estudo sobre diferenças etárias e de gênero nas amizades de crianças brasileiras, Guzman et al. (2004) observaram maior grau de exclusividade nas relações de amizade das meninas. Também notaram que elas nomeiam mais negativamente outras meninas do que os meninos o fazem entre si. O trabalho referido contou com a participação de 210 estudantes de escolas públicas de Porto Alegre (110 meninos e 100 meninas) com nível socioeconômico médio, cuja idade variava entre três anos e dez anos e cinco meses. Crianças mais velhas apresentaram menor número de melhores amigos, apesar de nomearem mais amigos que as pré-escolares, e crianças no início e no meio do Ensino Fundamental (1ª e 4ª séries respectivamente) nomearam mais negativamente seus colegas de sala que as crianças pré-escolares. Houve preferência por amigos do mesmo sexo inclusive nas indicações de melhores amigos, acompanhando a literatura internacional de pesquisas nessa área (Guzman et al., 2004).

Muitos estudos brasileiros sobre relacionamento de pares investigam as influências da aceitação/rejeição de pares e das relações de amizade em crianças pré-escolares (Campos-de-Carvalho e Rubiano, 1996; Daudt, 1997; Piotto e Rubiano, 1999). A partir de uma extensa busca bibliográfica realizada em maio de 2008 em distintas fontes bibliográficas (BVS-Psi e sites de periódicos científicos não cadastrados nesta biblioteca virtual), foram elencadas nove pesquisas nacionais que investigaram a amizade em crianças brasileiras, sem TDAH, com idade mínima de cinco anos. Os estudos brasileiros referidos são listados na Tabela 1.

A Tabela 1 demonstra uma lacuna na produção científica brasileira com respeito às relações de amizade em crianças. De qualquer forma, os dez anos que abrangem os estudos destacados (de 1998 a 2007) apontam questões importantes à pesquisa brasileira sobre amizade infantil.

O foco dos estudos brasileiros destacados na Tabela 1 é variado, embora se note uma tendência ao interesse no modo como as crianças descrevem ou conceituam o relacionamento de amizade ou suas amizades propriamente ditas. A entrevista tem preferência nos estudos que atentam ao que as crianças pensam sobre seus amigos, o que sentem em relação a eles, e como, quando, onde e por quanto tempo interagem. Uma dessas pesquisas aborda a amizade em crianças em situação de risco (Rohde et al., 1998), enquanto outra procurou avaliar, no contexto escolar, a relação entre agressão e vitimização e o papel da amizade diante destes problemas (Lisboa, 2005).

Dos nove estudos sobre amizade infantil localizados, apenas um não foi conduzido em Porto Alegre ou Vitória. Torna-se pouco viável generalizar resultados e dissertar sobre a amizade em crianças brasileiras. De toda forma, os trabalhos apontam aspectos universais da amizade infantil, presentes em amostras de outros países, citados na introdução deste artigo, como o divertimento, a brincadeira, o companheirismo, o conflito e o apoio (emocional, social ou instrumental). Também se percebe o interesse em variáveis consolidadas na produção científica estrangeira em amizade de crianças, como o gênero, a popularidade e a moralidade.

 

Relações de amizade em crianças com TDAH

Encontra-se de modo crescente, na literatura internacional e brasileira, o relato da função protetora da amizade contra a vitimização de crianças, podendo ocorrer com a existência de um único amigo o alívio de efeitos negativos causados pelo menosprezo e isolamento por pares (Lisboa e Koller, 2003; Rubin e Coplan, 1992). Lamarche et al. (2006) sustentam a noção protetora da amizade, evidenciando que o comportamento pró-social de amigos mitiga o risco de crianças em situação vulnerável serem alvo de agressão por pares. Ter amigos traz, ainda, avanço nas habilidades sociais e no sentimento de bem-estar, aumentando a probabilidade de fazer e manter amigos (Hartup e Stevens, 1997).

As relações de pares entre crianças são apontadas como importantes influências no sucesso acadêmico, estando em crescente reconhecimento a ameaça de fracasso escolar vivida por crianças vitimizadas por seus pares (Rubin e Coplan, 1992). O sentimento de inadequação experienciado por crianças vitimizadas quando em companhia de pares também as coloca em situação de risco, reconhecendose que a rejeição social por pares na infância é a melhor preditora de fracasso acadêmico e evasão escolar (Parker e Asher, 1987).

