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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.2 Juiz de fora Dec. 2012

 

"O seu olhar melhora o meu": o apoio matricial ampliando o olhar sobre o sofrimento

 

"Your view improves mine": matrix support expanding the view on suffering

 

 

Debora Baracho1; Luciana Nogueira Fioroni

Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil

 

 


RESUMO

O sofrimento é consequência da existência humana, mas tem sido tratado, principalmente no campo da saúde, como uma categoria patológica. A Estratégia Saúde da Família (ESF), por abranger a complexidade do processo saúde-doença e das relações, precisa escutar o sujeito em sofrimento. Apoiados na proposta do Apoio Matricial - modelo de reorganização do processo de trabalho pela via do cuidado - em uma equipe de Saúde da Família, e nas experiências dos profissionais da ESF e de estudantes, trabalhou-se com questões referentes ao sofrimento, através da pesquisa-intervenção. Foram realizadas oficinas de sensibilização, trabalhando cognição, troca de saberes e afetos. Os resultados apontam que os participantes construíram um conhecimento grupal sobre o sofrimento e se colocaram no lugar do sujeito que sofre, promovendo a ampliação do olhar e da escuta qualificada. Conclui-se que o Apoio Matricial possibilitou uma via de sensibilização e é um importante instrumento de transformação do trabalho da ESF.

Palavras-chave:Atenção Básica; Apoio Matricial; Estratégia Saúde da Família; Pesquisa-Intervenção; sofrimento


ABSTRACT

Suffering is a consequence of human existence but it has been treated, mainly in the field of health, as a pathological category. The Family Health Strategy (FHE) while including the complexity of health-disease process and relationships needs to listen to the subject who is suffering. Based on the proposal of the Support Matrix - a model for reorganizing the work process by means of care - a workgroup of Family Health, and the experiences of Family Health Strategy professionals and students, work was carried out on questions relating to suffering, through the intervention-research method. Sensitization workshops were held bringing into play such topics as cognition, exchange of knowledge and feelings. The results indicate that the participants built group knowledge as to suffering and placed themselves in the place of the one who suffers, thus promoting the expansion of qualified observation and listening. It was concluded that the Support Matrix made awareness raising possible and as such is an important tool for transforming the work of the Family Health Strategy.

Keywords: Primary Care, Matrix Support, Family Health Strategy, Intervention-Research, Suffering


 

 

A primeira parte do título deste trabalho, "o seu olhar melhora o meu", é verso de uma música do cantor e compositor Arnaldo Antunes, e apresenta-se como metáfora para pensar os temas estruturantes desta investigação: o Apoio Matricial e a escuta necessária para acolher o sofrimento. Esta temática surgiu como objeto de interesse a partir das vivências cotidianas referentes às demandas que uma unidade de Saúde da Família recebe e as diferentes formas de responder a elas. Destaca-se a intensa procura da equipe de referência por apoio psicológico em função de queixas dos usuários a respeito de situações cotidianas que provocavam afetos como tristeza, solidão, confusão, incertezas diante de escolhas, crises matrimoniais e amorosas, conflitos nas relações familiares, entre outros. O que chamava atenção era o aspecto de que tais queixas não configuravam, necessariamente, quadros psíquicos de transtorno afetivo ou comportamentos que necessitassem de intervenções específicas e diretas de profissionais da área de saúde mental. Observava-se que os profissionais em geral apresentavam dificuldades e resistências em acolher e manejar tais queixas e que tinham como conduta frequente o encaminhamento para a área psi.

Desta forma, tomaremos por sofrimento, neste artigo, as vivências subjetivas dos usuários de uma Unidade de Saúde da Família que referem queixas de vivências cotidianas que dizem ou não respeito a um sofrimento produzido por situações traumáticas, transtornos mentais ou adoecimento. Os conteúdos trazidos por esses usuários correspondem ao sofrimento produzido pelo "viver a vida", em suas diversas dimensões e intensidades e em um tipo de sociedade que impõe discursos e valores sobre a "Boa Vida", a "Vida Saudável", os padrões de normalidade e estética difundidos e compartilhados pelo discurso científico e biomédico.

A intervenção estudada teve como objetivo problematizar as representações que permeiam o tema "sofrimento na contemporaneidade", ampliar o olhar dos participantes e construir espaços de aproximação com a temática apontada, para que os profissionais possam conhecer e desenvolver estratégias para acolher o sujeito em sofrimento.

O trabalho a partir do apoio matricial em saúde busca oferecer suporte assistencial especializado e suporte técnico-pedagógico às equipes de referência (médicos de família, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e de odontologia, agentes comunitários de saúde). Essa proposta permite que os profissionais, tanto da equipe de referência, quanto profissionais da equipe matricial (especialistas) atuem de modo inter e transdisciplinar, evitando a prática dos encaminhamentos intermináveis, minimizando a burocracia da referência e da contrarreferência, facilitando o contato direto entre referência encarregada do caso e especialista de apoio, qualificando a escuta e o cuidado em saúde (Brasil, 2004; Campos & Domitti, 2007).

Os profissionais da equipe matricial podem atuar na elaboração conjunta de projetos terapêuticos; quando necessário podem programar uma série de atendimentos ou de intervenções especializadas, mantendo sempre contato com a equipe de referência; produzem e ajudam a produzir conhecimento sobre situações de saúde o oferecem orientações para a equipe de referência (Campos & Domitti, 2007). Desta forma, o apoio matricial constitui uma forma de arranjo organizacional e uma metodologia para a gestão do trabalho em saúde, objetivando aumentar as possibilidades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades e profissões.