Hodges et al. (1997) relatam maior probabilidade de vitimização por pares em crianças com problemas comportamentais. A vitimização coloca essas crianças em maior risco de provocar agressões, retroalimentando a vitimização. Ter um melhor amigo, porém, diminuiu a vitimização sofrida por crianças participantes do estudo de Hodges et al. (1999) ao longo do ano escolar. Independentemente de apresentarem problemas de comportamento, ter um melhor amigo trouxe diminuição da vitimização, e a inexistência desse melhor amigo mostrou-se relacionada com o aumento de comportamentos internalizantes e externalizantes (Hodges et al., 1999).

Crianças com problemas de comportamento podem vivenciar dificuldades em fazer e manter amizades. Nesse contexto social infantil, as crianças identificadas como hiperativas e/ou desatentas estão bastante presentes nas queixas de pais e educadores.

Dentre os transtornos infantis mais estudados nos últimos anos, o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) absorve a atenção e a dedicação de distintos profissionais da saúde, professores e pais. A crítica ao diagnóstico, a oposição ou complementaridade entre medicação e psicoterapia, dentre outros aspectos tomados como foco no estudo do TDAH (como a adaptação escolar), são abordados com profundidade em artigos e livros lançados no país. Um aspecto, no entanto, ainda não recebeu atenção dos estudiosos e profissionais que lidam com o transtorno: a amizade em crianças com TDAH.

Entre as lacunas na produção científica sobre relações de amizade na infância, nota-se a escassez de estudos sobre amizade em portadores de TDAH. Este transtorno pode ser definido como uma síndrome neurocomportamental caracterizada essencialmente por padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade (APA, 2002; Rotta, 2006). O TDAH pode, ainda, ser conceituado como transtorno do desenvolvimento do autocontrole, da capacidade de persistência da atenção em tarefas de baixa motivação, do controle de impulsos e inibição do comportamento e do nível de atividade (Barkley, 2002). Portanto, o TDAH seria marcado por um nível inadequado de atenção em relação ao esperado para a idade - o que localiza esse transtorno entre os distúrbios do desenvolvimento -, gerando déficits motores, perceptivos, cognitivos e comportamentais (Barkley, 1997, 2002; Rotta, 2006).

Em recente revisão bibliográfica da produção científica publicada na forma de artigos na base de dados PsycInfo sobre TDAH, foram encontradas 1962 resumos de artigos de periódicos ao inserir-se em title a sigla ADHD (Attention Deficit/Hyperactivity Disorder), considerando-se todo o acervo disponível na base. Nessa mesma busca (realizada em julho de 2007), ao selecionarem-se os artigos referentes aos dez últimos anos de publicação, 1638 resumos (83%) foram encontrados. Desses, apenas dois resumos de artigos faziam menção à amizade, embora indiretamente. Um deles compara problemas sociais de crianças portadoras de TDAH com crianças com Transtorno Desafiador-Opositor (Frankel e Feinberg, 2002), enquanto o outro focaliza relações de pares em crianças com TDAH (Hoza et al., 2005). Contudo, no periódico Journal of Attention Disorders, encontrou-se uma proposta de intervenção nas relações de amizade de crianças com TDAH (Hoza et al., 2003). Não foram localizados outros trabalhos que abordassem essa associação. A concentração da produção científica sobre TDAH, nos últimos dez anos, aponta o elevado interesse no tema, mas denuncia que o tópico da amizade ainda não recebeu o devido investimento em pesquisa.

Procurando-se relatos de pesquisa sobre TDAH no Brasil, por intermédio da Biblioteca Virtual em Saúde (www.bvs-psi.org.br), foram encontrados 69 textos (busca realizada em maio de 2008, inserindo-se em "todas as palavras" o termo TDAH). Apesar de essa base de dados prover acesso a artigos publicados em mais de 60 revistas de psicologia, não foram identificados estudos que tratassem diretamente de relações de amizade em crianças com TDAH. Dessa maneira, pode-se afirmar a escassez de estudos brasileiros abordando especificamente relações de amizade na infância em portadores de TDAH, não obstante haver referências às dificuldades de interação social dessas pessoas (Rohde et al., 2000; Sena e Diniz Neto, 2005; Teixeira, 2006; Tonelotto, 2002).

Em 2007, no Brasil, dois eventos científicos de âmbito internacional abordaram o TDAH. O primeiro deles foi o II Simpósio Internacional de TDAH da UFMG, realizado em Belo Horizonte. O segundo evento, ocorrido no Rio de Janeiro em agosto do mesmo ano, foi o III Congresso Internacional de TDAH, promovido pela Associação Brasileira de Déficit de Atenção. Nenhum desses eventos apresentou atividades que abordassem diretamente as relações interpessoais de portadores de TDAH, seja enfocando relacionamentos entre pares ou de amizade.

O relacionamento interpessoal tem papel significativo no crescimento humano, agindo como promotor ou inibidor do desenvolvimento do indivíduo (Guardiola, 2006). Assim, as interações nas relações interpessoais, sejam em família, na escola ou entre pares, podem influenciar o grau de comprometimento e a comorbidade associada ao quadro de TDAH (APA, 2002). As relações familiares, com colegas e amigos podem oferecer o apoio afetivo e social necessário para o enfrentamento de adversidades vitais comuns na realidade humana, sendo, provavelmente, os problemas de relacionamento com amigos os mais angustiantes com que crianças com TDAH terão que lidar (Barkley, 2002).

A relação de crianças com TDAH e seus pares é repetidamente descrita na literatura como insatisfatória e deteriorada, estando essas crianças em constantes situações de rejeição e vitimização por seus pares (Hoza et al., 2005; Pelham e Bender, 1982; Tonelotto, 2002; Unnever e Cornell, 2003). Assim, Pelham e Bender (1982) estimam que 50% das crianças com TDAH apresentam problemas significativos em seus relacionamentos sociais. O comportamento disruptivo, desatento, imaturo e provocativo que essas crianças costumam apresentar evoca reações autoritárias e controladoras por parte de seus pares (Goldstein e Goldstein, 2002). Apesar de falarem mais que as outras crianças, as portadoras de TDAH tendem a interagir menos, são menos capazes de cooperar, dividir e de manter promessas feitas (Barkley, 2002). Além disso, enfrentam menos eficazmente a frustração da rejeição por seus pares, tendendo a exercer maior controle sobre as outras crianças (são "mandonas") e criando a retroalimentação da rejeição (Goldstein e Goldstein, 2002; Phelan, 2005). Como a capacidade de adiamento de gratificações, de controle de impulsos, de hiperatividade e hiper-responsividade, além do seguimento de regras, estão alteradas no TDAH, fazer e manter amigos torna-se uma tarefa difícil para os portadores de TDAH (Barkley, 2002; Goldstein e Goldstein, 2002; Phelan, 2005).

O desenvolvimento insatisfatório da percepção temporal que os portadores de TDAH apresentam leva a atitudes egoístas, nas quais dividir, cooperar, ceder a vez e manter promessas feitas tem pouco valor. É de se esperar, portanto, que tenham poucos parceiros ou nenhum amigo em brincadeiras e jogos infantis. Assim, o impacto dessa realidade é bastante amplo na autoestima do portador (Barkley, 2002). Portadores de TDAH do Tipo Combinado são comumente mais rejeitados por seus pares e costumam brincar com crianças de menos idade ou do sexo oposto. Isso ocorre pela imaturidade apresentada por muitos portadores de TDAH, ficando em desvantagem em relação a seus pares de mesma idade. Ao brincar com crianças mais novas, o portador assume posições de liderança e, muitas vezes, de controle de regras, o que diminui o risco de se frustrar. Crianças com TDAH do Tipo Desatento gozam de neutralidade em sua reputação social, ou seja, não costumam causar impacto (negativo ou positivo) social. Essas crianças podem ser boas companheiras de brincadeira, boas ouvintes e até tolerantes com seus pares (Phelan, 2005). Pode-se verificar, portanto, o estabelecimento e a manutenção de amizades entre crianças com TDAH e seus pares, sendo evidenciado, na literatura, o papel fundamental do apoio parental no sucesso desse tipo de relação interpessoal (Goldstein e Goldstein, 2002; Hoza et al., 2003).

Assim, em estudo realizado com crianças norte-americanas, Hoza et al. (2003) observaram maior êxito das relações de amizade de portadores de TDAH que dispunham do suporte parental no estabelecimento e continuidade de suas amizades. Participaram desse trabalho 209 crianças (188 meninos e 21 meninas) entre cinco e doze anos de idade. Todas as crianças faziam parte de um programa de tratamento comportamental de oito semanas de duração, realizado em acampamento de férias. Os participantes foram divididos em díades de amigos, sendo designados como tais mediante escolha voluntária, ou seja, as próprias crianças nomeavam aquele que queriam como amigo. Observou-se o critério de díades de amigos do mesmo sexo e da mesma idade. Se não ocorresse reciprocidade na escolha do amigo, conversava-se com a criança dando-lhe novas opções de nomeação. Durante as oito semanas, as díades realizaram diversas atividades, monitoradas por adultos treinados. De forma recorrente, o monitor responsável pela díade conversava com as crianças, administrando conflitos e divergências comportamentais. Nos fins de semana, as crianças deixavam o acampamento, e seus pais eram incentivados a apoiar a amizade do filho, promovendo a convivência de cada membro da díade com a família de seu par (Hoza et al., 2003).