O apoio matricial seria uma nova estratégia de produzir saúde "[…] em que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica." (Chiaverini et al, 2011, p.13). Tem como um de seus objetivos aprimorar o conhecimento dos profissionais sobre as questões que perpassam o trabalho, e no caso desta pesquisa-intervenção, será utilizado com o intuito de aprimorar a percepção dos profissionais da ESF sobre o sofrimento.

Trabalhar com o sofrimento humano não constitui tarefa simples, é necessário entender o contexto do sujeito e o modo como produz sofrimento, refletindo com ele sobre o que lhe faz sofrer e o porquê. Essa tarefa, com toda a complexidade que carrega, faz parte do trabalho cotidiano da Estratégia Saúde da Família (ESF). Aproximar-se do modo como o usuário vive traz a necessidade de repensar como se organiza a sociedade em que está inserido e as relações que se estabelecem a partir dela.

Cada época produz uma maneira diferente de estruturar os modos de vida, com valores e necessidades próprias. De acordo com esse modelo de vida, podemos fazer um recorte acerca do corpo e como é constituído, uma vez que é através dele que se expressam os hábitos e as histórias de cada época. Segundo Foucault (2005, p.80), "o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo". Refere que vivemos em uma sociedade de controle que, de forma instituída, busca estabelecer modos de vida: como comer, como dormir, como pensar, como se divertir, como ter uma vida sexual. Foucault também nos lembra de que o poder não é algo que alguém detenha, que se possua, mas um dispositivo que circula, portanto, é produzido e enfrentado nas relações. A própria ideia de coprodução de sujeitos presente nos textos sobre apoio matricial, trabalho em saúde, entre outros, recupera e preserva este caráter dialético entre os determinantes estruturais e constitutivos e os modos de construir a vida que os usuários da ESF trazem e explicitam em suas mais diferentes e legítimas necessidades de saúde.

A saúde, assim como outros setores da vida, é transformada por um tipo de discurso científico e pela lógica de produção capitalista globalizada em um bem a ser consumido. Segundo Cunha (2005), neste sistema de produção/consumo, a sociedade atribui maior valor de troca ao direito de comprar a própria cura, minimizando o papel ativo do sujeito no processo de cuidado. Para Mendes (2004, p.151) "nossa cultura ocidental parece não aceitar que o mal-estar no qual está inserida é estrutural. Propõe então, por meio do capitalismo, o consumo imediato de todos os produtos possíveis, a fim de obturar essa falta". E é exatamente na contramão desta lógica, no contexto da produção da saúde, que as diretrizes da ESF buscam operar. Em nossa compreensão sobre o papel desses profissionais, o cuidado que se constrói em conjunto com o sujeito é o que melhor atende as suas necessidades e as da comunidade, pois foi proposto de acordo com a singularidade e o coloca como protagonista do processo.

É necessário questionar qual é o papel do sofrimento no contexto em que vivemos atualmente para construir o cuidado. A partir do momento em que a sensação de prazer precisa ser constante em nossa sociedade, o sofrimento muitas vezes é considerado algo anormal e patológico, que necessita ser tratado. E a crise que tem papel extremamente desestabilizador, inclusive para quem está em volta, pois expõe o sofrimento que nem a sociedade nem os serviços de saúde toleram, tratando muitas vezes o sujeito em crise pela medicalização excessiva, pelo fechamento a qualquer forma de escuta, ou uma escuta que privilegiaria os aspectos patológicos do sofrimento. O personagem de um conto de Caio Fernando Abreu (1985) ilustra esse tratamento e através dele o autor retrata o sofrimento em toda sua intensidade e o tipo de atendimento mecânico e descontextualizado da saúde:

Um tranquilizante levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranquilo, sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções. (...) Proibido sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e memórias inúteis, um nirvana de bayer e se é Bayer. (Abreu, 1985, p.147).

No contraponto da tendência em anestesiar o sofrimento e as emoções, olhar para o usuário a partir da perspectiva dele é compreender e permitir o sofrimento como parte do processo saúde-doença. Entrar em crise pode ser uma expressão de rompimento com o tempo da produção/consumo incessante, a pausa que possibilita ao sujeito rever o modo como vive e construir novas formas de habitar o mundo. O papel dos profissionais de saúde não é "permitir" as crises sem interferir, o que seria o igual-oposto de medicá-las excessivamente; mas apoiar as pessoas em seu sofrimento, acolher a partir de uma escuta qualificada, buscar formas de enfrentamento compartilhadas, buscar estratégias que recuperem as dimensões históricas, sociais e culturais que também determinam as crises e os sofrimentos decorrentes.

O desafio de fazer uma clínica ampliada provoca nos profissionais de saúde uma reflexão cotidiana com o intuito de não cristalizar o cuidado e perceber sempre as singularidades. Neste sentido, tem como meta cuidar do indivíduo como sujeito capaz de produzir a própria subjetividade, apoiando a construção da autonomia, com foco no vínculo, na relação de cuidado. O exercício desta clínica do encontro e da técnica é dificultado pela lógica dominante, que valoriza o produto e deixa de lado o processo, trabalhando com protocolos rígidos e com a impossibilidade da alteridade e da invenção do cuidado.