Dentre os resultados significativos, observou-se que o número de vezes em que os pais promoviam convivência da criança com seu amigo contribuía para a qualidade da amizade. Provavelmente, o contato mais frequente entre as crianças da díade permitiu o desenvolvimento e a generalização de habilidades sociais importantes nas relações de amizade. Além disso, a percepção, por parte da criança, de que seus pais apoiavam e incentivavam sua relação de amizade acarretou-lhe segurança e harmonia com o amigo. Verificou-se, nesse trabalho, a importante função dos pais como promotores e apoiadores das relações de amizade de crianças com TDAH e seus pares. Foi indicado, ainda, o papel fundamental do monitoramento dos pais nos encontros e atividades da criança com TDAH e seus amigos, especialmente se estes também têm TDAH (Hoza et al., 2003).

A criança com TDAH pode ser divertida, dinâmica e sempre disposta a aventuras, o que, em um nível superficial de relacionamento, pode atrair pares e amigos. No caso de predominância de desatenção, o portador de TDAH costuma se envolver em situações inesperadas e cômicas, como usar sapatos trocados, inverter nomes e esquecer objetos escolares com os colegas. Entretanto, em um nível mais íntimo das amizades autênticas, as dificuldades da criança com TDAH podem causar problemas e decepções aos outros. Dessa maneira, furar fila, dizer tudo que vem à cabeça, perder brinquedos e não perceber mudanças sutis e não verbais nas brincadeiras e conversas com pares pode afastar colegas e amigos. Esses obstáculos no estabelecimento e manutenção de relações sociais podem acompanhar a criança com TDAH por toda a vida. Porém, é possível aos amigos do portador de TDAH apoiá-lo no enfrentamento de suas dificuldades, pois problemas e desafios são comuns a todas as pessoas. A criança com TDAH pode responder de modo bastante autêntico à atenção de um verdadeiro amigo (Sena e Diniz Neto, 2005).

Apesar do crescente número de pesquisas no campo dos relacionamentos interpessoais (Garcia, 2005b), ainda resta uma lacuna nas investigações científicas brasileiras sobre relações de pares e de amizade em crianças com TDAH. Dois estudos, no entanto, abordam a questão e apontam resultados que ora corroboram ora contradizem os trabalhos de outros países. No primeiro deles, Tonelotto (2002) investigou relações de pares em crianças com desatenção. Essa autora identificou alunos desatentos no ambiente escolar, pesquisando como eles se percebem e são percebidos por seus colegas no contexto de sala de aula. Participaram da amostra 128 escolares, de nível socioeconômico médio-baixo ou baixo, da rede pública de ensino. As idades variavam entre os seis e os nove anos, sendo 56 participantes do sexo masculino e 72 do feminino. Os critérios utilizados para diagnóstico de TDAH foram os do DSM-IV (APA, 1994) e, para verificação da percepção e da popularidade e rejeição dos alunos, foram usadas as Escalas de Atitudes do Aluno em Relação aos Colegas, Escalas de Atitudes do Aluno com Relação à Escola (inspiradas em Alencar, 1978) e Sociograma.

Tonelotto (2002) observou que comportamentos negativos em relação à escola foram mais evidentes no grupo de crianças com problemas de atenção, assim como um número maior de atitudes negativas na forma como percebem e são percebidas por seus colegas. Quanto à popularidade, foi observado que quanto maiores os problemas de atenção maior era a impopularidade das crianças entre seus colegas. As crianças desatentas foram mais citadas como rejeitadas e menos citadas quanto à aceitação por seus pares. Considerando-se que o estudo abordou a realidade de uma única escola, a autora alerta para a realização de pesquisas futuras que investiguem as dificuldades de atenção e suas relações com a socialização e aprendizagem (Tonelotto, 2002). Além disso, é importante ressaltar o papel ímpar do contexto escolar na promoção da socialização infantil e no desenvolvimento das habilidades sociais. Por enfocar a aprendizagem acadêmica, a escola tem relegado a segundo plano o desenvolvimento de habilidades sociais entre seus alunos, estando os estudos sobre essa temática mais presentes no cenário internacional que nacional (Del Prette e Del Prette, 2003).