Segundo Yasui (2006), as equipes da ESF funcionam como referência para os usuários do território de cobertura e devem propor um cuidado de acordo com a realidade local. Tal proximidade permite a produção de respostas mais estruturais para o sofrimento, por buscar a construção de redes de apoio locais. Em relação ao tema do cuidado, o autor (Yasui, 2006, p. 112) refere que:

Para olhar e ouvir o outro é preciso reconhecê-lo como alguém que represente mais do que um mero objeto de intervenção. Preciso reconhecê-lo como um sujeito, não como uma entidade, um objeto, uma doença. Isto representa uma ruptura epistemológica de grande importância.

Como o profissional da ESF pode ampliar a escuta e olhar de maneira diferente para seus usuários? Como levar esse profissional a refletir acerca do processo de trabalho? Como promover a organização do trabalho de forma que o profissional possa olhar o usuário em suas singularidades? Como transformar o modo de trabalhar para que não seja somente a produção de procedimentos, mas a produção de autonomia? Para responder a essas perguntas é necessário, antes, formulá-las junto às equipes da ESF. Formular essas perguntas implica em um processo de colocar essa equipe em reflexão acerca de seu trabalho e questionar os modos de fazer que já estão dados e que parecem ser absolutos. O Apoio Matricial pode ser um importante meio de construção desse processo, uma vez que se propõe a trabalhar com a educação permanente, não somente através do ensino de informações, mas de um processo reflexivo que, ao mesmo tempo em que proporciona aprendizagem, também propõe um trabalho institucional que cuida da própria equipe.

Para Gastão Wagner (2005) a clínica na atenção básica tem especificidades que a diferencia da clínica hospitalar e ambulatorial. Há grande complexidade nas intervenções da atenção primária, muitas variáveis envolvidas em processo, a necessidade de intervir sobre a dimensão biológica-orgânica dos riscos de adoecimento e sobre os riscos subjetivos e sociais. Do ponto de vista da clínica ampliada, a proximidade com as redes familiares e sociais dos usuários facilita e potencializa o alcance das intervenções. A construção de vínculos duradouros com os pacientes, a percepção e respeito pela singularidade de cada situação objeto de cuidado representam condições para incrementar a eficácia das intervenções clínicas, sem abrir mão de critérios técnicos previamente definidos (Campos, 2005).

Construir um novo olhar e uma clínica que seja ampliada exige, necessariamente, que o próprio serviço se modifique, desconstruindo maneiras de cuidar cristalizadas e burocráticas, mudando os padrões de relacionamento entre os profissionais e os usuários do serviço. Pois, segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2005, p.87), abordando o tema Educação Permanente e a produção do cuidado: "[...] agimos segundo regras e normas instituídas [...]. Para tudo há uma resposta prévia, uma conduta fixa, igual para todos. Assim, não entramos em contato com o outro, com nossos sentimentos, nossa existência". Isso se faz através de transformações no processo de trabalho que possam produzir outra cultura organizacional, inventando o cuidado de maneira conjunta e permitindo ao profissional refletir sobre como se sente na relação de cuidado.

As transformações nos padrões de relacionamento exigem do profissional disposição e se concretizam na reflexão constante acerca do próprio trabalho, sendo esse o início da formulação das perguntas, que muitas vezes não possuem respostas prontas e exigem dedicação da equipe em sua construção. Refletir sobre o próprio trabalho, por sua vez, pode ser fonte de sofrimento para a equipe, uma vez que implica em escolher uma maneira de produzir cuidado diferente da biomédica. Essa escolha rompe com a lógica da queixa-conduta e leva o profissional a assumir uma posição de semelhança com aquele que cuida, exigindo que ele também se reconheça naquele sofrimento-queixa-sintoma.

Muitas vezes, pela forma com que está organizado o trabalho em saúde, tornam-se escassos os momentos em que os profissionais podem refletir sobre a própria prática. A organização de uma rotina por procedimentos e a partir de queixas produz um serviço focado na execução de técnicas e não no processo de trabalho e elaboração de projetos de cuidado, servindo somente como mais um mecanismo de controle dos corpos, sem promover o autocuidado dos usuários.

A ESF, apesar de ter como fundamento um cuidado longitudinal e partindo do território, comumente reproduz o modelo biomédico de atenção à saúde, com um cuidado fragmentado e protocolar. Estar ao lado do profissional, construindo um modo de cuidar que se aproxime dos fundamentos da ESF, através de um fazer compartilhado e da discussão de práticas é um caminho para a transformação. No entanto, a mudança nas relações exige também um trabalho cotidiano de estar ao lado do usuário e compreender seu sofrimento.

Uma das formas de trazer essas reflexões às equipes da Saúde da Família são os espaços de educação permanente, que proporcionam ferramentas e situações para repensar a prática cotidiana e que facilitam a troca de saberes. A Educação Permanente (EP) constitui uma alternativa coerente e adequada para desenvolver e promover transformações no processo de trabalho em saúde, que vão em direção do trabalho vivo em ato, posição defendida por Merhy (2002). Em sua dimensão pedagógica, ela constitui-se como uma ferramenta de produção de conhecimentos no cotidiano das instituições de saúde, a partir da realidade vivida pelos atores envolvidos, tomando os problemas enfrentados no dia-a-dia do trabalho e as experiências desses atores como base de interrogação e mudança. A educação permanente parte das ideias de 'ensino problematizador' (inserido de maneira crítica na realidade e relações horizontais) e de 'aprendizagem significativa' (focada nas experiências anteriores e nas vivências pessoais). Ou seja, ensino-aprendizagem embasado na produção de conhecimentos, que respondam às perguntas já pertencentes ao universo de experiências e vivências de quem aprende e que gerem novas perguntas sobre o ser e o atuar no mundo (Ceccim, 2005).