Como segundo trabalho brasileiro sobre relacionamentos interpessoais de crianças com TDAH, destaca-se o de Albertassi e Garcia (2006), que relatam as relações de amizade de um garoto hiperativo de 10 anos de idade. Este garoto possuía um melhor amigo que o acompanhava em todas as atividades na escola, e as crianças indicadas por ele como suas amigas também o reconheceram como tal. Porém, na perspectiva de seus professores, o menino interagia com o grupo de pares apenas se a atividade fosse de seu interesse, pois não compartilhava interesses comuns com o grupo (Albertassi e Garcia, 2006).

De modo geral, os pais e professores do garoto percebiam as amizades deste como restritas e superficiais, apesar de considerá-lo carinhoso e fiel aos seus amigos. A observação direta dos comportamentos com seus amigos encontrou um padrão de interação similar ao de crianças sem TDAH, não havendo indícios evidentes de qualquer deterioração dessa relação. O trabalho ressalta a importância das relações de amizade para crianças com necessidades educativas especiais, uma vez que a busca por esse tipo de relacionamento esteve presente na maior parte dos casos investigados (Albertassi e Garcia, 2006). É possível apontar, porém, certa limitação quanto à generalização dos resultados pelo fato de a investigação sobre as amizades se constituir como estudo de caso. Assim, há necessidade de investigação das relações de amizade de um número maior de crianças com TDAH, especialmente quando comparadas às relações de amizade de crianças sem TDAH.

 

Amizade em crianças com e sem TDAH: perspectivas em pesquisa

No atual estado da produção científica específica sobre amizade em crianças brasileiras, duas cidades tem se destacado nos nove estudos encontrados: Porto Alegre e Vitória. Se há estudos já empreendidos em outros estados brasileiros, não localizados na busca realizada, é necessário ampliar a divulgação científica de seus resultados. Outra questão relevante é considerar a realização de estudos interinstitucionais, com a colaboração de pesquisadores de instituições provenientes das cinco grandes regiões do Brasil.

Os trabalhos descritivos ou conceituais sobre amizade são importantes por posteriormente proporcionarem, por exemplo, a elaboração de escalas e questionários de aplicação coletiva, que por sua vez poderão ser utilizados junto a medidas sobre a saúde da criança, como autoestima, autoimagem, motivação e adaptação escolar. Conhecendo-se o impacto da amizade sobre a infância, sua relação com outros aspectos tradicionalmente estudados no desenvolvimento infantil pode ser esperada, trazendo novo entendimento sobre, por exemplo, a motivação associada à vivência escolar, como aponta a literatura estrangeira.

Os estudos encontrados sobre amizade em crianças brasileiras na intersecção com questões universais, como agressividade, gênero, conflito, sentimentos e moralidade, reafirmam a importante relação entre amizade e desenvolvimento socioemocional infantil. A autorrevelação sobre sentimentos em uma relação de amizade próxima pode, muitas vezes, ser o único meio de comunicação da criança sobre temores ou dificuldades sobre as quais não consegue revelar para pais ou professores.

Mais estudos sobre a amizade em crianças brasileiras são necessários, desde trabalhos descritivos e conceituais até investigações longitudinais, estas ausentes nas nove investigações destacadas. Além disso, o investimento científico em instrumentos (questionários, escalas etc.) necessita do envolvimento de amostras de todas as regiões do Brasil.

Acima de tudo, pesquisas experimentais serão muito bem-vindas quando procurarem promover a amizade em crianças com dificuldades de socialização, como as que trocam de turma ou de escola ou as portadoras de TDAH. Outra questão pertinente é a prevenção de atitudes excludentes e discriminatórias. Há, por exemplo, a possibilidade de trabalho com grupos de crianças mediante debates de dilemas morais que abordem a amizade e questões como lealdade, honestidade, companheirismo, reciprocidade, empatia, dentre outros aspectos relevantes às relações interpessoais e à comunicação. Criar e manter um contexto de alerta e crítica pronto a identificar e recusar comportamentos como agressão moral, exclusão e discriminação entre as crianças é desejável e necessário para uma convivência pacífica e para um futuro interpessoal mais exitoso, em especial nas relações conjugais e profissionais.