A EP enquanto dispositivo das políticas de saúde passou a constituir uma estratégia central do Sistema Único de Saúde (SUS) para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para a saúde. Como destacam Ceccim e Ferla (2008), a EP tem se apoiado principalmente na vinculação entre formação, gestão, atenção à saúde e participação social e na construção da rede SUS como espaço de educação profissional. Com foco em processos de aprendizagem reflexiva, a educação permanente apresenta o modelo de cuidado do Apoio Matricial como um de seus formatos, sendo este entendido como uma forma de organizar a rede de cuidados à saúde e de desenvolver assistência clínica. Esse modelo também prevê a troca e construção de saberes entre serviço especializado e Atenção Básica, sem que esta deixe de ser a referência para o usuário.

Segundo Oliveira (2008), o Apoio Matricial tem como proposta a construção conjunta de conhecimento e troca de saberes entre a equipe de Apoio e de Referência, o que permite maior qualificação e articulação da rede de serviços. Esse dispositivo precisa ser uma ferramenta para a mudança da lógica do cuidado e para a transformação do olhar sobre a realidade em que o profissional intervém.

O Apoio Matricial, tal como proposto pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2004), põe em xeque a idéia tradicional de referência/contrarreferência, feita apenas por formulários, e permite que os diversos atores do cuidado façam uma discussão efetiva sobre suas responsabilidades e possibilidades. Essa construção pode acontecer de forma prática, através de atendimentos e visitas domiciliares conjuntos e discussões de casos, ou através de momentos formais de discussão, como seminários sobre assuntos de interesse e/ou dificuldade pertinentes ao trabalho da equipe. Não somente com o objetivo dos profissionais aprimorarem procedimentos, mas como ferramenta de trabalho para a mudança no modo de olhar. No entanto, muitas vezes, acontece do apoio se institucionalizar em um serviço ou se personificar no profissional apoiador.

Além dos temas e casos a serem discutidos, os serviços/equipes que prestam Apoio Matricial "passam a ter dois 'usuários' sob sua responsabilidade: 'os usuários do serviço' para o qual ele é referência e 'o próprio serviço'" (Brasil, 2004, p.11). É papel do apoiador colocar em análise o serviço, refletindo acerca do seu funcionamento, suas ofertas e, principalmente dos objetivos norteadores do trabalho, que podem aparecer de maneira clara ou como orientação ideológica. Muitos dos profissionais que atuam na ESF formaram-se no modelo que trabalha com a doença e não com o sujeito, o que torna emergencial a construção de um novo modo de cuidar que não encarcere o sofrimento, mas possa ressignificá-lo.

Trabalhar com a construção do conhecimento é também função do Apoio Matricial, e essa mudança nas concepções de cuidado provocam no trabalhador uma nova maneira de olhar e intervir com o usuário, fazendo com que o próprio trabalhador se transforme no processo. Oliveira (2011) coloca que o apoio consiste da proposta de uma reaproximação do mundo do trabalho com o mundo da vida, buscando dar novo sentido ao cuidado e aos saberes produzidos, formal e informalmente, pelos sujeitos-profissionais de saúde. Para tanto, é necessário construir com esse profissional uma nova concepção de saúde-doença-sofrimento; proporcionar uma mudança no olhar para o usuário em sofrimento, considerando-o como sujeito capaz de produzir o próprio cuidado.

Conseguir estar ao lado do sujeito em sofrimento exige a mudança nas concepções de saúde-doença como conceitos opostos para que eles passem a ser processo e parte da vida. Essa transformação, no entanto, exige uma mudança na postura profissional, que dificilmente ocorre em meio a um trabalho burocrático e protocolar. Provocar, a partir do matriciamento, a transformação do olhar de uma equipe de Saúde da Família sobre o sofrimento constituiu-se como o principal objetivo da intervenção estudada.

 

Recorte Teórico-Metodológico

Esta investigação é fruto de um trabalho de conclusão do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade (PRMSFC) da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Trata-se de um programa que abarca nove áreas da saúde não-médicas (psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia, nutrição, educação física, serviço social, farmácia, odontologia e enfermagem), distribuídas em Equipes de Saúde da Família, atuando no modelo de matriciamento, ou seja, implicando a relação de trabalho e apoio entre as equipes de referencia e as equipes matriciais. Estas últimas têm como objetivo operar a troca de saberes, o fortalecimento e a ampliação da atuação clínica das equipes de referência. O Apoio, nesse caso, também se dá como parte do processo pedagógico, propondo que o aprendizado, na forma de treinamento em serviço, aconteça através do trabalho. Pelo fato de o Programa ter como proposta o fortalecimento da Atenção Básica, torna-se possível o desenvolvimento de um projeto em que se propõe a transformação do olhar de uma equipe de Saúde da Família sobre seus usuários e sobre o processo saúde-doença.

O presente estudo apoia-se em uma abordagem qualitativa de pesquisa - a pesquisa intervenção, que é coerente com os campos da Psicologia Social Comunitária e também da Saúde Coletiva. Tem como interesse investigar, compreender e intervir em questões vividas de forma cotidiana pelos sujeitos alvo da pesquisa, ou seja, profissionais de saúde que atuam na Atenção Básica, e que tenham relação com a questão do sofrimento e de como esses trabalhadores lidam com ele. Indiretamente, o artigo trata também do que trazem os usuários destes serviços e suas queixas a respeito do sofrimento. Desta forma, a abordagem etnográfica mostra-se como importante instrumento para apreender como estas pessoas "[...] constroem e dinamizam processos sociais, como a subjetividade se expressa, como atribuem significado às situações sociais que ganharam uma organização formalmente constituída" ( Sato & Souza, 2001).

A pesquisa-intervenção pressupõe um trabalho conjunto entre pesquisador e comunidade na busca de entendimento sobre os processos e problemas colocados, planejamento e execução de ações e programas voltados ao enfrentamento e transformação de uma dada realidade (Brandão, 1987; Minayo, 2000; Paulon, 2005).

Foram convidados a participar da pesquisa os profissionais de uma equipe de Saúde da Família que faz parte do cenário do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade (PRMSFC - UFSCar) e a rede municipal de saúde que, por ser uma Rede Escola, recebe sistematicamente alunos de graduação e de pós-graduação em seus serviços.

Vale destacar que uma das autoras, era (à época do estudo) residente psicóloga do PRMSFC-UFSCar, portanto, fazia parte de suas atividades o matriciamento da referida equipe de saúde da ESF, e como tal, em seu percurso de formação em serviço foi observando e produzindo questionamentos sobre os modos de receber, acolher, enfrentar e vivenciar as demandas ligadas a sofrimento no cotidiano do trabalho. O trabalho de campo ocorreu no primeiro semestre de 2011.

A pesquisa-intervenção (Brandão, 1987; Minayo, 2000) considera que o conhecimento é construído conjuntamente entre pesquisador e participantes, ao mesmo tempo em que é executado; constrói-se um saber-fazer. Essa proposta metodológica não separa a pesquisa da intervenção, por isso, o pesquisado sai do lugar de objeto e passa ao estatuto de sujeito produtor da realidade. Considerando que toda pesquisa é uma intervenção e que a presença do pesquisador produz uma nova configuração, esse método explicita a relação pesquisador-pesquisado, considerando que "o observador está sempre implicado no campo da observação e a intervenção modifica o objeto." (Passos et al., 2009, p.21)

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), segundo parecer n° 146/2011, atendendo às normas da Resolução 196/06.

Nossa investigação baseou-se no modelo de Apoio Matricial, construindo conjuntamente saberes sobre a questão do sofrimento, partindo não somente do ensino de conceitos teórico-práticos, mas de experiências que os próprios profissionais e estudantes traziam de suas vidas e, do contato com o usuário, questões ligadas ao tema, uma vez que eles também são sujeitos com história e precisam estar implicados no cuidado.

Foram estruturados espaços formais de discussão por meio de oficinas realizadas durante as reuniões de equipe. As oficinas tiveram duração de uma hora e meia, totalizando cinco encontros realizados quinzenalmente às quintas-feiras, os dias fixos das reuniões de equipe.

A explicitação da proposta de pesquisa, os objetivos, os critérios de participação, assim como o convite para integrarem as oficinas ocorreu no espaço da reunião de equipe. A pesquisadora apresentou a proposta de pesquisa, ressaltando os objetivos e o método de pesquisa de campo. Esclareceu os critérios de participação e a importância e possíveis ganhos daquela proposta para o cotidiano de trabalho no serviço de saúde. Observou-se que, inicialmente, não ficou claro aos profissionais como seria a operacionalização das oficinas, pois acreditavam ser esta uma pesquisa nos moldes tradicionais, com questionários ou entrevistas, o que os desestimulava por julgarem que não transforma efetivamente a realidade. No entanto, o método foi sendo compreendido ao longo das oficinas, que aconteceram como momentos produtivos e diferenciados do cotidiano, nos quais os trabalhadores puderam repensar a própria prática e os vínculos construídos em equipe e com os usuários.

O número de participantes variou por encontro de onze a vinte pessoas, dependendo da disponibilidade dos profissionais e com a participação pontual de estudantes e residentes. Dos encontros, participaram os seguintes profissionais, residentes e estudantes: cinco agentes comunitários de saúde, um dentista, um médico, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem, um auxiliar odontológico, um residente de cada área (farmácia, fisioterapia, educação física, serviço social, nutrição, psicologia) e seis estudantes de medicina.

A temática inicial das oficinas versava sobre as representações e experiências de sofrimento, tanto na vida pessoal quanto no trabalho. De acordo com os conteúdos que foram surgindo nos encontros, as temáticas seguintes eram definidas, de modo a aprofundar os objetivos da investigação. Os dados produzidos no campo empírico deste estudo foram retirados exclusivamente das oficinas, não havendo uma entrevista prévia ou posterior com os participantes.