A promoção da amizade entre as crianças ou dos valores que este relacionamento abrange tem o potencial de aproximá-las em função do destaque que os amigos possuem em suas vidas. Outro aspecto digno de nota no que diz respeito à promoção da amizade envolve as habilidades para a resolução de conflitos. Partindo da relação com os amigos, a criança pode espelhar-se para melhor interagir, diante de situações conflituosas, com os demais indivíduos da sua rede de relacionamentos. Este exercício a preparará para melhor lidar com relacionamentos de todo tipo na adolescência e na adultez.

Algumas indicações de pesquisa sobre as amizades da criança com TDAH podem ser traçadas. Aspectos como número de amigos, companhia de um melhor amigo, frequência de contato e tempo de duração da amizade, atividades realizadas juntos (brincadeiras, conversas), presença de conflitos, diferença etária e percepção dos pais e das crianças sobre suas relações de amizade são variáveis apontadas na literatura como relevantes ao estudo das amizades infantis.

Percebe-se a necessidade de maior investimento científico na pesquisa das relações de amizade de crianças com TDAH. Diferem, nos estudos empreendidos, abordagens teóricas e procedimentos metodológicos. Diferenças de gênero, diferenças etárias e existência de, pelo menos, uma melhor amizade são aspectos que merecem prosseguimento nas investigações. Acima de tudo, é tímida a produção científica sobre amizade em crianças com transtornos de desenvolvimento, como no caso do TDAH.

A importância do treinamento dos pais como monitores das amizades de seus filhos é recomendada tanto por pesquisadores como por profissionais da saúde infantil (Hoza et al., 2003; Pinheiro et al., 2006). Os pais podem desempenhar o papel de mediadores eficazes nas interações do filho portador com crianças sem TDAH, auxiliando-o em situações que requerem atenção às necessidades do outro (alternar a vez no uso de um brinquedo, perceber sentimentos, dividir, fazer concessões). Além disso, podem estimular os encontros entre as crianças em suas casas ou outros ambientes, possibilitando que as relações com amigos próximos não se limitem ao contexto escolar, em que as crianças interagem em grupos maiores e menos em díades.

A capacitação de professores na promoção de melhores relações de pares entre seus alunos é também indicada (Del Prette e Del Prette, 2003; Reppold e Luz, 2007; Tonelotto, 2002). Atividades em duplas entre criança portadora de TDAH e criança sem TDAH também exigirão atenção redobrada do professor - tradicional mediador nas relações entre os alunos. No entanto, cercado de outros objetivos educacionais que por vezes demandam maior dedicação, o professor pode indicar um aluno com boas habilidades sociais para compor a díade com a criança portadora.

Pesquisas podem investigar, por exemplo, um mesmo grupo de crianças com TDAH, analisando-se conjuntamente a interação com suas amizades, a influência de seus pais e de seus professores. Além disso, estudos posteriores que contemplem aspectos diversos das relações de amizade em portadores de TDAH, tais como as possíveis mudanças advindas com a entrada na adolescência, serão pertinentes.

 

Considerações finais

Há bastante espaço, no Brasil, para a pesquisa básica e aplicada sobre amizade infantil. Seja mediante abordagens qualitativas ou quantitativas (embora juntas fortaleçam a pesquisa), por meio de teorias com base sociohistórica, cognitivo-evolutiva ou comportamental, a partir de pesquisadores da Psicologia, da Educação, da Sociologia, da Comunicação Social, da Educação Física etc., ou direcionada a compreender, explicar, aplicar ou refletir sobre estas relações, a investigação sobre crianças brasileiras e seus amigos aguarda maior investimento científico. Os nove estudos destacados e dedicados especificamente à amizade na infância demonstram a escassez referida anteriormente.

Com respeito à infância com TDAH, transtorno focalizado no presente texto, a aposta no treinamento dos pais e professores parece interessante aos esforços futuros em pesquisa, clínica e extensão comunitária. Além de ampará-los no desafio de cuidar e educar a criança com TDAH, será possível o monitoramento eficaz, em casa e na escola, das amizades de crianças portadoras e seus pares, prevenindo vitimização e rejeição social.

 

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Submetido em: 07/01/2010
Aceito em: 29/03/2010

 

 

1 Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado de Soraya da Silva Sena, orientada por Luciana Karine de Souza, no PPG-Psicologia da UFMG. Agradecimentos para V.G. Haase e L. de C. Magalhães.

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