As oficinas foram trabalhadas a partir da questão do sofrimento, como apontado na introdução do artigo, mas enfocando diferentes aspectos e se iniciaram com atividades que propusemos. O Quadro1 mostra as cinco oficinas e seus respectivos temas, distribuídos cronologicamente:

Os registros foram feitos através de gravações em áudio das oficinas e de diário de campo com a descrição detalhada das atividades, incluindo sentimentos e dificuldades da pesquisadora. A partir desse material foi feita a análise dos conteúdos trazidos pelo discurso e reflexões dos participantes nas oficinas, assim como do processo grupal, buscando demonstrar os significados explícitos e implícitos à fala. Através da análise temática dos conteúdos, considerando os dispositivos trabalhados nas cinco oficinas, entendemos cada tema como uma unidade de significação complexa. Fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que constituíram o processo de comunicação que, no caso deste estudo, constituem-se das dinâmicas comunicacionais produzidas nas oficinas.

A análise foi feita partindo das seguintes etapas: pré-análise, na qual o material transcrito foi selecionado e os objetivos do estudo resgatados; leitura flutuante, através do contato direto e intenso com o material; interlocução entre as hipóteses iniciais, as emergentes da leitura e aquelas retiradas da literatura; constituição do corpus de análise, na qual houve busca pela exaustividade do material - saturação, representatividade, homogeneidade, pertinência de conteúdos que correspondam aos objetivos do trabalho; e exploração do material, na qual buscamos alcançar o núcleo de compreensão do texto e construir categorias explicativas/significativas. Esta investigação é um recorte da realidade de uma equipe de Saúde da Família em alguns momentos de reflexão e transformação. Mudanças ou cristalizações aconteceram ao longo do trabalho, e a análise não permite abarcar toda a complexidade e dimensão desse processo.

 

Resultados e Discussão

Os profissionais e estudantes participaram das oficinas de maneira muito variada, alguns discutindo ativamente os temas propostos e outros, apesar de pouco se manifestarem, apresentaram uma postura de interesse ao longo do trabalho. Considerando que a oficina era produto de uma pesquisa e da participação voluntária, o envolvimento da equipe reafirma o potencial de transformação do espaço da reunião em um momento de reflexão sobre o cotidiano e com impacto na organização do trabalho.

O encontro entre os diversos saberes e experiências aconteceu de forma horizontal e dialógica, sem que se considerasse um sujeito detentor do saber, lugar geralmente ocupado pelo pesquisador; nem sujeitos desprovidos de conteúdos, pois a experiência prévia e a história de vida dos participantes foram tratadas como parte importante do processo. De maneira interdisciplinar foram trabalhados conceitos e experiências trazidas pela pesquisadora e pelos participantes, como forma de elaboração de um conhecimento acerca do cuidado ao sofrimento.

Os temas levados pela pesquisadora através dos dispositivos foram trabalhados de diversas maneiras. Eles já traziam em si críticas ao encarceramento do sofrimento, como a medicalização e o excesso de diagnósticos. Com a problematização desses conteúdos, foi possível repensar o ideal de saúde e o processo saúde-sofrimento-doença, segundo o qual olhamos para o usuário. Exemplos retirados do cotidiano da equipe e experiências trazidas pelos participantes foram os caminhos para a explicitação dos conceitos, ora através da ligação entre conceitos e elementos do cotidiano, ora como respostas às questões do trabalho.

Metáforas e exemplos foram incorporados ao discurso durante o processo e passaram a colaborar na sistematização teórico-prático do conhecimento ali produzido, como na metáfora elaborada pela ACS 1 sobre a resistência quanto ao processo de reflexão: "Não, porque no meu baú eu não quero mexer. É lógico! É mais fácil pegar meus problemas e guardar do que ficar revirando eles, né." (ACS 1) A metáfora foi retomada na mesma oficina, mas em outros momentos, produzindo reflexão sobre a implicação dos sentimentos mobilizados no cuidado, mediada pela pontuação da pesquisadora: "abrir esse baú não é tão fácil, nem pra quem tá abrindo o próprio, e nem pra quem tá do lado." (Pesquisadora); e da Residente 1 quando cita que "às vezes a gente fica mexendo no bauzinho dos outros, mas a gente tá mexendo no nosso também. Inclusive aqui, quando a gente tá discutindo isso, tenho certeza que cada um estava pensando nos seus problemas" (Residente 1).

Os conceitos apresentados pelos participantes apareciam tanto como conhecimento teórico, através de termos científicos ou diretrizes da ESF, quanto como experiências pessoais ou do contato com o usuário. Ambos traziam para a discussão elementos do cotidiano referentes ao processo social de produção de sofrimento e a respectiva maneira de lidar com ele, assim como de casos e histórias do território em que estavam inseridos.

Considerar somente a dimensão teórica dificilmente mudaria o olhar dos participantes de maneira a transformar o processo de trabalho. Essa mudança previa a sensibilização quanto ao sofrimento pela desnaturalização daquilo que já estava estabelecido, ou seja, a resistência a ouvir queixas psicológicas, a tendência a encaminhar para um especialista psi situações de manifestação emocional (choro, raiva, medo), compreensões patologizantes sobre relatos de sofrimentos cotidianos e conflitos interpessoais que apontavam para soluções medicamentosas. Para isso, foi preciso trabalhar de maneira lúdica e vivencial, como destacado pelo médico da equipe: "o legal é que você fala as coisas técnicas sem fazer um manual" (Médico).

Fazia parte do cotidiano da equipe refletir sobre seus problemas e, quando necessário, reorganizar o processo de trabalho, parecendo-lhes o estudo apenas mais um desses momentos. Trata-se de uma equipe muito continente aos problemas de seus usuários e que os apoia nas questões mais graves, com profissionais que se colocam no lugar de cuidadores, atuando de maneira muito comprometida com seu território. No entanto, muitas vezes, ultrapassam sua própria governabilidade, fazendo pelo sujeito, tutelando ao invés de coproduzindo autonomia.

Os participantes também se questionaram sobre isso através da discussão do modelo de cuidado adotado, como explicitado pelo profissional médico:

Ela [a pessoa, o usuário]quer que você resolva uma situação da vida dela, e aí às vezes a gente se pega como tem que salvar né, ó tem que pegar, tem que mudar a casa, tem que arrumar a sujeira. E, enfim, talvez pro meu valor tenha que ser assim, mas a pessoa talvez tenha uma outra necessidade, o problema não é bem esse.(Médico)

As experiências dos participantes e a sua visão sobre os temas proporcionaram a construção de uma reflexão sobre os modelos de cuidado, a partir da significação dada pelos próprios profissionais ao sofrimento. Trabalhar não somente com a aprendizagem cognitiva, mas pela aprendizagem significativa a partir das próprias vivências e pela sensibilidade, permitiu ao Apoio Matricial ser uma prática de reconstrução da realidade de cuidado e não somente a transmissão de técnicas. Como aparece na fala da Residente 2: "Eu acho que é uma troca mesmo com a equipe, um momento de parar, de se conhecer, de pensar também e de se perceber nesse trabalho com o outro."

Apesar de reconhecerem a escuta como importante ferramenta do cuidado, os participantes tiveram dificuldades em trabalhar os próprios momentos de sofrimentos e de se colocarem na posição de sujeitos a serem cuidados. Quando a proposta de trazer à tona elementos da própria subjetividade se concretizou, as dificuldades tonaram-se mais intensas, pois assumir o lugar de alguém que também sofre significou questionar a imagem que faziam de si como uma equipe forte. Foi notável, principalmente quando os dispositivos propunham que se produzisse algo da própria subjetividade ou entrasse em contato com conteúdos emocionais, que alguns dos participantes incomodaram-se e utilizaram defesas, como o humor, para dissipar a atividade ou a discussão.

As oficinas, por seu caráter expressivo, permitiram o reconhecimento mútuo como sujeitos que sofrem, ultrapassando a impressão de neutralidade profissional que tinham uns dos outros. Essa percepção demonstrou que alguns profissionais considerados inabaláveis também passaram por experiências de sofrimento, como descrito pela pesquisadora em Diário de Campo: "No entanto, o mais curioso eram as pessoas ao redor, que choravam ao ouvir a cena (...). E ao final do encontro um agente comunitário de saúde relata a importância em saber que também sofre alguém que julgavam ser tão forte, ser inatingível".

Esse reconhecimento da alteridade, de empatia pelo outro que sofre, pode estender-se para o cuidado com o usuário, invertendo a lógica de produção de conhecimento: ao invés de partir do estudo do objeto para uma proposta de cuidado vertical, transita-se do entendimento de seu contexto para a situação horizontal do profissional colocar-se no lugar do sujeito. Tal como ilustra a fala da Agente Comunitária - ACS 1:

É que a gente não tem paciência pra ouvir. A gente tem pressa. O outro tá falando e você tá louco pra eleparar de falar pra você sair, porque eu tenho outra coisa pra fazer. É assim mesmo, com a gente, às vezes você tá precisando conversar com o outro, você tá angustiado, você quer falar, o outro te deixa falando sozinho, ele ignora sua dor.

A ideia de alteridade trabalhada nas oficinas permitiu aos participantes refletirem sobre conseguir ou não colocar-se ao lado do sujeito que sofre, construindo de maneira compartilhada respostas clínicas e psicossociais. Os profissionais atribuíram o tipo de intervenções que fazem a algumas causas, entre elas a empatia e a identificação com determinado usuário, e perceberam que isso ocorre porque vivenciam a própria subjetividade reproduzida nas histórias dos usuários. Esse reconhecimento foi considerado um importante determinante do cuidado que se seguiria, pois a partir dele é que o profissional está mais ou menos disponível.

Apesar da identificação, os próprios profissionais destacam a singularidade de cada história como fator primordial no entendimento do contexto do sujeito. Pela singularidade, as propostas serão construídas com o usuário, e não formatadas a priori, reconhecendo que a resposta encontrada para seus problemas pelos profissionais pode não servir ao usuário. Quando o sofrimento é contextualizado, o problema torna-se complexo e a clínica se amplia, sendo papel do profissional construir com o usuário saídas possíveis para seu sofrimento que, ao contrário da resposta pronta, exigem tempo para suas construções. Esse tempo é da longitudinalidade, priorizado na Estratégia Saúde da Família, que consegue conhecer o usuário ao longo do tempo e entender sua dinâmica subjetiva, sua condição de vida, sua rede de apoio. Como explicita a Auxiliar de Enfermagem 1 ao falar do atendimento a uma usuária: "Ela veio medir a glicemia, e estava alta, pra variar, e aí ela contou problema, chorou, chorou, chorou, falou do emprego. Outro dia ela veio de novo, aí eu já comecei a conhecer a dinâmica."

Discutir a questão do sofrimento implicou diretamente o questionamento acerca do acolhimento e da escuta realizados pelos profissionais. Reconhecendo a necessidade da qualificação, os profissionais destacaram momentos em que não foram acolhedores com os usuários, atribuindo à falta de tempo a responsabilidade pela sua postura, uma vez que julgam que esse tipo de cuidado exige disposição muito maior do que a reprodução de técnicas. Essa alienação da responsabilidade sobre o processo de trabalho, atribuindo a uma entidade como o tempo a solução do problema, mantém o profissional cristalizado em um cuidado veloz, que se resume à aplicação de procedimentos, sem levar em conta o sujeito.

Os participantes foram incentivados a problematizar o trabalho na ESF como um reprodutor de procedimentos que estejam de acordo com o modelo de produção capitalista. As ciências da saúde, que seguem o modelo biomédico de produção da saúde, são regidas preferencialmente por protocolos, colocando para a equipe o paradoxo de trabalhar com o conhecimento científico de forma inquestionável e ao mesmo tempo manter uma postura humanizada e acolhedora. A noção de um profissional neutro e que não se envolve com a realidade do usuário, ele mesmo asséptico, foi trazida como elemento que dificulta o olhar sobre o sofrimento, uma vez que ouvir o outro implica em ouvir o seu próprio sofrimento, como trazido pela Residente 3: "a gente começa achando que vai pensar em como lidar com o usuário, mas acaba que isso mexe com muitas coisas nossas. Acho que em todos os momentos em que eu estive presente minha cabeça estava borbulhando."

Por trabalhar com o sofrimento a partir da mobilização das dimensões cognitivas e afetivas, as discussões durante as oficinas puderam questionar o lugar do patológico atribuído ao sofrimento e a consequente medicalização da vida cotidiana. Por falarem de si, os participantes resistiram a tratar o sofrimento somente como uma doença, uma vez que o percebem como um produto da sua relação com outras pessoas e com o mundo. Destacaram-se aqueles profissionais que haviam recebido em suas vidas diagnósticos de patologias referentes a momentos em que viveram intensamente algum sofrimento.

O sofrimento, discutido em suas diversas faces, foi considerado pelo grupo como parte do cotidiano, que em alguns momentos necessita de cuidado. Foi trazido como falta e incômodo, reproduzindo a concepção social, mas sem deixar de ser questionado. A própria equipe trouxe em alguns momentos a dificuldade em lidar com o sujeito em sofrimento, principalmente quando não há uma causa ou sinal explícito desse sofrimento no corpo, dependendo exclusivamente do olhar do cuidador: "a questão acho que é da sensibilidade de quem cuida". (Residente 2)

Foi possível trabalhar com a questão do sofrimento, buscando superar uma concepção fragmentada sobre o corpo, relacionando problemas orgânicos e emocionais. O sofrimento gerado em função da busca para alcançar os padrões dos ideais sociais pôde ser trabalhado com a equipe, questionando-se a determinação dos limites de saúde e doença em padrões prévios e afirmando a importância de perceber este limite como um processo que deve ser avaliado dentro do contexto de cada sujeito.

O impacto da pesquisa sobre a equipe foi o de mobilização, tanto de conteúdos subjetivos como das verdades já cristalizadas. Em muitos momentos, as oficinas foram avaliadas como transformadoras do processo de trabalho, como mostra o depoimento da Dentista:

E mexe com todo mundo, né, mexe com a gente, mexe com o agente, mexe com o atendimento que a gente faz, a gente se coloca em ocasiões através dos exemplos, todo mundo já viveu um pouquinho, e acho que só fortalece, a gente consegue compreender algumas coisas, né. Eu acho que dá pra aprender algumas coisas, algumas coisas que a gente faz que não tava certo, a gente acha que é certo, que é natural, mas não é. Toda vez que você coloca alguma coisa acho que a gente entende um pouquinho mais o que você tá falando, né, a postura.

Ao final das oficinas, a equipe elencou sugestões concretas para serem aplicadas na Unidade de Saúde da Família direcionadas à proposta de continuidade do processo de reflexão, o que revela a importância que esta pesquisa-intervenção teve na reestruturação do processo de trabalho e na transformação do olhar sobre o sofrimento, o seu próprio e o do outro.

 

Conclusão

A proposta de falar de si antes de pensar no cuidado com o outro, compartilhando experiências de sofrimento, mostrou-se significativa na mudança da percepção dos participantes enquanto equipe. Discutiram fragmentos importantes das suas histórias, compartilhando seu próprio sofrimento e promovendo o sentimento de alteridade. As discussões aconteceram de maneira horizontal e pela troca de saberes, produzindo um conhecimento através da reflexão do grupo sobre o tema.

A sensibilização sobre a questão do sofrimento proposta pela pesquisa ocorreu efetivamente, concretizando um modelo de Apoio Matricial que se pauta na produção de saberes não somente pela compreensão cognitiva, mas através da relação, envolvendo necessariamente os sentimentos e a afetividade.

O tema sofrimento é, muitas vezes, restrito à área da Saúde Mental, sendo prática corriqueira o encaminhamento de sujeitos em qualquer nível de sofrimento ao psicólogo ou outro profissional da área. Este estudo, no entanto, pôde trabalhar com a Saúde Mental como eixo transversal da Estratégia Saúde da Família, propondo um cuidado que tome o sujeito de maneira integral e inclua seu sofrimento no processo saúde-doença e como parte da vida.

 

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Recebido em: 16/07/2011
Aceito em: 07/07/2012

 

 

1 Contato: dbaracho@yahoo.com.br